[Daumload] LANÇAMENTO Livros Loureiro: Mandingo - Kyle Onstott

MANDINGO
KYLE ONSTOTT


Circulo de Leitores

Título do original

MANDINGO

Tradução de: MARIA CLARISSE TAVARES

Sobrecapa de: CÃMARA PEREIRA

Revisão de: LUIS BAÇÃO

EDIÇÃO INTEGRAL LICENÇA EDITORIAL PARA 0 CIRCULO
DE LEITORES


POR CORTESIA DE EDITORA NOVA ERA COMPOSTO EM
GARAMOND 10110 POR GRIS IMPRESSORES IMPRESSO E
ENCADERNADO POR PRINTER PORTUGUESA
NO MÊS DE MARÇO DE 1977
PRIMEIRA EDIÇÃO: 20.000 EXEMPLARES
É PROIBIDA A VENDA A QUEM NÃO PERTENÇA AO CIRCULO


Rancho de criação humano,

Por trás das saias rodadas e do conceito de hospitalidade, do xarope
de hortelã-pimenta e das magnólias em flor do Velho Sul, havia um


mundo de cuja existência poucas pessoas sabiam -um mundo de
violência, de crueldade, cupidez e desejo.

Mandingo traz-nos à vida real os sons, os cheiros, a terrível
realidade dos ranchos de criação humana e das plantações onde
homens e mulheres eram acasalados e criados como gado. .

Podem adorar Mandingo ou podem odiá-lo, mas não conseguirão
pô-lo de lado, porque é um romance terrível e maravilhoso!

Dedicado à Vicky e ao Philip,

evidentemente.

Que é um mandingo?

Os Mandingos são uma tribo hamítica do Sudão Ocidental, que se
crê ter origem árabe ou berbere, e quase todos os seus membros são
muito perfeitos, fortes, resistentes e robustos. Os de raça pura eram
de uma bela cor de cobre e tinham feições mouras, diferentes das
dos negros.

0 reino dos Mandingos, com a sua dinastia que durou séculos, foi
estabelecido por volta de 1200 a. D., ou talvez antes mesmo, e tinha
a sua capital em Timbuctu. 0 Corão era a base da educação e o
alfabetismo estava mais espalhado entre eles do que nas culturas
contemporâneas da Europa.

Os Mandingos não são de modo algum negros. Estão talvez mais
relacionados com os Anglo-Saxões que com os negros das florestas


das Costas do Ouro, do Marfim e das Especiarias na África
Ocidental.

Não obstante, foram apanhados juntamente com os verdadeiros
negros e feitos escravos, quando os negreiros conseguiam adquirilos.
Valiam muitíssimo nos ranchos de criação de escravos, por
causa da sua força, do seu vigor, beleza, sensibilidade e inteligência.

Só alguns mandingos, em pequena quantidade, foram trazidos para
a América do Norte.

0 Mandingo do meu romance é um belo escravo à volta do qual gira
uma complicada teia de violência e de cruas emoções.

Ky1e Onstott

Capítulo primeiro

0 velho ouviu fechar a porta da frente e os passos claudicantes no
vestíbulo. Ficou satisfeito por ver que o seu filho manifestara o bom
senso de mandar os negros para casa a meio da manhã e livrar-se da
chuva fria e penetrante de Fevereiro. Além de se sentir preocupado
por o rapaz ficar exposto aos elementos, ansiava pela companhia do
filho, sempre que ele se sentia inclinado a largar as suas viagens
infatigáveis e a beber com ele, em frente da lareira. Quando a porta
da sala se abriu e Hammond surgiu, à entrada, sobre a larga soleira,
Maxwell percebeu que o trabalho não tinha sido adiado.
-0 Big Tom não vai rebentar comas pontes, julgo eu, como fez há
três anos, mas está cheio de forças. A água já passou das marcas



comunicou o jovem, com um tom de ansiedade na voz. -E esta
chuva não dá sinais de parar.
-Senta-te, senta-te -acalmou-o o pai. -Há cinquenta anos que o
velho Tombigbee se enfurece de vez em quando, que eu me lembre,
e há-de fazê-lo mais outros cinquenta. Nunca chegou até à casa. Não
consegue, estamos numa colina. Nem sequer chega às cabanas,
embora uma vez inundasse a casa das reuniões, logo que a
construíram. Senta-te e manda Mem preparar-te um toddy. Num
dia frio como este, há-de fazer-te bem.
-Acho que não. Não tenho tempo -disse o rapaz.
-Tens todo o tempo que há -contradisse o pai. -Não podes impedir

o Tombigbee de provocar inundações, desde que isso lhe apeteça.
Espera-se e ele acaba por descer.
-E leva com ele toda a boa terra preta de Falconhurst -acrescentou
Hammond.
-Supondo que a leva, que se há-de fazer? Suponho que a leva, filho?
Não há muita. A terra de Falconhurst tem sido muito usada pelos
negros, de qualquer modo. Pelo menos, não se pode empurrar o
velho Tom para trás à vassourada, mesmo que tu e todos os negros
o vão varrer.
Hammond encolheu os ombros.
-Acho que não -disse. -Parece que nada posso fazer. Tenho que
ficar a vê-lo avançar. Além disso, pus os rapazes a cortar árvores.
Tenho de ir lá.
-Este tempo não é bom para abater árvores -declarou o velho. Pode-
se apanhar a febre dos pulmões, com esta chuva fria. Um dos
rapazes pode apanhar a febre e morrer-te para ali, e vale mais do
que todas as estacas e que toda a madeira que consigas cortar em
dez anos; só um deles, para não falar em ti.
-Eu estou quente, pai, com este casaco e o resto. Não se rale comigo.
E cortar árvores mantém os negros quentes. Não pense que vão
morrer por isso.


-Eles são tanto teus como meus, filho. Acabas por os matar com
trabalho. E se tu morres, enterro-te, embora te jure que me apetecia
fazer outra coisa.
Hammond atravessou a sala para beijar o pai, antes de voltar ao
trabalho, cerimónia que inadvertidamente omitira à chegada.
Quando se inclinou sobre o velho, pegou no copo de toddy e bebeu
um golo.
-Bebe mais, bebe mais -insistiu Maxwell. -Faz-te bem, filho. De
qualquer modo já está frio, para o meu gosto. Preciso de outro, e
sempre posso pedir àquele preguiçoso do Meirmon que me prepare
outro.
-Só um golo chega-me -disse Hammond, e depois perguntou: -0
Mem não está a tratar bem de si? Eu já o ponho a mexer, quando
voltar para o trabalho.
-Não vale a pena, não vale a pena! Eu chego para lhe dar uns
berros. Mas precisa de ser endireitado. Não posso fazer isso, no
estado em que estou. Tu é que tens de o endireitar. Umas
mordidelas do chicote curam-lhe a preguiça.
-E só dizer e eu arranco-lhe a pele do rabo! Como se tem sentido?
Parece que fica sempre pior, com este tempo. -Enquanto falava,
Hammond levantou a mão do pai e observou as articulações
inchadas.
-Mal, hoje mal. Pior que nunca, parece-me. joelhos, cotovelos,
costas e mãos, todo eu.
-Há-de sentir-se melhor quando o tempo aquecer. Chegue-se bem à
lareira,, deixe-se cozer -aconselhou o filho.
-E o que eu faço, eu bem me cozo -concordou o pai. -0 melhor que
há para o reumatismo é o uísque. Farto-me de beber toddy. É a
única, coisa que me alivia.

-Mando-lhe um novo toddy, quando sair -disse o rapaz. -Beba
bastante.


-0 reumatismo não me estragou a voz. Posso chamar pelo rapaz
quando preciso de um toddy -disse o pai, e começou a demonstrar.
-Mem!
-gritou com voz estentórica. -Mern! Mermion! -chamou de novo,
mais alto do que antes.
Hammond dirigia-se à sala de jantar para ir buscar Meirmon,
quando o rapaz abriu a porta, com aparente alacridade, mais
fingida que real.
-Não me ouviste chamar, Mem, maldito negro vadio? Arranja-me
um toddy, mas bem quente! já! Não é para a semana que vem! ordenou
o amo.
-Sim, patrão, sim, siô, -disse o escravo, saindo.
-Posso falar contigo, posso aldrabar-te, posso pedir-te, e posso
maldizer-te! -disse o amo severamente. -Só não posso chicotear-te,
por causa do reumatismo. Mas o patrão mais novo trata disso.
0 escravo estava habituado às ameaças do patrão velho, que, até
então, não tinham dado nada. Contudo, Agamerimon não apreciava
sequer a possibilidade de execução de uma dessas ameaças, e olhou
para o Maxwell mais novo, com as pupilas dilatadas e mostrando o
branco dos olhos.
-Logo que queira eu trato dele -prometeu Hammond ao pai. – Que
julgas tu, rapaz? Quando pego no chicote, dou com força. Separo-te
a carne dos ossos. Eh?
-Não, siô, por favo, siô, patrão, siô! -respondeu o negro. -Eu mexe
bem. Eu não vai preguiçá mais!
Embora calculasse que a impaciência do patrão velho não passava
de fanfarronada, não acreditava que o patrão mais novo falasse por
falar, especialmente quando se tratava do conforto do seu pai
inválido. Merimon sabia que não era preguiçoso propriamente, mas
que era negligente e indolente e gostava de adiar as coisas, contudo
decidiu tornar-se diligente a partir dali -pelo menos durante algum
tempo, até a ira do velho se acalmar. Tinha pouco trabalho, preparar
os toddies para o velho, reavivar a lareira, servir à mesa, despir o


patrão à noite e ajudá-lo a vestir de manhã; e tratavam-no bem,
comia as viandas dos brancos, davam-lhe roupa limpa e inteira,
tinha pelo menos uma mulher ardente para dormir com ele, e
alternava-a com frequência. E era valioso, forte, de ombros largos,
de pele clara, sem cicatrizes, desfigurações ou defeitos. Sabia que
não estava à venda, embora tivesse passado dos trinta anos e
valesse mais agora do que valeria mais tarde, mas não era de crer
que o patrão mais novo se arriscasse a desfigurá-lo com o chicote,
reduzindo o seu valor, especialmente porque sabia o orgulho que os
Maxwell tinham em manter o seu gado, humano e quadrúpede,
com os membros perfeitos e saudável.

Apesar da chuva fria e dos rogos do pai, o rapaz regressou ao
trabalho, decidido a abrir mais terreno, fazer cercas, cortar madeira
para as lareiras da casa, mas, sobretudo, a manter os negros a
trabalhar. Agameirmon preparou o toddy que Maxwell tinha
pedido, assegurou-se que estava quente, como lhe tinham
ordenado, e, quando o levou à sala, verificou se o fogo ardia bem na
lareira. Sem esperar pelos gritos do velho, trouxe troncos novos de
carvalho-da-Virgínia e ajeitou-os sobre os ferros da lareira.

Maxwell, surpreendido com o ataque de diligência do escravo e
desapontado por perder rim pretexto de o insultar, apenas
resmungava perante aquilo que considerava sinal de emenda. As
suas junções atormentavam-no e levantou uma das mãos com a
outra para observar os nós dos dedos inchados. Contudo, apesar da
dor e do esforço que isso lhe custava, encheu-se de coragem, pôs-se
de pé, cambaleante, e caminhou, inseguro, até à janela, para
observar o tempo, só para provar a si próprio que conseguia fazê-lo
e diminuir o tédio de olhar para o fogo e esperar o regresso de
Hammond. As suas preocupações em relação ao tempo resumiam-
se aos efeitos da chuva persistente e de frio penetrante sobre as
dores das suas articulações que ele pensava, talvez com razão,


serem agravadas pela inclemência do tempo, mas, ainda mais que o
seu reumatismo, preocupava-o a idéia de que Hammond adoecesse
por estar exposto aos elementos. Nem se incomodava em pensar na
inundação do rio que subia, atingindo as zonas mais baixas da
plantação, o que era de prever, de tantos em tantos anos, e pouco
mais mal fazia além de arrancar uma camada de solo já exausto, que
pouco lhe interessava. Sentia-se mais tranqüilo quanto aos negros,
desde que soube que os cortadores de árvores se aqueciam a
trabalhar, e não pensou mais na saúde deles. Numa das suas
excursões, perto do meio-dia, notou que o aguaceiro tinha
diminuído e se transformara numa chuva miudinha, e perscrutou o
céu à procura de uma clareira, na esperança de que a chuva parasse
por completo. Entre os troncos da miscelânea de árvores -bordos,
tupelos, carvalhos, castanheiros, nogueiras e olmos -que, por trás
de uma vedação aos ziguezagues, se alinhavam ao longo da avenida
que conduzia à entrada principal, notou um objecto que se movia.
Não conseguia acreditar que um visitante chegasse a Falconhurst
num dia tão mau e através do lamaçal em que as chuvas tinham
transformado as estradas.
Custava-lhe a crer.
-Mem! -berrou. -Meirmon! Meirmon, estás a ouvir-me? Merrinon,
meu rafeiro negro! Vem cá! Vem cá, estás a ouvir?
Mem, que dormitava em frente da lareira da cozinha, levantou-se e
correu através da passagem aberta até à casa de jantar, e chegou à
sala.
-Sim, siô, Patrão. Chamou?
-Claro que chamei. Chega aqui à janela. Olha lá para fora. Que te
parece que vem pela alameda?
Mem olhou.
-Parece um cavalo com um siô em cima -disse ele.
0 objecto da sua observação já não deixava dúvidas, quando Mem
chegou e Maxwell conclui que nunca as deixara.


-Claro que é um senhor e é claro que vem montado num cavalo disse
desdenhosamente. -Mas quem é? Quem vem a Falconhurst
com este tempo através daquele lamaçal?
Mettirion não fazia qualquer idéia e disse-o. Contudo, o seu
interesse não era menor do que o do amo.
-Agora vai sê bom -declarou com optimismo. A chegada de
qualquer branco a Falconhurst era um acontecimento e só um
branco viria a cavalo.
0 cavaleiro surgiu na zona aberta e conseguiu ver-se que vestia uma
sobrecasaca e trazia um chapéu com as abas viradas para baixo,
como seria de esperar, e era magríssimo e não muito alto, que a sua
montada baia estava cansada, enlameada e era provavelmente
castrada, pela maneira de andar, o que fez com que Maxwell
sentisse certo desprezo.
Três crianças corriam ao lado do cavalo, levantando muito os pés
para escapar à lama. 0 homem fazia estalar monotonamente um
chicote para apressar as crianças, mas geralmente não as atingia de
propósito. De vez em quando, uma delas estremecia quando uma
chicotada lhe atingia as pernas ou as nádegas e apressava o passo,
em três ou quatro passadas.
-É apenas um negreiro -escarneceu MaxwelI, mais para si próprio
do -que para o criado.
Apesar do desprezo que pusera na voz, apressou-se a dirigir-se à
porta dupla da frente e foi até ao varandim, seguido de perto por
Agamérmion, para aguardar o seu hóspede. A profissão de compra
e venda de negros era depreciada, mas não ao ponto de se negar a
hospitalidade a quem a praticasse. 0 desprezo era para a profissão,
não para o homem. Se era um mal, era um mal conveniente. Os
negreiros poupavam aos plantadores a necessidade de ir até ao
mercado para comprar um ou dois escravos; não punham
problemas sobre os defeitos dos negros que compravam para
revenda, e eram bons agentes para os donos se verem livres dos


negros "maus"; e, o que era melhor, pagavam a pronto as suas
aquisições. Além disso, eram brancos.
Eram raros os visitantes de Falconhurst; traziam notícias. E o
desprezo de Maxwell pelos negreiros era mais uma convenção do
que uma convicção. Sabia bem que o seu lugar na hierarquia social
não era entre os cavalheiros pelo menos não entre os de qualidade,
apenas era um cavalheiro por cortesia, muito acima do negreiro,
mas não inteiramente um cavalheiro.
0 estranho desmontou rigidamente, massageou um pouco os flancos
magros para afastar o cansaço, tirou o chapéu, e disse:
-Como passa, senhor? 0 meu nome é Brownlee. Os negrinhos que o
acompanhavam afastaram-se do cavalo e, de boca aberta, olhavam
em volta, desconfiados, observando a recepção feita ao seu amo.
-0 meu é Maxwell. Warren Maxwell -disse o anfitrião, retribuindo
a saudação e identificando-se.
-Fui informado do seu nome, senhor. É bem conhecido por estas
bandas e, se me permite, muito favoravelmente.
-Assim tinha de ser. já estávamos aqui em Falconhurst antes da
revolta de 1776. -A resposta não fora dada em tom menos amável,
mas servia para sublinhar a diferença entre o cavalheiro-plantador e

o negreiro. Nenhum dos homens esboçou o gesto de apertar as
mãos -Entregue as rédeas ao rapaz; ele põe o cavalo no está bulo e
arranja cama para os seus criados. Depois entre. 0 jantar está a ser
preparado, deve estar quase pronto e como sempre óptimo.
Agamermion pegou nas rédeas, apenas para entregar a tarefa a
outro negro que tinha avançado, mais ousado do que os outros,
vindo de um canto da casa. Brownlee tinha boa vista para negros e
reparou logo que o rapaz apenas tinha dois dedos -o grande o
pequeno -no pé esquerdo. Todos os habitantes da casa observavam
o visitante, escondidos. A sua chegada era um acontecimento e
motivo de especulações e conversas em voz baixa.
Maxwell foi específico nas ordens dadas ao negro:


-Leva o cavalo do senhor directamente para o estábulo. Tira-lhe a
sela e limpa-o bem, com água quente, não te esqueças, não quente
de mais, hem? Se te apanho a lavar um cavalo com água fria nesta
época do ano, esfolo-te!
-Sim, siô, patrão -respondeu o rapaz convencionalmente.
-E leva estes negrinhos contigo e põe-os a dormir noutro estábulo e
dá-lhes pão de milho, eles que comam quanto queiram. A
cozinheira que te dê melaço com rum para o tornar mais saboroso.
Diz-lhe que eu mandei.
-A cozinheira não dá melaço cum rum prós preto se o siô não diz protestou
o rapaz.
-Diz-lhe que eu mandei. Se ela não acreditar, diz-lhe que pergunte
ao Meirmon.
-Sim, siô, patrão; cozinheira pergunta ao Memnon -repetiu o rapaz,
para não se esquecer.
Maxwell consultou Brownlee:
-Será melhor acorrentar os negros?
-Acho que não será necessário, num dia frio como o de hoje. Estão
muito cansados para correr. Claro que nunca se sabe o que passa
pela cabeça de um preto -observou. -Não fazia mal nenhum.
Maxwell voltou-se outra vez para o rapaz.
-E acorrenta os negros à parede do estábulo, a fêmea separada dos
machos. Usa daquelas correntes pequenas, para que eles não
possam fugir, depois pega nas chaves e entrega-as ao Memnon.
-Entrega chaves ao Mertirion -repetiu o negro.
-Quando a lama das pernas deles secar, arranca-a e tira-a também observou
Brownlee. -Desculpe, senhor, por dar ordens ao seu
criado -disse para Maxwell.
-Os meus criados são seus criados, senhor, enquanto nos honrar
com a sua companhia em Falconhurst, pode dar-lhes as ordens que
quiser -disse Maxwell, tranquilizando o seu convidado. -0 rapaz
pode fazer mais alguma coisa pelos seus pertences?
-Assim ficam perfeitamente, senhor, perfeitamente.



-Menuion, depois do jantar vais ao estábulo e vês o que este rapaz,
como te chamas, rapaz? -interrompeu o patrão.
-0 meu nome é Pregadô, siô, faz favô -gaguejou o rapaz.
-0 quê? Fala claro.
-Pregadô, siô. Meu nome é Pregadô.
-Pregadô? Não me agrada. Não significa nada. Gosto de nomes da
história ou nomes de deuses pagãos.
-A 'nha mãe queria que eu fosse pregadô, reverendo.
-já te dou o reverendo! Vamos já mudar-te de nome. Ora vamos a
ver: Barbarosa. já há muito tempo que não temos um Barbarosa.
Lembra-te disto, o teu nome é Barbarosa.
-Barbarosa, Barbarosa, Barbarosa -murmurou o rapaz, confuso,
mas decidido a lembrar-se da sua nova designação.
Maxwell prosseguiu as suas ordens a Meintion.
-Vê se este Barba faz tudo o que eu lhe mandei. Se ele não cuidar
bem do cavalo e dos negros, pode contar com o chicote. Percebeste,
rapaz?
-Sim, siô, patrão.
-É tudo -disse o patrão.
0 recém-baptizado Barbarosa levou o cavalo para o estábulo,
seguido pelas três crianças.
-Barba, Barba, Barba, parece-me. 0 patrão mudou meu nome de
Pregadô para Barba -fez estalar os dedos, -assim mêmo -disse para
si próprio, em voz alta. E rindo-se, encantado com a sua própria
piada.
-Barba, Barba, Bar.
-Negoceio em negros -anunciou Brownlee a Maxwell.
-já calculava, já calculava -replicou o anfitrião. -Temos que ter
negociantes, se queremos ter negros. Não podemos comê-los.
-Sei que há cavalheiros que não gostam dos negociantes de negros,
mas todos temos de viver. Que fariam os plantadores sem
negociantes de negros?



-Teríamos que semear os negros, penso eu. Não tenho nada contra
os negociantes. Tenho feito vendas a muitos; são bem-vindos em
minha casa e ao meu estábulo -isto é, desde que a minha mulher
faleceu. Era uma Hammond, filha do velho senhor Theophilus
Hammond, da Plantação Anglebranch, perto de Selma. 0 senhor
Theophilus nada queria com negreiros, era um grande cavalheiro.
Nunca vendeu um criado, nem um. Criava bons negros. Ainda me
lembro de, há vinte anos, quando os pretos eram baratos,
Theophilus Hammond pagar dois mil dólares por um macho
mestiço; muito dinheiro, nesses tempos.
-Sem dúvida. Ainda hoje, pode-se arranjar um criado bem bom,
pronto para trabalhar em casa e tudo, por uns mil e quinhentos ou
dois mil. Antes do Natal vendi um macho grande, forte e robusto,
com um metro e oitenta e ombros assim -esticou os braços -, ali
mesmo, em Nova Orleães, por mil e quatrocentos, claro, também
capaz de cobrir qualquer fêmea.
Maxwell recusou-se a abandonar o seu aristocrático sogro.
-Evidentemente, o senhor Theophilus (sendo da família, trata-o
pelo primeiro nome) costumava vender os negros maus, quando
tinha algum; ou para servir um amigo com um bom rapaz para a
casa ou uma boa costureira; ou então, mas só raramente, muito
raramente, separava-se de um macho jovem para obter dinheiro
para a Plantação de Anglebranch e para alimentar os outros, até à
colheita do algodão. Mas nunca se habituou a vender os seus
rapazes. Não confiava nos negreiros e não queria vender-lhes.
-Desviei-me muito do meu caminho para lhe apresentar os meus
respeitos -Brownlee fez uma vénia que Maxwell retribuiu, na
medida em que o reumatismo lho permitia -e para saber se não
teria criados de que quisesse ver-se livre.
-Não, não posso dizer que tenha. Mandei uma caravana de machos
jovens de primeira para Natchez, depois da colheita. Se tivesse
aparecido nessa altura, tínhamos falado, mas agora não temos nada
de primeira para lhe oferecer.


-Não é preciso que sejam de primeira. Eu ponho-os na ordem
quando chegar a Nova Orleães -insistiu Brownlee, traindo o seu
interesse.
-Se voltar a passar por aqui no próximo Outono arranjo-lhe uma
dúzia ou uns quinze jeitosos, acredite, ou uma fêmea ou duas, se
conseguir arranjá-las. Não compensa vender uma só. Os
compradores querem sempre duas pelo preço de uma.
-Não sei se poderei comprar-lhe uma dúzia de uma vez. 0 capital é
limitado, compreende, muito limitado, mas passo por cá, pode
contar com isso.
0 vento agitava os cabelos ruivos de Maxwell e ele apercebeu-se
subitamente do ar frio que podia fazer piorar o seu reumatismo.
-Parece que vem aí mais chuva. Sinto-o nas minhas juntas. E está a
pôr-se vento. Algum bem havia de vir deste maldito reumatismo;
posso prever o tempo. -Esfregou as articulações inchadas de uma
mão contra as articulações igualmente inchadas da outra. -Hei-de
lembrar-me sempre de que em 1831 foi um ano húmido, o ano em
que apanhei o reumatismo. E agora em Fevereiro começou outra
vez a ficar húmido, e o reumatismo parece que espelha o tempo.
-As estradas parecem caldo espesso, por todo o Alabama, desde
que saí da Geórgia. 0 cavalo enterrava-se até aos topetes e os
negrinhos ficavam cheios de lama até ao rabo. Tive que parar, a
certa altura, e pôr a miúda na garupa; e o chicote atrasava mais os
rapazes do que os adiantava. Estou muito satisfeito por ter tão
poucos, porque vão ficar escanzelados, ou mesmo doentes, antes de
chegarem ao mercado.
0 Sr. Brownlee suspirou, tirou os seus óculos de lentes quadradas,
esfregou os olhos azuis, porcinos, raiados de sangue, com um sujo
lenço azul, que extraiu do bolso de trás da sobrecasaca, depois tirou

o chapéu preto e enxugou com o lenço o crânio calvo, com tufos de
cabelo encaracolado por cima das orelhas. 0 seu rosto pequeno tinha
estado liso, três ou quatro dias antes, mas, naquela altura, estava
semeado de ralos pêlos negros.

-Agora, quando muito, pode descansar os ossos e engordar os seus
negros. A Plantação de Falconhurst não é nenhum palácio, mas pelo
menos não chove cá dentro; as vitualhas não são corno aquelas que
está habituado na Verandah House de Nova Orleães, mas
engordam; e o uísque pode não ser famoso, mas a água do toddy é
bem quente. É bem-vindo aqui. Esperamos que se demore algum
tempo connosco, pelo menos até o tempo melhorar.
_ Não, obrigado, acho melhor partir esta mesma noite, tanto mais
que não me pode dispensar negros. A colheita de negros é muito
magra, em toda a parte. Não consigo comprá-los em parte alguma,
nem na Virgínia, nas Carolinas, na Geórgia e agora no Alabama. E
os preços estão a subir como balões. Paguei por aqueles três
enfezadinhos tanto quanto pagava por negros de primeira, há cinco
anos -queixou-se Brownlee.
-Não há pressa -argumentou Maxwell. -Não temos a honra de
receber muitas visitas em Falconhurst.
-Tenho de ir. Tenho de ir. Aprecio a sua hospitalidade, senhor
Maxwell, mas tenho de ir-me embora.
-Amanhã de manhã talvez eu pudesse decidir-me a deixá-lo levar
um macho ou dois. Estamos cheios de rapazes, temos que os pôr
fora do caminho a pontapé, mas são muito novos para os vender
com vantagem. Por exemplo, um macho de quinze ou dezasseis
anos, com bastante pão de milho, é capaz de crescer quase um
palmo por ano, às vezes palmo e meio; já faz uma diferença de
duzentos ou trezentos dólares, no mercado. Posso alimentar e vestir
um macho em crescimento -e dos bons -por dezassete dólares por
ano; há quem faça a conta a quinze, mas é demasiada economia, se
quisermos que eles cresçam depressa e saíam de primeira.
-Preciso de. negros, preciso mesmo, Senhor Maxwell -, sublinhou
Brownlee. -Se houver possibilidades de os arranjar e os seus preços
não forem muito fortes, posso ficar e incomodá-lo por uma noite.
-Não incomoda, não incomoda absolutamente nada. Estou
encantado por poder conversar consigo. Mas lembre-se que eu disse


que talvez venda, não que vendo mesmo. Tenho de aconselhar-me
com o meu filho. Entreguei-lhe a direcção de toda a plantação, por
causa do meu reumatismo. Nem posso montar. Ele que a dirija à
sua maneira.
-Mas entre, senhor, entre e acomode-se -insistiu Maxwell, cuspindo
para a mão e arremessando para o chão um pedaço de tabaco que
guardava na boca. -É muito bem-vindo -repetiu com sinceridade. 0
jantar estará pronto logo que Ham chegar.
Brownlee parou no varandim em frente da casa, para retirar, na
raspadeira, parte da lama que secava nas suas botas.
-Não se rale com isso, não se rale -disse MaxwelI, que segurava a
porta aberta. -Não temos luxos, só carpetes baratas por toda a parte
e muitos negros gordos para limpar tudo. Um pouco de lama não
faz mal.
-Parece-me uma bela mansão -Brownlee olhou em volta. -Muito
confortável.
-0 meu avô construiu neste mesmo sítio, numa clareira, uma cabana
de troncos. 0 meu pai construiu esta cabana de nove quartos, que
era bastante boa, uma casa simples e vulgar, no seu tempo, até
bastante jeitosa, para estes sítios. Eu pensava construir uma melhor,
e bem podia fazê-lo, qualquer coisa no gênero de que o senhor Tom
Jefferson tem na Virgínia, própria para viver como um cavalheiro,
quando a minha mulher faleceu há sete anos. A minha mulher era
uma Hammond, filha do senhor Theophilus Hammond, da
Plantação Anglebranch.
-Boa família, esplêndida família -observou Brownlee.
-Eu tencionava construir uma mansão, como lhe ia dizendo,
quando ela adoeceu, com qualquer doença de mulheres, uma
nascida. Quando ela partiu desta para melhor, foi como se me
arrancassem as entranhas. Ainda não me recuperei. Larguei tudo.
Esta casa velha serve bem para o rapaz e para mim.
-Serve para qualquer pessoa, acho eu -declarou o convidado.


-É um abrigo, apenas um abrigo -depreciou o anfitrião. -Claro, se

o Hammond casar com uma senhora fina, como a mãe (e conto com
isso), provavelmente ele construirá urna bela casa na outra colina e
deixará esta para os criados. Estão muito apertados, de qualquer
modo; duas famílias com uma rapariga extra em cada cabana, e os
rapazes extra a dormir sobre palha no estábulo. Não é saudável.
Aparece por aí uma epizootia e ficamos arruinados.
Um fogo agradável aquecia a sala onde Maxwell acolhia o seu
hóspede transitório, que cautelosamente depôs o seu corpo magro
numa grande cadeira de balanço. 0 anfitrião cozia-se em frente do
fogo, alternadamente de frente e de costas, esforçando-se por aliviar
as dores reumáticas que afligiam as suas articulações.
-Meninon! Merimon! -chamou. Antes de o rapaz chegar perguntou
ao convidado: -Como gosta do seu uísque?
-Não contaminado, por favor, não contaminado.
-Um copo de uísque sem água para este cavalheiro e um toddy
para mim. Quente, não te esqueças! -ordenou ao negro.
Brownlee observou o escravo, apreciativamente. -Um rapaz esperto
declarou. -Não está para venda, suponho.
Quando Agamermion regressou com as bebidas, Brownlee parecia
mais interessado no rapaz do que no uísque. Quando o negro se
aproximou para lhe entregar o copo bem cheio, Brownlee estendeu
a mão e apalpou-lhe criticamente os músculos da perna.
-Ajoelha-te -ordenou-lhe, e passou-lhe a mão pelos ombros,
abrindo-lhe a boca passou os dedos superficialmente pelos dentes
sãos.
-Cerca de trinta anos, diria eu.
-Não tanto -observou o amo, orgulhosamente.
-Parece ter cerca de trinta, pelos dentes e pelo resto. É mestiço,
parece-me.
-Mais ou menos. A mãe era mulata e o pai branco.
-Totalmente domesticado, não? -insistiu o comprador.
-Sim, mas preguiçoso. Não se consegue fazê-lo trabalhar.


-Venda-mo e curo-o depressa.
-E é respondão. Tenho andado para o pendurar e chicoteá-lo um
bocado, mas com o reumatismo e tudo o resto, vou adiando.
-Não, não, patrão, siô -o rapaz começou a lamentar-se-Eu é um
bom nêgo; não chicoteá; vai ser bom. Não, não, patrão. Vai.
-Pára com isso -avisou o patrão. Está a ver o que eu dizia? -dirigiuse
a Brownlee. -Está sempre a falar como os brancos. E uma espécie
de animal de estimação do meu filho, e o Ham estragou-o. 0 meu
filho não se importa que eu lhe arranque a pele, mas está muito
ocupado para o fazer ele próprio.
-Penso que então não o queira vender? -interrompeu o mercador.
-Não, acho que não. Ouviu-se um passo irregular sobre o chão
rangente do vestíbulo, e Hammond Maxwell entrou, a coxear.
-Desculpe atrasar o jantar -explicou ao pai. -Dei outra volta, a
cavalo, para ver como estava o rio, depois da chuvada.
-Não estragues o jantar com preocupações. -Maxwell voltou-se
para o seu convidado. -Este meu filho é demasiado grave. 0 seu
único defeito, acredite, é amar esta maldita plantação já esgotada e
os seus pretos mais do que as mulheres brancas. Senhor Brownlee (é
esse o nome correcto, não é?), senhor Brownlee, apresento-lhe o
meu Hammond; recebeu o nome do seu avô, Theophilus
Hammond.
-Encantado pela honra da sua companhia -respondeu Hammond
cordialmente.
-Muito obrigado, senhor. Também estou encantado -disse
Brownlee, erguendo-se e estendendo a mão.
-0 senhor Brownlee anda pelo país a comprar negros para o
mercado de Nova Orleães. Não conseguiu um bom grupo e passou
por Falconhurst para ver o que temos. Achas que podemos arranjar-
lhe um macho ou dois?
-Acho que não nos podemos negar a ajudar um cavalheiro.
Teremos muito gosto em arranjar-lhe qualquer coisa -disse Ham,
para encorajar Brownlee, pois a sua noção de hospitalidade


ultrapassava o seu desprezo pela profissão do convidado. -Mas o
jantar está à nossa espera. Quer acompanhar-me à outra sala, para
partilharmos uma ligeira refeição?
-Sim, já é altura e tu deves estar esfomeado, filho, depois de
passares toda a manhã na sela -declarou o pai, com certa
preocupação, avançando para a casa de jantar.
Era uma sala enorme e nua, cuja extensão apenas era modificada
pela altura dos tectos. Contra uma das paredes encontrava-se um
enorme aparador de estilo Império, em mogno, coberto de talha,
mas de certa elegância e distinção. Contudo, a sua superfície estava
de tal modo cheia de pratas e vidros, em estilo rococó, que se
destruíra toda a dignidade que o móvel poderia possuir.
A grande mesa rectangular parecia pequena, no meio da sala longa
e alta. Estava coberta com uma toalha de damasco, de quadrados
vermelhos e brancos, pequenos no centro e maiores nos rebordos.
Mesmo no meio da mesa havia um enorme galheteiro giratório em
prata ou metal com galhetas, recipientes para condimentos e para
diversos tipos de picles. Da sua pega superior estavam penduradas
duas pinças e, em volta do seu perímetro, estavam suspensas
colherinhas de prata.
Num dos cantos da mesa encontrava-se um enorme jarro de vidro
cheio de leite espesso e amarelo, algo entre leite e creme. A mesa
estava posta para três pessoas. Os pratos de porcelana rosada eram
enormes, ornamentados com templos e pagodes chineses. junto de
cada um deles havia um pratinho para ossos, da mesma louça. As
facas e os garfos, enormes, eram de aço, com os cabos de osso
manchados de amarelo por demasiadas lavagens com água quente.
As chávenas de café vazias que se encontravam à direita de cada
prato, com as asas meticulosamente voltadas para a direita, eram da
mesma escala excessiva dos pratos. Por trás das chávenas, havia
altos copos de vidro grosso, contendo, cada um deles, um
guardanapo dobrado e passado a ferro, de modo a mostrar o
rebordo franjado.


Com excepção dos picles dentro dos seus recipientes e do sal dentro
de espaçosos pratos de pesado vidro vermelho, não havia comida à
vista.
Apesar de não haver moscas a afastar, naquele dia frio, com
excepção de três ou quatro que languidamente atravessavam o tecto
e não ameaçavam a comida, havia dois rapazes lustrosos, de cerca
de quatro pés de altura (Maxwell calculá-los-ia em doze palmos,
duas ou três polegadas), um de cada lado da mesa, agitando leques
de penas de pavão, de um lado para o outro, monótona e
incansavelmente. 0 negociante avaliou imediatamente os rapazes,
mal lhes pôs a vista em cima. Era coisa que valia a pena, coisa boa.
Que preço obteria por aquele par num negócio particular em Nova
Orleães! Sabia exactamente quais os homens, quais as pessoas que
estariam interessadas. 0 grande copo de uísque que bebera ampliou
a sua imaginação. Talvez aqueles rústicos não compreendessem o
valor daquela parelha, no mercado, devido aos fins para que seria
vendida, e ao uso que lhe seria dado. Qualquer deles, só por si, era
uma jóia. Em conjunto, gêmeos, valiam quatro ou cinco vezes mais
do que valeriam separados.
Continuou a olhar sub-repticiamente para os pequenos tratantes,
receando que o seu excesso de interesse pudesse causar
desconfiança.
Olhando de soslaio de um para o outro, não detectava qualquer
diferença. os contornos dos seus crânios bem rapados eram
exactamente iguais, as faces igualmente redondas e cheias, os
narizes iguais, apenas ligeiramente achatados, com as narinas um
pouco largas, as mesmas orelhas pequenas, a mesma boca grossa,
voltada para cima nos cantos, os mesmos olhos grandes, com íris
tão negras que era impossível detectar as pupilas. A pele dos rostos
era igual em cor e textura -um tom de âmbar-claro através do qual
brilhava o rosado das faces. A sua pele fina parecia brunida, mas de
saúde e do sabão macio que recentemente haviam aplicado para
poderem servir na sala de jantar do amo.


Até aos pequenos pés, arqueados e descalços, eram exactamente
iguais em altura, comprimento dos braços, comprimento das
pernas, lisura do peito, arredondar das nádegas. Não estavam
vestidos de igual de propósito, mas sim porque os rapazinhos de
Falconhurst, depois dos seis ou oito anos, se vestiam todos de igual,
com as camisas grosseiras e as calças mais grosseiras ainda que
eram o seu único vestuário. Antes dos seis ou oito anos,
frequentemente até aos dez, os rapazes nada vestiam, embora as
raparigas usassem roupa um pouco mais cedo. Os fatos dos rapazes
eram uniformes, também, na idade e no tom -não se lhe podia
chamar cor.
0 vestuário dos gêmeos diferia um tanto do dos rapazes destinados
a trabalhar no campo, porque estava relativamente, apenas
relativamente, inteiro, e diferia nitidamente porque estava limpo parecia
limpo e bem cheiroso -mesmo imaculado. Um dos rapazes,
não importa qual, porque eram exactamente iguais e os vestuários
eram intermutáveis, tinha um buraco nas calças, à altura da coxa,
que parecia ter sido remendado e o remendo parecia ter-se gasto ou
não se segurar, tendo a costureira ou o alfaiate ou o encarregado do
guarda-roupa desistido de o arranjar. 0 outro rapaz mostrava
candidamente as nádegas. Os buracos serviam para mostrar que a
sua semelhança de pigmentação não terminava no pescoço, e era tão
igual sob o vestuário como nas extremidades.

Alguém atara um laço de um vermelho que passara para rosa, em
volta do braço de um dos rapazes, e um laço de um azul que
passara para cinzento, em volta do braço do outro -ostensivamente
para os distinguir. Possivelmente eles próprios os tinham colocado,
para não os confundirem. Ou talvez fossem ordens de Deus para
poder distribuir devidamente os seus pecadilhos no livro do
julgamento. De pecados propriamente ditos não podia Ele acusálos.
Tais querubins eram incapazes de pecar e, aliás, não tinham a
noção de pecado, mas podiam ser acusados de coisas como rir na


presença dos seus superiores, de gritar nas suas brincadeiras, de
recordarem ao outro que era um negro ou um malandro, ou de se
esquecerem de agitar o leque de penas de pavão com o ritmo
devido.
A observação que Brownlee fez da sala e a sua avaliação dos
gêmeos foram rápidas. Não levaram mais tempo do que levou
Agameirmon a afastar a cadeira, forrada a couro, e a sentar o seu
reumático patrão à cabeceira da mesa, após o que afastou a cadeira
de Brownlee e a empurrou. Hammond dispensou a ajuda do negro
e sentou-se à mesa, em frente de Brownlee, cujos olhos sôfregos
continuavam a observar os rapazitos. 0 seu apetite não ía para a
comida, apesar da viagem matinal, enquanto retirava o guardanapo
vermelho do copo, e desdobrava e o enfiava cuidadosamente no
colarinho.
Contudo, o odor da comida que Agamérmion fora buscar à cozinha
e colocara sobre a mesa reavivou-lhe a fome. Primeiramente chegou
uma imensa travessa de galinha guisada, rodeada de tortas de
maçã, e bastava olhar para ela e ver a maneira como começava a
separar-se, para se compreender como era tenra. Seguiu-se outra
travessa com talhadas de presunto dispostas em círculo, rodeadas
pelo molho vermelho em que tinham sido cozinhadas. Uma terceira
travessa continha ovos estrelados, mais de uma dúzia deles, fritos
apenas de um lado, com as gemas de um amarelo-vivo centradas na
clara branca, como um ramo de margaridas enormes.
Seguidamente surgiu uma travessa cheia de batatas empilhadas e
tenras verduras, sobre as quais repousava um grande pedaço de
bacon.
Agameirmon encheu os copos com o leite cremoso do jarro, e foi
buscar à cozinha um prato cheio de grandes biscoitos quentes
empilhados, espalhando um aroma a excesso de bicarbonato,
simultaneamente agradável e repugnante, como o odor do suor.
Em seguida, Agameirmon encheu as chávenas de um café forte,
negro e quente, sobre o qual colocou um creme tão espesso que era


difícil vertê-lo do jarro, em estado de semiliquidez. Passou então
um recipiente de melaço claro, com o qual se podia adoçar o café, e
Maxwell desculpou-se:
-Nós gostamos de um adoçamento mais lento-explicou. -Deve
haver açúcar por aí, algures, mas eu e o Ham nunca lhe tocamos.
Gostamos do paladar deste.
-0 adoçamento lento é sempre melhor -concordou Brownlee, que
deitava o café no pires e o soprava.
-Claro que o gosto a rum sabe mal a um branco. Este melaço é de
primeira. Caro de mais para se dar a pretos. 0 de rum serve-lhes
bem.
-Claro que sim -voltou a concordar Brownlee, levando à boca uma
perna de galinha, cuja carne ameaçava separar-se do osso. -Mas não
dá aos negros açúcar ou coisa parecida? -perguntou, um pouco
espantado.
-Dou-lhes melaço com rum todos os dias.
-Mas isso não os faz crescer e aumenta-lhes o apetite, fá-los comer
mais. É um desperdício -disse o comerciante, incrédulo.
-Quero que os meus negros comam. Quanto mais comem, mais
crescem. Não acredito na idéia de poupar em comida e gastar no
veterinário.
-Além disso -acrescentou Brownlee -, estraga-lhes os dentes.
Maxwell riu, pela experiência que tinha do assunto.
-Isso são histórias, apenas histórias. Os meus negros comem melaço
com rum no pão todos os dias e, se encontrar um dente cariado
nesta plantação, dou-lhe o negro. Examine qualquer deles.
Brownlee aceitou a sugestão. Empurrando um pouco a cadeira para
trás, fez sinal ao rapazito que estava atrás dele.
-Vem cá, rapaz -ordenou. Embaraçado, o garoto avançou
timidamente. Brownlee envolveu-o com o braço esquerdo,
introduzindo acidentalmente a mão pelo buraco dos calções e
acariciando-o, enquanto com a mão direita abria boca do rapaz e


prolongava a sua exploração dos dentes. 0 rapaz encolheu-se e
procurou suavemente afastar-se, o que Hammond notou.
-Alph esconjurou-o-, deixa esse branco observara tua boca. Queres
que te pendure?
0 rapaz apenas podia grunhir uma resposta negativa à questão
retórica, para não morder o dedo branco introduzido entre os seus
dentes.
0 outro rapaz riu-se à socapa, mais embaraçado do que divertido
com o atrapalhamento do irmão.
-Pára com os risinhos, Meg -avisou Hammond -, ou chicoteio-os a
ambos. Queres ser negro de casa, não queres? Ou preferes trabalhar
no campo?
Brownlee soltou Alph e chamou o outro gêmeo.
-Meg? -perguntou, quando o agarrou. -Que raio de coisa, chamar
um rapaz por um nome de rapariga! É porque foi castrado? -e
apalpou abertamente os seus órgãos genitais, ficando desapontado
por os sentir flácidos.
-Raios, não, não foi castrado! -gritou o velho MaxwelI, indignado
com a ideia de castrar um negro. -Apalpe-o! -o que Brownlee
continuou a fazer. -Não há cavalos nem negros castrados nesta
plantação.
Hammond interrompeu com uma explicação, não só para acalmar a
ira do seu pai perante as acusações implícitas, mas também para
esclarecer o estranho sobre o nome do rapaz.
1 -Meg é uma abreviatura de ómega! ómega e Alpha, percebe,
Alpha e Omega.
-Não conheço nada sobre deuses romanos, mas percebo de negros e
este é um macho. Não pensa vender este par?
Hammond riu, ao responder.
-Morríamos de fome, se os vendêssemos. A cozinheira tinha um
ataque; são filhos dela.


-Ganhava forças três dias depois, como o resto deles; e têm-me
pedido que descubra um par como este, sei muito bem a quem os
havia de vender.
-São de estimação, mais ou menos. 0 meu pai e eu achamos que são
espertos. Acho que os vamos conservar para semente -disse
Hammond, declinando a proposta sem descortesia para o
convidado.
0 Maxwell mais velho ainda estava irritado com a ideia da castração
do rapaz e voltou ao assunto.
-Nunca castrei um negro na minha vida, nem o meu pai, nem o
meu avô o fizeram. Nem sequer nunca os ameacei com isso. Fugiam
e era bem feito. Não os censurava por isso.
-Não queria ofender -disse Brownlee, tentando acalmá-lo. -Muitos
cavalheiros castram os pretos de casa ou os pretos maus. Tenho
vendido muitos.
-Comer e fornicar são as únicas coisas para que um negro vive -e
um ser humano também, para falar verdade -filosofou Maxwell
com ar profundo. -E claro, uma fêmea também gosta de dar de
mamar aos filhos.

Brownlee, que não apreciava um gênero de conversa tão abstracta,
mudou de assunto.
-A comida é muito boa na sua plantação, senhor MaxwelI, a avaliar
por esta amostra.
-Coma à vontade, coma à vontade -insistiu o anfitrião. -Pode bem
limpar as travessas. Os restos, de qualquer modo, são só para os
criados.
-Grande quantidade, grande quantidade -declarou Brownlee,
bebendo o último pires da sua quarta chávena de café. -Esplêndida
refeição, esplêndida refeição, senhor Maxwe11. -Tirou o
guardanapo do pescoço, dobrou-o cuidadosamente, com
delicadeza, e colocou-o junto do rato. Depois, seguindo o
procedimento dos seus anfitriões, empurrou a cadeira e levantou-se,


sacudiu as migalhas do fato e, co,mo ostensivo cumprimento pelo
jantar que comera, esfregou o estômago e-desapertou o último
botão do casaco.
-Nada de especial, nada de especial. É o jantar habitual -disse
Maxwell, depreciando o cumprimento e regressando à sala de estar.
-E agora vamos àqueles criados que se ofereceu para me vender insistiu
Brownlee, enterrando-se na sua cadeira, em frente da
lareira.
Maxwell estava relutante em falar de negócios.
-Bom, vejamos -disse. -Que achas, Ham? Hammond mostrou
menos relutância.
-Bom, e se lhe entregássemos aquele Pregador e o rapaz magro,
acastanhado, chamado Imperador?
-São vivos e enérgicos? Que idade têm?
-Um deles tem cerca de quinze palmos e três polegadas, calculo eu.
0 senhor viu-o. Levou o seu cavalo para o estábulo. 0 outro é mais
alto, tem talvez dezassete palmos; mas vão crescer mais. São bons
trabalhadores -afirmou o Maxwell mais velho.
-Estava só a calcular -respondeu o negociante. -Aquele Pregador é
aleijado, não é? Faltam-lhe dedos num pé, não faltam?
-Não é aleijado. Não lhe fazem falta nenhuma -disse Hammond.
Claro, se não lhe interessa ...
-Está bem, está bem. Um negro é um negro-claro, conforme o
preço.
-Claro -concorou Hammond.
-Que defeito tem o outro? -inquiriu Brownlee.
-Uma cicatriz de queimadura; não o estraga em nada, mas o meu
pai e eu não gostamos de dar de comer a um rapaz que não tem
bom aspecto. Os negros de Falconhurst são todos saudáveis e assim
queremos conservá-los. Orgulhamo-nos de ter bom gado, sem
defeitos nem doenças. É esse o único motivo porque eles são mais
baratos.



-Que extensão tem a queimadura e como a fez ele?
-0 caldeirão das barrelas caiu por cima dele, apanhou-o no
estômago, nas partes e num flanco. Uma grande cicatriz, mas curou-
se bem. Tinha algumas manchas vermelhas ainda, mas estavam
prestes a desaparecer quando o vi, há um mês ou coisa parecida.
-Hei-de vê-lo -disse Brownlee.
-Não lhe garanto que consigo educá-lo. É muito calado, mas nunca

o amansámos, nem um bocado.
-Se é capaz de cortar cana e colher algodão, posso usá-lo; claro, com
desconto.
-Merruion, vai buscar esses dois rapazes, o Pregador e o
Imperador; despe-os e dá-lhes um pedaço de sabão duro. Diz-lhes
que vão ao rio e se lavem bem, e depois voltem aqui e esperem em
frente do varandim -ordenou Hammond. -E manda buscar o meu
cavalo.
-Não quero que te mates, filho, a trabalhar com este tempo, de frio e
chuva.
-Não se preocupe, pai -disse o rapaz. -Estou quente e o casaco é à
prova de água.
-Quanto peço ao senhor Brownlee pelos rapazes> -perguntou o
velho.
-0 que achar justo-respondeu o rapaz. -Tem mais experiência disso
do que eu.
Inclinou-se e beijou o pai, fez uma vénia ao negociante e partiu.
0 pai suspirou, levantou-se e caminhou penosamente até à janela
embaciada, onde abriu uma clareira para ver o filho montar a
cavalo.
-Aquele rapaz é demasiado fogoso e ambicioso. É esse o mal dele.
Não herdou isso de mim. Herdou-o do velho Theophilus
Hammond, penso eu. Herdou o exterior de mim e o interior dos
Hammonds. Tem a minha cara avermelhada e os meus olhos azuis,
mais claros, o meu corpo comprido e as pernas curtas: tudo; mas
herdou a teimosia e a vontade de subir dos Hammonds. Trabalha

de mais e não se diverte. É o melhor filho que um pai jamais teve,
mas trabalha de mais. É o único defeito que consigo encontrar-lhe.
-Merimon, Mermion! -chamou.
-Sim, siô, patrão -respondeu o rapaz.
-Um toddy quente, para mim. Que descia beber, senhor?
-Só um pouco de uísque simples, se faz favor. Só um pouco respondeu
o convidado.


Apesar de Brownlee estar ansioso por inspeccionar as suas
aquisições em perspectiva, Maxwell preferiu aguardar um pouco,
imaginando o prazer que sabia obter em efectuar a transacção.
Calculava o interesse que o negociante sentia em comprar e
confiava em que saberia esperar até o peixe ter engolido o anzol.
Bebeu o seu toddy tranquilamente, em pequenos golos, pousando o
copo de vez em quando, enquanto esfregava os joelhos doloridos ou
massageava uma mão com a outra, aquecendo as pernas ao fogo.
Havia poucos dias no ano, no Alabama, suficientemente frios para
justificar o uso das lareiras e Maxwell apreciava o conforto de um
cepo crepitante.
-Hammond pensa que isto é uma plantação de algodão -observou.
-Falconhurst não é só uma plantação de algodão. É uma criação de
pretos, é o que isto é, uma criação de pretos. Anos após anos
fizeram-se colheitas de algodão até já não haver mais algodão na
terra. Há sítios onde já não pode dar mais que um bom fardo em
cada cinquenta acres, e a fibra é tão curta que o coeficiente de Nova
Orleães tem o dobro, ou mesmo o triplo.
Brownlee não estava interessado na economia do algodão no
Alabama. De vez em quando levantava-se e ia até à janela, olhando
para os dois negros nus que esperavam pacientemente por baixo
duma nissa que os resguardava parcialmente da chuva arrastada
pelo vento.
Para tomar parte na conversa, inseriu uma observação no solilóquio
do seu anfitrião.



-Uma maneira lenta de viver, ao que parece. Leva um tempo dos
diabos a criar um negro para o levar ao mercado.
-Não muito, não muito. 0 tempo passa depressa, na minha idade.
Em passando dos quarenta, a cova começa a olhar para nós. Não
podemos escapar-lhe; também não tenho vontade disso, com o
reumatismo e tudo o resto. Claro, gostava de viver o suficiente para
casar Hammond com uma jovem de boas famílias, com bom
sangue, que lhe desse um filho para continuar a usar o nome dos
Maxwe11. Hammond, esse tem bom sangue; neto do velho
Theophilus Hammond, da Plantação Anglebranch. Com Hammond
casado e um filho a caminho, estarei pronto para ir ao encontro do
Criador. Não tenho medo, nem um bocadinho. Claro, nunca me dei
muito bem com pregadores e coisas no género, mas sempre tentei
proceder bem, nunca enganei um branco nos negócios, tratei
sempre bem os meus pretos, dei-lhes de comer, nunca os fiz
trabalhar aos domingos, excepto na altura das colheitas, nunca
vendi uma criança sem a mãe antes de estar desmamada e mesmo
assim só raramente, nunca andei atrás de putas brancas e nunca fui
estroina. Nunca fiz coisa alguma de que me envergonhasse. E quero
ser desculpado, quando chegar o meu rol.
Brownfee estava menos preocupado com a virtude de Maxwell e a
sua recompensa do que corri o negócio dos negros. Fez nova
excursão à janela.
-A queimadura do rapaz tem mau aspecto -observou.
-Parece, vista dessa janela. Vê-se tudo distorcido, por causa do
vidro martelado. Mas não é nada, quase. Contudo, Hammond não
pode suportar ter um negro que não seja perfeito. É estranho.
Talvez lhe faça recordar a sua perna rígida, que um pónei castrado
lhe fez quando tinha seis anos. 0 maldito pónei parecia manso
quando o comprei, mas nunca se pode confiar num castrado, cavalo
ou negro. São maus e traiçoeiros. 0 vadio atirou o garoto ao chão no
terceiro dia de o ter, sem qualquer motivo. Não me pareceu que o
rapaz estivesse ferido, mas trouxe-o ao colo para casa (não o confiei


a qualquer negro) e deitei-o naquele sofá ali do canto, tentei fazê-lo
parar de chorar, despi-o com todo o cuidado e esfreguei-lhe a perna
com uísque. Lucrécia Bórgia, a cozinheira, andava a amamentar os
dois gêmeos
-os que viu na casa de jantar -e ela e eu demos os bebés a Ham,
para o convencer a deixá-la esfregar-lhe a perna todos os dias com
uísque. Mas não serviu de nada. 0 joelho endureceu. Mal pode
dobrá-lo. Brownlee estava menos interessado no joelho rígido de
Hammond do que nos negros lá em baixo.
-É melhor irmos ver os rapazes. Ali nus à chuva, são capazes de
apanhar febre dos pulmões ou coisa parecida.
-Não lhes vem mal nenhum enquanto estiverem nus. São as roupas
molhadas que fazem adoecer. Além disso, já têm juízo suficiente
para se meterem debaixo da árvore, não acha? Espere até eu beber
este copo de toddy. já arrefeceu e está quase vazio.

Maxwell bebeu o resto do seu toddy e Brownlee esboçou o gesto de
ajudar o reumático a levantar-se.
-Não se incomode, não se incomode -protestou este, lutando para
se pôr de pé. -Meirmon, Merririon! -chamou. -Põe aquela coberta
do sofá por cima dos meus ombros.
Aquecido com a manta azul e branca, Maxwell atravessou o
vestíbulo até à porta da frente, que Agamermion lhe abriu,
descendo o degrau para o varandim. 0 negro trouxe cadeiras de
balanço, mas apenas o patrão se sentou. Brownlee, preocupado em
fechar o negócio continuou de pé.
-Manda os rapazes virem até ao varandim e enxuga-os -ordenou
Maxwell a Agamermion, tirando um lenço sujo do bolso e
estendendo-lhe.
-0 senhor Brownlee está ansioso por lhes tocar.

Os dois jovens negros aproximaram-se do varandim com embaraço.
Nunca lhes tinham permitido aproximar-se tanto da casa e agora


que tinham sido convocados, tomavam consciência dos seus pés
cheios de lama. Ambos tremiam, tanto de medo como de frio.
Agameitmon, que baixava do serviço de criado de quarto ao de
trabalhador do campo, escolheu Imperador, de cor mais clara, como

o menor dos males, e enxugou-o cuidadosamente com o lenço, após
o que, com um olhar interrogativo na direcção do amo, atirou o
lenço molhado ao Pregador que começou a torcê-lo e a limpar as
gotas de chuva que tinha sobre o corpo. Era impossível secar-se com
o pano molhado.
Brownlee ocupou-se do Imperador; fez uma passagem preliminar
das mãos sobre as costas em pele de galinha e a perna magra, a os o
que voltou a atenção para a grande cicatriz, que estava tão bem c
Y3 e que não abriu sangue nem sangrou com a pancada e o beliscão
que o negociante lhe deu. Imperador ficara imunizado à dor pela
queimadura e pelo tratamento que suportara, e nem se moveu.
-Muito feia -lamentou Brownlee. -Ombros estreitos e corcovados.
-Eu sei que ele ainda não está pronto para vender. Precisa de mais
um ano. Pois não foi engordado e preparado -contradisse o
proprietário.
-Tem uma boca de porco horrível.
-Não queria que ele chupasse por uma palhinha, pois não? respondeu
Maxwell. -A boca de porco não o impede de comer
como um porco.
-E um daqueles vadios do cabo da Boa Esperança, dos lados de
Zanzibar, parece-me -disse Brownlee, deixando-se cair na cadeira,
desaprovadoramente.
-Talvez. Não sei nada sobre a raça dele. Talvez tenha sangue da
Costa Oriental. Mas já lho tirámos. De resto, nunca me deu
problemas. Nunca tive que o chicotear.
-Ajoelha-te aí na minha frente, rapaz, -ordenou o negreiro. -Não,
assim não. De costas para mim.


Imperador voltou-se, e, apesar da ausência de marcas visíveis, o
negreiro explorou cuidadosamente os músculos por baixo da pele,
para ver se encontrava estrias que traíssem as marcas já curadas do
chicote.
Continuou a conversar com Maxwell enquanto percorria, com as
mãos experientes, as costas do negro.
-Talvez este não seja desordeiro, mas, na cidade, levei ao mercado
um negro da Costa Oriental e não consegui ofertas. Os plantadores
não estão para se arriscar. Mas tem as costas limpas.
-Já lhe disse que nunca o chicoteei.
-Podia alguém tê-lo feito antes de ser seu, não duvido da sua
palavra -disse Brownlee, empurrando o rapaz para a frente, de cara
para o chão, para poder observar as nádegas magras e ver se tinha
hemorróidas no anus, mas não encontrou sinais delas. Voltou a
puxar o rapaz para o pôr de novo de joelhos, inclinou-lhe a cabeça
para trás e correu os dedos pelos dentes, que, apesar do defeito da
mandíbula inferior, eram tão sãos como se as suas extremidades se
tivessem fixado normalmente. Pondo Imperador de pé, puxou-lhe
os dedos e torceu-os e, verificando que nenhum deles estava
partido, soldado ou torcido, fez-lhe sinal para levantar os pés, um
de cada vez, até ao braço da cadeira, para lhe poder examinar os
dedos.
-Traz-me aquele bocado de madeira, rapaz -ordenou, indicando
um pequeno pedaço de lenha a alguns pés de distância. Levantou-
se e, atirando-o o mais longe que podia, disse: -Vai buscar.
-Imperador trotou em direcção ao pau.
Virou-se para Meirmon que estava de pé, por detrás da cadeira do
amo e ordenou-lhe: -Vai buscar o meu chicote. Está ao pé da lareira.
Maxwell interrompeu o "sim, siô" de Meirmon para avisar:
-Não vai usá-lo nos meus negros. Eu é que os chicoteio.
-Vou só enrolá-lo à volta das pernas dele umas vezes para se
apressar. Tenho que o ver a correr. Não vou magoar ninguém explicou
o negreiro, um pouco surpreendido.


Não se preocupe, não se preocupe, o rapaz galopa -respondeu o
patrão. -Não vale a pena, Meirmon -contra-ordenou.
Maxwell estava farto da tediosa precisão com que o outro
examinava um rapaz que já lhe dissera não ser perfeito. A sua
paciência esgotava-se.
-Atira tu -Brownlee entregou o pau a Meirmon que o atirou muito
mais longe do que Brownlee o fizera. -Vai apanhar -disse Brownlee
ao Imperador que correu languidamente e o trouxe de volta, uma
actuação indiferente.
-Ouve-me bem, meu malandro -disse Maxwell pegando-lhe na
mão.
-Tu és preguiçoso. Podes trotar com muito mais energia. Se
estragas o negócio com a tua preguiça, penduro-te pelos calcanhares
e mando Memnon desancar-te até mostrares mais velocidade e
enquanto puderes. Percebes? Desanco-te até já nem poderes andar.
Arranco-te a preguiça dos ossos. Agora vai buscar.
-Sim, siô, patrão. Imperador correu tanto quanto podia mas a
distância não era suficientemente grande para lhe permitir dar toda
a sua velocidade. Brownlee pareceu ficar satisfeito.
-Agora salta -disse. -Mais alto! Mais alto! Maxwell estava disposto
a acabar com a transacção.
-Leva o rapaz -disse a Meirmon. -0 senhor Brownlee não está
interessado. Só quer negros de primeira. Leva-o.
-Espere um minuto, espere um minuto, senhor Maxwe11. Posso
ficar com o macho. Tenho interesse em comprá-lo -interrompeu
Brownlee.
-Não parece -disse Maxwell, mostrando a sua impaciência.
-Quanto quer por ele, senhor? -0 colóquio tornara-se formal.
-Deve valer seiscentos e cinquenta -aventurou Maxwell, à
experiência.
-É de mais. Não me serve por esse preço. Não consigo mais de
setecentos por ele em Nova Orleães.


-Seiscentos e vinte e cinco, então?
-Espere: deixe-me ver o outro. Talvez possamos fazer o negócio
para ambos.


0 Pregador estava cheio de frio e a tremer, mas avançou
indolentemente, para ser examinado. já não sentia medo e não
mostrava mais indícios de indignação do que o companheiro
apresentara. Sabia que era apenas uma propriedade que já tinha
mudado de dono antes.
É pena o pé -depreciou o negreiro. -Como foi? Um cavalo pisou-o,
acho eu. Mas é um trabalhador seguro. Brownlee resmungou.
Continuou a sua inspecção do mesmo modo que fizera com
Imperador.
-Um angolano -disse depreciativamente.
-Penso que só lhe interessam rnandingos e fulas -disse Maxwell,
com desprezo.
-Bem, são bons negros, especialmente os mandingos. Brownlee
apressou o seu exame ao Pregador, sentindo a irritação crescente de
Maxwell, mas o seu estudo não deixava de ser minucioso. Chegou
às costas que aparentemente estavam limpas. Os seus dedos
exploradores detectaram uma saliência por baixo da pele, e mais
abaixo outra.
-Há aqui marcas. Este vadio foi chicoteado.
-Onde? -Maxwell tentou levantar-se, incrédulo.
-Aqui e aqui. Apalpe.
-Eu seja cão se foi! Não me lembro de o ter chicoteado, acho que
não o fiz -pelo menos não usei o chicote. Chicoteei-te, Barba? Procurava
confirmação.
-Não, siô -respondeu o rapaz.
-Então quem foi?
-0 patrão Johnson, capataz do patrão Knowlton, na Plantação
KnowIton Knoll, antes de comprá eu -explicou o rapaz. -0 patrão



velho ria quando o patrão Johnson chicoteô eu e esfregô sal e
pimenta no meu carne. -0 rapaz começou a chorar, ao lembrar-se.
-Não te rales; já passou tudo; o sal e a pimenta curam -declarou
Maxwell em tom terno. -É estranho eu não ter reparado nos altos,
quando o comprei. E deviam estar maiores nessa altura.
-Angolano? -roçou Brownlee. -Não suporta uma chicotadazinha.
-Porque é que ele te chicoteou? Que fizeste tu? -perguntou o amo.
0 Pregador era demasiado negro para corar. Baixou a cabeça e
parou de soluçar.
-Responde, que fizeste tu? -ordenou MaxwelI, com firmeza.
-Eu..., eu... -Pregador hesitou e depois murmurou, embaraçado. -0
patrão apanhô eu no palha a brincá.
Maxwell estava divertido.
-Nunca chicoteio um rapaz por isso. Digo-lhe que aquilo cal e assim


o assusto. Seja como for, não serve de nada.
-A única coisa para curar isso é uma fêmea -anunciou Brownlee.
-Talvez, talvez.
-Compensa, compensa.
-Penso que não lhe interessa um rapaz com cicatrizes nas costas... aventurou
Maxwell.
-Depende do preço, depende do preço -disse Brownlee,
continuando a sua investigação.
0 Pregador foi melhor que o Imperador, no teste de actividade. Era
mais vigoroso, mais vivo e, não sendo tão alto, não era tão
prejudicado pela curta distância que tinha de correr para apanhar o
pau.
-Quanto, quer por este? -perguntou Brownlee.
-Setecentos, mais ou menos. -Maxwell chegara ao ponto de
negociar propriamente, e gostava de regatear.
-Não posso dar isso porque não o recebo. Quanto quer pelos dois?
-Quanto é que eu lhe pedi pelo mais claro? Seiscentos e vinte e
cinco, não foi? E setecentos por este. Dá, dá, velamos. Sou muito

lento a fazer contas de cabeça. Mil e trezentos e vinte e cinco, não é?
Vá lá, mil duzentos e cinquenta pelos dois. É bem barato.
-Não posso -esquivou-se o negreiro. -Faça-me, digamos, cerca de
...
-Não pense nisso. Mil duzentos e cinquenta é o melhor que posso
fazer-lhe. É pegar ou largar. É como quiser. Eu não estou aflito por
os vender.
Brownlee pressentiu um tom de finalidade na declaração de
Maxwell que ele não tencionara dar-lhe. Brownlee pareceu prestes a
desistir.
-Oh, vá lá mil e duzentos -acedeu Maxwe11.
-Eles não são perfeitos -argumentou o negreiro, passando a mão
sobre a cicatriz do Imperador. -Lamento, mas não posso dar-lhe
esse preço.
-Tenho uma ideia! -propôs Maxwell, como se isso lhe tivesse
acabado de ocorrer. -Podia trocar os três garoto s que tem no
estábulo por estes dois machos.
-Não os troco. Talvez por dois -ofereceu o negreiro.
-Vamos lá vê-los -Maxwell voltou-se para Meirmon. -Tu tens as
chaves. Vai buscá-los.
Enquanto Agamémnon partia para cumprir a ordem, o amo deu
permissão aos dois rapazes para entrarem numa cabana e se
aquecerem.
-Vão para a cabana da Dido. Ela tem um bom fogo, nesta altura:
está a cozinhar.
-Não consegue vender os miúdos em Nova Orleães -começou
Maxwell.
-Os rapazes já são bastante grandes e a rapariga passa bem por
onze anos. Uma lei estúpida, de qualquer modo -declarou
Brownlee.
-Não me referia à lei da Luisiana quanto à venda dos pequenos.
Toda a gente sabe que é estúpida. Quem tem negros pequenos,
devia poder vendê-los quando muito bem lhe apetecesse. Ninguém



tem nada com isso -afirmou Maxwell -, mas calculo que os seus
pequenos não possam fazer nada ainda, não valham nada no
mercado. Calculo que o saiba e os tenha comprado por baixo preço.
Ficando com eles, uns três, quatro ou cinco anos, já terão valor real.
-E onde é que eu os guardo? Não posso guardá-los em Nova
Orleães. Comprei-os para os vender. Quero receber o meu dinheiro
e comprar mais negros.
-E o que estou a dizer-lhe; é o que estou a dizer-lhe. Troque-os
pelos meus dois rapazes que podem trabalhar e estão bons para o
mercado. Eu crio os pequenos aqui, onde a comida é barata e o
senhor pode voltar a comprarmos, quando tiverem crescido e
amadurecido. Claro, quero observá-los, antes da troca.
Brownlee parecia não encontrar falhas no argumento de Maxwe11.
Meirmon surgiu, vindo dos estábulos, seguido pelos dois rapazes.
Trazia a menina pela mão. Exaustos pela viagem matinal, tinham
estado a dormir e encontravam-se apenas meio acordados. Um dos
rapazes esfregava o olho com o punho, o que talvez tivesse
proporcionado uma deixa ao outro -que tinha uma constipação porque
o pus, seco e granulado, se acumulava nas extremidades das
pálpebras. A rapariga era a mais feliz e animada dos três.
-Descasca-os -ordenou Maxwe11. -Não me apetece mexer nesses
patifes sem os lavar. Mas já está muito frio agora, pois o sol está a
pôr-se. Se estivessem lavados, podíamos levá-los para casa, onde
está quente.
Memnon retirara o vestuário dos dois negros, e a rapariga,
desabotoando o seu único botão, tinha despido o vestido, puxando-

o por cima da cabeça.
Maxwell não fez uma observação tão detalhada como a que
Brownlee fizera aos rapazes mais velhos. Delegou-a, na maior parte
a Memnon. Os rapazes tinham aproximadamente a mesma idade,
eram ambos mulatos escuros, e o que estava constipado era mais
escuro que o outro. Não eram gémeos, obviamente, embora
semelhantes na forma, bem arredondados, mas robustos e de

músculos fortes, para a sua idade. Maxwell notou a sua semelhança
e Brownlee respondeu:
-0 mesmo pai, provavelmente. Comprei-os ao mesmo criador. Foi
difícil, mas não queria vender os mais velhos.
Maxwell apalpou-lhes superficialmente as coxas e as barrigas das
pernas, inspeccionou o umbigo de um deles que suspeitou de ter
uma hérnia, mandou Meirmon abrir-lhe a boca para examinar os
dentes, e declarou-se satisfeito.
A rapariga não era bonita, mas era viva e simpática. Apreciou a
atenção que lhe prestavam e reagia instantaneamente a qualquer
ordem. Maxwell observou-a rapidamente. Clara, mais ou menos
mestiça, tinha ossos pequenos e pouca carne. Os seus seios
começavam a inchar, mas ainda estava longe da nubilidade.
-Virgem, julgo eu? -inquiriu Maxwe11.
-Era, sim; não sei o que lhe possa ter feito andar montada na garupa
do cavalo.
-Observa-a, Meirmon -ordenou Maxwell. A rapariga divertiu-se
com a exploração de Meinnon.
Um dos rapazes -o que estava engripado -olhava fixamente para o
processo e Brownlee, notando o seu excesso de interesse, bateu-lhe
no rabo com o pedaço de madeira que atirara para o Imperador ir
buscar.
-Tem cuidado, rapaz, tem cuidado. Volta as costas e não olhes para
os brancos, se vais ser assim. -0 rapaz voltou-se de costas a chorar. Suponho
que posso bater nos meus pretos, já que não posso tocar
nos seus -comentou Brownlee.
-Por esse motivo não, não pode. Aqui não. Deixe o miúdo divertir-
se. Não se pode mudar a natureza dos machos -disse Maxwe11. Bom
acrescentou. -Como vamos negociar?
-Troca-se por igual. Os seus dois pelos meus três.
-Não, quero cem dólares, além disso.
-Por igual.
-Cinquenta.


-Não posso dar-lhe excedente, Os seus dois rapazes não são
perfeitos.
-Não deprecio o seu material.
-Não há nada para depreciar. São perfeitos como moedas de ouro.
-Nunca faço uma troca sem receber qualquer coisa. Digo-lhe o que
vou fazer, vou ao seu encontro -dez dólares, ou cinco.
-Raios, dou-lhe cinco -concordou o negreiro.
-Feito -declarou MaxwelI, satisfeito por manter a sua resolução de
obter dinheiro em metal sonante em todas as suas transacções.
-Agora temos que fazer as facturas.
-E pagar o dinheiro. Mas agora que ela é minha, digo-lhe que a
rapariga não é saudável. Qualquer pessoa pode ver que tem vermes,
os vermes quase que lhe saiem pela garganta. Talvez sejam só
lombrigas, mas eu acho que deve ser uma ténia. Vou purgá-la e ver


o que sai. Não é assim muito feia. É apenas magra e angulosa.
-É sua e pode tratá-la como quiser. Estou satisfeito por ficar livre
dessa porcalhona -regozijou-se o negreiro.
-Memnon, leva a pobrezinha à Dido. Diz-lhe que tome cuidado
com os rapazes, à volta dela, porque não a quero estragada já, e ela
que o evite. E diz à Dido que não lhe dê de comer ou de beber esta
noite -nem uma dentada nem uma gota. É por isso que é mau uma
criança ter bichas -ficam vazias. Gosto de alimentar o gado e fazê-lo
crescer. E veste qualquer coisa seca aos dois rapazes do senhor
Brownlee e leva-os outra vez para o estábulo. -Voltando-se para o
negreiro. Maxwell perguntou: -Quer que se ponham grilhetas nos
rapazes, não vão eles fugir esta noite? Agora são seus. Lavo daí as
minhas mãos.
-Tragam-mos cá antes de os mandarem para o estábulo. Vou falar
com eles. Quando acabar a conversa, já não fogem -respondeu o
novo dono.
-Deita estes dois pretinhos no estábulo com os outros miúdos. Eles
que fiquem a conhecer-se. Alimenta-os e dá-lhes bastante melaço
com rum. Não tenhas medo que fujam esta noite; estão muito

cansados para fugir, e amanhã saberão que a comida de Falconhurst
é tão boa que nem conseguíamos correr com eles.
-Sim, siô, patrão -disse Mertirion.
-E não te esqueças de triturar esta noite umas nozes de betel para
aquela miúda. Tritura-as bem, em pó. E não tentes usar aquele pó já
velho que sobrou. Têm que ser trituradas frescas ou não servem de
nada. A quantidade que couber numa medida. É a melhor cura para
bichas que já se viu, se conseguirmos fazê-los engolir aquilo.
-Só isso, patrão siô?
-Só isso; vê se não te esqueces do que te disse. Vai buscar o
Barbarosa e o Imperador para virem ao seu novo dono. Eu vou para
junto da lareira. Ainda faz frio e chuva.
Maxwell levantou-se, ajeitou a manta azul e branca e entrou na casa,
com Mertirion a segurar a porta.
-Eu vou contigo -disse Brownlee a Merimon. Não quero que os
dois rapazes saiam nus com esta chuva.
Agamértirion levou-o à cabana de Dido, seguido pelos três miúdos
nus, com o negreiro atrás.
Encontraram o Pregador e o Imperador sentados no chão escorado,
ao lado da lareira, junto da qual a enorme Dido fazia o jantar numa
panela, com um bebé agarrado ao peito. Quatro outras crianças,
dispersas pela única divisão da cabana sem janelas, reuniram-se de
costas para a parede, para olhar para o branco estranho. Os dois
rapazes nus levantaram-se e afastaram-se do fogo, para dar lugar
aos seus superiores. Os seus rostos estavam sombrios.
Brownlee dirigiu-se-lhes.
-Gostavam de vir comigo, de serem os meus negros? -disse, em
tom bondoso.
-Eu gosta daqui, patrão é bom para eu -disse Imperador e o
Pregador desatou a chorar de novo.
-Eu também vou ser bom para vocês.
-Siô levá gente para Nova Orleães e vendê gente pra trabalhá nos
campo -protestou Imperador.



-Que disparate! Nada disso! Se eu ficar com vocês, vão ficar para
mim. Claro que vamos para Nova Orleães, onde tenho que comprar
mais alguns trabalhadores; mas eu tenho uma grande plantação no
Kentucky e tenho umas dezoito ou vinte fêmeas à espera e têm que
ser servidas.
Agmerimon abafou o riso com a mão. Não teria tido vontade de rir
se qualquer dos Maxwell estivesse presente.
Brownlee esperou que a sua informação penetrasse nas suas cabeças
duras. Viu as suas colunas endireitarem-se, as cabeças levantarem-
se, e a animação espalhar-se pelas suas faces.
-Acham que podem fazer esse trabalho?
-Pode, sim -ecoaram as suas palavras antes de as poderem
pronunciar. Olharam um para o outro, mal acreditando ria sua boa
sorte.
-Claro que o negócio ainda não está feito. 0 vosso patrão quer
muito dinheiro por machos de primeira como vocês, e eu quero ver
que gênero de bebés vocês fazem antes de me arriscar a entregá-los
às minhas belas fêmeas.
Ficaram ambos embaraçados.
-0 patrão Ham não usou eu ainda. Está a poupá-exclamou
Pregador.
-Eu também não -acrescentou Imperador. -Mas pode fazer bebés
bons. Eu sabe que pode, siô. Experimente eu.
-Tu nã pode fazê nada, nègo. Tu está todo queimado. -Pregador
tentou aproveitar a sua vantagem. -Os cavalheiro branco na precisa
de ti? Eu pode servir todas as fêmea, eu sozinho sem ajuda.
-Interesso-me pelos dois -disse Brownlee, -se conseguir um bom
preço. Amanhã de manhã se verá.
Voltou-se para sair da cabana.
-Esta noite não fogem. Não vale a pena pôr-lhes grilhetas. Vestelhes
fatos secos e manda-os para a cama como habitualmente ordenou
a Merririon.


Merrírion não estava de bom modo. Não gostava de fazer de ama
de rapazes de campo. Estava abaixo da sua dignidade. 0 seu lugar
era em casa
-na casa, a fazer toddies, a espevitar a lareira e a servir à mesa dos
brancos.
Levou os pretos pequenos e os dois mais velhos para os estábulos.
Logo que ficaram suficientemente longe de Brownlee para que este
pudesse ouvi-los, Mem desatou a rir.
-Vocês pensam que aquele branco vai comprá vocês pra criação?
Nenhum branco é parvo para comprá vocês pra porcas quanto mais
pra fêmeas de criação -explicou.
-Eles quer preto grande como eu pra esse trabalho.
-Eu pode fazê mêrno que tu -replicou Pregador, persistindo na sua
credulidade. -Talvez Imperador não pode; tá todo queimado.


-Pode, pode tão bem como tu! -gritou o Imperador.
-Plantação no Kentucky, uffa -continuou Meirmon com desprezo. Aquele
branco não tem plantação nenhuma, em sítio algum. É só
negreiro um simples e vulgar negreiro sem valor. Não é cavalheiro
nenhum. 0 patrão Brownlee vai comprá vocês, já comprou vocês,
para levar vocês para Nova Orleães e pô vocês no mercado e vendê
pla maiô oferta que aparecê. Agora entrem pró estábulo, pró pé dos
outros rapazes e esqueçam-se de Kentucky e das mulheres. Pra
criação! -resmungou Meirmon com desprezo, fechando e
aferrolhando a porta do estábulo.


Pregador e Imperador guardaram, como um tesouro, a garantia que
Brownlee lhes dera. Não queriam que lhes roubassem o seu sonho.
Gabaram-se aos companheiros dos êxtases que os esperavam,
discutiram azedamente um com o outro a sua futura fecundidade,
em comparação, e não conseguiriam levá-los a fugir mesmo que
lhes prometessem o paraíso.



Capítulo segundo


0 senhor BrownIce saiu da zona das cabanas e encaminhou-se
lentamente para a casa, sob a luz que desaparecia. A chuva tinha-se
transformado num chuvisco, de tal modo que as gotas que
escorriam das árvores, quando passava sob elas, molhavam mais do
que a chuva nos espaços abertos. 0 negreiro compreendeu que o
chuvisco era apenas uma pausa na fúria dos elementos porque se
aproximavam, de oeste, nuvens carregadas de água que o vento
impulsionava. Brownlee estava preocupado com o tempo e cogitava
na sua viagem, pensando se ela teria que ser adiada por mais um
dia, dois, ou mesmo três, em Falconhurst, ou se lhe seria possível
partir na manhã seguinte.
Estava impaciente para sair dali, chegar a Nova Orleães e receber o
seu dinheiro e o lucro, com a venda dos dois escravos -ou antes, o
dinheiro do seu capitalista, pois o capital para a sua expedição tinha
sido emprestado, e o lucro líquido obtido na venda dos negros que
comprasse teria de ser dividido entre ele e o cavalheiro que o
financiara. Esses lucros seriam provavelmente pequenos, nesta
incursão. Tinha encontrado poucos pretos, caros, de má qualidade,
e difíceis de comprar. Era um mercado em inflação e os plantadores
aguardavam preços mais altos -com excepção daqueles que
vendiam um negro ou dois para comprar comida para os que
mantinham em reserva.
Brownlee riu-se, intimamente, com a mentira que pregara aos
rapazes, para fortalecer a sua vontade de o seguirem. Um negro que
mudara de dono contra vontade era susceptível de criar problemas
ao seu novo dono. BrownIce pensava que a sua conversa com os
rapazes apressaria os seus passos pelo caminho fora, tanto como a
ameaça do chicote nas pernas.
Ao entrar em casa, que mergulhava na obscuridade, encontrou o
seu anfitrião inclinado sobre as poucas brasas da lareira, furioso,


insultando Agamerririon por permitir que o fogo se apagasse.
Necessitava terrivelmente de um toddy e queria velas. Embora
estivesse tão coberto que era impossível vê-lo, a face do Sol
desaparecera totalmente no horizonte, mas o dia ainda não expirara
tão completamente como Maxwell julgava. Sempre impaciente com
as ausências de Hammond, por muito curtas que fossem, mostrava-
se agora mimado e irritado com o atraso do seu regresso do
trabalho.
Agameirmon tendo devidamente executado as ordens que o seu
amo lhe dera, chegou poucos minutos depois de Brownlee. Entrou
pela porta da casa de jantar, com os braços carregados de lenha para

o fogão e despejou-a toda sobre a trempe.
A descompustura que Maxwell aplicou ao negro era uma obra-
prima de invectivas -sarcasmos sobre insultos e insultos sobre
vitupérios. Merririon absorveu tudo como se o merecesse, sem
apreciar a eloquência. Conservando-se perante o fogo, mexendo as
brasas e esforçando-se por fazer arder a madeira nova e húmida,
não tentou refutar os argumentos do amo, mas afastou a sua ira
com um "sim, siô, patrão, ou um ,não, siô, patrão", pronunciados em
tom suave e contrito, sempre que podia, introduzindo-os nas breves
pausas que Maxwell fazia para recuperar o fôlego.
Meirmon era demasiado educado, talvez demasiado assustado,
para tentar escapar-se antes do amo ter esgotado a sua arenga.
Continuou a ativamente, para dar a espevitar o fogo, mesmo depois
de ele já arder e Maxwell oportunidade de dar largas a todo o seu
fel. Logo que viu que era seguro fazê-lo, desapareceu, voltou com as
velas e retirou-se para preparar um toddy para Maxwell e um copo
grande de uísque para Brownlee. Sabia bem que nada acalmava
mais o patrão do que beber um toddy.
Escurecera bastante quando Hamnond regressou. Vinha cansado
mas bem disposto. Os vaticínios do pai tinham sido feitos em vão.

-Boa noite, pai-disse, inclinando-se para beijara face do velho. -Boa
noite, senhor Brownlee. Então o pai convenceu-o a comprar os
rapazes?
-Claro que sim -declarou Brownlee. -Fizemos negocio ... Maxwell
resolveu adiar a notícia do modo como o negócio tinha sido feito e
mudou de assunto.
-Chama o Mermion para te preparar um toddy, filho, e senta-te e
bebe-o antes da ceia. Ajuda-te a descansar um pouco.
Hammond aceitou o conselho. Enquanto Merimon estava na sala,
para receber as instruções de Hammond, o Maxwell mais velho
despejou o seu copo e disse:
-Apetece-me outro. Apanhei um raio de um frio naquele varandim
e esse maldito negro preguiçoso deixou o fogo apagar-se. Sinto o
reumatismo a piorar. Acho melhor beber outro. E o senhor
Brownlee, que toma?
-Outro uísque -respondeu o negreiro.
-Conte-me a venda, -disse Hammond, voltando ao assunto. -0 pai
arrancou-lhe um dente, senhor Brownlee?
-Quase -respondeu o negociante. Maxwell sentiu que chegara a
altura de não poder adiar mais a confissão a que estivera a fugir.
-A falar verdade, não foi uma venda -começou ele.
-Não? -perguntou Hammond.
-Não, foi uma espécie de troca, por assim dizer; embora eu
recebesse um excedente -e repetiu: -Recebi um excedente, lá isso
recebi.
Quando Merimon voltou com as bebidas, Maxwell aproveitou a
oportunidade para falar doutra coisa.
-Traz ao patrão Ham umas pantufas e calça-lhas, para ele
descansar. Não vês que está molhado? Não mais consegues fazer
nada sem te mandarem?
As perguntas desorientavam Merririon, mas era preciso reconhecêlas,
mesmo que não lhes respondesse.


-Sim, siô; não siô -respondeu, deixando o patrão escolher a
resposta que lhe conviesse.
-Que gênero de troca? -insistiu Hammond, implacavelmente,
enquanto Meirmon lhe trazia as pantufas, ajoelhava-se em frente
dele e, apoiando na barriga o pé do patrão, lhe arrancava as botas
de montar, após o que lhe despiu as meias de lã, passou os dedos
entre os dedos do pé para lhes tirar a humidade, massageou as
articulações e esfregou o peito do pé, antes de lhe calçar as pantufas
espessas, desajeitadas e enormes, feitas de carpeta de Bruxelas com
desenhos tão grandes que as pantufas não pareciam constituir um
par.
-Bem, para dizer a verdade, o senhor Brownlee tinha três pretinhos
que vinham com ele, um casal de machos com cerca de quinze
palmos de altura e uma fêmea clarita e jeitosa.
-Eu vi-os acorrentados nos estábulos. E calculo que trocou os dois
machos grandes por eles? -0 tom da pergunta traía contrariedade.
-Mas recebi o excedente, recebi o excedente -protestou o pai.
Brownlee absteve-se de discutir.
-Quanto? Não tinha que receber excedente, parece-me.
-Só cinco dólares. Mas excedente é excedente. Maxwell sentiu a
contrariedade de Hammond e esfregou as articulações artríticas,
para o incitar à piedade. 0 seu rosto ensombrou-se, como se fosse
chorar.
-julgava que estava a fazer um bom negócio. Talvez esteja a perder
a mão, talvez esteja mesmo a perder o juízo.
-Ora, ora, pai! Teve toda a razão -disse Ham, ao ver o desgosto que
a sua crítica causara. Levantou-se da cadeira, arrastou as pantufas
através da sala, apertou suavemente uma das mãos distorcidas e
fez-lhe uma leve fricção. -Não, não; fez boa troca. Foi boa porque
em vez de obter dinheiro com os dois negros, arranjou-nos mais um,
e nada de dinheiro.
-Cinco dólares.


-Sim, cinco dólares. Não pode ver um preto pequeno sem o
comprar. Falconhurst está apinhada de negros jovens que não
servem para tratar do algodão e não temos trabalhadores com
tamanho suficiente para trabalhar no campo.
-Como sempre disse, Falconhurst não é uma plantação de algodão.
É uma criação de pretos, só uma criação de pretos -justificou o
velho.
-Pai, se quer outro criado pequeno, vai ter outro criado pequeno.
Ninguém o vai contrariar e muito menos eu. Continua a ser o dono
de Falconhurst, e aposto o seu bom senso num negócio contra o
pouco que aprendi consigo, e perco. -Hammon soltou a mão do pai,
com uma palmadinha, e voltou para a sua cadeira, para beber o
resto do seu toddy. 0 velho sentia-se bem; a dor desaparecera
miraculosamente das suas articulações. A aprovação de Hammond
e a prova do seu afecto eram os remédios que lhe bastavam.
-És tu quem manda em Falconhurst agora, filho. Não quero fazer
nada sem a tua aprovação.

Agameirmon abriu a porta da sala de jantar e tocou a sineta para a
ceia. A ceia foi muito parecida com o jantar, exceptuando o facto de
a mesa ser iluminada por duas velas, além de duas outras que os
gémeos seguravam alto mas não com muita firmeza. Não havia
moscas a afastar na sala gelada, àquela hora. A luz das velas fazia o
tecto parecer ainda mais alto, e a sala mais cavernosa do que à luz
do dia.
As refeições eram muito semelhantes em Falconhurst, mas havia
sempre muita comida substancial -galinha, porco e pão quente.
Lucrécia Bórgia insinuou-se na sala com a desculpa de trazer café
quente para encher de novo as chávenas vazias. Queria ver
Brownlee desde que soubera da sua chegada.
-Aquele Metruion não anda nada depressa -disse ela, à guisa de
explicação. -Deixa todos sem café. Preguiçoso, é o que é.


-Claro que é preguiçoso -concordou o amo. -E preciso que tu o
empurres por trás e eu o puxe pela frente para se lhe arrancar
qualquer trabalho.
-A Lucrécia Bórgia é a única negra da plantação que merece o que
come -acrescentou Hammond. -Faz mais trabalho que três dos
outros.
Os olhos pretos de Lucrécia Bórgia brilharam; sorriu, mostrando
todos os seus dentes fortes; e a sua papada tremeu, em apreciação
do cumprimento. Mais ou menos mestiça, Lucrécia Bórgia, a quem
sempre chamavam pelo nome completo, era mais roliça e
grandalhona do que propriamente gorda, como podia parecer à
primeira vista. Ao andar, plantava os pés grandes e nus com
segurança, balançando-se de um lado para o outro, com certa
majestade, à volta da mesa. Era bem humorada, em virtude do bom
tratamento que recebia e da boa comida que sobrava da mesa do
amo. Rindo-se, obtinha as boas graças do patrão e dominava à sua
vontade em toda a plantação.
-E ela que cozinha todos estes acepipes? -inquiriu Brownlee.
-Não é só cozinheira, é também encarregada da alimentação dos
criados, toma conta da fiação, dos alojamentos e, desde que chegou
há três anos, teve um miúdo de dezoito em dezoito ou de vinte em
vinte meses. É uma boa criadora. É a mãe destes gémeos
preguiçosos -Maxwell cada vez a elogiava mais. Sabia como
inspirá-la a esforçar-se ainda mais. -Penso que agora está
desocupada, embora não seja assim tão velha. Teve os bebés muito
depressa e está desocupada.
-Não, siô; não, siô, patrão -gaguejou Lucrécia Bórgia, alegre por
dar a notícia. -Tou cheia, outra vez.
-0 quê? Deus me valha! -disse MaxwelI, espantado. -Tens aí um
dólar de prata, Ham? Dá-o à Lucrécia Bórgia. Como foi isso?
-Não sei, siô; mas tou.
-Aqui tens o teu dólar -disse Ham. -E quando o bebé vier, recebes
outro dólar, dois dólares se tiveres gêmeos outra vez.


Lucrécia Bórgia fez uma vénia, modestamente, quando recebeu a
moeda e expressou um complicado agradecimento.
Para esconder o seu embaraço, voltou a sua atenção para Meg.
-Tu aí, nêgo, segura essa vela bem. Sabes que não pode queimar
dos lado, e pára de mexê que os branco nem pode vê o que tão a
comê. Eu desanco-te, rapaz, desanco-te até gritares que doi, mal esta
cela acabe.
Meg mordeu o lábio, para se impedir de chorar, mas segurou a vela
firme e ficou quieto. As promessas de Lucrécia Bórgia não eram vãs.
Alph também ficou sério, porque a mãe não os castigava
separadamente.
-Então aquele Napoleão que eu te dei sempre era um macho a
valer? Levou tempo a mostrá-lo -comentou Maxwell.
-Acho que não foi o Poleão. Aquele presumido não presta. 0 bebé é
do Meirmon, acho eu. Patrão Ham disse p'a eu exprimentá Memnon
ôta vez e eu anda com ele há um mês.
-Por Deus, devem ser gêmeos, se foi o Mermion. Ele próprio era
gêmeo e é o negro que mais gêmeos tem feito.
Meirmon sorriu ao ouvir falar tão bem dele. Mas o sorriso morreu,
quando o amo prosseguiu:
-Mandava este filho da puta para o mercado se não fosse tão bom
criador. Só serve para andar atrás das mulheres. Nem consegue
manter uma lareira acesa, e os seus toddies chegam sempre frios
quando mos entrega.
-Não sabia que o Meirmon andava outra vez a portar-se mal, pai.
Porque não mo disse? Só falar com ele, não resulta. Acho melhor
levá-lo ao estábulo, quando tiver tempo. Arranco-lhe a pele do
lombo e esfrego-o com pimentade. Vai ver como esperta. -ofereceuse
Ham.
-Não, não, patrão. Eu vai ser bom. Eu trabalha depressa. Não
precisa chicote -suplicou Mermion.
-Deixa de responder aos brancos -avisou-c, o patrão.


-Pimentade? -inquiriu Brownlee. -0 que é essa pimentade? Ham
explicou:
-Quando se arranca a pele a um preto, esfrega-se com pimentade e
a pele cresce outra vez sem marcas. É esplêndido para peles
arrancadas. Mistura-se sal, pimenta de cayenne e sumo de limão.
Claro que arde. Os negros têm mais medo da esfregadela que das
chicotadas, mas endireita-os mesmo.
-Sal, pimenta de cayenne e limão? -Brownlee tomou nota,
mentalmente. -Parece bom. Tenho que experimentar. Uso sempre
terebentina.
-A terebentina é boa, mas a pimentade é melhor. Doi mais e cura
mais depressa.
-Assim parece, assim parece.
-Claro que é preciso arrancar a pele, se não a pimentade não arde.
Nos miúdos pequenos e nas mulheres, que não se chiocoteiam com
tanta força, pode-se usar a escova dos cavalos para levantar a pele,
antes de se esfregar com pimentade, para fazer arder.
-Há quem use só sal. 0 sal cura mas não faz arder muito -disse o
negreiro.
Ham empurrou a cadeira e todos se levantaram para regressar à
sala. Ham disse:
-Se não tiver muita pressa em partir amanhã de manhã, talvez eu
arranje tempo para chicotear este rapaz e pode vê-lo torcer-se e
contorcer-se e ouvi-lo berrar quando eu aplicar a pimentade. É
excelente. É estranho que nunca tenha ouvido falar. A ideia vem de
São Domingos. Os franceses são espertos, por aqueles lados.
-Não tenciono partir muito cedo. Seja como for, espero, se vai
castigar o rapaz, não quero que se mace só por minha causa. Tenho
visto montes de negros serem sovados, mas gosto sempre de ver. É
cómico, quando tem mesmo que ser feito. Sempre se aprende
qualquer coisa.
Maxwell tinha uma visão mais moderada do assunto.


-Não os chicoteamos muito em Falconhurst. Só tivemos dois casos
no ano passado, que eu me lembre, ambos por roubo. Mas quando
os chicoteamos, chicoteamos mesmo, damos-lhes bem.
É a única maneira -declarou Brownlee. É a única maneira. Claro
que não usamos um chicote que lhes arranque bocados de carne e
que estrague os negros. Não, senhor. Mandei fazer duas
palmatórias, uma grande e outra mais pequena para os miúdos e
para as mulheres, de cabedal só lido com buracos. Penduram-se os
negros, pelos tornozelos, nunca pelos dedos dos pés para não os
torcer, com as pernas tão afastadas quanto se puder, e mete-se-lhes
um trapo na boca. Dá-se a palmatória grande a um rapaz e diz-selhe
que se ponha a trabalhar. Arranca-se a pele do lombo do negro
num instante e acaba-se o serviço com uma boa dose da tal
pimentade, de que o Ham lhe falou. Depois vamo-nos embora e
deixamos o negro pendurado, a pensar durante uma hora ou duas,
e tem-se um bom criado, garanto-lhe, um bom criado, a partir dessa
altura. Sim, senhor, nenhum negro quer uma segunda dose.
-Eles abusam -interrompeu Brownlee, que nunca tivera um criado,
em sua casa.
-Claro que sim, e temos que os castigar. Olhe para este Memnon,
um bom macho, mas preguiçoso, mais preguiçoso não há.
Estragado, estragado. Foi de estimação. 0 macho mais velho da casa
e só foi castigado uma vez. _ Penso que não lhe faz mal nenhum.
Pode fazer-lhe umas cicatrizes, talvez, mas se não pensa em vendêlo
...
-Não tem uma marca. Tudo curado há muito. Acho que não
mereceu a sova que lhe dei. Não devia ter-lha dado. Mas eu estava
desvairado. Aprendi nessa altura a nunca chicotear um negro
quando se está desvairado. É preciso arrefecer um pouco, e talvez já
não seja preciso. Mas agora com este negro, vai ficando cada vez
mais indolente; parece que a preguiça se acumula. Ouviu aquela
descompostura que lhe dei esta tarde. Não serviu de nada. Acho
que tens razão, Ham. Acho melhor arrancares-lhe um pedaço de


pele. Quando tiveres uma hora ou duas livres, não há pressa. Posso
dispensar-to quando quiseres.
-Está bem pai, eu ocupo-me dele, amanhã ou no dia seguinte. A
Lucrécia Bórgia pode arranjar-te os toddies e tratar da lareira,
enquanto ele estiver pendurado a secar, não podes Lucrécia Bórgia?
-Pode, sim. Pode, sim, -Lucrécia Bórgia apreciava as carnificinas.
-Talvez fosse boa ideia a Lucrécia Bórgia espancar o Mem todas as
manhãs, quando espanca os gémeos, depois de eu tratar dele declarou
Ham.
-Todas as manhãs? -inquiriu Brownlee.
-Sim siô, todas as manhãs eu amacio o rabo deles pelas asneiras que
fizeram ontem. Nem sei que asneiras foi, mas sei que fazem. Sim,
siô. Assim, com aquecimento todos os dias, não vão crescê e fazê
patrão Ham perdê o tempo a chicoteá eles todos meses. Quero que
Alph e Meg sejam nêgos trabalhadores, bons pró Patrão os ter em
casa e pra servir bem Patrão.
-já te disse, Lucrécia Bórgia, não sei quantas vezes, que nunca
chicotearei os teus rapazes sem tua licença. Percebeste? Prometo-te declarou
Hammond.
-Chicoteia eles quando quizé, patrão Ham -respondeu Lucrécia
Bórgia. -Mas não venda eles. Não venda eles, a não ser que lhe
paguem muito dinheiro, por favô, patrão.
-Não, nunca os venderei. 0 pai e eu queremo-los para nós. Não é
verdade, pai?
-Vendeu muitos dos meus filhos, ainda pequenos.
-Bem, eram meus, não eram? -cortou Maxwell.
-Sim, siô, patrão. Eram seus.
-E arranjei boas casas para todos eles.
-Não, siô, patrão. Não tou a queixar-me para onde eles foi. Eu sabe
que eles são criados como bons cristãos. Mas ...
-Mas quê? Lucrécia Bórgia, estás a passar das marcas, a dizer-me o
que hei-de fazer com os meus pretos. Lembra-te que te comprei os



miúdos, te dei por cada um daqueles diabos uni dólar de prata e
dois dólares pelos gêmeos, e faço com eles o que me apetecer.
-Pai, pai, não se irrite. Não faz bem ao reumatismo -advertiu
Hammond.
Maxwell voltou-se tão depressa quanto lhe permitia o seu
reumatismo e avançou, contrariado, para a sala. Brownlee seguiu-o,
Hammond ficou na sala. Estava perturbado com o caminho que a
conversa tinha seguido, achava as apreensões de Lucrécia Bórgia
sobre os seus preciosos filhos um pouco gratuitas e atribuiu a
irritação desnecessária do pai se não à idade pelo menos às dores
reumáticas. Não era costume do pai provocar os negros.

Finalmente Hammond seguiu Lucrécia Bórgia pelo corredor até à
cozinha quente e alegre onde os gêmeos se banqueteavam com os
restos da mesa e onde encontrou Lucrécia Bórgia, invulgarmente, a
chorar. Perante a sua manifestação de surpreendida compaixão, ela
saltou do banco, lançou os braços pesados em volta do seu pescoço
e chorou até mais não poder, enquanto Ham aguentava o seu peso
de carne quente.
Bastava um pouco de compaixão e um mínimo de diplomacia, toda
a que Hammond possuía, para transformar o desgosto de Lucrécia
Bórgia na felicidade que lhe era própria. A sua saúde, o seu
indomável vigor, e a sua posição na hierarquia da plantação,
primeiro corno cozinheira e depois como criadora, a criadora de
gêmeos cor de ambar, conspiravam entre si para lhe inspirar alegria.
Tal posição havia sido depreciada, e com ela tudo o resto. Ham, sem
compreender totalmente o que fazia, colocou de novo Lucrécia
Bórgia no seu pedestal oscilante. Reconfortou-a até as lágrimas
secarem e depois começou a brincar com ela.
As piadas de Ham não perdiam nada pela sua lubricidade ou falta
de eufemismo. Referiam-se à superioridade de Meirmon e ao facto
de ele suplantar ou mesmo ajudar Napoleão, o jovem claro que
Lucrécia Bórgia tinha escolhido para par, fazendo comparações


entre as suas anatomias e as circunstâncias em que ela ficara
grávida.
Ham rebaixara-se a brincar com Lucrécia Bórgia como jamais teria
feito com qualquer dos seus outros criados, mesmo com Memnon.
Ele era um potentado e ela era o seu vizir, quase sua substituta na
direcção dos outros criados. Tinha atingido a mais elevada posição a
que podia aspirar.

Capítulo terceiro

0 motivo por que Hammond fora à cozinha, e de que nem
suspeitava, era não só afastar-se da,conversa com Brownlee, mas
também socorrer Lucrécia Bórgia. já suportava Brownlee o mais que
podia, mas o seu esforço junto da cozinheira esgotara-o, e estava
disposto a regressar à sala, quando da noite negra emergiu uma
aparição ainda mais negra, na pessoa do filho da preta Lucy.
-Miss Lucrécia Bórgia -exclamou -a 'nha mãe diz pra dizê o patrão
que Pérola Grande tá doente. Tá muito doente.
-Que tem Pérola Grande? -perguntou Hammond, com uma
severidade não intencional que paralisou o garoto e o emudeceu. A
criança engoliu em seco uma vez e outra. Incapaz de falar, apenas
conseguia pensar no destino que o esperava.
Hammond agarrou no ombro de Baltasar e repetiu a pergunta.
-Que tem Pérola Grande? Pérola Grande era a jóia de Falconhurst.
Trigueira como cobre polido, forte como um cadernal, direita como
uma viga, e claramente núbil. Pérola Grande era a mandinga pura
mais magnificente que jamais pegara numa sachola para tratar de


algodão. Era tão elefantina nas suas proporções como na graça com
que avançava. Ela não caminhava nem corria nem passeava .
Pérola Grande avançava. Era bela como só uma catedral gótica é
bela. Era o espectáculo da plantação. Sem ter medo de homem ou
demónio, era dócil como uma gatinha, e as ofertas choviam.
Encantava-a que a despissem e a exibissem, que o negociassem o
seu corpo, convencida de que as tremendas ofertas que faziam por
ela seriam sempre declinadas. Nunca estivera doente um único dia.
Para Hammond, era como se o céu tivesse caído.
-Que tem Pérola Grande? -perguntou, pela terceira vez. Baltasar, a
quem o medo tirara a fala, recuperou-a por medo:
-Eu? Eu não sabe, siô. Pérola Grande tá doente. Dizia tudo o que
sabia. Hammond, arrastando as pantufas e coxeando por causa da
perna rígida, dirigiu-se, através da escuridão, para a cabana de
Lucy. Caminhava tão depressa que Baltasar tinha que correr, de vez
em quando, para o acompanhar. A proximidade do amo protegia-o
da escuridão.

Hammond ouvia os gemidos da rapariga, interrompidos, a
intervalos, por um grito de dor. Abriu a porta da cabana. Tudo era
confusão. As crianças recuaram, assustadas, para as paredes do
fundo. Na lareira havia um fogo alto. Lucy inclinava-se, solícita mas
desesperada, sobre a cama onde Pérola Grande se torcia na sua
agonia, e a noite tornava-se assustadora, com os sons que saíam do
mais profundo do seu ser.
Hammond sentiu compaixão pelo sofrimento da rapariga. Não
sabia que fazer por ela. Aproximou-se da cama, empurrou a enorme
Lucy para o lado e, sentando-se ao lado da rapariga, pegou-lhe na
mão.
-Pérola Grande, que tens? Onde te dói?
-Tenho uma dô, patrão Ham, tenho uma dô na barriga, patrão. Mas
tá melhor agora. -Pararam os gemidos e Pérola Grande ficou calma.
-Ta melhor agora -repetiu debilmente.


-Aquela mulher pensa que lá porque é uma boa cozinheira e boa
criadora, é dona da plantação -declarou Maxwell, em tom
petulante, para Brownlee. -Pensa que Ham e eu somos seus criados
e não ela nossa. Hammond não se irrita com os criados. É muito
suave para dirigir os pretos, lá isso é um facto. Mas ela há-de saber,
essa Lucrécia Bórgia, quem pega no chicote aqui -resmungava e
ameaçava, impotente.
Nunca resulta, deixar um negro sentir-se por cima -concordou o
convidado, sentando-se em frente da lareira.
-Eu sou bom para os pretos, deixo-os comer o que querem, doulhes
abrigo e visto-os, nunca os faço trabalhar demais para não
pararem de crescer, mantenho-os felizes e deixo-os em paz. -
Maxwell expunha a sua moderação. -Mas -acrescentou -um negro
é um negro e tem que continuar a ser negro.
Chamou Merririon e mandou vir uma bebida, que veio mais
depressa do que nunca. E vinha quente -perfeita.
-Têm alguma religião para os vossos negros? -perguntou
Brownlee, para fazer conversa.
-Raios, não! -respondeu Maxwell, aparando o tabaco. -Quanto
mais religião um negro tem, mais calaceiro fica, e mais difícil de
levar.
-Não se rala muito com as almas mortais deles? Eh?
-Não acho que eles tenham almas mortais. Talvez alguns dos mais
claros. Pelo menos, não queria ter nenhum deles no céu comigo. Se
um negro vai para o céu e lhe dão alguns privilégios, acaba por
pensar que vale tanto como os brancos.
Não havia qualquer tom de brincadeira na sua frase.
-Há quem pense que, dando-lhes a religião para se entreterem,
ficam mais calmos e vivem mais tranquilos; satisfazem-se com ser
melhores nesta vida, para poderem pintar o diabo quando
chegarem ao céu.
-0 céu está muito longe dos pretos jovens. Não conseguem pensar
numa coisa tão distante. E os meus são quase todos jovens. Vendo



os quando já não procriarem, e enquanto um negro pode procriar,
não pensa no céu.
-Podia dispensar-me mais alguns. Estou pronto a comprar-lhos.
Não me agrada ir para casa de mãos vazias.
-Ainda não, ainda não. Todos os negros que eu tenho são sãos,
escorreitos e perfeitos, agora que me comprou aqueles dois. Mas os
jovens ainda têm de crescer.
Maxwell esvaziou o copo e pediu outro e Brownlee voltou a pedir
uísque simples. Começava a precisar dele.


Quando Meirmon trouxe as bebidas, o patrão observou:
-Porque é que o patrão Hammond não veio dar-me as boas noites?
Teria ficado aborrecido com o que eu disse à Lucrécia Bórgia?
-Não, siô, patrão. Patrão Ham não tá no cama. Tá com Pérola
Grande.
-Fico satisfeito por ele começar a ganhar juízo. Mas porque não a
mandou chamar? Tinha medo que eu o arreliasse, aposto.
-Não, siô, patrão -contradisse Meirmon, com temeridade. -0 patrão
Ham não anda à volta da Pérola Grande. Pérola Grande tá doente.
-Disparate! -opinou Maxwell. -Pérola Grande não está doente;
nunca esteve doente.
-Pérola Grande tá doente -insistiu Merririon. -Tem qualqué coisa
terrível. Lucy mandou dizê a patrão Hammond. Ele tá agora no
cabana da Lucy. Pérola Grande parou de gritá. Acho que ta melhor.
Maxwell estava menos preocupado com a doença da enorme
rapariga do que com o facto de o filho não vir despedir-se dele antes
de ir para a cama. A falar verdade, Maxwell não gostava que
sucedesse qualquer mal a uma fêmea tão magnífica e valiosa e
receava uma doença que pudesse espalhar-se pela plantação
apinhada. Mas sentia-se ainda mais apreensivo quanto à ofensa que
pudesse ter feito a Hammond. Tinha a noção da sua total e absoluta
independência em relação ao filho, não só na direcção da plantação,
na orientação dos negros, na colheita do algodão, mas também



quanto à sua companhia e amor filiais, sentimentos que, para
MaxwelI, apesar de homem prático, eram necessidades maiores do
que a própria comida. Sabia como eram raras as relações como as
que tinha com o seu filho, como era ilógico e injusto pedi-Ias a um
rapaz. Que tinha para oferecer à sua juventude? Vivia no terror
constante do abandono de Hammond.
0 ranger dos degraus recordou ao velho a ideia de que Hammond
não viria despedir-se dele.
-Quem sobe a escada? -perguntou a Meirmon. -É ele que entrou e
vai para cima?
-Não siô, patrão. É só Dite que vai pró quarto do patrão Hammond
esperá por ele.
-Acende um bom fogo lá em cima. 0 patrão Hammond deve vir
cheio de frio.
-já acendeu e o quarto ta quente pró patrão Hammond. -disse
Meirmon, muito cheio de si. 0 castigo prometido para o dia seguinte
já estimulara Merimon a ser atencioso e bem disposto.
Hammond voltou finalmente para casa e, enterrando-se num
cadeirão, ordenou a Merrinon que lhe trouxesse um toddy. A sua
aparente fadiga e preocupação levaram o pai a expressar a sua
solicitude.
-Está tudo bem -respondeu Hammond, em tom não muito
convincente.
-Como está Pérola Grande? Que tem ela? -perguntou MaxwelI,
com impaciência.
-Pérola Grande já está melhor, parece-me. Acho que foi apenas uma
dor de barriga. 0 pior 'já tinha passado quando eu lá cheguei explicou
o jovem. Dei-lhe uma boa dose de óleo de castor e um
pouco de láudano. Acho que é o melhor a fazer.
-E é mesmo -afirmou Maxwell.
-Depois chamei Lancelote e mandei-o levar Pérola Grande para a
antiga casa dos doentes, nas traseiras. Grande como é, só ele podia
transportá-la. Acho que não é nada, talvez um excesso de carne de


porco da última matança, mas não quero que se espalhe alguma
epizootia numa plantação tão cheia de negros jovens.
-Fizeste bem, Ham. Fizeste muito bem. Tiveste uma boa ideia disse
Maxwell aprovativamente. -Não ouvi dizer que andasse coisa
por aí, mas as bexigas ou a febre-amarela limpavam-nos. Fizeste
muito bem.
-0 melhor que pude. Mandei Lancelote acender um bom fogo na
casa dos doentes e deixei-o lá para velar por ela. Se Pérola Grande
não estiver melhor de manhã, mando um rapaz numa mula ao
veterinário de Benson.
-Não é seguro, não é seguro, acho eu, deixar aquele Lancelote toda
a noite com a rapariga. É muito ardente e virogoso. Não queremos
acidentes desse gênero com uma fêmea daquela categoria.
-Avisei-o de que o chicoteava se se metesse com ela, disse
Hammond.
-Virgem, ainda, não é?
-Acho que sim. Não apalpei para ver, desde a última colheira. A
Lucy é bastante moral e vigia-a.
-Não sei o que se passa contigo, Ham, deixar uma bela rapariga
como Pérola Grande virgem há tanto tempo. já vai nos quinze anos.
-Parece que está a fugir aos seus deveres, não está, meu rapaz? interrompeu
Brownlee, em tom íntimo.
Todas elas esperam que o patrão lhes preste atenção. Pelo menos da
primeira vez. Eu estou todo tomado com este maldito reumatismo e
já não sirvo para isso -queixou-se Maxwell.
-Mas eu já lhe disse umas cinquenta vezes -respondeu Hammond que
não suporto o cheiro de uma negra. já com as mais claras me
custa.
-Quando eu tinha a tua idade, não havia virgens de quatorze anos
em Falconhurst, podes acreditar. Pretas ou mulatas, cheirando bem
ou mal, se não fosse eu, era o teu tio Dick. Dick era mais novo que
eu e franzino. 0 nosso pai castigou-me mais de uma vez por andar à
volta de uma fêmea que estava a poupar para o Dick -recordou


Maxwell. -E a si, senhor, Brownlee? Quando era rapaz,
incomodava-o o cheiro de uma preta.
-Nada, mesmo nada; mas o meu pai não possuía pretos dele. Era
capataz e as mulatas eram todas postas de parte para o patrão e
para os filhos. Não tive possibilidade de ter senão pretas mesmo, e
cheiravam mal. Tive que me agarrar ao que havia, e quase nunca
eram virgens, a menos que tivessem qualquer defeito -disse
Brownlee, cheio de franqueza.
-Não há nada que cheire pior que uma negra porca. Nós obrigamos
as nossas a irem ao rio lavar-se com sabão, quase todos os sábados,
no Verão, evidentemente -explicou Hammond. -Os criados de casa
lavam-se na banheira durante todo o ano, de Verão e de Inverno.
-Por isso os vossos negros não cheiram ... muito. Quase não se sente

o cheiro deles em vossa casa. Não é como na casa de alguns patrões
que nunca mandam lavar os seus pretos -afirmou Brownlee, à guisa
de cumprimento -Claro, há uma maneira de acabar com o cheiro.
Dá muito trabalho, mas faz-se.
-Como é? -perguntou Hammond, cheio de interesse. -Esfregá-los
com perfume? Isso só junta um mau cheiro a outro e ainda fica pior.
-Não; é mergulhá-los bem, aí durante cinco minutos, em água de
permanganato de potássio, não muito forte, só um pouco
avermelhada.
-0 que é isso? -perguntou Maxwell.
-Olhe, é aquele espécie de pó grosso que está na garrafa cheia de
poeira, na prateleira dos remédios. Nunca soube para que servia
nem que fazer com aquilo. Estive para o deitar fora -disse
Hammond.
-Pois serve para isso -declarou Brownlee. -Toda a gente em Nova
Orleães o usa nos pretos da casa. Uma rapariga que se banhe com
permanganato fica absolutamente sem cheiro durante dois dias
inteiros; um macho já começa a cheirar outra vez ao fim de um dia.
E preciso meter um macho todos os dias na água, para o manter
bem cheiroso. julgava que toda a gente sabia isso.

-Pois nunca tinha ouvido dizer -disse Maxwe11. -Aquele que está
na prateleira talvez fosse da Sophy. Ela era muito asseada. Não
suportava um negro que cheirasse mal.
-Temos que experimentar -decidiu Hammond. -Que quantidade
usa?
-0 suficiente para fazer a água encarnada. Não cor de púrpura, e
mergulha-se o negro nela, cabeça e tudo, excepto o nariz, durante
uns bons cinco minutos. Uma banheira com permanganato chega
para uma dúzia de negros ou mais, não é preciso desperdiçá-lo. Mas
não se pode voltar a usar. Perde a força com o tempo.
-Temos mesmo que experimentar-disse Maxwell. -Não gosto muito
dessas ideias novas. Mas não há-de fazer mal. Lembra-me para
experimentar amanhã, Ham.
-0 pai não gosta de ideias novas-queixou-se Ham.-Nem queria que
eu usasse aquela nova maneira de semear em atravessado, em vez
de ser ao comprido, aquele sistema sobre que escreveu o senhor
Tom Jefferson da Virgínia. Mas vou experimentá-lo, quando chegar
a altura de semear, dê lá para onde der.
-É complicado de mais -explicou Maxwe11. -A terra de
Falconhurst está toda gasta, já. Deixa-a ensopar. Não consegues
uma colheita completa de algodão, com o senhor Tom Jefferson ou
sem o senhor Tom Jefferson. A terra só presta para criar negros. 0
algodão só serve para os manter ocupados, para não estarem para aí
parados e a pensar no que não devem.
-0 senhor Tom Jefferson é um homem muito esperto, e eu tenciono
seguir o que ele diz -insistiu Ham, -Ele diz que semear o grão
contra os sulcos impede a camada de cima de se livrar da água do
Tombigbee e cria matéria para crescimento.
-É tarde de mais, é tarde de mais. Falconhurst está muito bem
assim.
-Deixa-a em paz. Não digo que o Torn Jefferson não seja esperto. Só
acho que é tarde.
-Não se preocupe, pai. Não é bom para o seu reumatismo.


-Diabos levem o meu reumatismo! Não faça isto, não faça aquilo.
Vai piorando, faça eu ou não faça o que me apetece. Parece-me que
os toddies são a única coisa que me faz bem. Mas esta noite está pior
do que o costume.
Ham sacudiu a cabeça, desesperado.
-Só gostava que arranjasse um daqueles cães sem pêlo que os
mexicanos têm. Dizem que dormir com os pés encostados a um
desses cães faz passar o reumatismo do homem para o cão.
-Ouvi falar deles, mas nunca vi nenhum. Duvido que existam cães
sem pêlo.
-Existem. Eles têm cães desses -declarou Brownlee, com segurança,
-Quem os tem? Onde posso arranjar um? -Maxwell estava disposto
a tentar tudo. -Embora o doutor Nixon diga que não serve de nada,
que não resulta.
-São mesmo bons para isso -disse Brownlee. -Eu próprio nunca vi
nenhum, mas eles existem, e sem um único pêlo.
-Devem ser muito cómicos -conjecturou Maxwell.
-Claro, qualquer cão tosquiado de modo que os pés possam
encostar-se à pele, também serve, ou um preto. Um preto pode
drenar o reumatismo pelos pés tão bem como um cão sem pêlo.
-Acha que sim?
-De certeza -disse Brownlee com segurança. -Conheço um homem
chamado Bronson, de Natchez, que experimentou. Estava tão
tolhido que mal podia andar. Experimentou dormir com os pés bem
apertados contra a barriga de um preto e dentro de pouco tempo,
umas semanas, no máximo, Bronson já andava e montava a cavalo
tão bem como dantes. 0 reumatismo passou dele para o preto. 0
preto ficou todo tolhido num instante, tal como Bronson estava
antes.
-Talvez valesse a pena experimentar -disse Ham.
-Arranja-me um preto, Hammond; começo esta noite mesmo.
Manda-o lavar bem. Um macho é melhor que uma fêmea. Uma



fêmea sempre perturba um bocado quando se tem reumatismo e
não se pode fazer nada.
-Vamos usar um dos gêmeos, e vou dar à Lucrécia Bórgía um
bocado daquele pó para pôr na água e acabar com o cheiro.
-Não me agrada muito arruinar um dos gêmeos com reumatismo especulou
Maxwell.
-Podemos depois passá-lo para outro negro se ele ficar muito mal.
já está cá em casa e à mão -disse Hammond, levantando-se para ir
acordar Lucrécia Bórgia e dar-lhe as instruções necessárias para a
preparação do filho, para serviço do patrão.
-Claro, é preciso que o negro se enrole em volta dos seus pés e tem
que carregar bem, para fazer passar o reumatismo pelas plantas dos
pés -aconselhou Brownlee, com ar experiente.

Maxwell esfregou os joelhos e massageou uma mão com a outra. A
dor diminuía de vez em quando, mas nunca saía totalmente das
articulações. Estava tão habituado à sua presença que, quando a dor
era menor, nem a notava, até que uma guinada súbita percorresse as
diversas partes do corpo, o que o obrigava a dominar-se para não
gritar.
-0 pior é para o Hammond-lamentou-se. -É novo, demasiado novo
para carregar toda a plantação sobre os ombros. Não posso queixar-
me da maneira como o faz. Faz tudo muito bem; mas aos dezoito
anos eu andava por aí, levava uma vida de pândega e fazia toda a
série de asneiras.
-É um rapaz esperto e com estudos. Não lhe faz mal estar um
pouco preso -aventurou Brownlee. -Eu nunca andei por aí. E nunca
me fez mal.
-Nunca teve estudos, propriamente. A mãe ensinou-lhe a ler, e eu
tentei continuar, depois de ela morrer. Ela sabia ler muito bem,
melhor do que eu. Depois mandei-o para o Instituto de Jackson,
durante um período, há três ou quatro anos, mas não suportava têlo
longe de mim. Não o deixei voltar. Tinha sempre medo que lhe


acontecesse alguma coisa, desde que aquele pónei castrado, em que
tive a estupidez de o montar, o atirou ao chão e lhe deu cabo do
joelho. Não se pode confiar num cavalo castrado; só quero cavalos
inteiros ou então nenhum. Os estudos fazem muita falta a um rapaz.
Precisa deles. Cada vez mais, à medida que o tempo passa, mais do
que no meu tempo.
-E o juízo que conta, não os estudos -consolou Brownlee. -E
Hammond tem juízo.
-Agarrei-me a ele, daquela vez e continuo a agarrar-me. Além da
plantação e duzentos negros, tem-me a mim e ao meu reumatismo
em cima dos ombros. Jovem como é, penso se não estaria melhor se
eu morresse. Claro, se eu não melhorar das minhas dores, não duro
muito, e gostava de o ver casado antes de morrer; claro, com uma
jovem simpática, de boas famílias. Quero vê-lo! Quero vê-lo fazer
outro rapaz para tomar conta de Falconhurst quando Ham tiver
reumatismo ou qualquer outra coisa, e para a fazer passar ao longo
das gerações. Claro, Falconhurst é uma plantação de algodão; mas
quem precisa do algodão, com os negros a aumentar cada vez mais?
-A menos que os abolicionistas do Norte libertem todos os negros interpôs
Brownlee, num tom simultaneamente trocista e céptico.
-Não passam duns inúteis, a interferir nos negócios dos outros. A
escravatura foi ordenada por Deus, por Deus, e eles nada podem
fazer, além de falar e arranjar problemas entre os territórios da
libertação, entre o Sul e o Norte. Não compreendem que são
precisos negros para cultivar algodão e que é preciso o algodão para
as fiações do Norte? Querem abolir os seus próprios empregos e os
seus próprios lucros?
Maxwell pôs-se de pé, na excitação da sua própria eloquência.
-Seja como for, são perigosos -disse Brownlee. -Repare nesses
Quakers e nesse Garrison e no jornal que começou a imprimir no
ano passado, aquele Libertador, como ele lhe chama. Viu alguns
desses jornais?
-Nem penso vê-los! Só o que leio sobre eles nos Anúncios de Nova


Orleães já me põe doente. Que ninguém traga para Falconhurst um
desses Libertadores; não são decentes, não prestam para limpar um
preto com eles.
-Seja como for, é melhor não deixar os negros verem-nos. Mete-lhes
ideias na cabeça -avisou Brownlee.
-Os meus negros não sabem ler. Foi a melhor lei que já se fez, a que
proíbe os negros de aprender a ler.
-Alguns sabem, apesar da lei -disse Brownlee.
-E podem sentir vontade de lutar, também. Se os negros não
souberem ler, não se revoltam. Mal aquele Garrison tinha publicado

o tal Libertador há seis meses, deu-se, no ano passado, aquela
revolta dos negros na Virgínia. Não sei se conseguiram apanhar
aquele negro, Nat Turner.
-Apanharam-no, sim. Não sabia? Apanharam-no e enforcaram-no,
na altura da colheira.
-Enforcaram-no? -Maxwell sentia-se incrédulo.
-Enforcaram-no.
-Só o enforcaram. Não o queimaram nem nada, depois de ter morto
todos aqueles brancos? Deviam tê-lo queimado. Deviam fazer dele
um exemplo.
-Deviam ter queimado aquele Clarrison no mesmo poste e largado
fogo aos Libertadores -concordou Brownlee. -Garrison é que levou
o negro àquilo. Por toda a costa, as pessoas ainda falam de Nat
Turner. Receiam mais revoltas. Em toda a Virgínia e nas Carolinas, e
especialmente na Geórgia.
-Não sabem como tratar os negros. Tratem-nos bem, dêem-lhes de
comer, não os obriguem a trabalhar de mais, e eles não se revoltam.
Os donos são muito gananciosos a arrancar-lhes trabalho. Um negro
reage ao bom tratamento melhor que um cão. Eu não tenho
problemas com os meus, e Ham também não.
Hammond entrou na sala de jantar, trazendo, com a mão sobre o
ombro, um dos gémeos de Lucrécia Bórgia. 0 rapaz tinha sido


levantado da cama, banhado e mergulhado na solução de
permanganato de potássio, mas ainda não acordara totalmente.
Estava inteiramente despido e parecia não se preocupar com o
motivo por que fora acordado ou com a sorte que lhe destinavam.
Tinha confiança em Hammond e não receava que lhe fizessem mal.
-Aqui tem o seu cão mexicano -disse Ham ao pai. -Usei aquele pó
vermelho e nem vestígios de cheiro; cheira como um branco.
-Anda cá, rapaz. Senta-te e bebe o teu toddy, Ham, antes que
arrefeça.
-Maxwell cheirou diversas áreas do rapaz e declarou-se satisfeito. Deve
ser um remédio forte para acabar assim com o cheiro dos
pretos. Cheire-o, senhor Brownlee -e empurrou a criança para o
negreiro.

Brownlee, por sua vez, nunca mais parava de cheirar o rapaz
tocando-lhe e agarrando-lhe, dando-lhe palmadinhas e não o
largando, como se duvidasse da eficácia do seu remédio.
Finalmente, Brownlee mostrou-se também convencido, mas
relutante em entregar o negrinho. Os Maxwell mantinham-se
insensíveis ao comportamento de Brownlee para com a criança, até
que, julgando que o rapaz se demorava de propósito e não
reparando que era o negreiro que estava a agarrá-lo, Hammond
mandou sentar o garoto.
As cadeiras à volta da lareira estavam ocupadas e o rapaz foi sentar-
se numa ao fundo da sala, subindo cuidadosamente para ela sem
saber o que esperavam dele.
-Meg, que maneiras são essas? Não te deves sentar numa cadeira! disse
Hammond severamente.
0 rapaz pôs-se imediatamente de pé.
-Eu não é Meg; eu é Alph.
-És Meg quando eu te chamar Meg. Sabes a quem me dirijo. És um
negro, e os negros sentam-se no chão, em casa dos brancos.


A criança, arrependida, deslizou para o chão. Abriu a boca para se
desculpar pelo motivo de nunca ter estado naquela sala antes e não
conhecer as regras, depois pensou melhor, em face da disposição do
patrão mais novo e mordeu a língua.
Hammond percebeu que a criança não o fizera por falta de respeito
e mudou de tom.
-Vem para aqui, que está mais quente -meio ordenou, meio
convidou
-aí, ao lado da lareira.
0 rapaz obedeceu, acocorando-se, como um sapo, confortável e
tranquilo. Fez um esforço para escutar a conversa dos brancos mas
não conseguia manter os olhos abertos. 0 que ouvia não tinha
interesse para ele, nem o compreendia. Pensou apenas no que
beberiam os patrões, que cheirava tão bem. Finalmente, deitou-se de
lado, enrolou-se e adormeceu ao calor. Os Maxwell ignoraram a sua
presença, mas as suas formas arredondadas eram acariciadas pelos
olhares lúbricos dos olhos pequenos, deslavados e porcinos de
Brownlee.
-0 rapaz adormeceu -observou.
-Sim, mais um toddy e vamos todos para a cama -disse Maxwell. Estou
ansioso por me meter na cama, com os pés contra a barriga
dele; estou desejoso de experimentar -e chamou Mem.
Merririon tinha andado toda a noite para um lado e para o outro, a
espertar a lareira, a servir bebidas, a substituir as velas. Diligente e
alerta, de nada se esqueceu. Queria demonstrar que o castigo
prometido para o dia seguinte era desnecessário. já imaginava a dor
nas nádegas e pensava no desprezo que os outros negros sentiriam
por ele, no rebaixamento da posição em que se entronizara perante
eles. A sua vergonha seria tão dolorosa como as pancadas recebidas.
-Pulverizaste a noz de betel como te disse? -perguntou Maxwe11.
-Sim, sio, patrão; sim, siô, fez isso -respondeu Mem, e tomou nota
mentalmente de que tinha de ir fazé-1o antes de ir para a cama.


Admitir que se esquecera do encargo seria acrescentar mais um
ponto a sua acusação.
-Acha que eu devia ir à casa dos doentes para ir ver como está a
Pérola Grande, antes de me deitar -perguntou Hammond ao pai.
-Deixa estar a Pérola Grande. Tu estás cansado, Ham. Está frio lá
fora.
Vai mas é dormir e deixa-te de te ralar 'com os negros. Não és a
mãe deles. Não precisas de os amimar e de tratá-los como fazes.
Estão bem. Deixa-os em paz.
-Seja como for, sou responsável por eles. Gosto muito dos nossos
negros e tenho orgulho neles. Qualquer deles é são e escorreito. E
quanto a Pérola Grande, tinha multa pena de a perder.
-Claro, um negro bom é uma grande perda, hoje em dia e com os
preços que se fazem. Mas porque vale essa Pérola mais que os
outros?
-Porque não mostras a Pérola Grande ao senhor Brownlee, pai?
-Em primeiro lugar, não está à venda. Em segundo lugar, faz os
outros pretos parecerem insignificantes. Em terceiro lugar, está a
chover e não quero apanhar vento e chuva.
É a vossa negra de categoria? Mandinga, mandinga pura -explicou
Maxwell. -já não se encontram muitos mandingos puros, hoje em
dia. Todos cruzados com angolanos e wydahs, e outras tribos, e até
com sangue branco.
-Eu gosto delas pretas -declarou Brownlee.
-Eu? Eu gosto delas enérgicas, seja qual for a cor. Claro, está certo
os brancos andarem atrás das brancas; é uma protecção para as
brancas, sempre disse. Mas todos querem negras claras; os
proprietários brancos pequenos, frágeis e fracos passam o tempo a
tentar arranjar belos mulatos que nem sempre se tornam em
trabalhadores fortes para o algodão. Todos eles sonham arranjar
mulatas claras e bonitas que possam vender jovens por um preço
monstro. Se tivessem um espelho, viam logo que só podiam
engendrar animaizinhos feios, de cabelo encarapinhado. Claro que


não me refiro a proprietários como o Ham, que é forte, bonito e
vigoroso, mas o Ham não anda pelas cabanas a cobrir todas as
fêmas para arranjar crias de cor clara. Não senhor.
Hammond sentia-se embaraçado com o aspecto pessoal do desvio
da conversa do pai. Tentou voltar à origem
-Estava a falar dos Mandingos, pai -começou ele.
-Pois estava, pois estava. Estava a falar de Pérola Grande. Mas volto
atrás para dizer -prosseguiu MaxwelI, recusando a interrupção que
o Ham só fez dois ou três bebés, ao todo, mas são três machos.
São jeitosos, de cor clara, é certo, mas todos machos. 0 mais velho
(anda a gatinhar, agora) é o mulatínho mais saudável e mais bonito
que eu já vi. Claro, recebe comida extra, ovos, e melaço com rum e
isso tudo.
-0 Ham parece ser uma viga -disse Brownlee.
-Não contava que aquele primeiro desse nada, porque o Hammond
só tinha quatorze anos quando o fez. Nasceu no dia a seguir àquele
em que ele fez quinze anos. Sempre muito orgulhoso; achava que já
era um homem.
-Ficou furioso, naturalmente, quando soube que ele andava atrás
das suas mulheres corri essa idade -disse Brownlee. -Claro, eu sei
que todos fazem isso, mas nada resulta.
-Não era minha. Era dele. Deixou-lha a mãe. Começou a servi1o
quando ele tinha uns onze ou doze anos, quando largou a ama.
-Admira que não se tenha arruinado.
-Vale mais um rapaz andar com uma rapariga esperta e limpa, do
que deixá-lo andar por aí ansioso por isso. Eu teria sido mais forte (e
mais esperto também) se o meu velho me tivesse dado uma
rapariga antes dos dezasseis ou dezassete anos.
-Dezassete? Eu tinha dezanove e, mesmo assim, não era minha nem
do meu pai. Pertencia ao homem para quem o meu pai trabalhava
como capataz, era uma mestiça feia, pelo menos; recordando-me
dela, penso que tinha sangue choctaw. Claro que eu arranjei
algumas antes às escondidas -admitiu Brownlee. -Nas leiras, onde


os trabalhadores passavam o dia, sempre que podia dar uma
escapadela.
Maxwell mostrou pouco interesse pela juventude do negreiro.
Brownlee não era forte recomendação para a continência na
adolescência.
-Naqueles dias, os pais não sabiam como o desejo de ter uma
mulher pode enfezar os rapazes ou enlouquecê-los. -Presumia-se
que os desvios de Brownlee se deviam à negligência do pai. -Talvez

o motivo porque os rapazes do Norte são tão enfezados e estúpidos
seja só terem raparigas brancas com quem se possam meter.
0 negociante estava mais interessado no copo de uísque que
Agamémnon lhe trazia do que nos comentários de Maxwell. 0 andar
de Mem era pouco seguro, os seus olhos tinham um brilho vítreo. A
sua mão tremia quando entregou as bebidas, embora se abstivesse
de as entornar.
-Anda cá, meu malandro. Ajoelha-te aqui e deixa-me cheirar-te! ordenou
Maxwell.
Merruion encontrou refúgio nas lágrimas.
-Eu não bebeu nada. Eu não fez isso, patrão, siô. Eu não fez isso. Eu
só provou para ver se tava quente. Só provou siô.
-Hammond, cheira-me o hálito desse rapaz. Merimon ajoelhou-se
junto de Maxwell e depois avançou, de joelhos, até Hammond, que

o cheirou superficialmente.
-Isso significa mais vinte e cinco palmatoadas, amanhã. -
Hammond dirigia-se ao pai, ignorando o preto. -E esta noite uma
boa dose de ipecacuanha. Fá-lo vomitar o uísque todo.
-Não repete, siô, não -pediu o negro sotto voce, não ousando falar
alto para não agravar a sentença, mas incapaz de ficar calado. -Eu
só provou.
Meirmon sabia que Hammond era inflexível, quando tinha uma
disposição tão concreta e objectiva; se o patrão o tivesse insultado e


ameaçado, poderia tê-lo amansado com o seu arrependimento,
Hammond nem se dignara dirigir-se-lhe. A sua resolução não era
temperada pela ira.
Quando Merrinon viu que Hammond não seria demovido pela
piedade, ergueu-se e saiu furtivamente da sala, mas já estava
totalmente sóbrio. 0 uísque que bebera para adormecer a previsão
do castigo do dia seguinte perdera o seu poder amortizador. Toda a
agilidade e prontidão que mostrara durante toda a noite para evitar

o desastre tinham ficado anuladas. A ipecacuanha era um castigo
que estava à altura do crime. Só de pensar nisso, sentia vómitos
antecipadamente. Saiu, da casa e vomitou. Sabia que o poderoso
eurético o voltaria do avesso e não tinha ilusões quanto à dose que
lhe seria destinada. Quando voltou para casa, após a sua excursão
no escuro, a pele clara de Merrinori. tomara um tom esverdeado.
Sentia-se doente do estômago e do coração.
-Como eu ia dizendo, acerca dos Mandingos-Maxwell retomou o
seu o seu monólogo, esquecendo a interrupção -, são muito
satisfatórios: poderosos, vendáveis, saudáveis. Não percebo como
essa Pérola Grande adoeceu.
-Como sabe que ela é mandinga pura? -inquiriu Brownlee.
-Basta olhar! Basta olhar! Não é preciso mais que olhar para ela
respondeu o dono. -Mas eu conheço a história dela, sei tudo sobre
ela. 0 velho coronel Wilson da Plantação Colgri, cerca de cinquenta
ou sessenta milhas mais acima, indo pela estrada, precisava de
alguns trabalhadores e foi a Charleston comprar uns. Claro, isto foi
no tempo em que o coronel era novo e podia andar a cavalo, antes
do senhor Tom Jefferson os impedir de carregarem aqueles brutos.
Estavam a descarregar uma carga inteira de mandingos puros,
duzentos ou trezentos brutos enormes e dóceis, e ele ficou com
quatro ou cinco. 0 coronel Wilson conhece um bom negro. Não
custavam muito, nessa altura, quinhentos, seiscentos, setecentos
cada. Dois deles, um macho grande e uma fêmea corpulenta, eram a
coisa mais bonita que eu já vi. A fêmea devia ter uns dezanove

palmos de altura, ou perto disso, e o macho era mais alto; não eram
só altos, eram corpulentos, não gordos, mas esbeltos, duros como
mogno.
-Claro, o coronel Wilson acasalou-os e nasceu uma rapariga, uma
fêmea grande e forte, que nasceu com mais de dezasseis libras; mas
por essa altura apareceu a febre-amarela em Coigri e a fêmea mais
velha morreu, assim como os outros mandingos, excepto o macho
grande e a bebé .
-Pouca sorte -disse Brownlee.
-Terrível, terrível. Mas a bebé cresceu; e quando já era grande e
capaz de procriar, o coronel Wilson não tinha qualquer mandingo,
excepto o pai, para a engravidar, e queria manter puro o sangue
mandingo. Então que fez ele? Acasalou a fêmea com o pai.
-Não podia fazer de outra maneira? -perguntou Brownlee. -Isso é
horrível; é incesto; é ir contra a Bíblia. Conheci um branco em
Tenessee, uma vez, que se meteu com a própria filha negra, e ela
teve uma fêmea que era muito enfezada e só chorava, nunca cresceu
e era fraca da cabeça. Só ficava deitada a babar-se. Quando tinha
uns três anos, o velho, vendo que nunca valeria nada, teve pena
dela e deu-lhe uma pancada na cabeça. 0 seu coronel Wilson devia
ter mais juízo.
-Mas não teve. A fêmea deu à luz o miúdo mais vigoroso que já se
viu. Está muito crescido, agora, mas o coronel não quer vendê-lo.
Vai guardá-lo para procriar.
-Custa a crer! -disse Brownlee.
-Vendo que se tinha saído tão bem da primeira vez, o coronel
Wilson acasalou outra vez o pai com a filha e desta vez nasceu uma
rapariga, Pérola Grande. Comprei-a, a ela e à Lucy (é a mãe), ao
coronel, quando Pérola Grande ainda mamava.
-É por isso que sei que ela é mandinga pura. Ela e a Lucy, e os dois
do coronel Wilson, o macho velho e o novo, são os únicos mandigos
puros que conheço. Belos negros, todos eles.


-É muito perigoso, penso eu -disse Brownlee. -Eu não me
arriscava. Que vai fazer com a sua fêmea? Não tem mandingos para
a acasalar.
-Quando Hammond tiver tempo, gostava que ele fosse à Plantação
Colgri e pedisse ao coronel que lhe emprestasse o macho velho por
um mês ou dois. Queria acasalar a Pérola Grande outra vez com o
pai e avô. 0 velho tem sessenta ou sessenta e cinco anos, talvez
setenta; mas julgo que ainda tem semente.
-Não se arrisque, senhor Maxwe11. Não se arrisque. Isso é horrível.
0 horror de Brownlee só confirmou a decisão de Maxwell.
-Resulta bem nos cavalos, nas vacas, nos porcos, nos cães, etc. Não
percebo porque não há-de resultar com os pretos. Claro que é
preciso ter bom gado; não resulta com fracotes.
-Está a ir longe na procriação, senhor Maxwell. Pensava que sabia
mais de pretos.
-0 Ham acha bem. Não achas Ham? Se ele estiver de acordo, vamos
experimentar.
Hammond estava cansado, quiescente, mal o ouvia.
-Pai, fala nisso há três anos. julgava que já estava decidido eu ir a
Colgri buscar o macho. Dentro de dias hei-de ter tempo. Não há
nada a perder, excepto o tempo de Pérola Grande, se a cria nascer
pequena ou coisa parecida.
0 Seth Thomas, que fazia tiquetaque sobre a lareira, tossiu e bateu
oito rápidas badaladas, como se a sua função fosse desagradável e
desejasse despachá-la o mais rapidamente possível.
-Aquele maldito relógio -observou Maxwell. -Dá as horas certas,
quase; mas está atrasado uma hora nas badaladas. Sei arranjá-lo;
logo que tenha tempo.
Hammond espreguiçou-se.
-Acho que é altura de subirmos. Mais ou menos nove, não e, pai.
-Passa um quarto, mais ou menos. Está atrasado, também. Espera
até ele me arranjar um toddy e podes levar o Meirmon. Depois ele
pode ocupar-se do senhor Brownlee e em seguida de mim.


Meirmon trouxe as bebidas para Maxwell e Brownlee, conforme
mandaram.
A sua presença recordou a Maxwell o seu mau comportamento.
Avisou Hammond:
-Não te esqueças da ipecacuanha, filho?
-Não, pai. Eu preparo-a, mal vá para cima. Hammond bocejou e
levantou-se, relutante em abandonar a lareira quente e ir para o
vestíbulo frio. Aplicou um beijo negligente na face do pai, desejou
delicadamente boa-noite e sonhos agradáveis a Brownlee, e notando

o alvo convidativo que contribuia o rabito saliente de Alpha,
baixou-se e deu-lhe uma sonora palmada. Os músculos de Alpha
estavam constantemente doridos por causa do espancamento diário
de Lucrécia Bórgia, e a palmada, destinada a ser uma carícia, fez-lhe
doer. 0 rapaz, mal acordado, gritou, olhou em volta e esfregou as
nádegas; depois adormeceu de novo.
-Não se esqueça da sua botija para os pés; está uma noite fria, pai disse
Ham, a brincar.
-Dite já subiu? -perguntou Hammond a Meirmon.
-Dite subiu cedo -respondeu Metrinon.
-V em, então -disse Hammond, e saiu a coxear, seguido pelo negro
apreensivo.
Maxwell ouvia, com desgosto, os passos desiguais do filho que
subia as escadas, e o seu andar irregular no andar superior.
Censurou-se novamente por ter confiado o seu herdeiro a um
animal castrado, de temperamento inseguro.
-Quem é? -perguntou Brownlee.
0 espírito de Maxwell ainda estava no acidente passado havia tanto
tempo.
-Quem é quem?
-Quem é ela? Aquela Dite?
-Ah, essa. É a fêmea de quarto do Hammond.
-Bonita, calculo -disse o negreiro, dando voz à sua imaginação.

É mesmo. Mestiça, acho eu. Clara, hem? E jovem? Quatorze, talvez
quinze anos. Porquê? Estava só a pensar, só a pensar no belo lote de
negros que têm aqui. Por todo o lado, e não os vendem.

Capítulo quarto

Quando Hammond entrou no quarto, a sua concubina levantou-se
para o receber.
Tinha-se despido e cobria-se apenas com uma colcha que tinha
pendurada sobre os ombros.
-Vens tarde, siô -disse, em tom casual.
-sim, um pouco. Pérola Grande está doente. Porque não te deitaste?
-Esperei pra sabê se quer eu na cama ou na esteira.
-No chão. Estou cansado, esta noite -disse Hammond, deixando-se
cair numa cadeira em frente do fogo e entregando-se aos cuidados
de Mem. Depois reconsiderou. Não, mete-te na cama e aquece-me
os lençóis até eu me despir e depois podes ir para a esteira.
Afrodite soltou a colcha e ficou nua, enquanto afastava as cobertas,
ajeitava o travesseiro e se estendia na cama de penas. Merrinon
despiu as roupas a Hammond, esperando que o patrão se tivesse
esquecido da ipecacuanha. Enquanto Ham se colocou em frente da
lareira, voltando-se e coçando as partes, Afrodite manteve-se
estendida, olhando para ele com afecto servil.
0 corpo de Hammond, com excepção de algumas zonas nas costas e
em volta do ventre, estava coberto de pêlos louros, pouco grossos,
mas de comprimento considerável. De pé, entre Dite e o fogo,
voltando-se, como em cozedura lenta, parecia usar uma couraça
dourada, como Zeus vindo ter com Danae, dentro de uma nuvem


dourada, se Dite conhecesse a lenda. Naquela posição, não se
notava a rigidez do joelho. Os seus ombros não eram largos, mas
duros e fortes e, cobertos de pêlos, pareciam mais largos do que
eram na realidade. 0 seu corpo era mais longo que o normal e as
pernas um pouco curvas. As longas horas na sela tinham
desenvolvido os músculos das coxas, que inchavam ou se
alongavam quando mudava de posição perante o fogo.
-Traz-me uma vasilha grande, aquela garrafa grande, amarela, que
está na prateleira, e um jarro de água quente. Vamos divertir-nos.
Mem sabia que o seu protesto seria em vão.
-E mexe-te -acrescentou Ham, enquanto Mem partia para cumprir
a ordem.
Mem fez o que lhe diziam e a sua garganta movia-se, enquanto via
Ham deitar a dose enorme da garrafa para a vasilha, acrescentar
água e mexer a mistura com o dedo, que limpou nos cabelos da
coxa. Colocou a vasilha na lareira, encostando a asa ao lado de fora.
-Vamos mantê-la quente -disse, dando uma volta final em frente
da lareira. Custava-lhe deixar o calor e meter-se na cama.

Finalmente, atravessou o quarto, deixou-se cair sobre um joelho,
estendendo atrás de si a perna rígida, inclinou a cabeça e repetiu
rapidamente a sua simples oração:
-Agora que me vou deitar, peço ao Senhor para a minha alma
guardar. Se eu morrer antes de acordar, peço ao Senhor para a
minha alma levar.
Era apenas uma fórmula sem sentido, murmurada à pressa sem a
noção do que era dormir ou morrer, ou levar almas. Hesitou, como
se se lembrasse e acrescentou:
-Bom Deus, abençoa a mãe que está no céu; abençoa o meu pai e
livra-o do reumatismo para Alph; abençoa este teu servo
Hammond, abençoa Pérola Grande e dá-lhe as melhoras; abençoa
Dite; abençoa Lucrécia Bórgia e os gêmeos ...


-Mem, patrão, siô, Merrmon. Pede a Deus pra abençoá Mermion.
Por favô, patrão; por favô, siô -o negro interrompeu a sua oração,
pensando que as petições dos brancos mereciam mais rápida
atenção no Trono da Graça do que as dos pretos.
0 patrão tranquilizou-o e pediu por ele.
-Abençoa Merrinon e ensina-lhe a não roubar e torna-o um bom
negro depois do castigo de amanhã; e, meu Deus, abençoa
Falconhurst e todos os negros da plantação.
Era pedir pouco. Falconhurst era um lugar bom e o seu pessoal era
bom também. Deus devia ficar lisonjeado por ter invocado a Sua
benção para eles.
Dite saiu da cama e tomou lugar na esteira ao lado, e Hammond
trepou para a cama alta e mergulhou entre os lençóis que o seu
corpo aquecera.
-Deixa a vela, rapaz. Vais voltar cá para beber aquela mistela, logo
que trates do senhor Brownlee e do patrão. Se eu estiver a dormir,
tens que me acordar.
Sim, siô, patrão -disse Mem; depois aventurou-se: -Eu pode leva a
vasilha e bebé aquela coisa antes de deitá.
-Voltas aqui, como te disse. Se a bebes já começas a vomitar e não
podes atender os senhores. Enrola bem o gêmeo em volta dos pés
do meu pai.
Mem escapou-se sem prometer coisa alguma. Ham sabia que ele
voltaria e Mem também o sabia, mas não tinha prometido nada.
Hammond ficou deitado a olhar para o fogo. 0 seu dia não acabara
antes de fazer o seu dever para com Mermion e não tencionava
dormir sem o negro chegar.
-Patrão, siô, tu tá acordado? -perguntou Dite, tentativamente,
erguendo-se na esteira para colocar a mão sobre a cama.
-Que queres Dite?
-Patrão, eu tá grávida. Adiara a informação, sabendo que a
manutenção da sua actual sinecura seria limitada pelo avanço da
gravidez. Tinha conseguido a sua posição por outra ter ficado


grávida, e ia perdê-la por engravidar. Nunca seria privada da
distinção de ter partilhado a cama do seu senhor, mesmo muito
tempo depois. Ser suplantada por causa da sua gravidez não seria
um súbito aviltamento. Ser mãe de um filho do patrão causaria a
inveja das outras e a inveja cria uma posição.


Contudo, era improvável que as actuais relações, uma vez
interrompidas, voltassem a começar. Poderia fingir que pensava
regressar depois de a criança poder ser desmamada, mas iria
engordar, os selos ficariam pendentes, e Dite estaria velha. Numa
plantação com as dimensões de Falconhurst havia uma sucessão de
raparigas que amadureciam a intervalos frequentes, o que tornava
impossível que uma fêmea afastada uma vez, voltasse ao leito do
patrão.
Hammond dormitava e foi lento a responder.
-Estava à espera disso. Há quanto tempo?
-Há dois meses. Não sabe ao certo.
-Estava na esperança que isso não sucedesse até aquela rapariga da
Dido crescer um pouco mais. Ela é muito bonita.
-Aquela nêga Tense? Dite conhecia já a sua sucessora.
-Sim, é esse o nome, ou qualquer coisa parecida. Hortense, julgo eu.
-Aquela magrizela preguiçosa, aquela coisa escura? Não presta p'ra
ti, patrão.
-Sim, É mais escura que tu. Tu és quase branca. Mas a cor dela é
bastante clara. É muito simpática -argumentou ele.
-Quase não tem carne nela.
-Está a engordar. Há dias olhei para ela. já tem boas ancas e está a
ganhar um peito jeitoso. Claro, os úberes ainda não cresceram tudo.
Por isso é que eu queria que esperasses mais algum tempo, mais
seis meses.
-Não pensa que Tensa tá virgem, pois não? Dite atacava ... com o
seu desespero.
-Acho que sim. A Dido é muito moralista.



-Dido é moralista, é. Mas com aquele irmão grande dela a dormir
na cabana, a Tense já não tá virgem, caiu a tampa -declarou Dite,
cheia de esperanças. -Eu era virgem, não era, patrão?
-Claro que sim. Claro que sim. Tu não eras mais velha do que
Tense, nessa altura. Ficaste irritada e tiveste medo de mim e tive
que te dar uma bofetada para ficares quieta. Eras muito cómica.
Lembras-te?
Dite lembrava-se muito bem daquela primeira noite aterrorizadora
mas guardada corno um tesouro, lembrava-se da rudeza de
Hammond e da sua ternura, da sua própria fuga e submissão
forçada. Bem poderia rir-se agora da experiência, se ela não
estivesse prestes a terminar.
Hammond tornou nota mentalmente para avisar Dido quanto à
protecção de Tense e para mandar o macho dormir para o estábulo.
Ficou quieto durante algum tempo. Mem já tivera tempo suficiente
para meter Brownlee e Maxwell na cama. Pensou se a recusa
teimosa de Mem iria ao ponto de não voltar para beber a mistura.
Ham estava resolvido a castigar o negro tanto quanto possível, de
modo a não destruir o seu valor; maior desobediência não agravaria
o castigo. Ham pensava se Mem seria suficientemente astuto para o
compreender.
0 facto é que o trabalho de meter os dois homens na cama tinha
custado pouco. Brownlee tinha sido conduzido a um quarto sem
lareira. Ficava no topo, sob a viga mestra, e estava frio. Estava
habituado, porém, ao frio que o decidia a tirar apenas as roupas
exteriores e o obrigava a enfiar-se na cama vestindo a camisola
interior, as ceroulas e as meias; nenhuma daquelas peças tinha sido
lavada ou mesmo despida desde que ele deixara as Carolinas.

A vocação de Brownlee fazia-c, indevidamente sensível a qualquer
tratamento que considerasse como rebaixamento. Assim interpretou
a ausência de calor no quarto que lhe fora destinado e
especialmente a ausência de uma mulher para o aquecer.


-Meirmon, traz-me uma mulher, para me dar prazer esta noite.
Esqueces-te disso, também?
-Não, siô, patrão Brownlee. 0 meu patrão não disse nada sobre uma
mulhé pró patrão.
-Digo-te eu. Vai-me buscar uma mulher nova, limpa, de pele clara,
e amanhã de manhã eu tento livrar-te do castigo. Eu digo ao senhor
Hammond que tu não és um negro mau, afinal. Digo-lhe que o pai
está desaparafusado ...
-Não, siô, não diga isso ao patrão Ham. Fica furioso. Ele sabe que
patrão velho não é desaparafusado. Ele acha que patrão velho tem
sempre razão.
-Vai buscar a rapariga e deixa o resto comigo.
-Sim, siô; sim, siô, patrão Brownlee. Eu vai, siô. Merrmon não sabia
se devia manter a sua promessa, mas não fazia mal em fazê-la.
Sentia-se dividido entre o seu desejo de uma mediação para a sua
zanga com os patrões e o medo de agir sem autorização. 0 suborno
que o negreiro oferecia era tentador, mas ele duvidava da vontade e
da capacidade de Brownlee para afastar Hammond das suas ideias.


0 dilema de Mem punha-lhe muitas perguntas, e a resposta certa
poderia evitar o seu castigo ou, pelo menos, mitigar a sua
severidade. Mem não estava habituado a tomar decisões; as
decisões eram tomadas por ele. Ponderou as alternativas enquanto
metia o velho patrão na cama, que era mera rotina, com excepção de
ajeitar o rapaz ao conforto do velho e colocar os cobertores por
forma que o garoto pudesse respirar. 0 torpor de Alph era tão forte
que não alterou a posição em que era mais ajeitado do que colocado.
Podiam-lhe ter dado um nó que não daria por isso.


MaxwelI, entorpecido pelos toddies e sonolento por se deitar
invulgarmente tarde, foi quase tão complacente corno urna criança.
Estendeu-se na cama enquanto Meirmon lhe retirava as roupas, e o



silêncio era apenas quebrado por urna ou outra imprecação quando
Mem teve dificuldades em puxar-lhe a camisa pela cabeça.
A luz da lareira enchia a sala e a vela pouca falta fazia quando
Meitmon a levou e fechou a porta.
Faltava apenas a Mem ir ao quarto de Hammond e beber aquela
horrível mistela que lá o aguardava. Só de pensar nisso, estremecia
de náusea.
Conhecia o violento mal-estar que causava quando já nada havia no
estômago para vomitar. Levaria pelo menos uma noite, a levantar-
se e a deitar-se, a tentar vomitar e a desejar morrer.


Meirmon hesitou antes de entrar no quarto de Hammond, receando
a bebida que o aguardava. Hammond parecia estar na melhor
disposição. Até se riu, quando lhe ordenou.
-Traz-me aquela vasilha e aquela garrafa. Não querias voltar para
beber a dose que preparei, eh? Vamos fazê-la mais forte -despejou
metade do conteúdo da garrafa na mistura já potente, e entregou-o
a Mem.
-Aquele siô branco diz pra eu arranjá uma mulhé. Que mulhé dou a
ele? Tense? Tenho qu'ir buscá ela antes que siô branco fique furioso
e vá dormi.
Mem tentou distrair Hammond do projecto em vista.
-Deixa o cavalheiro branco em paz e deixa Tense sossegada,
ouviste? Aquele negreiro não precisa de mulher. Não quero daquele
sangue sujo de negreiro misturado com o das minhas negras.
-Mas ele diz ...
-E eu digo-te que bebas essa mistura e te vás embora. E lembra-te
de acender as lareiras de manhã. Há muito que fazer amanhã.
Agora bebe isso.


A calma de Ham, que Meirmon tomara por complacência, era a
calma da sua ira. Estava farto das fugas e das desobediências do
rapaz. Ria-se antevendo a satisfação que iria obter ao forçar Mem a



beber a ipecacuanha. A disputa sobre a rapariga para Brownlee
prejudicava Mem.
A mão de Memnon tremia quando levantou a vasilha e a levou à
boca. Provou a mistura nauseante.
-Bebe tudo. Bebe tudo depressa, sem deixar uma gota. Queres
começar a vomitar enquanto estás a beber, para eu te dar outra
dose?
Meirmon bebeu.
-Por favô, patrão Ham, slô, chega. Não pode beber mais.
-Até ao fim. E bebe depressa antes que comeces a vomitar.
Meirmon tentou de novo -e engoliu tudo. Sentiu-se enjoado e saiu a
correr da sala. Logo que desceu a escada, começou a sentir vómitos
e vomitou por cima da carpeta da escada. Quando chegou ao fim,
ainda a vomitar, caiu de cabeça para o chão, com o muco a escorrer-
lhe da boca. Começou a sentir suores frios. Ficou ali, a vomitar, sem
forças para se levantar. Estava preocupado com a sujidade que
fizera e que se sentia incapaz de limpar.
Pensou na morte. Morrer sem estar nas graças do patrão, levava-o
direito ao inferno. Imaginou as chamas, sentiu o cheiro do enxofre,
sentiu as forquilhas. Contudo o inferno não podia ser pior do que
aquela náusea persistente. Desejava morrer, mesmo aterrorizado
com a tortura eterna. Ficou ali, sobre o seu próprio vómito,
demasiado exausto para se voltar. Vomitou até cair num sono
perturbado de que só acordava para voltar a vomitar. já nada saía.
Sabia que seria castigado por ter sujado as carpetas da escada, além
do outro castigo que o aguardava. Seria simplesmente um castigo
mais forte e mais longo? Se ao menos conseguisse ganhar forças
para se levantar e limpar o vestíbulo. Decidiu ficar quieto para não
acordar os brancos que dormiam. Limparia tudo e os patrões nem
saberiam. Tentou levantar-se, mas não conseguiu. Só conseguia
vomitar.


Hammond tencionava fazer Merruion ficar doente. Curá-lo-la de
roubar uísque. Não tencionava envenená-lo. 0 aditamento final que
fizera, por vingança pelo atraso do rapaz, quase lhe custava uma
propriedade valiosa.
Lucrécia Bórgia levantou-se à hora habitual, um pouco antes do
amanhecer, para preparar o pequeno-almoço. Fazia parte das
funções de Memnon acender o fogo na cozinha, mas ele não vinha e
Lucrécia Bórgia acendeu-o ela própria. Despiu Meg e deitando-o de
barriga para baixo, por cima das pernas, deu-lhe o castigo diário
com a palma aberta da sua mão poderosa. 0 castigo de Mem, que
uma sova diária aos gémeos se destinava a evitar no futuro deles,
entusiasmava-a a agir. Lucrécia Bórgia não confessava nem a si
própria o prazer íntimo que sentia ao ver os seus traseiros passarem
de castanho a rosa, e a futilidade dos seus pontapés, dentro do torno
em que os conservava. Era para o bem deles. Eram uns negrinhos
bem comportados e Lucrécia Bórgia queria torná-los impecáveis.
Alph, evidentemente, não estava disponível para o castigo antes do
pequeno-almoço que teria de ser adiado até estar livre do serviço do
seu amo.

Contudo, Merririon não chegava. Lucrécia Bórgia começou a sentir
que algo não estava bem e decidiu explorar a casa. Também não
havia lareira acesa na sala de estar! Devia estar a aquecer. Apanhou
uns gravetos e madeira da pilha que havia na passagem, preparou o
fogo e foi buscar uma brasa à cozinha para o acender. Pensando se
já haveria lareiras acesas nos quartos, começou a subir a escada para
ir ver e descobrir Meirmon a dormir sobre o próprio vómito, no
vestíbulo.
Estava muito fraco para conseguir explicar-lhe o que se passara. Ela
pô-lo de pé e, conduziu-o até à cozinha. 0 calor apenas piorou as
suas náuseas. Não sabendo que mais fazer, deitou um pouco de
uísque numa chávena -a última coisa que Mem desejava ver no
mundo. Tentou afastá-lo, quando ela lho deu. Lucrécia Bórgia


levou-lhe a chávena à boca e, no seu esforço para não o beber, ele
derramou-o sobre o casaco. Ficou pior, mais enjoado ainda com o
cheiro, e vomitou no chão da cozinha.
Lucrécia Bórgia desistiu, desesperada e enojada. Foi fazer o seu
trabalho, deixando-o na sua letargia. Tinha que fazer o trabalho de
Mem, além do seu.
Chamou o primeiro rapaz que encontrou e que sucedeu ser
Napoleão, e mandou-o limpar as escadas e o vestíbulo. Carregou
Meg com lenha e, pegando também numa dose maior de toros,
atravessou o vestíbulo e subiu as escadas, evitando pisar a sujidade
com os seus pés nus, para ir acender as lareiras em frente das quais
os amos se vestiriam com conforto. 0 Maxwell mais velhõ ainda
dormia, ressonando; mas a cabeça de Alph saía das cobertas, aos
pés da cama, e ele gabou-se orgulhosamente:
-Mãe, eu tem reumatismo. Doi muito, comó Patrão.
-Cala a boca e fica calado. Acordas o patrão e eu faz reumatismo a
ti de certeza -murmurou Lucrécia Bórgia mas a notícia de Alph era
a melhor que ouvira dizer nessa manhã. Alegrou-se com as
melhoras de Maxwell e ainda mais que um dos seus filhos tivesse
absorvido as suas dores. Nunca duvidou da afirmação de Alph.

Meg ficou ao lado da mãe enquanto ela descarregava a lenha e
acendia a lareira. Agarrou algumas brasas cobertas de cinzas e
soprou-as para acender a matéria de ignição. Um grande toro
separou-se da pilha de madeira que Meg tinha nos braços e caiu
com um ruído surdo sobre a lareira, magoando o ombro de Lucrécía
Bórgia na queda. 0 ruído incomodou Maxwell, que se moveu, mas
não acordou. 0 rapaz não esperou pelo castigo que estava certo de
receber para começar a chorar, e as lágrimas correram ao longo das
suas faces, misturando-se com as já secas do seu espancamento
anterior.
Quando chegaram ao vestíbulo, com a porta já fechada por trás
dela, Lucrécia Bórgia voltou-se para Meg.


-Olha pra mim nêgo -disse ela, e Meg levantou a cabeça. Ela deu
um passo atrás para poder estender o braço e esbofeteou-o na face
esquerda com tal força que ele quase se desequilibrou, com a sua
carga de lenha. Salvou-se de cair por causa da bofetada aplicada na
face direita, na altura precisa. Ele sabia que não valia a pena
protestar. Aliás, o impacto da poderosa mão aberta sobre a cara foi
tão grande que a dor não se tornou perceptível imediatamente. A
segunda bofetada actuara como contra-irritante da primeira. As
bochechas só lhe começaram a arder a valer quando seguiu a mãe
para o quarto de Hammond, do outro lado do vestíbulo.


Hammond estava acordado. Tinha dito a Merrmon para acender a
lareira cedo e o frio do quarto impedira-o de se levantar
imediatamente. Sentindo-se restaurado da fadiga da noite anterior,
acordara Dite e tinha-lhe dado permissão para vir para a sua cama.
Lucrécia Bõrgia, entrando no quarto, fingiu não ver as contorções
que se passavam por baixo das cobertas. Meg, contudo, enquanto a
mãe lhe tirava a lenha dos braços e preparava a lareira, não podia
impedir o olhar de se dirigir para a cama. Não era totalmente
inocente, tinha ouvido conversas licenciosas; sabia
aproximadamente o que o patrão estava a fazer. 0 seu interesse pelo
que se passava na cama fez Meg esquecer as bofetadas.
Quando Lucrécia Bórgia acabou de preparar a lareira, notou que as
cinzas estavam frias e mandou ir Meg ao quarto de Maxwell buscar
um tição. Este encontrou o irmão que saía do quarto a coxear e a
esfregar as articulações de uma mão com a outra. A inveja que Meg
sentiu pelo sofrimento de Alph fê-lo parar, esquecendo-se do recado
que tinha de fazer.


-A doença do patrão passou prá minha barriga -declarou Alph. Dói
muito e as mãos 'tão terríveis.
-Tás a fingir nêgo. Não dói nada, só tem medo de levá pancada.
julga que mãe não vai batê a ti porque tem reumatismo, seu



estúpido. A mãe tá danada, esta manhã! -avisou Meg e foi ao
quarto de MaxwelI, enquanto Alph descia lentamente as escadas,
exagerando o coxear.
Maxwell ignorou os movimentos de Meg junto da lareira até ele ter
acendido um pedaço de madeira e atravessado o quarto para sair;
nessa altura, o velho perguntou-lhe:
-Onde está Meirmon?
-Merimon tá doente -respondeu o rapaz, timidamente, esforçando-
se por sair.
-Esse negro não está doente. Está a ver se consegue escapar ao
castigo. Mas vai tê-lo na mesma. 0 negro não está doente -disse
Maxwell em voz alta, para si próprio.
-Sim, siô, patrão, siô. Meg teria concordado com qualquer outra
afirmação que o amo fizesse. Não tinha propriamente medo do
velho, mas sentia-se pouco à vontade. Nunca tinha estado nos
quartos antes e o que lhe parecia ser luxo espantava-o. A vida dos
brancos era tão complexa. Os brancos esforçavam-se mais para estar
confortáveis do que valia a pena.
-Leva esse tição. Depois volta cá e ajuda-me a calçar as botas ordenou
Maxwell e Meg sentiu-se aliviado por poder sair.


No quarto de Ham, Lucrécia Bórgia continuava a arranjar a lareira.
-Aquele nêgo tá cada vez pior. Vomitou por cima dos fato, sujou-se
todo-ouviu-a Meg dizer, rindo, a Ham, que, sem esperar pelo lume,
já saíra da cama.
-Porque demoraste tanto? Não vês que faz o patrão vestir-se sem
lareira? -censurou Lucécia Bórgia.
-Patrão velho diz pra eu ir lá e ajudá ele a calçá os botas.
-Então tem cuidado; cuidado, ouviu? E vê se és educado -avisou a
mãe.
Os olhos de Meg estavam cravados em Hammond. Tinha visto
muitos negros nus, mas nunca lhe ocorrera que os brancos tirassem
a roupa. Tinha partido do princípio de que os cavalheiros brancos



eram anjos sem corpo, mas agora via que tinham carne, uma bonita
carne cor-de-rosa coberta de pêlos dourados. Longe de desiludir o
rapaz, esta revelação aumentou a sua reverência pelo poder dos
brancos. Poder reforçado pela beleza. Gostaria de tocar naquela
carne, de passar os seus dedos escuros por aquele pêlo dourado,
mas conhecia perfeitamente bem a lesa majestade dessa ideia.
Apenas podia deitar-lhe um olhar langoroso, mas isso bastava para
excitar o amor físico. Tinha visto Dite na cama de Hammond e
sentiu inveja pelo seu contacto com ele. Por ciúmes, Meg odiou a
rapariga.
Regressou ao quarto de Maxwell e ajoelhou-se perante o patrão
sentado na cama. Maxwell atirou as meias ao rapaz e estendeu-lhe
os pés. Meg calçou-as ao velho e depois começou a lutar para enfiar
as botas, preocupado com o pensamento do prazer que teria se
fizesse o mesmo ao seu jovem patrão. Sonhava vir a ser criado
pessoal de Hammond. A sua imaginação levou-o a despir
Hammond, a dar-lhe banho. Aquela carne cor-de-rosa precisava de
ser lavada de tempos a tempos. Ou não precisava? Talvez estivesse
perpetuamente limpa e não precisasse de banhos. Os brancos não
cheiravam mal, como os pretos.
Meg lembrou-se que Hammond mal reparava nele, ou então só o
fazia para o censurar, mas guardou na memória todos os reparos
que recebera, em aprovação ou desaprovação. Achava que até
mesmo os maus tratos seriam aceitáveis de um tal amo, se ao menos
pudesse estar perto dele e servi-lo -intimamente. As vísceras de
Meg moveram-se. Algo se passara com ele. Não sabia o que lhe
tinha sucedido, não sabia o que queria. Sabia que era escravo de
Hammond, tanto por vontade como de facto. Tivera uma visão. 0
seu deus assumira uma forma mortal.


Capítulo quinto


Os céus tinham-se esvaziado e lavado a paisagem. 0 Sol surgira no
horizonte com um brilho deslumbrante. As únicas nuvens que se
viam eram tufos espalhados que intensificavam o azul-brilhante
com o seu contraste. 0 vento secava fortemente a terra húmida mas
perdera a fúria da noite. Os raios quentes do Sol, embora fosse
ainda cedo, penetravam na carne e aqueciam a medula dos ossos, se
se estivesse abrigado. Maxwell olhou através da janela e viu alguns
dos negros acocorados junto das cabanas, absorvendo o calor.

Compreendeu então que era sábado, um dia em que não estava
prescrito o trabalho em Falconhurst. Pertencia aos escravos, para
limparem as suas instalações, lavarem as roupas e tomarem banho,
cultivarem as suas leiras e fazerem os seus trabalhos pessoais. As
leiras estavam demasiado enlameadas para serem tratadas.
Maxwell não censurava a sua ociosidade.

Na realidade, Maxwell não censurava coisa alguma a ninguém.
Abriu e fechou as mãos e olhou para elas. 0 inchaço das articulações
não tinha diminuído mas a maior parte da dor desaparecera. Os
seus joelhos não estavam propriamente flexíveis, mas conseguia
andar sem desconforto. Mal podia acreditar nos seus sentidos. A
sua artrite desaparecera, pelo menos em parte. Isso deu-lhe
esperanças. 0 rapazito negro tinha saído do quarto a coxear. Talvez
as dores tivessem realmente passado para o negro. Maxwell estava
espantado. Não previra resultados tão imediatos para o tratamento.
Sentiu uma benevolência que se aproximava da gratidão para com
Alph, embora o rapaz tivesse sido utilizado na experiência sem ser
por sua própria vontade.


Alph era um negrinho demasiado valioso para ser usado para tal
fim, mas era limpo e bem formado e não cheirava mal. Era filho de
Lucrécia Bórgia e tinha sido gerado por Mermion, crescera na
cozinha. Era mais aceitável para aquele fim que um dos rapazes mal
cheirosos das cabanas. Claro que o mau cheiro deixara de ser
problema; aquela água vermelha neutralizava-o. Tinha que se
lembrar de mandar lavar o rapaz outra vez, antes da noite. Fosse
qual fosse o valor de Alph, Maxwell achava que, se ele pudesse
absorver-lhe as dores, o tolhimento do rapaz seria um pequeno
preço. Além disso, seria possível drenar o reumatismo de Alph para
outro negro menos valioso, mais tarde. Talvez fosse possível
arranjar-lhe um daqueles cães mexicanos -se realmente tais animais
existiam.

Maxwell sentiu o cheiro acre da carpete húmida quando desceu,
mas, na alegria das suas melhoras, ficou indiferente. Encontrou
Brownlee na sala, em frente da lareira, um pouco rígido, ressentindo
ainda as faltas na hospitalidade dos MaxwelI, o quarto sem
aquecimento, a ausência de uma mulher, a necessidade de se
levantar e calçar as botas sem um criado.

Brownlee estava habituado a piores instalações, raramente gozava
da presença de uma mulher, a menos que tivesse alguma para
vender, e podia bem vestir-se sem ajuda; mas sentia o desprezo de
Maxwell pela sua profissão, o que era verdade.
Maxwell chamou Merririon e apareceu-lhe Lucrécia Bórgia.
Mandou vir bebidas -um uísque sem água para Brownlee, um
toddy para ele. Quando chegaram, Meg trazia-as numa bandeja e
serviu-as. Lucrécia Bórgia seguiu o rapaz até à porta, para
supervisar o seu comportamento, o qual, aparte a impetuosidade, o
desejo de agradar, foi tal que nem a mãe poderia exigir melhor. 0
prazer de Meg em desempenhar as funções de Merririon só foi
diminuído pela ausência de Hammond. Talvez, se ele fosse


especialmente diligente, o patrão mais velho o notasse e informasse

o branco mais novo de que aquele rapazito era um negro a valer.
A primeira tarefa matinal de Hammond foi ir à casa dos doentes ver
Pérola Grande. Quando entrou no quarto, ela sentou-se e estendeu
os braços para ele. Sentou-se ao lado dela, na cama, e ela agarrou
nas suas mãos e começou a choramingar.
-0 que tens, Pérola Grande? Onde te dói? -perguntou Hammond,
em tom bondoso.
-Não dói coisa nenhuma. A doença foi embora -respondeu Pérola
Grande, agarrando-se a ele. -Patrão, siô! Patrão, siô! -chorou ela.
-Não chores, Pérola Grande. Tu estás bem.
-Sim, siô. Eu sabe que tá bem, com patrão aqui ... Patrão, patrão.
-Porque choras tu?
-Patrão vai deixar eu e minha doença volta. Patrão, patrão, fica
aqui, fica aqui, por favô, patrão, siô! -pediu Pérola
apaixonadamente.
-Como esteve ela toda a noite, Lance? Ham voltou-se para o negro
grande que se erguera, à sua entrada.
-Primeiro, quando patrão saiu, Pérola Grande adormeceu mêmo
bem. Eu ficou aqui ao pé do fogo toda noite. Depois ela acordou e
começô a gritá e a gemê, e ficou assim té patrão entrá 'quéla porta,
siô.


Ham apalpou a testa de Pérola Grande. Parecia fresca. Notou,
contudo, um ligeiro movimento convulsivo do seu corpo, quando
lhe tocou. Ficou confuso. Não havia sintomas de febre amarela ou
de varíola. Talvez aquilo fosse o resultado da procriação
consanguínea.
Não porque pensasse que pudesse fazer qualquer bem à rapariga,
mas porque não sabia que mais dar-lhe, deitou uma dose de
láudano num copo e deu-lhe a beber. Ela cravou os olhos em
Hammond com uma expressão de gratidão que era adulação.



-Vou dizer-te uma coisa, Lance, pões arreios naquela mula cinzenta
e vais a Benson buscar aquele veterinário. Conheces o doutor
Redfleld. Conheces o caminho para Benson não conheces?
-Sim, siô, patrão, conhece, o branco que curou Nimrod no ano
passada.
-Hás-de encontrá-lo na taberna ou na mercearia, a beber. Diz-lhe
que venha já à Plantação Falconhurst dos Maxwe11. Lembras-te do
recado?
-Sim, siô, patrão. -Lance estava felicíssimo por ter sido escolhido
para aquele recado. Podia ga6ar-se disso nas cabanas e contar tudo

o que vira na cidade. -Eu precisa de passe, patrão. Eu não quê ser
apanhado como negro fugitivo.
-Eu escrevo-te um passe. Vai à casa grande e arranjo-te. E tem
cuidado com aquela mula. Vai devagar e não te afundes na lama.
-Sim, siô, eu tem cuidado. Eu preto cuidadoso.
0 opiácio começou a fazer os seus efeitos sobre a paciente e
Hammond voltou para casa para tomar o pequeno-almoço. Meg
ouviu-o entrar e coxear pelo vestíbulo. Sem aguardar ordens,
galopou para a cozinha e, excitado, puxou pela sala de Lucrécia
Bórgia.
-Um toddy pró patrão, um toddy pró patrão Hammond, um toddy.
É pró patrão Ham -insistiu com impaciência. A mãe interrompeu a
preparação dos pequenos-almoços para misturar o toddy.
Hammond entrou na sala e parou junto da lareira, estendendo as
mãos para o fogo e girando em frente dela, antes de se sentar, mais
por hábito que por frio.
-É melhor beberes um toddy, Ham -avisou o pai. -Faz-te bem. Mal
Hammond se deixara cair na cadeira, Meg precipitou-se pela porta,
de copo na mão. A sua impetuosidade desapareceu e tornou-se
tímido ao aproximar-se do jovem amo. Mordeu os lábios, ao
estender a libação não pedida ao seu deus cor-de-rosa e dourado,
sem saber como seria recebida a sua decisão.


-Donde saiu este? -perguntou Hammond, em jeito de exclamação,
apontando Meg com o queixo. -Este negro é melhor que o outro.
Não é preciso mandá-lo. -Ham sorriu para o rapaz.
Meg sentiu-se envergonhado com o louvor que tanto desejara.
Baixou a cabeça e mordeu o lábio inferior, enquanto retribuia um
sorriso tímido. Depois a emoção venceu-o e começou a chorar. Não
havia motivo aparente para tal reacção.
-Que tens rapaz? Ninguém vai fazer-te mal. Tu és um bom rapaz consolou-
o Hammond.
Meg sabia que era sacrilégio, mas não conseguia impedir-se de o
fazer. Não podia continuar de pé. Os seus joelhos dobraram-se sob
ele e caiu de joelhos, com o rosto entre as pernas de Hammond.
-Eu é o teu nêgo, patrão, eu é o teu nêgo, patrão, siô. Diz que é o teu
nêgo, patrão Ham; só o teu nêgo. Nêgo de mais ninguém, só teu suplicou
o rapaz, entre soluços.
-Claro que és o meu negro. De quem receias ser? Claro que és o
meu negro e também negro do Patrão Velho.
Hammond, sem compreender, tentava confortar o rapaz.
-Teu, teu, não dele; só teu nêgo -gritou o garoto. -Alph é o nêgo do
Patrão Velho. Eu é teu, patrão Ham, por favô, siô. Eu não cheira
mal, siô. Eu quer ser teu nêgo, só teu.
-Está bem. És o meu negro. -Hammond pousou a mão sobre a
cabeça rapada entre as suas pernas.
-Chicoteia eu, então. Tu nunca chicoteá eu, patrão, siô. Por favô,
castiga eu, patrão. Espanca eu com força.
-Não fizeste nada para eu te espancar. És um bom negro. Não é
preciso castigar-te -protestou Hammond.
-Por favô, castiga eu. Depois sabe eu que é teu. Para satisfazer o
rapaz, Hammond colocou-o no colo e aplicou-lhe cinco ressonantes
palmadas no traseiro. Era impossível determinar se o grito de Meg
"Por favô, patrão" que se seguia a cada palmada implorava que
desistisse ou que continuasse. 0 gemido e o salto que se seguiam a
cada palmada denotavam dor, mas, quando Hammond o soltou e o


pôs de pé, o rosto do rapaz tinha um ar de satisfação, de êxtase. já
não havia nele timidez nem dúvida. Meg sabia a quem pertencia.
Podia olhar para Hammond de frente e jurar a sua fidelidade.
-Tu é tão bom, patrão, e bonito. Eu amo tu, patrão. Lucrécia Bórgia
apareceu com a sineta do pequeno-almoço. Este estava atrasado,
mas Lucrécia Bórgia não estivera parada. Viu as lágrimas no rosto
de Meg. Compreendeu que sucedera algo de invulgar.
-Esse negrinho tem tado a maçã os siô? Eu desanca ele, eu desanca
ele té cair.
Hammond sorriu-lhe e disse:
-Mete-te na tua vida, Lucrécia Bórgia. Este negro é meu. Se eu
quiser desancá-lo, desanco-o. Não lhe toques.
0 tom era jocoso e Lucrécia Bórgia compreendeu que o filho não
tinha feito disparate.


Alph estava no seu devido lugar, ao lado da mesa, agitando as
penas de pavão. Conseguia mexer-se o bastante para mostrar que
coxeava. Lucrécia Bórgia puxou a cadeira para Maxwell se sentar, e
Meg estava alerta e cerimonioso, ao puxar a cadeira de Hammon.
Apressou-se a tirar o guardanapo do seu copo, a desdobrá-lo e a
colocá-lo no regaço de Hammond.


Lucrécia Bórgia serviu o pequeno-almoço, mas Meg anticipava-selhe
em tudo o que respeitava às necessidades de Hammond.
Ignorando Maxwell e Brownlee, encheu o copo de Ham com leite,
acumulou bacon e ovos no seu prato, virou a travessa do pão para
que a fatia maior ficasse do lado de Hammond.
Existia uma regra tácita de que os negros não deviam comer dos
pratos reservados aos brancos. Mas agora Meg não precisou de
grande temeridade para sussurrara Ham:
-Patrão, eu pode comê o que tu não quer?



-Oh, percebo; é por isso que me estás a servir tão bem. Queres
comer o que eu deixar? -disse Hammond, brincando com o rapaz, o
que o pai desaprovou.
A acusação era injusta e o rapaz apenas pôde negar, dizendo:
-Não, siô, patrão. Eu quer que comas tudo o que pudé, mas, por
favô, siô, deixa eu comê os teus resto.
-Claro que podes. És o meu negro, não és? Ham não tencionara
censurar o rapaz.
-Mêrno do teu prato? Por favô, patrão, siô, eu pode? Mesmo do
meu prato. Maxwell observava Alph a coxear. Quanto mais Alph
coxeava, mais Maxwell se convencia das suas melhoras. 0 tempo
maravilhoso e a desistência de Hammond da sua proposta, ou pelo
menos desejada, expedição ao Texas, tinham-se combinado para
alterar o desconforto do velho. Contudo, ele atribuía-o, com certa
dúvida, ao negrinho aos seus pés e estava-lhe quase tão grato pelo
seu alívio como um proprietário estaria grato à sua propriedade.


Hammond notara o aspecto do pai mas não queria fazer
comentários sem estar seguro de que ele estava melhor. Era
aparente a sua maior destreza. Podia levar a faca à boca com
segurança e sem vacilar.
-Parece que está melhor, esta manhã, pai -observou Ham,
finalmente.
-Melhor, Ham, melhor. Vou ficar bom, agora que descobri a cura.
Vê como aquele rapaz coxeia. 0 veneno está todo a sair. Vou ficar
bom e tirar-te a plantação das costas. Hei-de montar a cavalo outra
vez, antes de tu dares por isso.
-Não se rale comigo. Eu estou bem e Falconhurst também.
-Conheci um preto com uma barriga excelente para o reumatismo.
já lhe contei -informou Brownlee. -Aquele Bronson de Natchez ...
-Gostava de saber como vai a Pérola Grande -declarou Maxwell. É
melhor ires ver como ela está, Ham, depois do pequeno-almoço.
-já fui. Está melhor, mas Lancelote diz que passou mal a noite.



-E melhor chamar o Redfleld -aconselhou Maxwe11.
-já mandei o Lancelote.
-É a coisa mais terrível nesta plantação, senhor Brownlee. Não
consigo sugerir nada, nem uma coisa, que não tenha já sido tratada.
Este Hammond pensa em tudo e faz tudo antes de eu falar nisso. Só
tenho que tratar do meu reumatismo, beber os meus toddies, e
deixar de me maçar, penso eu.
-Espero que o Lance chegue a Benson. A lama está terrivelmente
funda e espessa -ponderou Hammond.
-Tenho estado a pensar na lama -disse Brownlee. -Estava bastante
má ontem, mas está pior esta manhã. Acha que aqueles dois pretos
podem acompanhar o meu cavalo?
-É melhor ficar mais um dia ou dois. Deixe secar a estrada. Temos
muito uísque e muita comida e uma cama. É bem-vindo, senhor
Brownlee -insistiu Maxwell.
-Vou ver. Vou ver -disse o negreiro. -Este vento e o sol secam as
estradas muito depressa. Claro, vou ficar para ver espancar aquele
negro.
-Acho que não pode ser castigado esta manhã. Está doente explicou
Ham.
-Provavelmente a fingir.
0 negreiro estava desapontado.
-Não, não, está doente. Dei-lhe uma boa dose de emético na noite
passada, por beber aquele uísque. Eu estava furioso e dei-lhe
ipecacuanha de mais. Está muito doente.
-Mereceu, mereceu. Não foi mais do que ele merecia-disse
Maxwe11.
-Não lhe fazia mal baterem-lhe, acho eu -insistiu BrownleePrometeu-
lhe, como sabe. Deve-se sempre manter a promessa de
um castigo feita a um negro.
-Mantenho a promessa, na mesma, mas não enquanto estiver
doente. Não espancamos negros doentes em Falconhurst. Além


disso, faz-lhe bem pensar uns dias no castigo antes de o receber.
Deixe-c, pensar como lhe vai doer.
-Estragam os vossos negros, em Falconhurst; dão cabo deles
completamente. Não trabalham ao sábado! Não levam pancada
quando estão doentes! Veterinário para uma dor de barriga! Parece
que os negros é que sã o vossos donos, em vez de serem vocês os
donos deles.
Brownlee expressava a sua desaprovação.
-É verdade, de certo modo -concordou Hammond. -Por um lado,
os negros são nossos donos, por outro somos nós os donos deles.
Eles alimentam-nos e nós alimentamo-los. Nada há que eu mais
deseje do que bons negros, gordos, bem dispostos e felizes, e a
crescer.
-Isso recorda-me -disse MaxwelI, empurrando a cadeira para trás que
tenho de tirar as lombrigas àquela rapariga. Lucrécia Bórgia,
dá-me a noz de betel que o Mem pisou ontem e traz-me a
rapariguita à varanda. Preciso de uma colher de melaço com rum
também, para fazer uma massa.
-0 Memnon não pisou nenhum betel a noite passada, patrão.
-Sim, pisou. Eu disse-lhe e ele respondeu que tinha pisado. Além
disso eu disse à Dido que esvaziasse a pequena e a tivesse pronta.
-Aquele nêgo mentiroso não pisou nenhum noz, patrão, siô, tão
certo como tu tê nascido. Se quer qualquer coisa, porque patrão não
pede a mim? Pode contá com Lucrécia Bórgia.
Justapunha a sua actividade à preguiça de Mem.
-Lembra-te disto, Ham, quando castigares aquele macho, e aplica-
lhe mais umas. Não só não fez o que lhe mandei, como me mentiu e
disse que tinha feito.
-Tenho medo, se me lembro de tudo e lhe dou mais por cada
mentira, não fica nada do preto quando eu acabar. Vou bater-lhe até
me apetecer.


-Temos que esperar até a noz estar pronta. Manda o Meg pisá-la,
logo que acabar de comer. Aquela pobre pequena vai ter que jejuar disse
Maxwell.
Mal os brancos se tinham sentado na sala da frente quando Meg
apareceu perante Ham e perguntou:
-Quer um toddy?
-Não, passa muito pouco do pequeno-almoço-respondeu Ham.
Mas não era demasiado cedo para Brownlee e Maxwell.


Meg retirou-se um pouco abatido mas complacente. Servir o seu
amo era um prazer, servir qualquer outra pessoa era uma tarefa.
Trouxe as bebidas e serviu-as com a mais delicada unção; quando
passou junto do patrão mais jovem, a caminho da cozinha,
Hammond deu-lhe uma palmada jocosa mas aguda no traseiro. isto
fez Meg deixar cair a bandeja, e ficar com os olhos cheios de
lágrimas. Quando parou para apanhar a bandeja, olhou para a cara
de Ham e o seu rosto animou-se num sorriso amplo e satisfeito.
-Manda o outro aqui, logo que coma -ordenou Maxwell. Meg
desempenhou a missão e correu para a sala de jantar, antes que a
mesa fosse levantada. Pegou no prato de Hammond, com a comida
que ele deixara, correu para a cozinha e começou a comer.
Lucrécia Bórgia viu-o.
-Nêgo -disse ela, com as mãos nas ancas -, não pode comê do prato
dos branco!
-Meu patrão diz.
-Teu patrão diz o quê?
-Ele diz que eu pode, mêrno do prato dele. Eu perguntou e ele diz
sim.
-Eu diz não. Agora raspa essa comida prá'quela travessa rachada e
vocês dois come como costuma.
-Meu patrão diz -insistiu Meg.
-Nêgo, eu dá cabo de ti -e Lucrécia Bórgia avançou para ele, de
mão levantada.



Um brilho de desafio surgiu nos olhos de Meg, um brilho louco,
raivoso, assassino.
-Nêga, não me toque. Nunca mais toca a mim. Parto este prato no
teu cabeça. Se meu patrão quer castigá eu, ele castiga; ele mêrno.
Nenhuma nêga vai castigar eu.
Lucrécia Bórgia ficou espantada e deteve-se.
-Meu patrão diz que eu come do prato dele, e eu come do prato
dele. Nêga nenhuma não vai pará eu -declarou o jovem, entre as
dentadas que ía dando na comida. -Meu patrão disse que tu não
castigá eu, e tu não castigá eu, ouviu?
A discrição era a melhor virtude e Lucrécia Bórgia hesitou em
desobedecer às ordens de Ham, por muito desinteressadamente que
fossem dadas. Sentiu a sua autoridade desaparecer.
-Eu é o nêgo do patrão Ham agora, só do patrão Ham -regozijou-se
Meg. -A minha boca é prá comida do patrão Ham, meu rabo é pró
patrão Ham dar pancada quando quiser. 0 patrão Ham pode
pendurá eu e esfolá eu vivo, se quiser; pode matá eu, se quiser. Eu é

o nêgo do patrão Ham. -Lucrécia Bórgia sentia-se impressionada. Patrão
Ham espancou eu esta manhã com mais força do que tu
pode -anunciou ele, triunfante.
-Que fez tu, nêgo? Que fez tu prá aborrecê o patrão?
-Eu não fez nada prá aborrecê o patrão. Eu pedir a ele pra batê e o
patrão bateu. Espero que o patrão gostou.
Meg tinha acabado a comida de Ham e pegara no prato para o
lamber. Alph ouvira corri ansiedade a discussão de Meg com a mãe.
Pressentia que a vitória do seu irmão redobraria a tirania dela sobre
ele. Meg voltou-se para ele e, com desprezo na voz, disse-lhe:
-Patrão velho diz que tu ir ter com ele, quando acabá de comê.
-Qu'é que ele quer?
-Quer que tu vá lá; é isso que ele quer. Não sabes fazê o que teu
patrão manda sem fazê perguntas? -Meg era curel. -Tu és o nêgo do
patrão velho, acha eu, o nêgo de dormi do patrão velho. Mas eu tem


melhó patrão. Patrão velho não é novo e forte corno o patrão
Hammond, e bonito. 0 patrão velho não pode pôr o teu rabo a ardê
como o patrão Ham fez ó meu. Agora vai ao teu patrão.

Alph, que se esquecera de coxear, lembrou-se e recomeçou.
Esfregou as articulações das mãos e saiu a coxear.
-Onde tão as coisa,pra eu moê? -exigiu Meg.
-Que coisa pra moê? -perguntou Lucrécia Bórgia. --0 beté ou lá o
que é, que o patrão Harri quer pró patrão velho? Meg assumia
autoridade e Lucrécia Bórgia aceitou-a. Tirou uma noz de betel de
um saquinho de papel que estava na prateleira dos remédios, e
pegou num almofariz e num pilão. Meg, de joelhos no chão em
frente do lume, lutou com a enganadora noz que saltava debaixo do
pilão. Bateu tantas vezes nos dedos como na noz, mas insistiu até
acabar o trabalho. Pensava como seria bom se Hammond ficasse, de
súbito, com reumatismo, para ele poder dormir com ele na cama e
tirar-lhe as dores. Pensou se não poderia passar para ele o joelho
rígido de Ham. Era o negro de Hammond, não era? E era isso o que
significava ser o negro de um branco -fazer o trabalho dele, fazer o
que ele quisesse, suportar os seus maus tratos, aguentar o seu mau
humor, compartilhar os seus sofrimentos, as suas dores.
Alph tinha conseguido aperfeiçoar um coxear convincente, não
demasiado óbvio mas perceptível, enquanto atravessava a sala de
jantar para entrar na sala. Esperou um pouco, sem saber se
realmente o queriam. Só tinha a palavra de Meg. Os brancos
conversavam.
-Não há procura de negros no Texas ainda; mas hão de precisar,
quando chegar a altura -declarava Brownlee.
-Gostava imenso de lá ir, não para ficar, só para dar uma olhadela.
Se o pai não tivesse reumatismo, já lá estava. Fazem-se fortunas no
Texas, sei eu.
-E uma fortuna mais segura, com menos perigos e mais conforto
que aqui em Falconhurst. Conheço gente. Quando eu era da idade


do Ham, também me apetecia viajar, como ao Ham. Amarrado aqui
por causa do meu reumatismo, não tem tido qualquer escape para o
espírito. Mesmo quando leva negros a Nova Orleães, tem de voltar
rapidamente para casa. Se o meu reumatismo melhorar, ele pode
viajar um bocado, ir a Nova Orleães, até mesmo a Nova lorque, pelo
menos pode ir procurar uma dessas raparigas jeitosas de boas
famílias que estão em casa à espera de um mocetão que queira casar
com elas.
-Não digas mais, pai. Eu não vou ao Texas, mas gostava de lá ir. Eu
fico por aqui; pode ficar certo disso. Posso dar umas voltas, ir de vez
em quando à cidade, ir a Nova Orleães e arranjar-me um bocado.
Mas se fico aqui, quero é um negro que saiba lutar, para praticar um
bocado com ele.
-Fica cá e pensa em Falconhurst, filho; podes ter o melhor lutador
negro de todo o Alabama. Não vale a pena ter um lutador, se não se
tiver um dos bons. Hás-de ter um bom, o melhor de todos.
-Não há nada bom em lutadores nesta zona do país. Os tipos que
apresentam lutadores negros nas tabernas não têem dinheiro para
apostar neles. Pensam que cem dólares é dinheiro. Havia de ver
uma luta de negros em Nova Orleães. Apostas de mil dólares pouco
são; alguns deles apoiam os. seus negros com cinco mil -explicou
Brownlee.
-Os rapazes que levam os seus negros a Benson para lutar não têm
muito dinheiro para os apoiar, tem razão, mas geralmente levam
com eles um bom negro ou dois para os apostar. Todos têm negros,
ou então têm os pais -protestou Hammond. -Os negros jovens
valem tanto como dinheiro no banco.

-Os jogadores de Nova Orleães treinam os seus negros para lutar,
não usam apenas rapazes do algodão. Sã o treinados para lutar.
Estão exercitados e são alimentados e bem tratados para esse fim continuou
Brownlee.


-É isso que eu quero -disse Hammond. -Arranjar um macho bom,
forte e jovem e ensiná-lo a lutar, cientificamente.
-E os negros de Nova Orleães sabem que têm de lutar e fazem-no. 0
dono diz-lhes antes da luta que, se perderem o combate, os marcam
e os levam ao médico para serem castrados. E os negros sabem que
isso é verdade. Lutam, lutam sempre e nunca desistem. Arranham e
mordem e arrancam o que podem.
-Nova Orleães é uma cidade muito desportiva, parece-me -disse
Maxwell.
-Vi uma luta entre dois cavalheiros franceses. Isto é, entre os negros
que lhes pertenciam. Eram uns machos grandes, jovens, claros, bem
bonitos, e treinados a valer. Os negros fartaram-se de lutar, durante
mais de uma hora e meia, primeiro deu um e depois o outro. Que
bela luta a daqueles franceses! Nem um nem outro queria desistir.
Finalmente um dos pretos não conseguiu mexer-se mais. Toda a
gente pensou que estava morto; e bem podia estar, todo mordido,
com uma grande dentada de lado, uma orelha arrancada, o queixo
partido, pendurado, nem podia fechar a boca, um olho arrancado. 0
vencedor não estava muito melhor, com o nariz partido, a carne por
cima do tornozelo rasgada em duas por uma dentada, ambos os
pulsos partidos, e as costas quebradas, de tal modo que berrou
quando tentou levantar-se. Não sei o que os franceses fizeram com
os rapazes; não havia muito a fazer, acho eu. 0 sangue corria por
todo o lado, até estragou o belo casaco de um dos franceses. Cinco
mil de cada lado, mas mesmo assim o vencedor não ganhou muito.
0 seu negro valia bem isso. Eu ganhei cinquenta dólares nessa luta.
-Como eu gostava de ver isso! -suspirou Ham.
-Quando for para os lados de Nova Orleães, avise-me. Se eu lá
estiver, sei das lutas que há. São mais ou menos secretas, mas posso
levá-lo a elas.
Meg surgiu com dois pires, um com a noz moída, o outro com o
melaço e, sem falar, colocou-os na mesa ao lado de Hammond, que
lhe disse que os entregasse a Maxwe11. Maxwell experimentou o pó


entre o polegar e o indicador, à procura de partículas não
pulverizadas. Meg sabia que ele não as encontraria e esperou um
momento pelo elogio que esperava mas que poderia ser
simplesmente demonstrado pela ausência de comentários.
Meg, mais peremptoriamente, deu as suas instruções ao irmão:
-Vai buscá a rapariga que o teu patrão vai trará e leva ela pró
varandim. Não sabes pensá?
Por alguma coisa Meg era filho de Lucrécia Bórgia, com a sua
obsequiosa subserviência perante os patrões e o tom dominante
para quem quer que estivesse abaixo dela. Ele previa as ordens e
executava-as antes de serem dadas. Não perdia oportunidade
alguma para rastejar, trepar e subir nas boas graças do seu patrão.
Quando Maxwell se levantou para dar o vermífugo à rapariga, viu-
a através da janela, à espera, sob a guarda de Alph. Meg não estava
à vista, mas esperava, a curta distância, para o feliz caso de
Hammond o chamar.


Brownlee e Hammond seguiram Maxwell para o varandim cheio de
sol, viram-no deitar o melaço sobre o pó e mexê-lo com o indicador,
transformando-o numa bolinha mole que meteu bem para o fundo
da língua da rapariga, mantendo-lhe a boca fechada até a engolir, e
depois meter o dedo lambuzado na boca dela, para que chupasse o
resíduo, antes de limpar o dedo ao fato. Ela não ofereceu qualquer
resistência ao remédio intragável.
A rapariguita tinha perdido a vivacidade. Apelou para Brownlee-.
-Eu tem fome, patrão. Eu não come há muito tempo.
0 negreiro não lhe deu importância, mas Maxwell respondeu:
-Vais comer. Vais até comer muito, quando os vermes saírem.
Havemos de rechear essas costelas e dar carne a essas pernas.
Chamou Dido que velo à porta da cabana, escura, grande e
maternal.



-Vigia-me essa pequena, Dido, não a deixes vomitar o remédio, e
daqui a uma hora arranja-lhe um pequeno-almoço quente, pouco
consistente: papas de aveia, ou coisa parecida.
Enquanto Maxwell se ocupava da criança, o dr. Redfield entrou no
caminho para a plantação, montado no seu cavalo castrado
castanho-escuro, para o qual era preciso olhar uma segunda vez
para se descobrir que estava manchado de lama. Cem jardas atrás
vinha Lance, montando a mula sem sela que tinha sido cinzenta à
partida, duas horas antes, mas agora estava tão coberta de lama que
parecia da cor do cavalo do veterinário.

Meg surgiu não se sabe donde para agarrar nas rédeas do cavalo,
quando o doutor desmontou, mas, por ordem de Harrimond,
transferiu-as, para Lancelote, logo que este chegou, e o preto levou-
o, juntamente com a mula, para o estábulo, para serem secados e
escovados. Meg não voltou a desaparecer, contudo; manteve-se, à
escuta, na varanda, afastado do grupo. Tinha os olhos fixos em
Hammond. A sua boca estava aberta e ele parecia pronto a saltar,
reagindo a qualquer gesto que não chegou a ser feito.
-Parece que está a interferir no meu negócio -disse amavelmente
Redfield. -Sempre disse que o senhor Warren Maxwell era o melhor
veterinário do país. Trata melhor dos pretos do que ninguém. Eu
morria de fome se contasse com as chamadas dele para viver.
Era um homem pequeno, com um queixo bicudo, semibarbado, com
as faces cobertas por suíças com uma mistura de pêlos vermelhos,
pretos e grisalhos, suficientemente longas para indicar que se
atrasara duas semanas a barbear-se, mas demasiado curtas para
parecerem um acessório permanente do rosto.

-Que estava a dar-lhe, senhor Maxwell?
-Estava a limpar de vermes uma rapariga pequena, que comprei
ontem. Estava cheiinha de lombrigas. Há pessoas -disse, olhando


para Brownlee -que não ligam aos seus negros e admira-me como
eles não caiem de podres.
-Não era para isso que me queria, pois não? -sugeriu Redfield.
-Não, o Hammond é que o mandou chamar. Tem um caso para si.
Adoeceu na noite passada.
Hammond estendeu a mão a Redfield que observou:
-Parece que não passou tempo nenhum desde que tu eras um
rapaz, não maior que aquele negrito, sempre atrás do pai, para onde
quer que ele fosse. já és um homem, hem? já te sentes um homem?
-É um homem, é um homem. Não tem tempo para ser rapaz. Dirige
toda a plantação, porque eu estou doente. Deixe-me apresentá-lo ao
senhor Brownlee, doutor Redfield. 0 senhor Brownlee anda por aí, a
comprar -explicou Maxwell.
-já ouvi falar do senhor Brownlee. Um seu criado.
-Um seu criado.
-Acho melhor ir andando para a casa dos doentes. 0 Hammond
leva-o lá. Eu estou muito tolhido para ir. Volte e tome uma bebida,
antes de partir.
-Eu também vou -disse Brownlee. -Gostava de ver essa tal fêmea
assim tão grande.


Maxwell ficou na entrada, relutante em ficar para trás, mas sem
vontade de se juntar ao grupo. Meg manteve-se a distância, mas
seguiu o patrão sem parecer segui-lo.
Hammond relatou a Redfield os estranhos sintomas de Pérola
Grande, enquanto andavam.
-Achei melhor mandá-lo chamar. Não quero epizootia por aqui,
com todos esses negros jovens. Pode ser febre-amarela ou varíola.
-Febre-amarela não, nesta altura do ano. 0 seu pai sabe isso. Não
deve ser varíola. Talvez uma pequena congestão das tripas, penso
eu. Vamos ver.
-Eu sei que não devia fazê-lo vir, com toda esta lama, irias ...



-Não faz mal; não faz mal. De qualquer modo, tinha que ir à viúva
Johnson; Falconhurst fica no caminho. Conhece a viúva Johnson?
-Claro, claro; na Estrada das Seis Milhas.
-Tem ali uma boa plantação. Pequena, claro, só cento e sessenta,
mas tira muito algodão e tem uns quinze a vinte negros bons que o
Johnson lhe deixou.
-São criados velhos, no entanto -objectou Hammond. -Quase não
procriam.
-Alguns. Foi por isso que ela me chamou, para a livrar de uma
fêmea velha e inútil, aleijada, surda, quase cega. Tinha direito a
acabar corri ela há muito tempo, mas a viúva não queria.
-É contra a lei, não é? Bem, acho que sim; mas quem vai meter-se
nos negócios de uma pobre viúva? Nunca ouvi dizer que a lei se
metesse nessas coisas.
-Vai abatê-la? Os outros criados são capazes de ficar perturbados,
não acha?
-Antímónio. É uma coisa nova. Pelo menos nunca tinha ouvido
falar. Foi um médico de Nova Orleães que falou nisso. Acaba
facilmente corri eles. Nem chegam a dar por isso e os outros negros
nunca sabem.
-Nunca tinha ouvido dizer e acho que o meu pai também não.
-Se precisar, tenho muito. Mande-me um negro com uma nota.
Pode aplicá-lo você mesmo. Não precisa de mim. Claro, com uma
senhora, como a viúva, é diferente.
-Espero nunca precisar disso. Os nosso trabalhadores são todos
muito novos e sãos -disse Hammond.
-Nunca se sabe. Pode aparecer-lhe um negro mau, agitador, que
crie problemas.


-Talvez -admitiu Ham sem interesse. Tinham caminhado
lentamente ao sol, colina abaixo, em direcção ao rio, até à cabana
utilizada como enfermaria de isolamento.



Pérola Grande estava deitada na cama, a um canto, corri os olhos
fixos no espaço. Toda a sua magnífica energia desaparecera;
envolvia-a uma espécie de langor.
-Corno te sentes, Pérola Grande? -inquiriu Hammond. Pérola
Grande levantou um braço e estendeu-o para ele.
-Tou bem agora que tu veio. A doença foi-se imbora. Agarrou na
mão de Hammond e apertou-a com força.
-Chamei o doutor para te ver, Pérola Grande. Ele vai dar-te
remédios que te ponham boa. Deixa-o ver-te, agora -explicou
Hammond.
-Não precisa doutô -respondeu Pérola Grande. -Nenhum doutô
conhece a doença que eu tem. Meu Patrão fica comigo, eu tô bem. 0
patrão sai, eu morre; eu morre mêrno.
Redfield colocou a mão na testa de Pérola Grande. Viu-lhe a língua.
Tomou-lhe o pulso. Sacudiu a cabeça, pensativamente e encheu as
bochechas, com ar de sabedoria. Levantou as cobertas e subiu o
vestido de Pérola Grande apalpando-lhe o abdomen. Ela negou ter
dores naquela área.
-Que idade tem esta fêmea? -perguntou Redfield.
-Cerca de quatorze; mais perto dos quinze -disse Hammond.
-Bem forte, para essa idade. Olhe para as pernas dela, parecem
troncos de carvalho, mas bem torneados -comentou Brownlee. Aprecio
ver uma fêmea grande e perfeita.
-Virgem? -perguntou Redfield.
-Penso que sim -disse Hammond.
-Pensa que sim? Então não sabe? -disse o médico, com desprezo. Que
anda a fazer? A negligenciar os seus deveres? Ou o seu pai
quer mantê-lo virgem também?
Hammond corou.


-Cheira muito mal para mim.



-Mas o dever do patrão é dar prazer às suas fêmeas, pela primeira
vez. Uma fêmea perfeita e boa como esta faz um homem esquecer o
mau cheiro. Claro que é virgem. Devia ser castigado, rapaz.
-Mas ser virgem não causou dores a Pérola Grande -declarou
Hammond, espantado.
-Claro que causou. Sabe de que sofre esta fêmea? Está histérica. É
só isso que ela tem. Está histérica -declarou Redfield positivamente.
-Pode curá-la? -perguntou Hammond, confuso.
-Eu não, mas você pode. Ela quer que lhe faça um jeito.
-Isso não a pôs doente, não a fez gritar e berrar toda a noite.
-Fez, sim. Fez, sim. Adoeceu, pode morrer, se você não lhe der
prazer; possua essa rapariga, de qualquer modo. Não vê como ela se
agarra a si e não o larga? Não tem temperatura, tem o pulso normal,
a língua limpa. Não tem qualquer doença, excepto o desejo por si.
Está histérica, apenas histérica.
-Tá doente também, patrão Hammond, siô. Tá doente -protestou
Pérola Grande. -Não quê que tu durma comigo, patrão, siô, se tu
não tem prazer também. Eu sabe que é preta, que eu cheira mal, eu
sabe que não presta para ti, patrão, mas eu não é má, eu não é má,
patrão, eu não é má.
Começou o rolar-se na cama, sobre o ventre, e, de rosto voltado para
baixo, soltou longos soluços de vergonha, de desejo, de desilusão,
de esperança perdida.
Hammond passou ternamente o braço por baixo do corpo de Pérola
Grande e, voltando-a para ele, disse-lhe em voz baixa e confidencial.
-Tu não és má, Pérola Grande. Ninguém diz que tu és má. Estiveste
doente, mas agora estás boa. Vem. Levanta-te e vai ter com Lucy.
Vais ficar bem. Veremos. Veremos.
Pérola Grande deu um salto e pôs-se de pé, baixando o vestido.
Tropeçou em Meg que estava sentado no degrau da porta, a ouvir o
que se passava lá dentro. Ele retomou o equilíbrio e correu para a
parte de trás da cabana, para que o seu patrão não o visse. Pérola
Grande galopou colina acima té às cabanas, como possessa. Os três



homens ficaram a vê-Ia correr, notando o poder, o vigor, a
flexibilidade e a segurança dos seus passos.
-Eu disse que a rapariga estava só histérica -disse Redfield.
Regressaram vagarosamente, subindo a colina, o negreiro e o
veterinário por causa da falta de fôlego, Hammond devido à rigidez
do joelho. A cerca de cinquenta pés, passeava Meg, inocente de
escutar às portas, mas espetando a orelha para não perder palavra.
Era por empatia, não por troça, que caminhava com um joelho
rígido.
-Essa viúva Johnson, diz que ela talvez tenha criados? Onde vive
ela? -Brownlee especulava com a ideia de a ir visitar.
-Não vale a pena lá ir. Não tem nenhum para vender. -Redfield foi
positivo.
-Não vale a pena -acrescentou Hammond. -Os negros dela estão
gastos, todos demasiado velhos para alguém os querer. Se não fosse
os tratamentos com ervas e os trabalhos de parteira, ela e os seus
negros já tinham morrido de fome.
-Acha que sim? -perguntou Redfield. -Penso que ela seja rica. Bem,
não propriamente rica, mas toleravelmente, toleravelmente. Johnson
deixou-a bastante bem.
-Talvez, talvez. Não sei bem. Ela faz bem em poupar -concordou
Hammond.
-Tenho andado a pensar e talvez lhe fale hoje. A minha mulher
deixou esta vida há três ou quatro anos, já, e não arranjei outra. A
viúva tem andado a insinuar que precisa de um homem. Pensei que
seria boa ideia enforcar-me e deixar de ser veterinário. É melhor
assentar como plantador e não trabalhar.
-Penso que nunca mais podemos deixar um negro adoecer. Não
teremos veterinário para o vir ver. Antes queria confiar um negro
doente à Lucrécia Bórgia para o tratar, do que chamar o doutor
Simpson; mata mais do que cura.
-Claro que continuarei a tratar os negros de Falconhurst. Não posso
deixar totalmente a clínica e ficar sem motivo para ir à cidade. Além


disso, não quero que a velhota deixe de fazer as suas curas e os seus
partos -observou o médico.
-0 meu pai vai ficar contente.
-Talvez a viúva não me queira, mas tem andado a sugerir isso já há
algum tempo, pelo menos parece-me. Também ainda não me
adiantei. Para falar verdade, é difícil adiantar-me com a viúva; ela é
tão gorda, com a cara toda cheia de verrugas e aquele bigode preto,
que se torna um bocado difícil fazer amor com ela. Contudo tem
boa natureza e é vigorosa.

Brownlee pensou na sua mulher azeda e magrizela, que o esperava
em Nova Orleães. A descrição que Redfleld fizera da senhora
Johnson parecia-lhe apetitosa, apesar das verrugas e do bigode. A
agradável plantação, bem recheada de criados, era ainda mais
apetitosa. Se fosse solteiro, gostaria de entrar em competição com o
veterinário pela mão calosa da viúva. Se tivesse acesso a um pouco
daquele veneno de que Recífield falara! Devia actuar tão bem numa
branca como num negro. Como é que o médico lhe chamara? Onde
poderia comprá-lo?

0 grupo chegou junto da casa. Encontraram Maxwell anichado
numa cadeira confortável ao sol, no longo varandim. Alph estava
sentado no chão, aos pés do patrão e ambos bebiam toddies tão
quentes que apenas podiam tomar pequenos golos. .-Traz mais
bebidas. Meirmon, mais bebidas. -Maxwell saudou-os
amavelmente. -Sentem-se e bebam uísque.
0 gosto do uísque desagradava a Alph, mas era um triunfo sentar-se
aos pés do patrão e beber, especialmente um triunfo sobre o seu
irmão, cujo patrão não mostrava tal indulgência. Quando Meg se
aproximou, revirou os olhos na sua direcção, fez estalar a língua, e
dedicou-se assiduamente a engolir o líquido quente.
Meirmon apareceu, arrastando 'uma cadeira desajeitadamente.
Tinha um ar esgaseado e receava o castigo que o esperava. Meg


correu alegremente para dentro de casa e lutando com o seu peso,
trouxe de junto da lareira a cadeira de balanço mais confortável e
colocou-a por trás de Hammond. Meirmon voltou a casa e trouxe
outra cadeira para Brownlee, após o que foi à cozinha buscar
bebidas para todos.
Meg voltou a casa, com os olhos fixos no irmão, invejando cada golo
que ele bebia. Mas, quando Meirmon apareceu corri as bebidas
numa bandeja, Meg quase o derrubou, pegou no toddy e levou-o a
Hammond, ajoelhou junto da sua cadeira e olhou para o rosto dele.
-Tá bastante quente, patrão?-murmurou, solícito. -Tem açúcar
bastante? -Esperava receber respostas negativas, mas foi ignorado. Aquele
Meinnon não sabe fazer eles bem, patrão. 0 patrão devia
pedir a mim.
Hammond dirigiu-se ao pai.
-Acho que devíamos treinar este rapaz para tomar conta de
Meirmon.
0 Mem parece estar a falhar. Este pretinho é esperto.
-0 Mem fica bom depois do castigo que lhe vais dar, filho. 0 mal
dele é ter andado a escapar-se ao chicote.
-Nunca ouvi dizer que batesse num rapaz. Não os desanca muito,
pois não? -perguntou Redfield. -Não tenho tido que tratar pretos
seus por causa do chicote.
-Não, não bato muitas vezes. Não gosto de o fazer. Assusta tanto os
pretos novos que param de crescer durante um ano ou dois. E o mal
de os mandar para si, além de ter que pagar duas moedas por cada
chicotada, é que o senhor os chicoteia mesmo. Ninguém compra um
negro com marcas de chicote.
-Quero que eles se lembrem bem, não quero arrancar-lhes um
pouco de carne do lombo. Os negros esquecem-se do castigo muito
depressa opinou o veterinário.
-Já viu a minha palmatória? -perguntou Maxwe11. -Negro algum
se esquece depois de lha espalmar no rabo. Vai buscá-la, Memnon, e


não leves toda a manhã. Sabes onde está, na parede da direita
quando se entra no estábulo.
Merririon quis evitar o recado.
-Tem medo, patrão, siô. Tem medo daquela palmatória.
-Faz o que te mando!
-Sim, siô, patrão, siô; por favor, siô. Mal Merruion tinha dado cinco
ou seis passos relutantes fora do varandim, o medo da palmatória
provocou-lhe náuseas de novo. A sua boca encheu-se com o vómito
e lançou-o no chão. Voltou para o canto do varandim e só não caiu
no chão porque se agarrou ao poste.
-Aquele negro ainda está quente da dose que lhe deu -disse
Brownlee, rindo.
-Meg -disse Hammond -, vai a correr buscar aquela palmatória
comprida.
0 rapaz, grato pela ordem, saiu disparado pelo pórtico.
-Doente de mais para ir buscar a palmatória. Penso que não estejas
doente para ir buscar uísque para os senhores, pois não? -gritou
Maxwell para Mem, que reuniu todas as forças, e, murmurando
"Sim, siô, patrão", dirigiu-se cambaleante para casa.
-Acho que não devia beber mais -disse Redfield hesitante.
-Porque não? É uísque puro, do bom -disse Maxwell, que passava

o dia a bebericá-lo.
-A viúva pode sentir-lhe o cheiro-explicou Redfield. -Bom, mais
um não faz mal a ninguém, acho eu.
-0 doutor Redfield vai casar com a viúva Johnson, pai -explicou
Hammond.
0 médico ficou confuso.
-Se ela me quiser -balbuciou.
-Quer, pois, não tenha medo -afirmou Maxweli, e acrescentou: -A
viúva é danada, para a idade, claro.
-Mas virtuosa -corrigiu Redfield.
-Oh, sim, virtuosa. Não digo nada contra ela. Quando o Johnson
morreu, atirou-se a mim, mais ou menos. Mas eu não estava

interessado. A minha mulher era uma Hammond, bem vê; e depois
dela ... Desejo-lhe felicidades, desejo-lhe felicidades de todo o
coração.
Meg voltava a galope, acariciando a longa palmatória. Colocou-a no
colo do patrão e saltou para retirar o toddy de Hammond da
bandeja de Mem.
Hammond bateu com a palmatória no chão para lhe retirar o pó
acumulado e depois esfregou-a na fralda da camisa de Meg.
-Não é usada há tanto tempo que está rígida. Precisa de ser oleada comentou,
estendendo o instrumento a Redfield.

Redfield gírou-a no ar para trás e para diante.
-Muito jeitosa, parece. E couro para solas? Mas para que servem os
buracos?
-Para deixar passar a carne e o sangue. Retalha-os mesmo, bem
manejada por um macho forte. Mas curam-se lindamente e sem
marcas. Não deixa cicatrizes nem traços de chicote.
Maxwell alargou-se nos seus méritos, e Merimon tremia ao ouvi-lo
descrevê-los. Mem tinha recebido muitas vezes o encargo de ir
buscar a palmatória, noutros tempos, e sabia do que ela era capaz.
Estremeceu.
0 sol e os toddies e a ausência de dores puseram Maxwell sonolento
e começou a dormir. Não deu pela partida de Redfield.
Brownlee ergueu-se e espreguiçou-se.
-Acho que vou lá abaixo ver os meus rapazes -disse. Maxwell
continuou o seu sono e Alph, embrutecido, fez-lhe companhia.
Hammond pegou na palmatória e levou-a para casa, para dar a
Lucrécia Bórgia instruções para a esfregar com óleo de mocotó, para
lhe dar maior flexibilidade. Brownlee dirigiu-se vagarosamente para

o estábulo, em busca dos seus dois rapazes. Pensava em fazer uma
oferta pelos dois gêmeos. Sabia bem onde colocá-los. Talvez fosse
melhor ir a Nova Orleães, descrevê-los ao seu cliente e obter um
compromisso em vez de os comprar por um preço alto e vê-los

morrer nas suas mãos ou não poder vendê-los. Podia voltar. Tinha
apenas mil e setecentos dólares na carteira que sabia não chegarem,
apesar de os gémeos serem novos e pouco mais que ornamentais.
Podia contar obter por eles quatro mil e quinhentos, talvez cinco mil
dólares daquele francês rico e imbecil.
E aquela grande fêmea mandinga. Que magnífica era! Conhecia um
jogador que a compraria; pensava que uma virgem lhe trazia sorte.
Brownlee dirigiu-se para as cabanas. Tinha que ver outra vez Pérola
Grande. Era um conhecedor de negros bons, julgava ele. Na
realidade, nenhum negro de categoria passara pela sua posse, só
alguns machos grandes e robustos, mas todos tinham qualquer
coisa, não eram realmente de primeira. Aspirava a negociar, num
mercado de luxo, rapazes para trabalhos de casa, fêmeas claras e
núbeis, gêmeos, anões ou gigantes, curiosidades ou monstros,
hermafroditas ou fenômenos. Conhecera um homem que tinha pago
três vezes o preço normal por um macho jovem com uma cauda de
cinco polegadas de comprimento, que divertia os amigos do amo.
Brownlee nunca tivera capital para tal especulação, embora
soubesse o que dava lucros.

Não sabia bem qual era a cabana de Lucy. Parecia-lhe que a
conhecia. Tinha visto Pérola Grande correr para casa dela. A porta
estava aberta para entrar luz e Brownlee entrou. Pérola Grande
estava sentada na cama e, da sombra, saiu uma mulher alta,
monstruosa, ossuda, com as maxilas em forma de lanterna, que
trazia uma criança nua a cavalo na angulosidade que lhe servia de
anca. Exceptuando o seio pendente e exposto com que o bebé
brincava, Brownlee teria pensado tratar-se de um homem vestido de
mulher.
-Que quer tu, homem branco? -disse Lucy, saudando-o, irritada
com a sua intrusão e assustada por conhecer o seu negócio.
-Quero ver outra vez Pérola Grande -explicou Brownlee. -Despe-a
para eu a ver.


-0 Patrão Hammond sabe que tu veio? -perguntou Lucy.
-Não, mas ele não se importa que eu veja a rapariga. Vamos, Pérola
Grande, despe-te -e o branco avançou para a rapariga.
Lucy interceptou-o, meteu o bebé nos braços de Pérola Grande e
avançou para a porta, deu a volta à cabana e atravessou a clareira
que a separava da casa grande, berrando com a sua voz poderosa: Patrão,
patrão, siô, o homem branco tá a violá Pérola Grande; o
homem branco tá a violá Pérola Grande, patrão, patrão, disse ó
homem branco pra violá Pérola Grande?
Maxwell despertou com o barulho. Ergueu-se com dificuldade,
chamando Ham. 0 seu chamamento foi inútil, pois Hammond não
podia deixar de ouvir os gritos de Lucy. 0 passo de Hammond era
tão longo e firme quando saiu de casa, experimentando a saída da
pistola do coldre enquanto caminhava, que mal parecia coxear.
Atrás dele vinha Meg, com os olhos proeminentes, os braços no ar.
Alph, estupidificado pelo toddy que Maxwell prescrevera para o
seu reumatismo, abriu os olhos, tentou levantar-se e caiu no chão do
varandim, de novo adormecido.

Antes de Harrimond poder atravessar o espaço livre, o senhor
Brownlee surgiu de trás das cabanas, com maneiras brandas,
fingindo uma despreocupação que não sentia.
-Que quer isto dizer? Violou a minha fêmea? -perguntou
Hammond.
-Não há azar, não há azar. Andava a ver as vossas instalações. Nem
me cheguei para a cabana da preta. Só enfiei a cabeça pela porta.
Para falar verdade, queria dizer adeus à miúda que vendi ao seu
pai. Gosto muito da pequena.
Brownlee sabia que mentia, mas não se apercebia de que a mentira
era muito grande e pouco crível. Sabia que lhe tinha passado pela
cabeça a possibilidade de livrar Pérola Grande da sua penosa
virgindade. Pensava que Hammond ficaria mais satisfeito do que
irritado por ele assumir o papel do branco. Mas duvidava de que


tivesse tido qualquer intenção séria de fazer mais do que olhar para
a rapariga. Tinha esvaziado três copos grandes de uísque durante a
manhã mas não se sentia confuso.
Ham sentia uma raiva fria. Teve dificuldade em encontrar as
palavras, mas, quando falou, fê-lo claramente:
-Se não fosse branco, matava-o. Dava-lhe um tiro no meio da
barriga.
-Hammond mexeu na pistola mas não a extraiu do coldre. -Aquela
Lucy nunca mentiu antes e não está a mentir agora.
Brownlee aclarou a garganta, como se fosse falar de novo, mas nada
encontrou para dizer.
-Pegue no seu cavalo castrado e nos seus dois machos aleijados e
saia daqui. As estradas estão más, mas Redfield conseguiu vir de
Benson e você pode fazer o mesmo.

Brownlee sentia-se relutante em partir. Não era a primeira vez que
tinha sido corrido por um dono de uma plantação e não se sentia
muito embaraçado, mas, quando Hammond avançou, o negreiro
viu-o esfregar as mãos e ouviu-o dizer algo sotto voce sobre "branco
ordinário". 0 epíteto queimou-o como fogo.

0 negreiro dirigiu-se ao estábulo. Selou o seu cavalo e reuniu os dois
escravos. Não havia tempo para despedidas. Quando o cavalo
passou junto do varandim onde os Maxwell estavam de pé em
silêncio, gritou:
-Acho que-vou passar pela viúva Johnson, onde estão a assassinar
aquela velha. 0 xerife gostaria de saber o que se passa lá.

Os dois negros seguiam à frente do cavalo, num trote lento. 0 mais
pequeno e escuro estava pensativo e conservava os olhos no chão,
como se olhasse para o pé só com dois dedos. 0 rapaz mais claro,
com a cicatriz da queimadura parecia mais feliz.


-Adeus, patrão -gritou quando passou junto do varandim. -Eu vai
pró Kentucky.
O estalar do chicote nas suas pernas fê-lo calar-se.
O xerife não daria importância as acusações feitas por um negreiro
itinerante contra a senhora Johnson e o Dr. Redfield, por matarem
uma escrava. Era um crime insignificante, quando muito. A negra
era velha. 0 testemunho dos negros nada valia no tribunal e a
acusação de Brownlee não teria validade contra as negações de
culpa de cidadãos importantes como o Dr. Redfield e a viúva
johnson. Contudo, Hammond sentiu-se aliviado por ver que o
cavalo de Brownlee tomava a estrada da esquerda para Benson em
vez de se dirigir para a direita, em direcção à casa da viúva.

Capítulo sexto

Lucrécia Bórgia chamou os gêmeos, lavou-lhes as mãos e as caras e
vestiu-lhes roupa lavada antes do jantar. Alph, numa espécie de
torpor, enxotava as moscas que estavam agressivas, naquele dia
brilhante e quente. Mermion trouxe a comida para a mesa e serviu
MaxwelI, mas Meg andava à volta de Hammond, ajudou-o a sentar,
encheu-lhe o prato, despejou o leite e ressentiu-se por Merririon
querer encher a chávena do patrão jovem com café.

A conversa foi pouco abundante e sem ligação.
-Acho que tenho de dormir com a Pérola Grande -observou
Hammond, tanto para si próprio como para o pai. -0 Dr. Redfield
acha que é esse o mal dela. julgo que qualquer desses machos lhe
podia fazer o mesmo.


-As fêmeas querem ter o patrão pela primeira vez e Pérola Grande
é esplendorosa.
-E grande de mais -objectou Hammond.
-Eduquei-te mal, filho -declarou o pai. -Se eu não tivesse este
reumatismo... -suspirou. -Claro, se tu não queres, a Pérola Grande
não pode obrigar-te; mas eu sempre tomei conta delas pela primeira
vez, especialmente se elas serviam para procriar.
-Acho que posso fazê-lo eu -assentiu Ham.
-Acho melhor ir ver aqueles rapazes que comprei ontem. Achas que
têm alguma coisa que eu não notei? Aquele sacaria estava muito
satisfeito com o negócio. Gostava que mandasses vir os dois miúdos
ao varandim, quando acabares de jantar.
Hammond delegou a tarefa.
-Meg vai ao vestíbulo e traz os dois novos ao teu patrão depois de
jantar, ouviste?
-Sim, sio, patrão, siô. Eu vai buscar eles, patrão. Logo que os
brancos saíram da mesa, Meg pegou no prato de Hammond, com os
restos que ele deixara, levou-o para a cozinha e pô-lo de parte.
Depois saiu para ir buscar os dois negros ao estábulo. Os dois
garotos, estranhos e excluídos das brincadeiras dos outros, eram
tímidos e estavam relutantes em obedecer às ordens peremptórias
de Meg. Finalmente ele pegou numa vara e bateu com ela nas costas
de um dos rapazes e este, decidindo aceitar a sua autoridade,
avançou. De vara na mão e caminhando atrás deles, Meg escoltou
os dois para casa.

No caminho, Meg descreveu aos rapazes os tormentos a que o amo
iria sujeitá-los. À medida que a imaginação de Meg se ia
desenvolvendo, estes passavam do chicoteamento à marcação com
ferro em brasa e à castração o, que ele descreveu muito vivamente
mas com pouca exactidão. As faces dos rapazes descoraram do
negro brilhante para um cinzento-sujo, enquanto escutavam, com
terror, o que estavam prestes a fazer-lhes. Encostaram-se um ao


outro, enquanto Meg corria para casa para informar Hammond da
sua chegada.

Quando Meg chegou à cozinha e procurou o seu prato, descobriu
que a comida tinha sido raspada para a travessa rachada da qual o
seu irmão já estava a comer. Começou a chorar e recusou-se a
comer.
-Patrão Hammond diz que eu pode comê dos prato dele -declarou
a Lucrécia Bórgia.
-Não te faz mal comê com teu irmão. Tu não é melhó que ele.
Agora, come teu jantá. Só porque patrão Ham diz que tu é o nêgo
dele, tás a perdê o juízo. Precisa sê sovado, sê chicoteado, só
espancá tu nã chega -ameaçou a mãe.
-Nêga, se eu é chicoteado, é patrão Ham que chicoteia eu. Não
toques eu. Eu não quê jantá. Eu vai dizê ao patrão.
-Diz ao patrão o que quisé. Não te serve de nada. Quem julgas que
deu tu à luz? Quem deu peito a tu? Quem criou tu? 0 patrão Ham
não é tua mãe!
-Não, mas é meu patrão, e eu vai dizé a ele -e Meg saiu, porta fora.
Os MaxwelI, pai e filho, encontravam-se ocupados a examinar os
pretinhos que estavam, nus e assustados, na sua frente. Os rapazes
novos eram do tipo cepo, de ombros largos, sem pescoço, cabeça
esguia, com narizes achatados sem cana, narinas largas, de lábios
grossos, quase pretos, e um pouco gordos. Não sabiam que idade
tinham e era difícil determiná-la, mas Hammond calculou que
teriam quatorze anos, Maxwell quinze. Estavam ainda cansados da
viagem através da lama, sob o chicote, e sentiam-se pouco à vontade
no seu novo ambiente. Andavam desajeitadamente sobre os pés
grandes e grossos, obedecendo às ordens de boa vontade mas com
insegurança.
-Não é preciso mexer-lhes muito, filho -declarou Maxwell com
experiência. -Se não se consegue descobrir um bom negro ao olhar


para ele, também nunca o descobrirás mexendo-lhe. É preciso
mandá-los lavar antes de lhes tocares, de qualquer modo.
-Não lhes encontro nada de mal. Fez bom negócio, até onde consigo
ver -declarou Hammond.
-Ainda é preciso esperar antes de os vender. Têm muito para
crescer -disse o pai.
-Têm, de certeza -afirmou Ham, satisfeito com o negócio. Meg
aguardara uma pausa na conversa. Aproximou-se de Hammond e
disse, amuado:
-Patrão, siô, aquela nêga não quê dar Jantá pra eu.
-Qual negra?
-Aquela Lucrécia Bórgia. Ela raspou tudo pró prato de Alph. Não
quê dar pra mim. Eu tem fome. Ela diz que vai desancá eu.
-Que fizeste tu?
-Eu não fez nada, não fez nada. Só quer comer os teus resto, do teu
prato, como tu diz. Aquela nêga raspou os teus resto pró prato do
Alph.
-E a Lucrécia Bórgia não te deixa comer com o Alph?
Meg começou a chorar.
-Sim, siô, patrão, mas tu disse, tu disse que eu pode comê os resto
mêrno do teu prato, do teu prato. E tu disse àquela nêga pra não
castigá eu.
Tu disse. Tu disse que tu castiga eu, eu é teu.
-Vai já para a cozinha e come com o Alph ou castigo-te mesmo avisou
Hammond . -E manda cá a tua mãe.
Meg saiu a correr, de mau humor, mas quando Lucrécia Bórgia
veio, escondeu-se junto da porta para ouvir o que patrão ia dizer-
lhe.
-Lucrécia Bórgia -disse Hammond, -Meg quer comer do meu
prato?
-Sim, siô, patrão. Aquele fedelho tá a armá em gente grande. Não
pode fazê nada com ele. Nem quê que eu bata nele. Diz que tu
castiga ele.



-É certo. Se queres que ele apanhe, diz-me e eu castigo-o. Não
precisa de castigos, aliás.
-Eu gosto de desancá neles todas as manhã. É bom pra ele. Não
pode desancá o outro porque tem reumatismo.
-Eu castigo o meu, se precisar -interrompeu Maxwell. -Estou a
ficar suficientemente bem para tratar de um fedelho como ele.
-E deixa o Meg comer os meus restos, se ele quiser. Ele é limpo.
Não estraga os pratos.
-Sim, siô, patrão. Se tu quê. Lucrécia Bórgia olhou para o pai, à
espera que ele desaprovasse.
-Não se importa de comer num prato em que comeu um negro,
pois não, pai ... depois de lavado?
-Fui criado com leite de mamas de preta, e tu também, filho. Não
me envenenou, acho eu. Os pratos não se estragam por os negros
comerem neles. Boa ideia... a ideia de Hammond.
-Sim, siô, patrão. -Lucrécia Bórgia aceita o inevitável -Tu quer que
aquele nêgo tem também um garfo, e um guardanapo pra limpá ele,
e uma cadeira pra sentá? -perguntou com ironia.
-Acho bem. Porque não? -disse Hammond.
-E o outro também -acrescentou o pai. -0 que um tem o outro
também deve ter.
Meg sabia que a entrevista terminara e correu para a cozinha.
Comia o que Alph deixara na travessa partida quando Lucrécia
Bórgia entrou, a resmungar. Ele ouviu Ham afirmar que era dele,
mas escondeu a alegria.
-Que diz o patrão? -perguntou.
-Patrão diz que tu não é melhor que Alph. É o que patrão diz.
Patrão diz pra tu comê o jantá. Queres outra perna de galinha? respondeu
ela, e depois explodiu: -Linguareiro!
Lucrécia Bórgia viu o rapaz comer até se fartar. Depois de ele ter
armazenado quanto podia, agarrou-o nos seus grandes braços,
atravessou a cozinha com ele ao colo e sentou-se num banco baixo
em frente do lume. Apertou-o dolorosamente contra o seu corpo



enorme e quente e as suas lágrimas caíram sobre a cabeça dele. 0
seu anjo caído, o seu cordeiro perdido. Vacilava entre a execração e
a devoção. Gostava dele como seu filho; odiava-o como seu rival. A
natureza dele era semelhante à sua.

Capítulo sétimo

-Mas eu não quero casar-me, pai. 0 que eu quero é um lutador preto
-respondeu Hammond à solicitude do pai. 0 desejo que o velho
Maxwell sentia de ter um neto, branco, seu herdeiro, era persistente.

A ceia terminara e ambos estavam sentados, descontraídos,
bebendo os seus toddies em frente da lareira. A noite estava suave,
mas a lareira era confortável. Meg correra a descalçar as botas de
Hammond, substituindo Meirmon nesse dever. Ajoelhou-se em
frente de Hammond e puxou com força, e, quando uma das botas
deslizou subitamente, caiu de costas. Descalçou as meias de
Hammond e, em vez de secar os pés com as mãos, como Mem fizera
na noite anterior, Meg inclinou-se para a frente e enxugou-os na sua
carapinha. Antes de enfiar a pantufa no segundo pé, abraçou-o e
esfregou o rosto contra a carne branca. Esperava que lhe ralhassem,
mas Hammond não notou o gesto nem o sorriso interrogativo e
tímido que se lhe seguiu.
-Podes ter uma mulher e um lutador, acho eu. Ou queres dormir
com um lutador?
-Além disso, não conheço brancas -objectou Hammond.
-Olha, olha, há a miss Daisy Prescott, da Plantação Somerset. Boa
família, os Prescott e ficava doida se te tivesse.


-Sim, conheço a miss Daisy Belle. Muito respeitável e tudo o resto;
muito bonita, para quem gosta de morenas. Mas a miss Daisy Belle
é mais velha do que eu; vai ficar solteirona. Deve ter vinte um,
talvez vinte e dois anos.
-E há a tua prima, a miss Blanche Woodford, se gostas delas louras
e novinhas. Não deve ter mais de dezasseis anos e tem cabelos cor
de trigo, pelo menos tinha, quando eu a vi. Lembro-me dela.
-Pois eu não -negou Hammond.
-Sim, lembras-te. Fomos à Plantação Crowfoot com a tua mãe para
visitar a prima Beatriz, eras tu pequeno. Essa miss Woodford é
prima da tua mãe, uma Hammond também filha do velho Orestes
Hammond que era irmão do Theophilus, o pai da tua mãe.
-Como é que consegue lembrar-se disso tudo, de quem é parente de
quem?
-É importante. E preciso saber em quem se pode confiar. No
próprio sangue. Orestes Hammond não é um homem como o velho
Theophilus, era um bêbedo, matou-se com a bebida. Seja como for,
era um Hammond; bom sangue. 0 major Woodford, pai da miss
Blanche, também é de boa família; a mãe dele é uma Sitwe11.
Recebeu a Plantação Crowfoot pelo lado dela; aumentou-a e
construiu por ele próprio uma nova casa grande.
-Onde é Crowfoot?
-Para lá de Briarfield que fica depois de Centerville, perto dali, acho
eu. Toda a gente por esses lados conhece o maior Woodford e
Crowfoot.
-A cerca de cinquenta milhas, não?
-Talvez sessenta, ou mesmo sessenta e cinco.
-Não é o sítio onde um rapaz atrelou um bode a um carro e me
deixou guiá-lo?
-Isso mesmo. já te lembras. Esse rapaz era o Richard, mais velho do
que tu. Depois há outro rapaz, mais novo que tu, chamado Charles,
parece-me. Depois a miss Blanche. E ainda havia outro, um bebé,



rapaz ou rapariga, não me recordo, mas morreu. A Blanche é a mais
nova viva. Gostaste muito daquele bode!
-Não me lembro da rapariga.
-Eras muito novo, nessa altura. Tinhas talvez cinco anos. Foi antes,
antes de eu te dar aquele pónei castrado.
-Nunca tive nada com uma branca. Não sei o que havia de fazer confessou
Hammond.
-Olha, se vires uma que queiras, pedes ao pai dela se podes falar
com ela. Ele diz que sim e então podes ir ter com ela. É só isso.
-Não me refiro a isso. Refiro-me a ir para a cama. Ir para a cama
depois de casar. Que se deve fazer?
-Não te rales com isso. Farás tudo bem. Não há problema. A
rapariga também não sabe o que há-de fazer, desde que seja
decente.
-Tratam-se como a uma fêmea negra?
-Tal como uma fêmea. Quer dizer, não exactamente. Uma negra
sabe * que tu vais fazer. A branca não sabe, da primeira vez. É
recatada. Começa * chorar. Talvez grite e berre.
-E não deixa?
-Tu gostas dela e beíja-la e ela no fim deixa-te.
-Beijo-a? Não sou muito bom a beijar.
-Beijas bem se gostares de a beijar. Sei que não beijas as tuas
fêmeas. Mas às brancas, temos de as beijar.
-Eu beijava a minha mãe, quando era pequeno.
-Claro, claro. Quero dizer que não beijas as tuas fêmeas de cama.
Divertes-te com elas e manda-las embora. Se arranjares uma branca,
não lhe falas nisso. As brancas não gostam que se lhes fale nisso,
mas submetem-se, submetem-se ao marido. É o dever delas, o seu
dever de mulheres casadas. Por vezes são lentas, é preciso
prometer-lhes qualquer coisa, um chapéu novo, ou coisa parecida.
Mas submetem-se. Pelo menos a tua mãe fê-lo.
-E não se pode termais fêmeas? Que se faz quando a nossa mulher
fica velha, com vinte cinco, talvez trinta anos?



-Claro que se tem fêmeas, na mesma. Não se fala delas em frente da
nossa mulher, mas ela sabe que as temos. Ela quer que as tenhamos.
Evita-lhe ter de submeter-se.
-Uma branca é melhor que uma negra?
-Melhor? Não, não me parece. Mas é preciso ter uma mulher para
se ter filhos; filhos brancos, quero eu dizer, filhos como deve ser,
mesmo nossos, crianças propriamente ditas.
-Eu sei. Eu sei disso.
-Outra coisa. Não te podes despir totalmente quando fores para a
cama com uma branca. Conserva sempre a camisa e as ceroulas.
Uma branca fica furiosa se vê um homem nu.
É pouco prático, não é? Não é tão incómodo como a camisa que ela
usa para nós não a vermos. Usam uma camisa abotoada até ao
pescoço, que chega ao chão; cobre-as todas.
-Em Nova Orleães não. As mulheres brancas de lá despem-se todas.
Vi, na minha última viagem ...
-Putas. São putas. Isso é diferente. Não são muito melhores do que
as negras. Algumas delas nem tanto -declarou Maxwell enojado. Deixam-
nos ver as mamas nuas, até nos deixam mexer-lhes.
-São bem bonitas, de pele branca e tudo.
-Não quero apanhar-te a andar atrás de putas brancas, filho.
Apanham-se bichos delas e blenorragias, e tudo isso.
-Eu não, pai, eu não, mas vi disso.
-Quando fores a Nova Orleães outra vez, no próximo Outono, é
melhor levares a Dite, ou outra qualquer. Sabemos que as nossas
negras são limpas; não te transmitem nada disso.
-Não posso levar a Dite. Deve estar a dar à luz no Outono.
-Ficou grávida? Tens azar comas tuas raparigas. Se andas coma
Dite é capaz de ter um bebé bonito. 0 teu outro é mesmo de
primeira. Estás a ficar @mais velho e mais forte; o teu novo bebé
deve ser melhor ainda.
-Não tive ainda nenhum com um joelho rígido. É a primeira coisa
que veio nos meus miúdos.



-Não é provável, pelo menos na primeira geração. Talvez apareça
nos teus netos, não em todos, evidentemente, talvez nem em
nenhum.
-Gostava de conservar os meus, as fêmeas, pelo menos, para
criação.
-Boa ideia. 0 sangue dos Hammond há-de dar certa categoria aos
pretos. Mas não lhes entregues o teu filho, esse joelho é capaz de
parecer, vindo de ambos.
-Não tenho um filho ainda, pai. Não tenho um filho branco.
-Vais ter. Vais ter -predisse MaxwelI, confiadamente.
-Talvez vá até à Plantação Crowfoot ver a prima Blanche Woodford
na próxima semana, ou na outra, antes das colheitas. Pode ficar só?
-Para isso claro que posso. Não preciso de fazer nada. Até descansa
os negros, antes da colheita. Qualquer coisa que haja a fazer,
guardo-a para quando voltares.
-É uma longa viagem, só para ver uma mulher, para ver se a quero
ou não.
-E à volta podes passar pela Coign e pedir ao velho Wilson que te
empreste o mandingo velho para a Pérola Grande e para Lucy.
Acho que ainda o têm em Coign.
-Leva mais um dia, talvez dois, se as estradas estiverem boas?
-Levas o tempo que quiseres. Estou interessado, bastante mesmo,
naquele mandingo. E podes procurar o tal lutador que queres.
-já tinha pensado nisso -disse Hammond.
-Se calhar pensaste mais nisso que em arranjar mulher.
-A ideia de uma mulher desencoraja-me. Mas acho que todos os
homens têm que ter uma.


0 relógio interrompeu a conversa, tossindo a hora errada. Eram oito
horas, contando com o erro de um quarto de hora.
-Não me agrada nada deitar-me tarde, como na noite passada.
melhor subir -disse Maxwell, bocejando. -0 Merimon que trate de ti
primeiro, pode depois vir tratar de mim e do garoto.



Hammond beijou o rosto manchado de tabaco do pai e afastou-se a
coxear, seguido por Mem que transportava as suas botas. 0 velho
escutou os seus passos desiguais, escada acima.
Quando o jovem se aproximou do cimo da escada, a vela que Mem
segurava iluminou uma figura pequena que se levantou do último
degrau e se verificou ser Meg.
-Que fazes a pé a esta hora? -perguntou Hammond.
-Tou à espera pra servir o meu patrão, siô.
-Para me servires?
-Sim, siô, patrão. Eu quer despir-te as calças e meter tu na cama,
patrão, siô, por favô, siô.
-És muito pequeno. Vai para a tua esteira, para o pé da tua mãe.
-Eu é forte, siô, patrão, mêrno se eu é pequeno. Eu é o teu nêgo, siô,
patrão. Não é o teu nêgo?
-Está bem. Está bem. Dá-lhe a vela, Mem, e as botas. Mem tinha
preparado uma desculpa para se livrar do castigo e estava à espera
de ficar a sós com Hammond para suplicar a sua simpatia. Ficou,
conseqüentemente desapontado com a interferência de Meg. Estava
salvo durante o dia seguinte e talvez conseguisse fazer o seu
discurso enquanto ajudasse Hammond a tomar banho, de manhã.
Contudo, obcecado pela hipótese de se castigado, não podia
esperar.
-Tu não vai castigá o Mem amanhã, patrão? -Mem falava de si
próprio na terceira pessoa quando desejava obter compaixão.
-Não, amanhã é domingo. Teremos de adiar.
-Tu não magoa o Mem, patrão, siô. Não magoa o Mem. 0 Mem
gosta de ti, patrão. 0 Mem é o rapaz do patrão -suplicou.
-0 Mem é o negro preguiçoso do patrão. -Não te vai doer muito, só
uns toques aqui e além. Só umas pancadinhas no teu lombo e
aquela pimentade esfregada por cima, para te curar. Durante uma
semana ou duas sentas-te numa cadeira sem almofada.
-Pimentade? Pimentade não, patrão. Por favô, siô, pimentade não.
Faz um negro arder mais que o chicote.



-Muita pimentade. É material barato. Agora vai tratar do meu pai.
Vê se os pés dele ficam bem junto do estômago de Alph.
-Vai castigá muito o Meirmon, não vai, patrão? -Meg não queria
que o assunto ficasse esquecido.
-Acho que precisa bem -disse Ham, continuando a avançar pelo
hall.
-Posso ajudá, patrão, siô?
-Ajudar em quê?
-ajudá a castigá o Menirion?
És pequeno de mais. Não podes levantar a palmatória. Preciso do
Vulcano ou do Pólo ou outro no gênero.
-Eu pode esfregã aquela coisa, aquela coisa que faz ardê.
-A pimentade?
-Sim, siô, a pimentade. Tu vai esfregá o meu rabo com pimentade
quando tu castigá eu? -inquiriu Meg com ar deliciado.
-Tu não precisas de castigo. És um bom negro; trabalhas bem.
-Eu é o teu nêgo, patrão. Eu é o teu nêgo.
-Sim.
-Se eu tivesse um nêgo, eu castigava ele. Pra ele sabê bem que era o
meu nêgo.
-Bom, talvez eu devesse castigar-te, já que tanto queres.
-Tu vai, patrão? Tu vai? -Meg parecia encantado com a ideia. Dite,
na sua esteira junto da cama, acordara, com a luz da vela e a
conversa. Ergueu-se sobre o cotovelo e perguntou:
-Onde quer eu, patrão, siô, na cama ou no chão?
-É melhor vires um pouco para a cama. Talvez eu te queira. Hoje
não precisava de lareira. 0 Mem está a ficar trabalhador. Aquele
castigo está já a resultar, antes de ele o receber.
-Mem não acendeu lareira nenhuma-disse Meg, corrigindo o
patrão.
-Eu acendeu aquela lareira.
Meg ajudou Hammond a despir o casaco. Depois Hammond
sentou-se numa cadeira baixa em frente da lareira e desabotoou a



camisa enquanto o rapaz se ajoelhava e lhe despia as calças e as
ceroulas. Meg alisou os cabelos das pernas de Hamniond e inclinou-
se, para colocar o rosto entre as pernas de Hammond, com uma face
encostada a cada coxa.
-Que estás a fazer, negro? Mas que é isso?
-Tava só a cheirá, patrão. A carne branca é tão bonita, os cabelos
das tuas pernas são tão bonito e macio. E tu cheira mêrno bem.
Umm! Umm!
-Preciso de me lavar, é por isso que cheiro assim -disse Hammond,
inclinando-se para que o rapaz lhe despisse a camisa e a camisola
interior pela cabeça.


Hammond ajoelhou-se na esteira de Dite para rezar e Meg ajoelhou-
se ao lado dele a ouvi-lo. 0 rapaz resistiu ao impulso de passar o
braço pela cintura do patrão. A atracção dos pêlos dourados e
abundantes era tão intensa como a que sentia pela carne rósea onde
eles cresciam. Quando Hammond se pôs de pé e trepou para a
cama, Meg apercebeu-se da mulher deitada ao lado dele. Olhou
com horror para o seu rosto sobre a almofada e o ódio dominou-o.
Desejou não somente matar Dite, mas também aniquilá-la. Desejou
que ela nunca tivesse nascido, ou melhor ainda, que tivesse nascido
preta e feia, e, pelo menos, que se encontrasse na cabana e não ao
lado do seu patrão, na cama. Meg apagou a vela com os dedos e,
não encontrando qualquer desculpa para ficar, saiu do quarto e
fechou a porta. Estendeu-se sobre o tapete do hall, o mais próximo
da porta que era possível. Pôs-se à escuta e, com angústia, ouviu os
movimentos, um ligeiro estalar da cama, o ruído das cobertas. Tinha
apenas uma vaga ideia do que se passava sob os cobertores, mas
sabia que, fosse o que fosse, dava prazer. Só quando ouviu Dite sair
da cama, para se ir deitar na esteira, Meg conseguiu conciliar o
sono.



Capítulo oitavo


Hammond passou a tarde inquieto. Não havia trabalho que
precisasse de ser feito. Pensou em ir a cavalo até Benson, mas as
estradas estavam péssimas e não haveria ninguém na taberna, a
menos que Brownlee tivesse sido atrasado pela lama, e Ham não
tinha qualquer desejo de voltar a ver Brownlee. Sentar-se junto da
lareira a beber toddies com o pai significava a repetição de planos já
formulados e a recordação de trivialidades que mais valia esquecer.

Para se libertar do aborrecimento, Hammond ter-se-ia dedicado
com gosto à tarefa ainda não saboreada de dar a Merririon o seu
castigo, mas era domingo. Para os Maxweli, o domingo não era um
dia de devoção mas de descanso, que os criados aguardavam
ansiosamente. Alguns dos escravos mais antigos, comprados em
plantações onde houvera serviços religiosos, ainda se recordavam
dos costumes da sua juventude e recitavam orações de domingo nas
suas cabanas. Os Maxwell nem sabiam disso. Não objectavam à
religião nas cabanas, mas também não a encorajavam. Objectavam,
sim, a que os negros aprendessem a escrever e a ler. Além de ser
contra a lei dos escravos, dava-lhes ideias sem as quais eles estavam
mais seguros e, por isso mesmo, mais felizes. Em Falconhurst não
era necessária justificação bíblica para a instituição da escravatura.
Ninguém a disputava. Não eram necessários sermões para que os
escravos obedecessem aos patrões. Para quê sugerir-lhes que existia
outra alternativa?

MaxwelI, ignorando Deus, evitava a necessidade de Lhe disputar
autoridade. Para quê introduzir na economia das plantações um ser
superior ao branco?
Hammond mandou vir o seu cavalo e cavalgou pela plantação.
Verificou que o rio estava a baixar e o perigo de inundação passara.



0 cavalo tomou o caminho, rio acima, até onde a ribeira de
SaintHeleri desaguava no Tombigbee. Ham observou três dos seus
negros jovens a pescar, com linhas e anzóis, e deteve o cavalo, para
falar com eles. Tinham apanhado quatro pequenos peixes-gato, mas
a corrente estava muito rápida e o sol demasiado pálido para uma
boa pesca.

Um dos negros tinha pisado uma moccasin corri o pé descalço, mas
a cobra deslizara para a água, sem tentar mordê-lo. Hammond
avisou o rapaz para que fosse mais cauteloso. 0 seu pai pagara
seiscentos dólares por aquele rapaz, quatro anos antes, e a
mordedura da inoccasin podia tê-lo morto.

Uma corça atravessou o caminho de Hammond; estava prenha, e
desapareceu no bosque. Mais adiante viu um lince, com duas crias,
a brinca num ramo. Disparou, procurando atingir a mãe, mas
falhou. Viu inúmeras codornizes e algumas narcejas. 0 cavalo
assustou-se corri uma cobra cascavel, demasiado perturbada para se
enroscar. A vida selvagem era tão abundante na propriedade dos
Maxwell que já não despertava o interesse de Hammond. Porcos
magros, reduzidos a apanhar o seu próprio alimento, afastaram-se a
correr, como animais selvagens. Passando por um matagal,
Hammond sentiu o cheiro de um gambá, mas o ofensor
desaparecera já.
Voltou através dos campos que destinava ao algodão, mas achou-os
muito ensopados para semear, tal como esperava. Estava
impaciente por se lançar ao trabalho e não podia iniciá-lo antes de
passar um mês.
Pouco havia que interessasse Hammond, no passeio que dera. 0 que
vira era demasiado familiar para despertar interesse. Regressou ao
estábulo e entregou o cavalo a um criado, dando-lhe instruções para

o limpar e escovar. Meg tinha-o visto partir e aguardava o seu
regresso no estábulo.

-Um toddy, patrão? Pode arranjá um toddy pra ti, patrão? suplicou
o garoto, seguindo o amo para casa.
-Acho que sim -respondeu Hammond, aborrecido e impaciente por
fazer qualquer coisa.
Viu Pérola Grande atravessar o espaço aberto entre as cabanas,
balouçando um balde de água sobre a cabeça. Era tão flexível e
graciosa a andar como a cobra negra que fugira à sua frente, ao pé
do rio. Pérola Grande também viu Hammond e, embaraçada pelo
diagnóstico do dr. Redfleld sobre a sua doença, andou mais
depressa, para evitar uni encontro directo.
Mas ele chamou-a e perguntou-lhe:
-já estás boa outra vez, Pérola Grande? Ela não podia baixar a
cabeça, para não entornar a água, e a terra recusou abrir-se para a
engolir. Apenas pôde responder:
-Sim, siô, patrão. Tá boa. Parece que não tinha nada, só dô de
barriga.
-A Lucy está na cabana?
-Sim, siô, tá em casa. Pérola Grande não queria que o patrão e a
mãe falassem da sua doença, como sabia ser a intenção dele, mas
não havia maneira de evitá-lo.

Hammond dirigiu-se à cabana. Meg quis segui-lo, mas o patrão não
lho permitiu. Disse-lhe que fosse para casa, preparar o seu toddy.
Baltasar largou a sua brincadeira, em frente da porta, para seguir o
patrão. Lucy estava a preparar verduras frescas, as primeiras da
época, que colhera para a ceia. Havia carne ao lume, numa panela.
-Tarde, patrão, siô. Entra. Entra. Tarde, siô. Bal, seu safado, sai
daqui. Não vê que o patrão chegou? Deixa eu rirá aquela tripé pra
tu sentá.
Lucy estava agitada com a honra de uma visita do seu jovem patrão.
Pegou num cabo de vassoura e começou a atiçar o fogo,
nervosamente.


-Boa tarde, Lucy. A Pérola Grande já está boa, outra vez?
-Não era nada, não era nada-depreciou Lucy. -Só tolice, acha eu.
As rapariga são assim.
-Pérola Grande tem vontade de ir para a cama comigo? -perguntou
Hammond, sem que ela notasse o seu embaraço.
-Ela quê, ela quê. Mas tu não que, pois não? -Lucy não podia
acreditar na sua boa sorte.
-E achas que eu devia fazer isso?
-Se apetece a ti, eu ficava muito agradecida, patrão. Pérola Grande
já tá a ficá muito grande pra não ter macho. Eu pensou pedir tua
licença pra ela andá com um daqueles preguiçoso. Claro, Pérola
Grande antes quê o patrão.
-Bom, então prepara-a. Lava-a bem, toda.
-Ela é limpa, aquela rapariga, patrão, siô.
-E pões na água daquele pó vermelho que a Lucrécia Bórgia te há-
de dar. Ela diz-te como é.
-Pó vermelho? -Lucy não compreendia.
-Para tirar o cheiro. Pérola Grande tem um cheiro muito forte.
-Tem, tem. E depois mando ela tê contigo a casa?
-Não te preocupes. Eu volto cá daqui a um bocado. A carne
concupiscente da Pérola Grande arrepiou-se com a antecipação, mas
a única coisa que conseguiu dizer foi:
-Obrigado patrão, siô. Obrigado, siô. Hammond saiu da cabana
com uma certa repugnância. Sentia horror à tarefa de que se
incumbira, duvidando da sua capacidade para a levar a cabo. E se
falhasse, quando chegasse o momento? Seria um choque para a sua
virilidade, se falhasse. Corno conhecedor de animais perfeitos,
sentia orgulho de Pérola Grande, gostava de exibi-Ia e demonstrar a
sua força, agradava-lhe passar a mão pelos seus flancos macios e
poderosos, como se fosse uma potra de carga; mas nunca tinha
pensado nela como um ser humano. Havia algo de bestial na sua
tarefa. Estava a ser usado corno um garanhão de serviço, como um
negro de criação. 0 pai esperava isso dele, a rapariga sentir-se-la


roubada nos seus direitos, Lucy perderia categoria, se ele não
ligasse à filha que guardara tão cuidadosamente para ele, os outros
negros consideravam-no como um direito do patrão, e, na medida
em que um patrão tinha obrigações perante um escravo, como um
dever do patrão. Omiti-lo não diminuiria a sua autoridade, nem
causaria desprezo excepto o seu próprio; apenas provocaria
estranheza, dúvida. Hammond sabia como as acções de um amo,
quer em actos quer em omissões, embora nada pudesse fazer
errado, eram observadas e recordadas por todo o pessoal.
Fornicar corri Pérola Grande afastaria o seu aborrecimento; e, se
tinha que fazê-lo, não valia a pena adiar.

Mal Hammond saíra da cabana de Lucy logo se iniciou a orgia de
preparações para o acontecimento havia tanto esperado. Trouxeram
uma banheira e Pérola Grande e Baltasar foram buscar água ao
poço; a quantidade suficiente para lavar a enorme rapariga exigia
três viagens de cada um deles. Não havia tempo para a aquecer,
uma vez que o patrão voltaria "daí a um bocado", e Lucy não sabia
se ele se referia a cinco minutos ou a quando lhe apetecesse, e ela
receara perguntar. Correu para a cozinha da casa grande, a pedir
sabão e o pó vermelho para tirar o cheiro, e Lucrécia Bõrgia levou,
de propósito, bastante tempo para ir buscá-lo.
-Depressa, depressa. 0 patrão novo vai violá Pérola Grande e eu
tem de límpá ela bem -ouviu Meg dizer Lucy a sua mãe. -Depressa,
por favô sínhora miss Lucrécia Bórgia.

Lucrécia Bórgia fingiu uma indiferença que não sentia, e Meg fez de
conta que não ouvia. As suas emoções eram confusas. Existia urna
ambivalência entre o seu ciúme por Pérola Grande e o seu orgulho
pela proeza do patrão. Mas nada podia dizer a Hammond sobre o
assunto. Ansiava por entrar nas confidências do patrã o, queria
informações, ansiava por fazer perguntas. Lucrécia Bórgia nunca


mais tirou os olhos da janela através da qual espreitava, para ver
Hammond atravessar a clareira até às cabanas.

Lucy nunca deixava o seu chão sujar-se, mas, para ter a certeza de
que estava limpo, mandou Baltasar lançar água sobre as tábuas,
para as esfregar de novo, enquanto ela se dedicava à toilette de
Pérola Grande.

Quando Pérola Grande meteu os pés na banheira, pouco espaço
ficou para o resto do corpo. Se ela se sentasse ou acocorasse, a água
corria para fora. Lucy utilizou um esfregão da louça como esponja,
ensaboando e esfregando o corpo de Pérola Grande. Depois, uma
vez que Pérola Grande não podia ser mergulhada na solução de
permanganato de potássio, Lucy obteve o mesmo resultado,
espremendo repetidamente a esponja sobre os ombros da rapariga e
mantendo o corpo molhado.
Pérola Grande estava demasiado excitada para sentir o frio da água.
Ouvia as ordens e ameaças de Lucy sem as escutar.
-Porta-te como uma sinhora. Faz tudo o que patrão Hammond diz,
como ele diz, tudo -instruiu-a Lucy. -Nã o pedes nada ó patrão,
nada. 0 patrão novo sabe o quê fazê e sabe o que vai dá a ti. Se não
te porta como uma sinhora, eu espanco tu, e o patrão novo pendura
tu plos calcanhar e arranca teu pele e deixa tu morrê. E nada de
peídos, mêrno que tu te sinta muito bem, não peida, ouviu? 0 patrão
Ham fica a chirá mal. Não pode tirá todo o cheiro de ti, com água
encarnada ou não, por isso não quer peidos. E não esqueça de dizê
obrigado ó patrão Ham. Mêrno que ele não dê nada pra ti, diz
obrigado. Cansa muito o patrão Ham violá todas as rapariga. Diz
obrigado a ele.
Lucy repetia os seus avisos, uma vez e outra, com variações.
Enquanto Pérola Grande se secava, Lucy correu à cabana de Dido
para espalhar a notícia e pedir uma colcha emprestada. Não
escondia a sua excitação.


-Dído -implorou -empresta tua colcha nova. Patrão Ham vai violá
Pérola Grande agora rnêmo e minha colcha tá suja. Eu sei que tu
quê guardá ela, mas é pró patrão Ham e eu sei que tu vai emprestá.
-Como é que patrão Ham deixou Pérola Grande ficá tão
monstruosa antes de violá ela? -disse Dido, para atormentar a mãe,
mas foi à arca e trouxe a colcha.
-Patrão Ham tem andado a espreitá Pérola Grande, pra deixá ela
ganhá mamas. Ele gosta delas com mama. Ele diz que Pérola
Grande é bem bonita.
-É melhó levá este almofadão também. 0 teu tá todo rasgado sugeriu
Dido.
Lucy correu para casa com a roupa de cama e Dido não perdeu
tempo a espalhar a notícia pela vizinhança, não se esquecendo de se
gabar de que a sua roupa de cama era melhor que a de Lucy.

Lucy fez a cama de novo, deu ordem a Baltasar para esvaziar a
banheira e se ir embora, para não voltar antes de Hammond chegar
e partir de novo.
-0 patrão Ham vai violá tua irmã e não quê um nêgo a metê seu
nariz aqui -explicou ao rapaz. -Se quê tua mãe, eu tá na cabana de
Dido.
Feita a cama e posto o quarto em ordem, Lucy reabasteceu a lareira,
voltou a sentar-se num banco junto do fogo e olhou para a filha.
-Tás bem bonita, Pérola Grande-foi o seu veredicto. -Claro, tu não é
clara, e é grande. Tu sempre foi grande, maió que qualqué bebé que
eu teve; menos aquele macho que nasceu antes, que o velho patrão
Wilson guardou pra ele quando o pai do patrão Hammond
comprou tu e eu. Ele o maio nego que eu já vi. Mas tu foi mais
difícil de nascê, Ele saiu mêmo bem de mim, como se tivesse
untado; tu tava ao contrário, de rabo pra fora. Quase mataste eu.
Gostava de sabê se o velho patrão Wilson vendeu aquele machinho
ou se tá na plantação Coign. já tá grande agora. É duas ou três
colheita mais velho que tu.


-Quem violou tu, mãe; da primeira vez? -perguntou Pérola
Grande.
-Meu patrão, claro-respondeu Lucy ingenuamente. -0 velho patrão
Wilson. Tá a ficá velho. Penso que já morreu, é tão velho. Era velho
e fraco, mas rebentou eu muito bem antes de dá eu pró teu pai.
-Tu não acha que o patrão Hammond vai levá eu prá casa grande
pra sê sua fêmea de cama? -disse Pérola Grande, cheia de
esperança.
-Que disparate de conversa! 0 patrão não quê uma giganta como tu
prá sua cama. Quê mulheres clara e pequena como Dite. Dido diz
que ele tá olhando prá Tense, mas tá inda pequena.
-Tu diz que eu é bonita.
-Tu é bonita, mas é grande e muito escura. É boa pra criação, talvez
pró patrão. Mas não prá cama. Não tá satisfeita?
-Tou, sim.
-0 patrão novo vai violá ela e não tá satisfeita! Quê sê fêmea de
cama dele!

Quando Hammond saiu da casa grande, havia mais olhos a
observá-lo do que ele suspeitava. Lucrécia Bórgia viu-o sair, através
da janela da cozinha, e resmungou cheia de inveja. 0 ciúme de Meg
era ainda maior. Tinha vontade de pedir para ir mas não ousava.
Por trás dos arbustos e às esquinas das cabanas, espreitavam rostos
negros e todos sabiam qual a tarefa do patrão e invejavam a Pérola
Grande a honra que sabiam que ele ia fazer-lhe.

Lucy e Pérola Grande levantaram-se quando viram o patrão. Este
entrou na cabana, despiu o casaco ecolocou-o sobre um caixote que
servia de mesa. Desafivelando o cinturão e colocando a pistola ao
lado do casaco, disse:
-Pronto, Lucy, podes ir para a cabana da Dido ou para outra
qualquer, mas vigia aquela porta e conserva os negros fora daqui.


-Pérola Grande porta como uma sinhora, agora. Faz o que o patrão
diz ou ele castiga tu. Tá uma boa vassoura ao pé do fogão, se precísá
dela, patrão.
Não te rales, Lucy. A Pérola Grande não vai precisar de vassoura. É
melhó, é melhó -ameaçou Lucy, fechando a porta atrás de si.
Quando Hammond saiu da cabana, sentia-se ao mesmo tempo
exausto e satisfeito. A tarefa tinha sido mais difícil mas mais
agradável do que esperava. Sentia o prazer do dever cumprido,
uma vaga pena de que não estivesse ainda por fazer. Ardiam-lhe as
costas por os dedos poderosos de Pérola Grande nelas se cravarem,
mesmo através da camisa, e o ombro doía-lhe das suas dentadas.


Quando Lucy regressou, encontrou Pérola Grande ainda na cama, a
chorar e a rir.
-Que tá tu a chorá, nêga? 0 patrão Ham magoou tu?
-Não, não. Patrão Ham é muito bom. Eu ama o patrão Ham.
-Teve que castigá tu?
-Não siô, não siô. 0 patrão não bateu nunca. 0 patrão Ham é um
branco bom.
Hammond não receava a desaprovação do pai; receava, sim, o seu
riso de aprovação. Decidiu adiar a narração do seu feito, para que o
incidente mergulhasse na rotina da plantação quando o pai viesse a
saber dele. Mas não contava com a má língua dos negros. Lucrécia
Bórgia e Agamérririon já tinham dado à língua junto de MaxwelI,
que já notara a perturbação inquieta de Meg, e que a atribuía a uma
descompostura ou chibatada que Hammond tivesse dado ao garoto.


0 pai bebia os últimos golos do seu copo quando o filho entrou.
-Meinnon -chamou. -É melhor beberes um toddy filho. 0 uísque
há-de fazer-te bem depois desse esforço. A Pérola Grande é
muitíssimo forte -disse MaxwelI, entrando no assunto.
É grande, é. Que tal achas a carne negra? Igual à clara, se se fechar
os olhos. Penso que a branca não será diferente, tirando o cheiro.



-É a mesma coisa. É a mesma coisa. Estou satisfeito por teres
chegado a essa conclusão. Estás cansado, Ham?
-Um pouco, só um pouco. Sinto-me bem.
-Vais passar a ir ter com Pérola Grande regularmente -predisse
Maxwell.
-Talvez -admitiu Hammond. -0 mais difícil foi a primeira vez. Um
patrão é urna espécie de garanhão; fornica quer tenha cio ou não.


Capitulo Nono

-Vai ao rio, lava-te todo muito bem e vem ter comigo ao estábulo disse
Hammond friamente a Merririon, na manhã seguinte ao
pequeno-almoço.
Meinnon começou a choramingar.
-0 patrão vai castigá o Merririon. Não castiga o Mem, patrão, siô,
por favô, siô. 0 Mem tá doente, patrão. Não pode castigá um nêgo
doente, patrão -Eu disse para te ires lavar e vires ter comigo. Não
falei do castigo.
Ham geralmente abstinha-se do seu toddy após o pequeno-almoço,
mas naquela manhã sentiu necessidade de um. Meg preparou as
bebidas, uma para cada um dos patrões, antes de se sentar a tomar o
seu pequeno-almoço na cozinha, com Alph. Comeu apressada e
nervosamente. Receava que Hammond fosse para o estábulo sem
ele.
Estava à porta, com a palmatória de couro na mão quando
Hammond saiu.
-Dá cá -ordenou Ham.
-Mas eu também vai -protestou o rapaz, duvidoso.



-Quem disse?
-Disse tu -afirmou Meg. -Eu vai esfregá aquela coisa ... a ... tu disse
que eu pode.
-A pimentade? Bom, vem lá. Acho que disse.
0 primeiro adulto que encontraram foi Napoleão que tinha sido
suplantado no afecto de Lucrécia Bórgia pelo mais fértil Mem. Era
um rapaz claro e forte, pouco mais velho do que Hammond, pois
tinha dezanove, possivelmente vinte anos.
-Vem Pólo: preciso de ti -disse Hammond. Pólo viu a palmatória e
começou a protestar.
-Não castiga eu, patrão. Eu não fez nada, patrão? A sua inflecção
transformou a afirmação numa pergunta.
-Não te aflijas. Não penso castigar-te, Pólo.
-Vai castigá Merrinon. Eu vai esfregá 'quela coisa -elucidou Meg.
-Não podes manter a boca fechada -avisou Hammond. Estava
preocupado, relutante em desempenhar a tarefa que o esperava.
Contudo, passou os olhos por Pólo, imaginando quanto pagariam
por ele no Outono em Nova Orleães -mil e quinhentos ou mil e
oitocentos dólares, talvez dois mil, se a procura de negros
continuasse a aumentar. Pólo era um negro preguiçoso, não muito
vivo, apenas suficientemente esperto para se livrar do trabalho e
evitar castigos. Contudo, era um rapaz forte, direito, bem
proporcionado, com boas feições, quase bonitas, e covinhas no
rosto; as suas falhas não o tornariam mais barato. Hammond notou
que Pólo tinha os músculos flácidos, pouco duros; não era cedo
demais para começar a prepará-lo.

As portas duplas do estábulo abriram-se e as moscas azuis
zumbiram ao sol. Um carro de quatro rodas e um cabriolé surgiram
nas sombras do interior cavernoso. Nos cantos da sala principal
havia teias de aranha nas quais tinham ficado presos pedaços de
feno, poeiras e outros detritos. Hammond notou que algumas selas


pouco usadas, penduradas na parede, estavam cheias de pó e a
precisar de óleo.

As pranchas que atravessavam o chão estavam desgastadas pelos
anos, e as fendas entre elas estavam cheias de poeira. A viga que
suportava a edificação estava arqueada pelo peso do feno no
palheiro e já não estava a prumo, se é que alguma vez estivera.
Algumas manchas de cal ainda aderiam às paredes, perto do tecto,
mas tinham passado a um tom cinzento, por acumulação de poeira.

0 garanhão de Hamiriond relinchou para chamar a sua atenção, ao
sentir-lhe o cheiro, e Hammond foi à sua baia para lhe afagar o
focinho. As éguas e mulas que estavam por trás do garanhão
ignoraram a presença de Hammond, embora o som dos seus cascos
e os seus resmungos anunciassem a sua presença. As portas das
outras balas, que serviam de dormitório, estavam abertas.
-Leva esses negros para fora do celeiro e diz-lhes que os quero
longe daqui -ordenou Hammond a Pólo. -Procura bem nas baías e
corre-me com eles todos. Onde está aquele Mem? Será que tem
medo? Estará escondido?
-Ali vem Mem, agora, patrão, siô, Ali vem ele -anunciou Meg, de
fora.

Em todos os graus de adolescência, os rapazes negros, pretos,
castanhos, cor de ocre, tudo menos brancos, atarracados e altos,
gordos e magros, passaram a correr, a andar lentamente ou de
esguelha, pelo patrão, saindo do edifício. Passou perto dele um
adolescente feio, cheio de gânglios, com o cabelo encarapinhado de
um castanho próximo do ruivo, de olhos cinzentos e face cor de
açafrão semeada de sardas. Hammond ignorou os outros, mas
aquela desagradável combinação atraiu a sua atenção e tomou nota
para o vender. Não compensava alimentar e fazer crescer um
animal tão hediondo, mesmo que pudesse ser são. Porque não


pensara em oferecer o rapaz a Brownlee? Que fazia aquele ordinário
em Falconhurst?
Memnon parou junto da porta.
-Onde estiveste? Disse-te para te lavares e vires para aqui -foi a
saudação de Hammond.
-Tive a lavar, como tu disse, todo, bem. Patrão, eu tá doente. Eu não
quê ser castigado. Mem não precisa de castigo. Patrão, por favô, siô,
por favô, slô. Patrão, eu tá doente. Tem dô no barriga.
-0 Pólo já te vai arrancar essa dor. Espera aí. Despe-te.
-Esta corda está gasta. Aguentará? -Hammond falava consigo
próprio; depois disse a Napoleão: -Passa-a por essa roldana.


Pólo entrou numa das baias e enfiou a corda pela roldana final de
uma delas, fixas, à distância de um pé e meio entre elas, na viga
central do tecto.
-Tu vai pendurá eu, patrão? Eu ajoelha, eu dobra, eu fica quieto,
mas não pendura eu, patrão. Patrão, siô, nã o pendura o Mem. Por
favô, não.
0 negro, agora nu, estava aterrorizado.
-A roldana tá presa. Não anda -disse Pólo.
-Não é usada há muito tempo -disse Ham. -Limpa-a e põe-lhe
óleo. Vou usar as duas das pontas e esticá-lo.
-Não estica tanto eu, patrão. As minhas perna não chega tão longe.
Usa a roldana do meio, patrão, por favô.
-Mem, traz-me aquele garrafão de pimentade, a canecae a esponja.
Da última vez que foi usada, puseste-a naquela casa do canto.
-Não vai também pôr pimentade no Meni, patrão, slô? Aquilo
queima muito. Oh, patrão, patrão, por favô, a pimentade não!
Mernnon chorava, mas trouxe o garrafão coberto de pó e foi
procurar a caneca que continha a esponja sobre a qual se tinha
fixado poeira misturada com teias de aranha. Colocou tudo
cuidadosamente no chão, ao lado da bala onde o patrão estava
sentado.



Pólo tinha limpo e oleado a roldana que já funcionava, com um
rangido. Meg agarrou-se ao garrafão de pimentade, lutando com a
rolha que o fechava e acabou por arrancá-la corri os dentes.
Começou a deitar o líquido sobre a esponja suja que estava dentro
da caneca, até que Hammond reparou nele.
-Não deites ainda. Agita a garrafa, primeiro. A pimenta está toda
no fundo -explicou a Meg.
0 garrafão era demasiado pesado para o rapaz o poder agitar e
Hammond levantou-o e agitou-o. Meg, porém, inclinou-o e
despejou o seu conteúdo na caneca, para não cair para o chão.
Ensopou a esponja, espremeu-a voltou a ensopá-la. Ficou a segurar
na esponja saturada, pronto a usá-la quando necessário, esquecendo
a mistura escura que pingava nas suas roupas.
-Fecha as portas, Meg -ordenou Hammond. -Não quero os rapazes
por aí a ouvir a palmatória a cair. Assustam-se e não crescem.
A grande divisão ficou triste e escura, quando desapareceu o sol
que passava pelas largas portas.
-Agora deita-te -ordenou Hammond a Mem. -Não, de costas e
mais perto daqui. -Fez um laço corri a ponta da corda e atou-o
firmemente em volta do tornozelo de Mem. -Agora puxa, Pólo.
Merririon parou de protestar. Foi-se apoiando nas mãos e nos
braços, tentando proteger as costas do chão áspero, enquanto
Napoleão, do outro lado da corda, o içava. Os seus dedos podiam
ainda tocar no chão e aliviar uma pequena parte da tensão no pé,
quando Hammond gritou a Pólo:
-Basta. Ata aí.
0 rapaz ficou pendurado por um pé, com o outro agitando-se no ar.
As suas súplicas tínham-se transformado num simples "Patrão. Por
favô, siô, patrão", que Hammond ignorou.

Pólo entrou na baia e lançou outra corda pela roldana que estava
mais longe de Mem. Hammond enlaçou-a em volta do outro pé de


Mem e Pólo puxou a corda e atou-a, afastando assim as pernas de
Mem até à máxima distância que era possível abri-Ias.
Hammond agarrou-se a Mem pela cintura e acrescentou o seu peso
ao das cordas.
-Acho que aguentam bem -comentou -, mesmo que ele esperneie
muito.
-Oh, oh, meu pé dói. Oh, oh, patrão -gritava Merrinon, mas
Hammond tirando o lenço do bolso e enfiando-o na boca de Mem,
abafou o ruído. Merimon podia tê-lo retirado, mas estava satisfeito
com a mordaça. Os seus gritos eram involuntários.
-Tu fica cómico, aí pendurado. Gostava que miss Lucrécia visse tu
aí -disse Napoleão.
-Diz pra eu quando for esfregá a pimentade -disse Meg.
-Espera. Primeiro tenho que o desancar. Eu digo-te quando chegar
a altura -disse Hammond; fez sinal a Pólo, que avançou e ficou à
espera.


Hammond passou as mãos pelas coxas e nádegas de Mem e achou-
as moles. Sabia que não podiam ser duras, porque Mem não fazia
trabalhos pesados. Apalpou-lhe a barriga que não ofereceu
resistência.
Meteu a palmatória na mão de Pólo e explicou-lhe:
-Agora fica longe dele, assim. E faz pontaria ao rabo. Se lhe dás nas
pernas, não dói nada, mas não lhe batas nas costas. E afasta-te da
frente. Não lhe batas na barriga ou nos testículos. Percebeste?
-Sim, siô, patrão, Parece que sim.
-Eu digo-te quando deves começar a bater e quando deves parar. -
Hammond retirou-se para uma baia, encostada à parede. Não se
sentia muito bem. -Começa -disse.
Pólo tomou balanço e levantou a palmatória, medindo a distância
do alvo. Tentava esconder a sua alegria, mas não conseguia
controlar as covinhas da face. Bateu levemente no rabo de Mem,
mal lhe tocando. Depois deu-lhe três fortes pancadas que fizeram



com que o corpo pendente oscilasse ligeiramente. Os gemidos de
Mem eram audíveis mas não podia gritar.
-Não tens mais força, Pólo? -perguntou Hammond. -Isso até o
Meg podia fazer. Tenho que chamar um negro mais forte.
-Eu é forte, patrão -respondeu Pólo. -Tou a experimentá. Tou à
procura do jeito.
-Não estás a acariciar um bebé; estás a castigar um negro. A
pancada seguinte fez Mem oscilar e soltar um gemido que o lenço
não conseguiu abafar. A partir daí, a palmatória caiu a intervalos
regulares, lenta mas firmemente, cada pancada seguida de urna
pausa em que a vítima descansava, e depois nova pancada. 0
impacto do couro pesado sobre a carne flácida produzia um som
cavo, como se a carne fosse inanimada e não suportada por um
esqueleto. Através do lenço passavam sons abafados,
incompreensíveis e distorcidos. 0 corpo de Mem torcia-se e ele tirou
os dedos do chão e agitou os braços. Urna vez, uma só, colocou as
mãos por trás dele, para proteger as nádegas, e apanhou a pancada
nas articulações.

Havia pequenas marcas da primeira dúzia de palmatoadas, mas o
tegumento aguentava. Finalmente, a carne contundida rompeu-se e

o sangue esguichou através dos buracos da palmatória. 0 mal-estar
de Hammond transformou-se em náusea. Disse a Pólo que
esperasse. Saiu e fechou a porta atrás de si.
0 corpo balouçante de Mem ficou absolutamente parado. 0 seu peso
oscilante tinha esticado tanto as cordas que Mem podia tocar no
chão corri as palmas das mãos, aliviando assim a tensão dos
tornozelos. Levantou as mãos, uma de cada vez, e apalpou o
traseiro ferido e sangrento.
Pólo riu-se.
-Nêgo, Lucrécia Bórgia devia vê tu. Eu acha que agora tu não presta
prá Lucrécia Bórgia, m4rica mais vai prestá. Tá mêrno lindo com o


sangue a corrê. Inda vai ficá mclhó quando patrão voltá. Espera pra
vê o que ele faz a ti. Não vai matá tu, de certeza. Mas vai fazê tu um
nêgo bom, um nêgo bom, um nêgo bom.
A boca de Mem contorceu-se, num esforço para responder, mas
Pólo não podia interpretar os sons que dela provinham.
Hammond voltou ao celeiro, muito pálido. Tinha esvaziado o
estômago e sentia-se melhor.
-É melhor dares-lhe mais -disse estoicamente, sentando-se na baia.
Pólo voltou ao ataque. A pausa tornava a dor mais forte. No
intervalo, a carne ferida começara a arder. Hammond sentia-se
impelido a parar com o castigo, mas não conseguiu. Se não se
tivesse sentido mal, teria ordenado a Napoleão que parasse, mas
sentia-se envergonhado com a sua fraqueza. Tinha que provar a sua
dureza, que considerava como coragem. Tinha de provar a si
mesmo que podia castigar uni negro. Logo que ousou fazê-lo,
mandou parar o castigo. Pólo descansou a extremidade da
palmatória no chão; Hammond tirou-lha da mão e pendurou-a num
prego da parede.
Meg tinha estado a observar o castigo, pasmado, extasiado. Não
sentia ódio por Metririon, mas era aquele o destino condigno de um
negro, conceito esse que recebera de Lucrécia Bórgia, que era
suficientern ente bajuladora para evitar os castigos mas pronta a
submeter-se a eles se isso apetecesse ao patrão. Se não fosse o favor
de Hammond, o próprio Meg poderia estar ali pendurado, ferido e
em sangue. Meg tinha gozado a ignomínia de Mem devido ao
castigo aplicado por Pólo, por delegação do patrão, e pensou na dor
extática e maravilhosa que lhe provocaria o impacto da palmatória
impelida pelas própria mãos de Hammond. Tinha de facto aspirado
a tal martírio, mas não previra que o patrão delegaria a tarefa a
outro escravo. Isso tornou-o mais sóbrio. Decidiu escapar-se ao
castigo que antes tinha solicitado.
-Pronto. Podes trabalhar -disse Hammond a Meg. Estava sério;
embora fosse o seu dever, sentia-se contrito. Imaginava a agonia e o


terror de Mem. Calculava o ardor terrível que a aplicação da
pimentade iria provocar; e não a teria aplicado se não fosse a fé que
tinha no seu poder curativo. Não era desumano, mas, tendo
causado um ferimento, tinha que o sarar.


Meg tinha que se esticar para aplicar a esponja e, quando a
espremeu, correu tanto líquido pelo seu braço como pelas feridas de
Mem. Mem contorceu-se ao sentir a queimadura excruciante da
mistura acre e tentou gritar. 0 próprio Hammond desatou as cordas,
baixando Mem de modo a poder apoiar-se sobre os ombros, de
modo que Meg tinha de inclinar-se em vez de se estender. A cabeça
de Mem estava esticada para a frente, mas ele mudou de posição, de
modo que a sua face esquerda se encostasse ao chão. Tinha
transformado o lenço numa rodilha molhada e cuspiu-o sem o
notar. Tê-lo-ia podido tirar com a mão, mas preferia que os seus
gritos fossem silenciados.


Meg regressou da caneca com a esponja novamente embebida em
pimentade, que escorreu sobre o posterior de Meirmon. Mem uivou
com a queimadura.
-Au ... au ... u ... u ... por favô, patrão. Chega, patrão. Au ... au ... u ...
Agarrou-se aos tornozelos de Meg, as únicas coisas que tinha à mão.
Precisava de agarrar-se a qualquer coisa. Os seus gritos
transformaram -se em gemidos.
-Por favô, siô, patrão, siô -murmurou, sem sentido. A pimentade
espessa corria pelas suas costas e misturava-se com o sangue que
escorria; penetrava-lhe na carapinha e descia-lhe pelo rosto.


Hammond disse a Pólo que soltasse as cordas e descesse Mem. Meg
soltou-se, aos pontapés, das mãos de Memnon em volta dos seus
tornozelos e 'correu para a tigela para ensopar a esponja no resto da
pimentade onde a pimenta assentara. Pólo desatou uma corda e
soltou uma perna, e o rosto de Mem arrastou-se lentamente pelo



chão quando o peso na outra corda o colocou na vertical. A perna
livre agitou-se francamente quando Meg voltou a espremer a carga
final de pimentade sobre Mem, que perdera a sensibilidade e não se
contorceu com a fricção da esponja. Pólo soltou a segunda corda e o
corpo de Mem caiu de costas no chão. Estava demasiado exausto,
demasiado esgotado, demasiado aliviado, para se voltar. Não fez
qualquer esforço para libertar os tornozelos das cordas desatadas,
Hammond abriu uma das portas e empurrou a outra. A claridade
inundou o celeiro e o feixe de luz caiu diagonalmente sobre o corpo
de Mem, ficando a cabeça sob o seu calor e as pernas na sombra.


Hammond, sem se voltar, dirigiu-se para casa. Meg seguiu-o,
olhando para trás, relutante em abandonar a carnificina.
Encontraram o Maxwell mais velho que caminhava, sobre as pernas
reumáticas, em direcção ao celeiro. Tinha andado impacientemente
de um lado para o outro, no varandim, até ouvir o grito de Mem e
não pudera aguentar mais.
-Como está ele? -perguntou o pai.
-Está bem, vai ficar bom.
-Tiveste problemas? Correu tudo bem?
-Tudo bem -respondeu Hammond rapidamente.
-Deitou muito sangue?
-Não muito.
-Como estás tu filho? Devia ter eu próprio feito isso.
-Estou bem, pai. Apenas cansado. Acho que sou fraco. Penso que
não fui talhado para espancar negros.
-Tem de ser feito ... às vezes.
-Tem de ser feito ... às vezes -ecoou o filho.


Faz bem a Mertirion. Estava a precisar. Estava mesmo, andava a
mentir, a roubar e a preguiçar por aí. É melhor esse rapaz te ir
arranjar um toddy, filho. Não quero toddies, pai. Apetece-me deitar.
Hammond subiu a escada, com Meg atrás. Mandou o garoto



embora, entrou no quarto, atirou-se para cima da cama, com o rosto
voltado para baixo e procurou alívio nas lágrimas.

Capítulo décimo

-Olha quem ele é! 0 filho de Warren Maxweli. Conhecia-te em
qualquer lado. És tal qual o teu pai! -disse amavelmente o major
Woodford. -Beatríz, oh Beatriz, anda ver o filho da Sophie
Hammond. Ela não me ouviu; não ouve muito bem. Vem daqui a
pouco. Como vai o teu pai?
-0 pai anda mal, do reumatismo. Mas está a melhorar bastante. Está
a passar o reumatismo para um negrinho -respondeu Hammond.
-É um bom veneno, esse reumatismo. Eu tive um ataque há dois
anos. Arnica, mandei um criado esfregar-me bem com arnica todas
as noites, e assim me vi livre dele. Engoli alguma, também.
-Arnica? Não me posso esquecer, para dizer ao meu pai.
-0 teu pai e eu temos que ter qualquer coisa. Chegámos à idade,
parece. Ele está na cama?
-Não, não, está a pé todo o dia, mas não pode andar muito ou
muito depressa e não consegue montar a cavalo.
-Têm um bom capataz?
-0 capataz sou eu. Pelo menos é o único que temos. 0 meu pai não
gosta de produzir algodão com capatazes, diz que eles dão cabo dos
pretos para conseguir uma boa colheita.
-É certo, mas temos que cultivar o algodão. É a única maneira de
nos mantermos vivos e de impedir que os nossos negros morram disse
o major.


-A nossa terra está esgotada. Mal se consegue cultivar algodão,
mesmo que se faça trabalhar muito os negros -replicou Hammond.
-Tenho ouvido dizer que vão muito bem em Falconhurst. Dizem
por aí que têm feito bom dinheiro -sugeriu o maior.
-Bem, vamos vivendo e pondo um pouco de parte. Não é mau, não
é mau.
-E tu é que diriges tudo. És ainda um rapaz. Tens que ter muito
pulso.
-Tem de ser. Não há mais ninguém.
-0 meu Dick é mais velho do que tu, mas não posso contar com ele
para nada. Tenho-o em Centerville a estudar leis com o juiz Beritley.
Vou fazer dele advogado, se conseguir. Não serve para mais nada.
Não assenta. Só rouba, só rouba, a mim, é claro.
-Isso é mau -admitiu Hammond. -Mas há-de assentar, quando for
mais velho.
-Tenho que vigiar os meus negros para impedir que Dick os roube
para os vender e pagar as suas dívidas de jogo. Levou-me dois
machos, no ano passado.
-0 Dick era aquele que tinha o bode, não era?
-0 bode? -repetiu o maior.
-Sim. Quando era pequeno, vim aqui com a minha mãe, para ver a
prima Beatriz, e havia um rapaz que tinha atrelado um bode a um
carro,
-Lembro-me disso. Era o Dick.'Recordas-te desse bode? Que
memória! Não tinhas mais de seis ou sete anos.
-Cinco. Era tudo aquilo de que me recordava de Crowfoot, até
chegar aqui, esta manhã, e ver a casa. Então lembrei-me de tudo.
Veio-me tudo à memória.
-Não vieste cá durante todos estes anos? Pois não. Um pouco
desleixado, não achas? A que devemos a honra de te ver agora? És
sempre bem-vindo, sempre bem-vindo, em qualquer altura, mas a
que devemos esta honra?



-Bom, vim para estes lados para pedir emprestado uni velho macho
mandingo ao senhor Wilson, da Plantação Coígn. 0 meu pai tem
duas fêmeas mandingas de primeira e quer acasalá-las com o macho
do senhor Wilson. 0 pai é louco por mandingos, julgo eu. Acha que
não há negros como os mandingos.
-São bons, de facto. Não há muitos dos puros, por aí. Acho que são
muito difíceis de caçar, em África. Não vieram muitos para a
América, Há muitos em Cuba, ao que oiço dizer, e na Jamaica.
-Mas não há maneira de os apanhar.
-Agora não. Que lei tão estúpida! Lembro-me daquele macho
grande do senhor Wilson. Um autêntico bruto. Era enorme e bem
proporcionado, mesmo para um mandingo. já deve ser velho, no
entanto. Talvez ainda não esteja gasto e as fêmeas sempre são
jovens e vivas. Vais a Coign pedí-lo, hem?
-E passei por Crowfoot para os visitar. São os meus parentes mais
próximos. Isto é, a prima Beatriz é que é.
-É certo, é certo. Tu e o teu pai são os únicos Maxwell que restam.
Era uma grande família; e os Hammond extinguíram-se, por
qualquer motivo; julgo que a minha mulher e os meus filhos são o
teu sangue mais próximo. És casado?
-Ainda não -disse Hammond, corando.
-Devias casar-te. Impede que o sangue se acabe-argumentou o
maior Woodford.
-É o que meu pai diz. Ando a ver. Não conheço muitas raparigas
brancas.
-É o que há mais, podes ir colhê-las ao bosque. És um homem como
deve ser e herdeiro de uma boa plantação. És um bom partido.

Hammond sentia-se pouco à vontade. A elegância da sala de
Crowfoot, a mobília de nogueira, entalhada, em estilo Império
Americano, a carpeta imitação de Aubusson, o grande piano
quadrado com as suas pernas maciças, os cortinados de damasco
amarelo nas janelas altas, embora usados, os retratos baços em


pesadas molduras douradas, tudo isto impressionava tanto o rapaz
que aumentava a sua timidez.

0 major ergueu-se do sofá cor-de-rosa e enfiou os polegares nos
bolsos do colete, abrindo a sobrecasaca e mostrando a pesada
corrente de ouro, com os seus sinetes, que usava sobre o estômago
arredondado.
-Vamos procurar a miss Woodford, ou seja a tua prima Beatriz. Vai
ficar muito contente. Não lhe digo quem tu és; deixo-a adivinhar.

Começou a andar, com as suas pernas curtas, como se tivesse
pressa, mas sem pressa alguma, em direcção à sala, com a mão no
braço de Hammond, que coxeava ao seu lado, Encontraram a
mulher a ler a Bíblia, cujas linhas acompanhava com o indicador,
movendo os lábios. Não os notou senão quando se aproximaram
dela e assustou-se quando viu o hóspede não esperado, Observou
Hammond da cabeça aos pés e depois olhou interrogativamente
para o rosto do major, fechando o livro e erguendo a corneta
acústica, com um só gesto.
-Quem julgas que é? -gritou o major para dentro da maquineta em
forma de funil.
A mulher olhou Hammond de alto a baixo com um ar que lhe
pareceu de hostilidade, ou, pelo menos de indiferença.
-Não sei -disse finalmente numa voz alta, sem ressonância, a voz
oca de quem não pode ouvir as suas próprias palavras.
-0 filho de Sophie Hammond, Hammond Maxwell -explicou o
major para dentro da corneta.
-0 quê? Não oiço -disse ela, procurando o rosto do maior. -Não oiço
bem -informou, voltando-se para Hammond, como se isso não
fosse evidente.
-Hammond. Hammond Maxwell. 0 filho de tua prima Sophie vociferou
o major.


A mulher levou algum tempo a apreender a informação inesperada.
Um sorriso espalhou-se lentamente pelo seu rosto, enquanto se
erguia, deixando cair o livro do regaço.
-Quem diria! Hammond, primo Hammond. Tenho muito prazer
em ver-te, mesmo muito prazer -exclamou, lançando os braços
pesados em volta dos ombros dele e aplicando um beijo sobre a sua
boca embaraçada. -Donde saiste tu?
-De casa -respondeu Hammond, sem que ela o ouvisse.
-Ora esta! -disse ela, dando um passo atrás mas agarrando
firmemente os ombros dele, com os braços estendidos. -Ora esta! 0
filho da Sophie. Devia conhecer-te, devia conhecer-te logo. És a
imagem do tioTheo. Não é parecido com o tio Theophilus, maior?
-Mais com o pai. É tal qual o Warren -disse o maior em alta voz,
mas foi forçado a repetir mais alto ainda.


Hammond sentiu-se desapontado com o estudo em castanhos que
era a sua prima. Era uma mulher forte, de meia idade indefinida,
com o cabelo baço, castanho-escuro, severamente penteado para
trás, em volta da sua face amarelada e carcomida, com os olhos cor
de âmbar. A parte superior dos lábios finos, curta e coberta com
uma penugem escura, na qual não tinham ainda aparecido pêlos
espetados, afastou-se para revelar uns dentes separados, também
acastanhados, que avançavam sobre o maxilar inferior. O'seu
vestido de lã castanha, bem espartilhado, era simples e severo.
Apontou a corneta na direcção de Hammond, mas ele, a princípio,
quase não falou para dentro dela. Ela apenas apanhou metade do
que ele disse, mesmo depois de ele repetir, mas isso pouco
importava, pois inreressava-lhe mais o que tinha para dizer do que
aquilo que Hammond dizia.
-Como ficou o primo Warren? -perguntou e Hammond explicou-
lhe o estado de saúde do pai.
-Quando vieste?



-Passei por aqui. Dormi, na noite passada, na taberna de
Centerville.
-Foi pena. Podias ter encontrado Richard e dormido com ele. Ele
está em Centerville a estudar leis -regozijou-se ela. -Vai ser
advogado. Que queres tu ser?
-Não sei. Apenas um plantador, julgo eu -disse Hammond.
-Devias fazer-te advogado e entrar na política, como o Richard.
Acho que um dia será governador, ou coisa parecida.
-É mais provável que venha a ser jogador ou ladrão de negros
interrompeu o maior Woodford, em tom normal.
-Que dizes? A mulher voltou a corneta para ele.
-Nada -disse o major, abanando a cabeça.
-É capaz de ser qualquer coisa sobre o Richard. Tens má vontade
sobre o pobre Richard. Richard não é muito forte. Tens que lhe dar
desconto. Sempre favoreceu o Charles. 0 Charles é o meu segundo
filho -explicou a Hammond.
-0 Charlie não é ladrão de negros, por enquanto -disse o maior,
num tom que Beatriz não podia ouvir.
-Charles é mais novo do que tu. 0 Richard é mais velho. A Sophie
teve-te entre os nascimentos deles.
-Eu sei -gritou Hammond.
-E a Blanche, a Blanche ainda é mais nova. Tem dezasseis anos. É a
mais novinha. Onde está a Blanche? já devia estar pronta para ir à
igreja.
-Deve estar pronta, penso eu. Provavelmente está a enfeitar-se um
pouco mais, se souber que o Hammond está aqui -riu o maior.
-0 carro está pronto? -perguntou Beatriz.
-Vai estar-disse o maior, acenando afirmativamente. -0 velho Wash
está a atrelá-lo.
-0 Charles vai com ela? -perguntou a mãe.
-Não se pode contar com ele. Prometeu vir a tempo, mas não se
pode contar com ele. Não gosta nada de Ir à igreja -disse o major.



-Alguém tem de ir com a Blanche. Não pode ir sozinha com aquele
cocheiro negro -observou a mãe.
-Porque não? Está segara como velho Wash. É velho de mais para
lhe fazer mal -gritou o major.
-Não parece bem. Vão falar, na igreja -declarou Beatriz. -Não
percebo porque é que o Charles tem de ir a Centerville ver o
Richard todos os sábados, e não pode estar em casa no domingo,
para levar Blanche à igreja. Aqueles rapazes não se entendem em
casa.
-A Centerville para ver o Dick? -troçou o maior Woodford. -0
Charlie rala-se tanto com o Dick em Centerville como em Crowfoot.
Ele vai a Centerville para ver os negros a lutar, todos os sábados. É
isso que ele vai ver. Adora lutas de negros.
-Não devias deíxá-lo ir -queixou-se a mulher. -Isso leva-o a jogar.
Qualquer dia começa a jogar e a culpa é tua.
-Jogar! Com que é que ele pode jogar? Com os poucos dólares da
mesada talvez, Não se pode impedir um rapaz de jogar um pouco disse
o major com complacência.
-jogar a dinheiro é um pecado, como dançar e jogar às cartas, e
praguejar. 0 irmão Ben Jones disse isso no último sermão. Eu ouvi-o
pregar
-citou ela, com autoridade. -já não vou à igreja. Não vale a pena.
Não oiço bem, por isso fico em casa e leio a Bíblia e deixo os meus
filhos lá irem. É o mesmo, penso eu. Mas jogar a dinheiro é um
pecado, tão certo corno eu ter nascido. Na Bíblia não diz nada sobre
lutas de negros. Isso está bem, se ele gosta, mas jogar a dinheiro é
muito mau. Onde há lutas de negros, há jogo e eu não quero o meu
Charles corrompido. 0 Charles é um rapaz inocente e bom, mas
acaba por se tornar como o Richard, se não o afastas daquelas lutas.
-Não posso conservá-lo em casa, a menos que lhe ponha uma
canga. Está sempre a pedir que lhe dê um macho jovem para fazer
dele um lutador. Eu não lho dou, pois não? Não quero os meus
trabalhadores arruinados, todos moídos de pancada, com cicatrizes


ou cegos. Dou-lhe um negro para lutar, tem que ter outro para
apostar, talvez para perder. Não podes dizer que eu o ajudo e o
protejo na sua fraqueza -desculpou-se o pai.
-0 Charles não vem, porque não vais à igreja com a Blanche?sugeriu
a mulher. -Ela está decidida a ir, depois de se vestir e
arranjar.
-Sabes tão bem como eu que tenho aquele culto para negros.
Conheces a lei e sabes que não pode haver culto dos pretos, a menos
que lá esteja um branco para ver se eles não pregam revolta.
-Talvez o primo Hammond gostasse de levar a Blanche ao culto? sugeriu
a prima Beatriz.
-0 Hammond está cansado-objectou o marido. -Andou ontem todo

o dia a cavalo, e levantou-se hoje cedo para cá vir.
-Não estou muito cansado. Ficaria encantado por ir, se soubesse o
que fazer -ofereceu-se Hammond.
-Faz como em qualquer outra igreja. Somos baptístas.
-Do que tu precisas é de uma boa esposa crista, primo Hammond prescreveu
Beatriz. -Que te faça ir à igreja. Que salve a tua alma e te
leve a Jesus.
-Que se passa com o Charles? já estamos atrasados. Nunca cumpre
uma promessa -queixou-se Blanche, que entrou na sala, atando o
chapéu com fitas por baixo do queixo. Ao ver Hammond, parou de
repente e expressou a sua surpresa com um "Oh!".
-Vem cá querida, e beijão primo Hammond Maxweli, o filho da
prima Sophie Hammond -pediu a mãe a Blanche. -Não o via desde
rapazinho, eras tu ainda um bebé. Veio da Plantação Falconhurst
para nos visitar. Vai levar-te à igreja. Vem cá e dá-lhe um beijo de
boas-vindas.
A rapariga corou mas não mostrou relutância. Avançou e o rapaz
envolveu-a pela cintura e aplicou um beijo embaraçoso na sua
pequena boca petulante.
-Não sabia que tinha um primo como tu -disse ela.
-Só segundo, só segundo primo -explicou Hammond.

-Ouvia a mamã falar da prima Sophie, mas julgava que ela tinha
morrido.
-Sim, morreu. Era a minha mãe.
-Aí está o Wash com a parelha -disse o major Woodford,
espreitando pela ]anela. -É melhor irem, para não chegarem tarde
ao culto. Penso que o Charlie já não vem. Havemos de falar quando
ele chegar.
Blanche beijou a mãe, que não se levantou. 0 maior levou-os através
do vasto hall e acompanhou o par até ao varadim da frente, onde
ficou a ver Hammond a ajudar, desajeitadamente, a rapariga a subir
para o banco de trás da caleche e sentar-se ao lado dela. 0 velho
cocheiro cor de chocolate, com a sua libré já gasta, apareciou o
recém-chegado com aprovação, sem voltar a cabeça nem parecer
olhá-lo. Notou a afabilidade do seu patrão e a animação da rapariga
e depreendeu que havia neles a esperança de incluir o visitante na
família.

Para Hammond, sentar-se tão perto de uma branca era uma
experiência nova. Achava Blanche bonita, bela, mesmo. Queria
achá-la. Ela era, efectivamente, fresca e jovem, e o traio sublinhava-
lhe a figura. 0 vestido esvoaçante, de um fino tecido de lã creme,
com pequenas rosas-musgo estampadas, bem apertado na cintura
por uma faixa cor-de-rosa, envolvia-a do pescoço aos tornozelos. 0
espartilho fazia espetar o peito e havia uma sugestão de seios fartos
e firmes por baixo dos folhos do vestido, As largas abas do chapéu
com flores estavam encostadas aos lados da cara pelas fitas que
atara por baixo do queixo.

0 que Hammond conseguiu ver de Blanche satisfez a sua
inexperiência. Apreciou a pequenez da sua boca e atribuiu certo
conceito de beleza ao facto de a parte superior do lábio ser curta;
esta ao contrário da mãe, ainda não estava coberta por um buço.
Achou adorável o seu pequeno nariz, adenóide e apertado. Achou


divinos os seus olhos azuis-claros, embora o aborrecesse que o
espaço entre eles fosse muito pequeno. Não eram obscurecidos
pelas sobrancelhas finas e pálidas, da mesma cor do cabelo. Como
poderia Hammond saber que os caracóis que espreitavam por baixo
do chapéu eram feitos com um ferro de cabelo? E como podia saber
que o alternar entre a palidez e o avermelhado das faces dela
resultava da sua presença?

Hammond não notou os dedos bulbosos, com unhas roídas que
saíam das mitenes de renda preta de Blanche. Estava encantado
com o odor da rapariga, um perfume fresco, semelhante ao do
gerâneos rosados e perguntou a si próprio se todas as brancas
cheirariam tão bem. Nada de cheiro a catinga.
Mas tinha de habituar-se à brancura da pele feminina. A sua palidez
não lhe parecia saudável, como que leprosa, fria. Reconhecia a
beleza das louras, mas não a apreciava. Mas sabia que, se tivesse
uma mulher, teria que tolerar que ela fosse branca.

Hammond apenas podia imaginar os seus contornos, por baixo do
vestido. Se fosse uma escrava, despia-a para a examinar, mas, como
era branca, tinha que se contentar com a imaginação da sua carne
branca. A ideia fê-lo sentir-se enojado. Era melhor não a ver. Seria
injusto duvidar de que ela fosse virgem; Hammond envergonhava-
se de ter permitido que a dúvida penetrasse no seu consciente.
-As pessoas não vão acreditar que és meu primo -observou
Blanche.
-Porque não? Sou teu primo.
-Eu sei que és, mas nunca falámos de ti, não sabia nada a teu
respeito.
-julgava que toda a gente sabia que éramos primos. Eu sabia. 0 pai
sempre me falou de ti e da prima Beatriz, desde pequeno.
-Acho que a mamã se esqueceu de que tu eras tão bem parecido.


-Eu era um miúdo da última vez que ela me viu. Só me lembro do
teu irmão Richard e do bode que ele atrelou. Deixou-me guiar um
carrinho -recordou Hammond.
-Lembras-de de um bode e não te recordas de mim. Achas isso
bonito? -disse ela, num jeito amuado.
-Eras um bebé, nessa altura. Como havia eu de saber que te ias
transformar na linda rapariga que és? Nunca mais me esquecerei de
ti -disse Hammond, tentando a galanteria.
-Todos vocês dizem isso. Não achas realmente que eu seja bonita.
-Acho pois. Muito bonita e muito simpática -confessou Ham.
-Acho que não faz mal deixar um primo dizer isso, mas eu sei que
estás a enganar-me.
-Não estou a enganar-te. É verdade.
-As pessoas na igreja vão pensar que vamos casar-nos -sugeriu
Blanche.
-Porque hão-de pensar isso? -perguntou Hammond, aliviado por
ver que BIanche lhe estava a facilitar a conversa.
-Por nos verem ir à igreja juntos. Não sabem que somos só primos.
Se um rapaz leva uma rapariga à igreja, toda a gente pensa que vão
casar-se. É assim mesmo.
-Se calhar vamos -declarou Hammond.
-Vamos o quê? -insistiu Blanche.
-Se calhar vamos casar-nos. Que achas? Hammond zumbia mais
perto da teia.
-Tens uma plantação boa? Uma casa grande?
-Não é grande coisa. Pelo menos não é bonita como Crowfoot, mas
temos muitos pretos. Ninguém tem negros melhores que o meu pai
-gabou-se Hammond.
-Negros! -disse Blanche, com desprezo.
-Posso construir uma casa, o tipo de casa que tu quiseres. Tenho
andado à espera de casar para construir uma casa, uma casa bonita.
A casa que temos chega para o meu pai e para mim. 0 pai ia
construir uma quando a minha mãe morreu.



-Não penso em casar-me, não penso muito nisso, -disse Blanche,
voltando ao assunto.
-Mas gostavas?
-Estás a pedir-me? Estás a fazer-me uma proposta de casamento?
-Claro que sim. Não sei que devo fazer. Sou tímido, acho eu.
-Não nos conhecemos há muito tempo, mas...
-Somos primos, não somos? É diferente.
-Acho que sim -concordou ela. -Pediste ao papá? Ele disse que
estava bem? Ou pensavas fugir comigo?
-Não lhe falei ainda. Não tive oportunidade; mas vou fazê-lo. Não
tinha pensado em fugirmos ... a menos que ele diga que não.
-0 papá é muito exigente. Não sei o que te vai dizer.
-Se ele disser que sim, tu dizes que sim?
-Acho que digo-Hammond não se moveu e Blanche acrescentou:
-Mas não me beijes ainda. Pede primeiro ao papá. Só se for um
beijo de primo. Acho que isso não faz mal.


0 desejo não estava ausente em Hammond, mas era o de abraçar,
não de a beijar. Contudo, quando pôs os braços em roda do corpo
da rapariga, ela colou os lábios aos dele e recusou-se a largá-lo. E
assim ficaram, nos braços um do outro, esquecendo os saltos do
carro sobre as estradas más, até que viraram uma esquina
arborizada e encontraram Charles que regressava a cavalo, de
Centerville. Não o viram até ele chegar mesmo junto deles.
Charies agarrou as rédeas do cavalo do lado de fora e Wash fez
parar a parelha.
-Que é isso, a abraçar a minha irmã? A frente de toda a gente.
Apanhada de surpresa Blanche sentiu-se desorientada.
-E o primo Hammond, Charles, o primo Hammond Maxwell. É
Maxwell não é? Não me lembro bem. Não faz mal os primos
beijarem-se, pois não?
-0 pai sabe que saíste sozinha com este homem, com este primo
Hammond, ou lá corno se chama?



-Claro que sabe. Tu não cumpriste a promessa de ir buscar-me para
me levar ao culto, e o primo Hammond disse que me trazia.
-0 pai não sabia que tu vinhas beijá-lo e abraçá-lo, penso eu -disse
Charles. -Saiam desse carro que eu desmonto e já lhes digo.


Hammond fez menção de sair e Blanche empurrou-o para baixo.
-Não lhe ligues, Quem pensa ele que é, para nos bater? Não era
capaz de bater num cachorrinho.
Provavelmente Blanche tinha razão. Além de ser jovem, Charles era
frágil, de pernas e braços compridos, ombros estreitos, peito metido
para dentro, pele anémica. Tinha os olhos tortos e era impossível
perceber ao certo para onde olhava. Apesar da sua magreza e dos
ombros curvados estava à vontade na sela e montava bem.
-Não quero sarilhos, primo Charles -disse Hammond -mas se quer
lutar, lutamos. A sua irmã e eu vamos casar-nos e eu gostava que
fôssemos amigos.
-E se contas ao papá que nos estávamos a beijar, conto-lhe o que tu
me fizeste -ameaçou Blanche.
-Isso foi há dois ou três anos; ninguém vai ligar a isso. Aliás, és tão
culpada como eu -respondeu Charles.
-Estou a avisar-te para não lhe dizeres. -Blanche sabia que a sua
vantagem teria efeito, tal como antes. -Tu também não dizes nada,
Walsh.
-Eu não tem nada pra dizer. Eu tava a guiá a parelha -respondeu o
cocheiro. -Eu não tem dois par de olhos.
-Bom, continua, e põe os cavalos a trote -ordenou Blanche. -já
vamos atrasados para o culto.
0 carro avançou e Charies dirigiu-se para Crowfoot.
-Esta estrada... -começou Walsh.
-Não interessa, não interessa. Deixa-te de responder. Eu disse a
trote -disse Blanche peremptoriamente.



Cerca de duas horas mais tarde, os cavalos, cansados, puxavam o
carro pela álea de ulmeiros e paravam em frente da mansão
Crowfoot. Quando Hammond e Blanche desceram, viram no
varandim o major Woodford em alegre conversa com um homem
de meia idade, grande, de bigode, com um aspecto autoritário e
importante. Um negro levava um pesado cavalo de sela para o
estábulo.
-Venham cá, venham cá -Insistiu o maior. -Lembra-se da Blanche,
coronel Butler? Ela e o primo foram à igreja.
-Claro, claro, lembro-me dela. Cresceu bastante. E está bem bonita.
Se eu fosse mais novo... -elogiou o homem grande.
-Este é o primo da minha mulher, o senhor Hammond Maxweli,
que veio visitar-nos. 0 coronel Jim Butler. 0 coronel Butler anda por
aí a falar sobre a eleição do general Jackson outra vez, no próximo
Outono. Vai falar em Centerville, amanhã à noite.
-Espero que vote no general outra vez, senhor Maxwell -disse o
coronel Butler. -Claro, nem se duvida.
-Não posso votar... ainda -respondeu Hammond, corando pela sua
juventude.
-Bem, pelo menos apoie o general Jackson; faça propaganda dele. É

o mesmo. Para a próxima vez já vota, penso eu, na Vanguarda. -0
coronel pôs de parte o assunto mais próximo do seu coração. -
Maxwell? Maxwell? Não tem qualquer relação com o Warren
Maxweli, perto de Benson?
-É filho de Warren -interrompeu o major. -Não imaginava que o
Warren tivesse um rapaz como este, pois não?
-já estou a ver a semelhança. Ora esta, não sabia que eram de
família, juro.
-Vai para dentro, tira o chapeu e prepara-te para o jantar. O jantar
está quase pronto -sugeriu o maior à filha. -Nós ficamos por aqui.
-Muito bonita, muito bonita -disse o coronel, vendo Blanche partir.
-Está interessado nela, não está senhor Maxwell? Veio fazer urna
visita? Veio fazer-lhe a corte, diria eu.

Hammond desejou não corar tão facilmente.
-Vamos para a estufa tomar um uísque antes de comer -sugeriu o
maior. -A minha mulher não me deixa beber em casa. É a própria
Temperança.
-É melhor não ofendermos miss Woodford -objectou o coronel
Butter.
-Não é ofensa. Ela sabe que eu bebo. Só não quer uísque dentro de
casa. Raio de ideia do pregador. A sua jurisdição não chega à estufa.
-Um copo caía bem. Só um copito -disse o coronel, enquanto se
dirigiam para a estufa.
-A visita do coronel Butter significa que terás de dormir com o teu
primo Charles -explicou o anfitrião a Hammond. -Espero que não
te importes. A cama é larga. Charles é limpo. Lavou-se todo ontem
para ira Centerville.
-Por mim está bem, só se Charles não quiser -declarou Hammond.
-Fomos apanhados de surpresa, com tantos visitantes ao mesmo
tempo. Geralmente há muitos quartos, mas o senhor Satherwait e a
mulher vêm cá passar a noite. São amigos de igreja da Beatriz e vão
para Mobile, creio eu. São muito piedosos.
-Não quero incomodar -disse o coronel Butler. -Posso ir para
Centerville.
-Nem pensar. Nem pensar -disse Woodford. -Há muito espaço. Só
os rapazes é que terão de dormir juntos, eles e as fêmeas deles.
-Acho que não preciso de fêmea -disse Ham.
-Claro que precisas, claro que precisas, depois da viagem. Amenos
que o teu pai ainda não te tenha iniciado -apressou-se o anfitrião a
dizer.
-A menos que o Warren Maxwell tenha mudado muito, o filho já
sabe para que serve uma fêmea -disse o coronel, bebendo o seu
segundo uísque.
-Não sei se o Charles sabe ou não. Tem uma para ele, mas não me
parece que a engravidasse. 0 Charles é fraquito -disse o maior.



Está atrasado no crescimento -acrescentou. -0 avô dele morreu de
tísica galopante e o Charies caminha para lá. Está sempre a tossir.

0 uísque aguçou os apetites para o jantar, que foi servido numa
sala,de jantar que impressionou Hammond tal como a sala de
visitas. A casa de jantar, porem, era usada todos os dias, enquanto a
sala era reservada para ocasiões especiais. Também ali o Estilo
Império degenerara por excesso de ornamentos, A pesada toalha
branca e a porcelana com rebordos floridos, contribuíam para dar
uma nota festiva a uma ocasião solene.
Uma rapariga clara, ainda,imatura, agitava o leque de penas de
pavão, com os olhos fixos em Charies. 0 coronel Butler, o convidado
mais velho, convidado a pronunciar a bênção dos alimentos, baixou
a cabeça e murmurou qualquer coisa que culminou num "amén"
que todos perceberam porque era inevitável. 0 criado encarregado
de tratar da comida era um preto de meia idade. Era ajudado pelo
velho Walsh, o negro que conduzira os jovens à igreja.
-De que falou o irmão Ben Jones no sermão desta manhã? -quis
saber a senhora Woodford, do seu extremo da mesa, levando a
corneta ao ouvido.
-São sempre inspiradores os sermões do irmão Jones.
-Qualquer coisa sobre o jogo e outras coisas -gritou Blanche, através
da mesa.
-Fez um sermão com certeza. Ninguém se lembra?
-Fez um sermão sobre deitar muita coisa fora por uma capa sem
valor. Não sei. Não fazia muito sentido -disse Blanche em voz alta,
em direcção à mãe. -E -acrescentou, olhando para Charles -o irmão
Jones diz que quem tem negros para lutar vai directo para um mau
lugar, porque não se pode ter negros para lutar sem deixar de jogar
a dinheiro.
-Exactamente o que eu disse, o que eu disse esta manhã mesmo.
Deus seja louvado -assentiu Beatriz. -Não é que tenha mal, mas
leva ao jogo.


-Penso que Hammond não se mete nessas coisas -disse o major
Woodford, à espera de uma opinião.
-Não tenho tido lutadores meus, mas estive em Benson a vê-los.
Entusiasma. Não vejo que tenha mal.
-Se tivesses um lutador, nunca mais te falava, Hammond Maxwell declarou
Blanche.
-Então, filha -avisou o pai. Hammond limitou-se a baixar a cabeça
e ergueu os olhos, com um sorriso confiante.
-Bem, não falava -disse ela francamente amuada.
-Continuávamos a ser primos, penso eu -gracejou Hammond. A
conversa desviou-se para o mercado do algodão, o mercado de
negros, o general Jackson, galinha frita, más estradas, e o Texas.
Beatriz mantinha um sorriso fixo, de quem nada compreende, e
seguia com o olhar cada pessoa que falava, mas desistiu de ouvir o
que se dizia, As outras pessoas em volta da mesa, em breve se
cansaram de gritar e passaram a falar em tom natural.


0 coronel Butler, depois de todos se levantarem, dírígiu-se à anfitriã
e, à terceira tentativa, conseguiu fazê-la compreender quando
apreciara aquela excelente refeição.
0 major Woodford levou o coronel Butler para ao salão,
ostensivamente para falar com ele, mas, na realidade, apenas para
exibir a grandeza da sala, que o coronel desprezou com as palavras
"é bonita, é bonita". 0 maior já estava convertido à democracia
jacksoniana, e o coronel, sem outro assunto, concordou com os
comentários do major até não conseguir controlar mais o seu desejo
de dormir e passou pelo sono, na sua cadeira.


0 maior Woodford, irritado com a falta de interesse do seu
convidado pela sua casa e pela sua conversa, resolveu ir à salinha e
interrompeu o namoro entre Blanche e Hammond, que gritava
Intermitente para Beatriz, que o não compreendia.



Blanche levantou-se e disse, sem rodeios.
-Penso que tu e o papá querem falar. Quando ela saiu, Hammond
aclarou a garganta que a dúvida secara. Olhou para o maior e,
finalmente, conseguiu dizer:
-A prima Blanche e eu gostamos um do outro.
-Não estás a ir muito depressa, meu rapaz? -disse o major, sorrindo.
-Só a conheces há três ou quatro horas.
-Bom, somos primos, como sabe -objectou Ham. -Parece ser muito
boa rapariga e bem bonita.
-Bern criada. Uma coisa devo dizer, a Beatriz é uma boa mãe.
Severa mas boa.
-Para dizer a verdade, gostava de arranjar mulher. 0 pai acha que
eu devia casar ... assentar e arranjar um filho.
-Bom conselho para um jovem. Impede-o de fazer asneiras concordou
o major.
-E eu gosto da prima Blanche. Gostava que me deixasse namorá-la disse
Harrimond, à experiência.
0 outro tinha o peixe no anzol e começou a puxá-lo.
-Não namoraste nada esta manhã, na ida para a igreja?
-Para falar verdade, disse-lhe que gostava de andar de carro corri
ela. Para lhe perguntar se ela gostava de mim -admitiu Hamniond,
que não sabia o que Charies podia ter dito quanto ao encontro na
estrada.
-Aquela rapariga foi criada com tanta inocência que não sabe de
quem gosta. Gostaria de qualquer jovem que usasse calças.
Pela entoação, o pai transformou o sarcasmo num elogio.
-Eu quero mesmo casar com ela. Gosto dela. Percebi isso logo que a
vi, com aquele vestido tão bonito.
-Já lhe perguntaste se quer?
-Bom, mais ou menos. Ela diz que lhe peça a si. Diz que gostava de
casar comigo, mas eu tinha de pedir-lhe.



-Nem sei o que responda -meditou o pai. Tornou-se gravemente
sentimental. -Eu sei que a Blanche já tem idade para casar, mas é
tão criança, ainda. Inocente e pura como um bebé.
-Lá isso é verdade -concordou Hammond.
-E eu nada sei a teu respeito, excepto as tuas origens. Uma boa mãe,
um bom pai. Não muito religioso, mas bom homem. Eu também
não tenho religião, excepto a de minha mulher. Não sei como vais
tratar a minha rapariga.
-Vou tratá-la bem. 0 melhor que é possível. 0 melhor que eu saiba.
-Não sei se ela gostaria de viver tão longe da mãe. Não tens uma
casa muito boa, em Falconhurst, pois não?
-Tenciono construir uma casa nova, logo que me case.
-E podes? Quero eu dizer, tens dinheiro para isso?
-Claro que sim, o meu pai tem. É tudo dele, mas eu dirijo o lugar;
tenho o que quiser.
-Governam-se bem, hem? Boas colheitas de algodão?
-Não muito algodão; negros. A terra de Falconhurst, como toda a
terra do Alabama, está muito esgotada. Onde o pai arranja dinheiro
é a comprar negros jovens e fortes e a criá-los para o mercado de
Nova Orleães.
-Falconhurst tem bolha?
-Bolha?
-Hipoteca?
-Oh, não senhor. Não temos hipotecas sobre a plantação.
-E sobre os negros? Também não há hipotecas?
-Não senhor. Não devemos um cêntimo na compra de qualquer
negro, nem de coisa alguma. -Hammond ficou chocado com a ideia
das dívidas. -E todos os negros que temos são fortes e saudáveis,
mais de duzentos. Na maioria são jovens mas estão a crescer bem e


o mercado vai subir.
-Bom, tenho que pensar nisso, falar com a minha mulher. Acho que
vamos dar-te um sim. 0 casamento é assunto sério. Penso que é
melhor ser contigo que com os outros.

-Agradeço-lhe muito.
-Lembra-te que ainda não te disseque sim, mas penso que o farei-e


o major fez uma pausa. -Penso que, se eu te ajudar tu também me
ajudarás.
-Em tudo o que eu puder -afirmou Hammond.
-Ando aflito de dinheiro, o banco está a fazer pressão, etc., só até a
colheita estar vendida. É tudo. Eu pago-te depois da colheita do
algodão.
-Que ainda não está plantada -disse Hammond.
-Mas vai estar, e vai ser boa, este ano, tenho a certeza. já tive três
anos maus. É a altura de ter uma boa colheita.
Hammond não conseguia compreender este raciocínio, mas não
podia perder a rapariga.
-Depreendo que quer que o meu pai lhe empreste dinheiro. Eu não
tenho nenhum meu.
-Bem, sim. É Isso Mesmo.
-Quanto quer?
-Preciso de uns cinco mil dólares, para pagar o juro do que devo ao
banco, e para preparar Blanche para o casamento.
-E um monte de dinheiro, cinco mil dólares. Duvido que o pai
possa dispor de tanto dinheiro.
-Pode pedir emprestado, não pode? Tem bom crédito. Dizes que ele
nada deve.
-Acho que pode. Mas não quer. Tem medo de dever.
-E só até à colheita -sublinhou o major,
-Porque não pede o empréstimo ao banco? -perguntou Hammond.
-Tem uma boa plantação e muitos negros.
-Custa-me dizê-lo, mas Crowfoot já está hipotecada por mais do
que o seu valor e cada negro que possuo está hipotecado por aquilo
que vale. Estou mesmo com a corda na garganta. 0 banco pode
arruinar-me de um momento para o outro. Parece que o teu pai
podia ajudar um velho amigo e um primo a morrer -choramingou o
major.

Hammond devia ter sabido que a hospitalidade de Crowfoot, aberta
e francamente oferecida, era sempre acompanhada de um pedido
de empréstimo do seu proprietário. Não que Woodford não
precisasse de dinheiro, e que não fosse capaz de fazer um
empréstimo a outrém tão livremente como o pedia a um convidado,
se estivesse mais abonado. Não conhecia a frugalidade. Não
conseguia compreender a mesquinhez ou mesmo a cautela. Pedir
transformara-se num hábito. Cada convidado era avaliado pelo
valor do empréstimo que se lhe conseguiria extrair, e Hammond
Maxwell parecia-lhe caça grossa. Além disso, tinha-o fisgado; podia
recusar-lhe a mão da filha.
0 maior não tinha qualquer intenção de não dar o seu
consentimento àquele casamento que era exactamente aquilo que
esperava conseguir, mas Hammond não sabia como o seu anfitrião
era exigente, quanto a um marido rico para Blanche.
0 que o pai avaliou mal foi a profundidade da paixão de Hammond
por Blanche. 0 rapaz queria uma mulher, ou antes, o pai
convencera-o a casar-se e sentia-se atraído para Blanche porque não
conhecia mais candidatas apropriadas. Tinha-se apaixonado tanto
pela rapariga corno pelo vestido de lã, pela casa aparatosa, pela
vida atraente, e, sobretudo, pelo sangue dos Hammond, que toda a
vida tinha ouvido exaltar.
Hammond já tinha feito uma rápida exploração às imperfeições que
pudessem existir por baixo do vestido bonito. A casa e a vida
tinham perdido parte do seu encanto, ao saber que a casa estava
hipotecada e a vida afundada em dívidas. Toda a graça daquela
maneira de viver era uma bolha prestes a rebentar. E, quanto ao
sangue dos Hammond, ali estava a sua prima Beatriz, surda, pálida,
toda em tons de castanho, e tinha observado Charles, de peito
côncavo, cheio de borbulhas, com os olhos tortos, ambos
Hammond. Eram brancos, e não podiam de modo algum ser
comparados com os pretos, mas Warren Maxwell tinha inculcado


no filho a noção dos defeitos físicos dos animais humanos. Ele
próprio, Harrimond, coxeava.
Não tinha mudado de ideias quanto a casar corri Blanche, mas, se o
namoro fosse rejeitado, não se sentiria angustiado. Não tinha
pensado em fazer um casamento por compra, mas era isso o que a
proposta de Woodford implicava, urna vez que o devedor não teria
desejos nem possibilidades de pagar o empréstimo. Isso era
evidente, mesmo para Hammond.
Cinco mil dólares, o preço de quatro ou cinco machos fortes. Pensou
se Blanche lhe interessaria a esse ponto.
Hammond contemporizou:
Cinco mil dólares -fez rolar as palavras sob a língua. -Não se
arranjaria com menos? Pagando só uma parte?
-Acho que preciso disso tudo. Talvez se pudesse encurtar um
pouco, mas ficava apertado -concedeu o maior.
-Talvez o pai lhe possa avançar metade disso. Tenho que lhe
perguntar. Acho que ele o fará. Faz quase tudo o que eu lhe digo.
-Podia dar-lhe nota de dívida. Isso tem valor.
-Com certeza; até às colheitas -acrescentou Hammond, fingindo
que a negociação era um empréstimo.
-Então posso contar com isso? -Woodford desejava acabar com o
assunto. -Quando achas que ele mandaria o dinheiro?
-Logo que chegue a casa e o convença a fazê-lo.
-Acho que podes casar com a minha filha, então -o pai voltou
ruidosamente ao tema anterior. -Pareces-me um rapaz bom,
generoso, às direitas, capaz de tomar conta de uma rapariga.
-Posso tornar conta dela, conte com isso.
-A Blanche e o Hammond vão casar-se -gritou o maior para
Beatriz, que estava mergulhada nos seus pensamentos.
Ela levantou a corneta acústica e perguntou:
-0 quê?
-A Blanche e o Hammond vão casar-se -gritou o marido outra vez.
-Estão apaixonados.



-Não. Beatriz recusava-se a acreditar.
-Sim -garantiu-lhe o marido.
-Mas o primo Hammond acaba de chegar.
-Isso não importa. Um homem não leva muito tempo a decidir-se
por uma coisinha bonita corno a nossa Blanche.
Beatriz começou a chorar; levantou-se e beijou Hammond,
continuando a chorar nos seus braços.
-Vais ser bom para ela? -perguntou. -Eduquei-a no receio do Senhor
e há-de ser uma esposa boa e fiel. Talvez te encaminhe para Jesus. É
tudo o que eu peço, que ela te leve para Jesus.


Hammond soltou-se de Beatríz logo que o conseguiu, mas teve de
suportar o aperto da mão rechonchuda do maior e a sua entusiástica
pancada no ombro.
-Que tal te sentes, fisgado? -riu Woodford, sufocadamente.
-Muito bem. -Hammond afastou todas as dúvidas. -Muito bem repetiu,
para dar maior ênfase.
-E o Hammond vai emprestar-me dois mil e quinhentos dólares acrescentou
o major Woodford, num murmúrio estentório para
dentro da corneta.
Beatriz assentiu, para mostrar que ouvira e murmurou, com
delicada indiferença.
-Muito bem. Muito bem. Unia senhora não se interessa por
dinheiro.


Capitulo décimo primeiro


Naquela noite de domingo, Blanche e Hammond, afastados do
grupo, que agora incluía também os antiquados e devotos


Satherwaits, planeavam a sua vida em comum. 0 maior interesse de
Blanche residia na casa que Hammond ia construir para ela; o dele
no herdeiro que ela lhe daria, sobre o qual, devido à inocência de
Blanche, não era delicado fazer insinuações.

Blanche precisou de contar pelos dedos para marear a data propícia
para o casamento e escolheu o dia 8 de Maio, mais ou menos daí a
dois meses. Era difícil para Hammond afastar-se da plantação
naquela altura, mas ser-lhe-ia igualmente difícil durante todo o
Verão. A sementeira estaria pronta, era cerro, mas a apanha das
ervas ruins entre as plantas tenras do algodão exigia supervisão dos
trabalhadores. Poderia largar o trabalho por alguns dias para as
festas do casamento, mas a ideia de urna lua-de-mel prolongada
estava fora de questão. Prometeu levar a noiva a Nova Orleães
depois da colheita, no Outono, e depois de ter passado o perigo da
febre-amarela, o perene terror daquela cidade no Verão.

Hammond nada disse sobre um anel para selar os esponsais e
Blanche achou necessário recordar-lho. Ele não conhecia o anel de
noivado, que mulher alguma esquece; mas depois de ela lho
recordar e explicar para que servia, prometeu cumprir o costume. 0
joalheiro de Benson teria que encomendar um anel de Nova Orleães
ou Nova lorque, e Blanche teria de ter paciência até lho poder
mandar. Ela desejava um diamante que não havia, decerto, numa
cidade como Benson. Hammond não fazia ideia do custo desse
bugiganga, mas dar-lho-ía -certamente. Dar-lho-ia.

Blanche mostrou-se mimada para com Hammond, ou fingiu certo
mimo, perante o adiamento da viagem de lua-de-mel, o atraso na
obtenção do anel, a sua decisão de partir no dia seguinte, a sua
pouca atenção por ela e, finalmente, o ardor dos seus beijos quando
a levou para o varandim, para se despedir dela. 0 mimo era, de
facto, o ceptro com que ela governava Crowfoot. Quando queria


uma coisa, amuava até a conseguir. E quando queria evitar uma
tarefa, um dever ou Lima obrigação, choramingava, até outra
pessoa a fazer.

Blanche estava encantada com as suas perspectivas. Todos os seus
pretendentes locais, eram campónios; pior, eram pobres. 0 seu
noivado era romântico, mesmo fascinante, porque ele era um
estranho, um homem vindo de locais estranhos, um homem do
grande mundo que estivera em Nova Orleães e a quem ela fizera
perder a cabeça no seu primeiro encontro. Todos esses atributos
eram pontos de que se poderia gabar em Centerville e em Briarfield.
Faltavam ainda quatro, mesmo cinco anos para ser considerada
uma solteirona, mas uma rapariga solteira de dezasseís anos
encarava a hipótese e receava-a. Blanche sentia-se salva, agora. Pelo
menos, se as coisas corressem mal e o casamento não chegasse a
fazer-se, ela teria tido o seu período de romance e poderia passar a
vida numa aura de amor falhado, gozando a compaixão de todos os
que conhecessem ou advinhassem os pormenores. Mas, apesar da
sua felicidade, Blanche e tinha já previsto dominar o seu
apaixonado, através da sua petulância.

Hammond, por seu lado, estava agradavelmente satisfeito com o
seu negócio, porque tinha sido um negócio. Podia bem enfrentar a
petulância de Blanche, na silenciosa consolação da ideia de que ela
fora comprada e tinha que render. Ela seria dele, poderia dominá-la
como quisesse. Claro, era branca e era uma senhora, neta de Orestes
Hammond, irmão do seu defunto avo, e tencionava tratá-la bem,
trabalhar para ela e dar-lhe tudo, na medida das suas forças e dos
seus meios. Contudo, o seu método de a adquirir deixava-o livre
para combater a petulância dela pela firmeza, as lágrimas pela
dureza. Hammond não previa essa necessidade e o conceito era
portanto nebuloso, mas deixava-o satisfeito. Era um baluarte contra
a possibilidade de ser ameaçado.


Tinha sido um dia de grande excitação. 0 major Woodford e o
coronel Butler tinham feito frequentes excursões à estufa; os idosos
Satherwaits estavam cansados da sua viagem; Beatriz estava
aborrecida pela sua impossibilidade de ouvir a conversa;
Harrimond tinha dormido numa cama cheia de covas, na taberna,
na noite anterior; Charles ansiava por conversar com Hammond; só
Blanche estava relutante em retirar-se cedo. 0 grupo era demasiado
polido para ir para a cama, simplesmente, o que era vagamente
indelicado.

0 quarto em que Charles e Hammond iriam dormir era o único do
rés-do-chão, pelo que o anfitrião pediu desculpa. 0 motivo era mais
a localização do que a sua fealdade. Era um quarto grande,
mobilado com móveis quase todos de nogueira, que haviam
sobrado do mobiliário da casa antiga quando a nova fora
construída, mobiliário bastante bom para crianças destruidoras.
Estava atravancado com uma dobadoira partida e um guarda-fatos
extra, com o espelho partido, uma pesada mesa redonda coberta
com roupas cheias de poeira, já muito gastas ou fora de moda, duas
cadeiras aleijadas, além do mobiliário do quarto que era utilizável,
embora feio, mas, no entanto, tão bom como o do quarto de
Hammond, em sua casa. A carpeta era feita de trapos, exactamente
como todas as de Falconhurst. Não havia cortinas na cama larga que
tinha a armação para um dossel. Exceptuando as coisas velhas, que
cabiam bem, sem incomodar, aquele quarto informal não era
desconfortável. Abria para a sala de estar, e tinha uma porta que
dava para o varandim lateral.

Quando Hammond entrou, Charies estava despido até à cintura,
reclinado no leito, com os pés, de meias calçadas, pousados no chão,
demasiado cansado ou demasiado preguiçoso para retirar o resto do
vestuário. 0 seu comportamento para Hammond tinha mudado
completamente desde o encontro matinal na estrada. A sua


afabilidade aumentara com a declaração de Hamiriond de que tinha
visitado Nova Orleães e não desaprovava as lutas de negros,
assunto sobre o qual Charles desejava conversar corri o sei]
convidado.
-Que lado da cama prefere? -perguntou,
-Qualquer me serve -respondeu Hammond.
-Eu fico sempre deste lado. 0 Dick dorme aí quando está em casa.
-0 seu pai diz que o primo Dick está a estudar leis em Centerville disse
Hammond. -Deve ser muito esperto, para ser advogado. É
preciso estudar imenso.
-Dick não vai ser advogado. 0 estudo das leis é apenas uma
desculpa.
0 Dick está mas é a estudar para ser um jogador.
-É mais velho que o Charles, não é?
-É, é mais velho, e o favorito da mamã. Tem tudo. Eu nunca
consigo nada. Até tenho que usar os fatos velhos do Dick,
arranjados para mim. 0 pai é pobre, muito pobre -confessou. Além
disso, o Dick é mais bonito do que eu. Muito diferente. É mais forte,
mais bem porporcionado.
-Você ainda não acabou de crescer e de formar o seu corpo -disse
Hammond, com indulgência. -É bastante grande, pelo menos
bastante alto para a sua idade.
-E Dick olha a direito. Não é vesgo, como eu. A compaixão de
Hammond não lhe inspirou qualquer resposta satisfatória e o
assunto ficou por ali, após um ataque de tosse de Charles.
-Namora a Blanche? -perguntou o irmão, abruptamente. -Pensa
casar com ela?
-Penso sim -confirmou Hammond.
-Simpatizo consigo, mesmo que não fosse meu primo. É meu
amigo, não é? Então, deixe a Blanche em paz.
-0 seu pai disse que eu posso namorá-la. Ele acha bem. Porque está


o Charles contra?

-Já lhe disse que sou seu amigo. Ela é um veneno. A Blanche é uni
veneno.
-É sua irmã. Não devia falar dela assim -disse Hammond, tentando
enverg9nhar Charles.
E minha irmã, e conheço-a, sei tudo acerca dela. Digo-lhe que ela
não o vai deixar ter negros para luta.
-Quem disse que eu quero ter negros para luta?
-Toda a gente quer, desde que tenha pretos. Ao jantar, pareceu-me
compreender que não achava mal -a confiança de Charles estava
abalada.
-Para dizer a verdade, quero ter um lutador e a prima Blanche não
vai impedir-me de ter um. Ando à procura. Hei-de encontrar um
bom, um dia destes.
-Julguei que tinha muitos pretos. Dizem que é rico.
-Os nossos pretos não servem para lutar. Tenho que arranjar um
rapaz grande e vigoroso. Não quero ter um se não for melhor que os
que os rapazes levam a Benson. Quero um lutador que dê cabo
deles todos.
-Se são bons de mais, os outros não podem fazer-lhes frente. Pegam
tios seus machos e levam-nos para casa.
-Os rapazes de Benson são muito desportivos. Têm pretos muito
bons e não se importam de os mandar para a luta. Eu quero ganhar.
-Eu gosto é de vê-los lutar, quer ganhem quer percam -disse
Charles.
-Foi o que estive a fazer esta tarde, enquanto conversavam. Levei
dois pretos para trás da reserva de madeira, onde o pai não podia
ouvi-los e pu-los a lutar. Claro, não os deixei morder nem arrancar
olhos; só lutar e esmurrarem-se. Não queria que o pai descobrisse.
Não lhe conta, pois não?
-Claro que não. Não tenho nada com isso. Não são pretos meus.
Ham lavava as mãos do assunto.


-Um dos machos é muito bom, alto e claro. Arrancou um dente ao
outro e quase lhe arrancou o dedo grande do pé com uma dentada,
antes que eu o pudesse parar.
-Isso arruína o outro, não acha? É só um trabalhador do campo. 0
pai não nota até o pôr a trabalhar. Penso que o dedo há-de sarar. -
Charles afastou o assunto. -Gostava de poder escapar-me com
aquele mulato e levá-lo a Centerville, no próximo sábado. Posso
dizer-lhe uma coisa e não vai contar a ninguém?
-Já lhe disse que não sou linguareiro -prometeu Hammond.
-Bem, ganhei ontem à noite sessenta e cinco dólares em Centerville,
a apostar em três combates. Ganhei todos. Dick ganha mais de cem.
-É muito bom -disse Hammond, com indiferença, lutando para
descalçar a bota da perna rígida.
-Não quero que o pai saiba, e a Blanche ainda menos. Obrigava-me
a dar-lhe o dinheiro. Traz suspensa sobre a minha cabeça uma coisa
que eu fiz há muito tempo. Ela é veneno, digo-lhe eu. Deixe-a em
paz. Quero ficar com o meu dinheiro para apostar. Porque será que
as raparigas não vêm?
-Charles respondeu à sua própria pergunta. -Aquela Sukey está
com medo de si.


Dirigiu-se à porta que dava para o exterior para chamar as raparigas
e descobriu-as, agarradas uma à outra num canto do varandim, à
espera que as chamassem.
-Entrem e dispam-se -ordenou-lhes. Hammond sentia-se
embaraçado, dividido entre as suas dúvidas sobre se deveria
receber uma fêmea na sua cama naquela casa, e a exibição da sua
falta de virilidade perante o outro.
-Acho que esta noite não preciso de fêmea. Estou muito cansado
contemporizou.
-Não faz mal. 0 pai disse para lhe dar uma fêmea -insistiu Charles,
enquanto as duas raparigas despiam as roupas simples,
negligentemente.



-Aquela Sukcy é alta e magra, mas o Dick acha que é muito boa. É
do Dick, quando ele está em casa. Não há virgens por cá, excepto
umas pretas que ainda não estão maduras.
-A Sukey é boa. Não és Sukey? -perguntou Hammond sem
entusiasmo.
-Sim, siô, patrão -admitiu ela, timidamente.
-Claro que não é tão arredondada como a sua, não tem tanta carne Admitiu
Hammond.
-Esta, Kary está a engordar. Tens de comer menos -comentou
Charles, passando a mão pelo flanco da rapariga e dando um
beliscão na sua nádega ampla. -Se quiser trocar... -sugeriu
hospitaleiramente, mas não escondeu a sua relutância e Hammond
declinou a oferta.


Kary era baixa e larga, com cara de lua cheia, pescoço curto e gordo.
Tinha pés grandes e agitava-se provocantemente, ao andar. Gostava
de ser a concubina do seu jovem patrão e Hammond achou-a
presumida, com demasiada familiaridade. Ele não teria tolerado as
suas intimidades gratuitas.
Hammond sentou-se na cama e pediu a Sukey que o ajudasse a
despir-se.
-Sou aleijado; bem vê -explicou a Charles. Hammond não viu onde
ele fora buscá-lo nem percebia para que servia, irias Charles
estendia-lhe um feixe de varas, atadas com um pedaço de pano
rasgado, para fazer um cabo.
-Quer usar isto? -perguntou Charles, indicando Sukey, que se
encolheu ao ver o feixe.
-0 que é isso? -perguntou Hammond.
-Que lhe parece? É um batedor de vime. Quer usá-lo na sua?
-A Sukey não fez nada. Para que hei-de castigá-la? -perguntou
Hammond, confuso.
-Pensei que quisesse. 0 Dick faz-te isso, não faz Sukcy?
-Faz sim, siô -conformou a rapariga.



-Díck ensinou-me a fazer isso. Faz um homem sentir-se bem,
parece. Deita-te. -Charies voltou-se para a gorda Katy e apontou
para a cama.
-Volta-te. Katy gosta; não gostas Katy?
Não teve resposta e Charles foi forçado a repetir a pergunta.
-Sim, siô, patrão, siô. Eu gosta, se tu quer. Sim, siô, patrão, siô, por
favô, com muita força não, siô, patrão, siô.
0 tom de Katy desmentia a sua confirmação. Ela conseguiu
aguentar-se até a terceira pancada com o chicote múltiplo, mas
depois não pôde manter-se calada por mais tempo.
-Oh, siô, patrão, siô, não, com isso não. Patrão, siô, patrão, siô. Ob
... o ... o ... o! -gritou finalmente.
Charles pegou numa das suas meias, aquilo que estava mais à mão,
e enfiou-a na boca de Katy, continuando o castigo.
Hanimond sentia-se irritado com o que via. 0 seu primeiro impulso
foi arrancar as varas da mão do rapaz franzindo e dar-lhe com elas
nas pernas nuas. Não foi a violação da hospitalidade que o impediu,
pois sabia que o major Woodford não apoiaria que o seu filho
infligisse dores escusadas à rapariga inocente, mas a sua relutância
em demonstrar que existia qualquer autoridade superior sobre um
negro do que os caprichos do seu patrão. Não queria arriscar-se a
inculcar a revolta. Além disso, sabia que a sua interferência irritaria
Charies que, em ocasiões subsequentes, vingaria em Kary o seu
ressentimento pelo acto de Hammond.

Hammond observou, pois, o castigo, pedindo:
-Páre, Charles. já chega. Está a magoá-la. Charles riu, ao ver a negra
aninhar-se corri medo.
0 castigo não durou muito tempo nem foi muito forte. Hammond
calculava que teria sido doloroso, no entanto, a pele não tinha
quebrado nem havia vergões. Katy parou de chorar no momento
em que ficou certa de que Charles terminara. Passou o braço pela
cara, para limpar as lágrimas e retirou a meia da boca.


-Porque faz isso? -perguntou Hammond. -Katy não fez nada.
-Não sei. Gosto de o fazer. Faço isto todas as noites, não faço, Kary?
E, de facto, Charles parecia sentir-se melhor. Endireitara os ombros,
os olhos tortos adquiriram um brilho de confiança, e a sua estatura
parecia maior. 0 castigo que aplicara dera-lhe urna sensação de
domínio, mesmo que esse domínio fosse apenas sobre uma jovem
negra indefesa. Fazia bem ao seu ego atrofiado. Sentía-se outro.
-A Katy gosta. Não gostas, Katy? -Charles repetiu a sua pergunta
anterior.
-Sim, siô, patrão -a resposta de Kary foi imediata, agora que a
experiência terminara. -Eu gosta -afirmou ela, com um ar que
parecia sincero. Não gostava da dor, mas, depois de esta passar,
gostava de se sentir subserviente perante um homem que
demonstrava o seu domínio sobre ela. Nem Charles nem Katy se
sentiam suficientemente convencidos desse domínio sem
demonstração. Katy, gostava, efectivamente.
-Talvez o pai me deixe ir a Falconhurst, quando o Hammond tiver
aquele lutador que vai arranjar, para eu o poder ver. -Charles
regressara ao seu principal interesse.
-Talvez deixe. Mas não vai chicotear as minhas negras, como fez à
sua, e não o deixo fazer os meus negros lutar, só para os ver.
Amanhã pedimos ao seu pai.
Enquanto Hammond se ajoelhava sobre o lado direito da cama,
para dizer a sua oração, Charies e Kary trepavam para o grosso leito
de penas do lado oposto.
Sukey esperou que o seu pouco apressado amante entrasse na cama,
para apagar a vela.
Apesar da largura da cama grande, esta ficou cheia. Sukey emitia
um odor, simplesmente por falta de limpeza ou apenas racial, como

o branco pensou, que Hammond achou desagradável. Teria
mandado embora a rapariga e começado a dormir se não fosse a
violação da hospitalidade. Charles, do outro lado da cama, veria em
tal comportamento desprezo pelo melhor divertimento que

Crowfoot tinha para oferecer. Hammond executou aquilo que
considerava um dever, sem prazer e com pouca satisfação; apenas
por simples desintumescência, um esvaziar de desperdício
acumulado.
Sukey sentiu a apatia de Hammond, mas agradeceu na mesma o
seu favor, como Dick lhe ensinara a fazer.
-Sai da cama e deixa-me voltar e dormir. A cama está muito cheia murmurou
Hammond.
-Eu fica com frio. 0 patrão Richard nunca atira eu pra fora da cama
-queixou-se Sukey.
-Bem, embrulha-te numa colcha. julgas que me apatece cheírar-te
toda a noite?

Hammond foi incomodado toda a noite pelos seus companheiros de
cama, de quem não podia livrar-se tão facilmente como de Sukey.
Sentia ao seu lado o casal, nos braços um do outro; sentia o esticar e

o relaxar das cordas que aguentavam o colchão; ouvia os pequenos
gritos de delícia ou de dor; sentia os apertões e os beijos que tinham
lugar por toda a cama, as exigências de Charles, e a fingida negação
de Katy.
Contudo, o incómodo que Ham sentia não era propriamente físico,
não provinha dos ruídos, nem da falta de espaço, nem dos
movimentos. Sentia um nojo que se aproximava da náusea por ver
um branco colocar-se em igualdade erótica com uma fêmea negra.
Isso estava abaixo da dignidade da sua raça -tinha algo de bestial.
Uma fêmea era um objecto que um homem podia usar quando
preciasse dele, não um alvo dos seus afectos, destinava-se a receber
ordens, não a ser persuadida. Hammond sentia-se mais
incomodado por Charies beijar Katy apaixonadamente do que por
ele a castigar sem culpa. Como é que os lábios dos brancos podiam
suportar o contacto com a pele mulata? Como podia Charies
rebaixar-se tanto, sabendo que havia outro branco ali ao seu lado?


A madrugada tinha rompido pouco antes, quando Hammond se
ergueu. Queria evitar o embaraço que esperava que Charles exibisse
quando se levantasse, ou poupar-se a ver o à vontade de Charies.
Ao ar livre fazia fresco e o ar era revigorante. A estrela da manhã
empalidecera mas ainda estava visível. Hammond começou a
passear, com espírito de crítica. Observou portões a cair dos gonzos,
um campo de cardos secos a invadir o terreno adjacente, carrinhos
de mão voltados sobre as ervas daninhas e abandonados aos
elementos, um pomar atacado pelos pulgões e à espera de ser
podado, uma cerca com metade das estacas partidas. Imaginou para
que serviria. A inutilidade aborrecia-o.

Começava a sair fumo das chaminés das cabanas e Wash arrastou-
se para o estábulo, esfregando os olhos pelo caminho. As mulheres
avançavam penosamente, com baldes, até ao poço e regressavam
com eles cheios em equilíbrio sobre a cabeça. Eram de meia idade,
na sua maioria, e Hammond pensou na falta de economia que
representava conservar negros que já não podiam procriar.

Dois rapazes mulatos apareceram por trás de uma cabana, mas
viram o estranho e recuaram. Hammond notou que um deles
coxeava. Talvez fosse o rapaz do dedo mordido, que Charles usara
na véspera para combater, mas parecia-lhe novo de mais para
aquele desporto. Uma fêmea jovem, atrasada, avançou a coxear
para o poço, aos ziguezagues; aquela podia procriar, se valesse a
pena fazê-lo, mas não prestava para mais nada. Seriam todos os
trabalhadores de Crowfoot velhos ou aleijados? Qual seria a ideia
de um plantador que conservava e alimentava aqueles criados? Não
era de espantar que a plantação estivesse mal cuidada e delapidada
-com excepção da casa; não era de admirar que Woodford tivesse
dívidas e precisasse de dinheiro.


Hammond regressou a casa e sentou-se no varadim, à espera que a
família desse sinais de vida. Sukey saiu pela porta lateral e saudou-
o, a caminho das cabanas. Em breve Katy a seguiu e depois
apareceu Charles.
-Quero ver-me livre das raparigas antes que a mãe se levante explicou.
-Penso que ela sabe, mas ...
-Claro, ela é surda -disse Hammond. -Talvez ...
-A Blanche sabe e dá à língua. Cria problemas sempre que pode.
Não vai casar com ela, pois não? Eu gosto de si e estou a dizer-lhe
como é-avisou Charles de novo.
-Sim, vou casar coma sua irmã? -declarou Hammond
positivamente.
0 maior Woodford apareceu, chamando os rapazes para o pequeno-
almoço.
-Dormiste bem? -perguntou a Hammond. -Ou este porcalhão
obrigou-te a sair da cama?
-Dormi muito bem -disse Hanimond. -Charles esteve muito
sossegado.
-Mas ele não gostou da Sukey. Mandou-a para o chão -disse
Charles.
-Não fales dessas coisas, Charles. Não é de boa educação -censurou

o maior. -Houve alguma coisa errada?
-Já tinha acabado; foi tudo. Ela não fez nada de mal -explicou
Ham.
-Não lhe apetecia forrobodó toda a noite, eh? Eu gosto ... ou
gostava. Penso que esse aí sai ao pai. Eu gostava de as chicotear e
depois fazer amor corri elas. Gostava delas bem pretas e não me
ralava com o cheiro, mas agora os rapazes são esquisitos, querem-
nas clarinhas.
Seria possível que o pai soubesse do comportamento do rapaz e o
aprovasse? Hammond não estava interessado em discutir o assunto.


A senhora Woodford presidiu à mesa do pequeno-almoço com a
sua voz oca e a sua corneta acústica. Blanche desceu atrasada, com o
seu fato de montar comprido -o fato mais vistoso do seu escasso
guarda-roupa. Tinha preparado a sua entrada por forma a surgir
quando todos estivessem sentados para que os olhares se cravassem
nela, embora estivesse apenas interessada na aprovação de
Hammond.
-Tencionas andar a cavalo esta manhã, querida? -perguntou
Beatriz apontando a corneta.
Blanche acenou afirmativamente e gritou:
-Eu e o Hammond vamos andar a cavalo depois do pequeno-
almoço.
-Esperam pelas orações, decerto -disse a mãe. -0 senhor e a senhora
Satherwait estão cá e estou certa de que o coronel Butier também é
homem de Deus. Hammond rezará connosco.
-0 primo Hammond não precisa de rezar -anunciou Charles. -já
rezou ontem à noite.
Beatriz olhou, radiante, para Hammond. -Espero, meu filho, que te
tenhas ajoelhado com ele. Eu sei que o primo Hammond há-de
encaminhar-se para Jesus.
Os Satherwait acenaram afirmativamente.
-Receio bastante não poder ir passear a cavalo, prima Blanche, nem
sequer esperar pelas orações -desculpou-se Hammond. -Tenho
uma grande viagem a fazer e preciso de ir-me embora. Quero
chegar à Plantação Coign antes do meio-dia ou pouco depois e
seguir para Falconhurst antes da noite cair.

Blanche apenas tencionava amuar, o que julgava fazer lindamente,
mas começou a chorar e saiu da mesa abruptamente. Hammond
afastou a cadeira e seguiu-a até à sala, tentando acalmá-la.
-Tu não me amas! Tu não me amas! Não casava contigo mesmo que
não houvesse mais nenhum homem no mundo!


As suas palavras ressoaram na casa de jantar e alarmaram o pai da
rapariga que se apressou a correr à sala, para acabar com aquela
discussão que ameaçava os seus cálculos.
A satisfação de Charles foi amortecida pelo seu receio de que
Blanche não permitisse que o noivo se escapasse. Beatriz olhava de
uns para os outros à espera de uma explicação sobre o que se estava
a passar, mas os membros do grupo, embaraçados, nada lhe diziam.
-Então, então, Blanche, querida-, dizia o maior, consolando a filha-,

o Hammond tem de voltar para a sua plantação. É um homem
ocupado. julgavas que ele te propunha casamento no primeiro dia,
se pudesse ficar e fazer-te a corte?
-Mas, papá! -protestou Blanche, enxugando os olhos. -Não é justo,
não é decente. Ninguém vai acreditar em mim. Ninguém pensará
que eu tenho um namorado.
-Nós havemos de mostrar-lhes, não havemos, Hammond? Quanto
mais depressa Hammond chegar a casa e falar com o pai, mais
depressa volta e se casam -disse o maior.
-Ele já disse que volta no dia 8 de Maio -soluçou Blanche. -Eu só
queria que ele ficasse, agora.
-Tenho de voltar para casa e comprar o tal anel de diamantes persuadiu-
a Hammond. -Quanto mais depressa o comprar, mais
depressa ele chega.
Este argumento acalmou a rapariga que, sem ser adulta, decidira
fazer um papel de adulta. Assoou-se e enxugou os olhos. Hammond
inclinou-se e beijou-a desajeitadamente e regressaram os três à
mesa.
0 major estava radiante:
-Foi só um arrufo de namorados -anunciou orgulhosamente. As
lágrimas de reconciliação brilhavam ainda nos olhos de Blanche
quando voltou a sentar-se para o pequeno-almoço, que não
conseguiu comer. Tinha feito convergir sobre ela a atenção de toda a
mesa e cria ter ganho a compaixão de todos. Sentía-se ferida; o seu
projecto de passear a cavalo por toda a região e mostrar o seu noivo

aos outros tinha ido ao ar. Os boatos e os risinhos de inveja,
provocados pela presença de Hammond com ela na igreja,
morreriam. Não poderia gabar-se da sua conquista. Voltou a amuar,
em parte porque se sentia desgostosa, mas principalmente porque
achava que lhe ficava bem. Quando o grupo se levantou da mesa,
Charles colocou o braço sobre o ombro de Hammond e sussurrou-
lhe, para o lembrar:
-Vai perguntar ao pai se eu posso ir visitá-lo a Falconhurst? Apesar
de o rapaz lhe desagradar, o convite de Hammond foi amável.
-Major Woodford -disse Ham-, o Charles gostava de ir até
Falconhurst. É muito bem-vindo, quando o deixa ir?
-Acho-o muito novo para andar por aí -respondeu o major. -Não
confio nele.
-Nunca estive em parte alguma. Não posso 'r a parte alguma. já
não sou um miúdo-argumentou o rapaz. -0 primo Hammond
esteve em Nova Orleães e tudo isso. Sou quase da idade dele.
-Mas não ages como tal -disse o pai. -Talvez, se me mandar aquele
dinheiro, ele possa ir.
-Claro, se ele for, tem que fazer o que eu lhe disser -especificou
Hammond. -Não quero os meus negros arruinados para nada.
-Dá-lhe açoites. Baixa-lhe as calças e bate-lhe, se ele não se portar
bem -sugeriu o pai. -Às vezes tenho que o fazer, não é assim, meu
filho?
-Já há muito tempo que não. Desde o Natal. -Charles corara. -Se me
deixar ir a Falconhurst, porto-me bem, faço tudo o que o primo
Hamiriond mandar e não causo problemas.
-Havemos de ver, quando o dinheiro chegar. Precisas de roupa.
Havemos de ver se o Dick tem algum fato para ti.


Hammond mandou buscar o cavalo, e foi ao quarto buscar os
alforjes. Conseguiu forçar um breve encontro corri Blanche no salão,
do qual o par emergiu com ar embaraçado; a rapariga trazia o
cabelo despenteado e lágrimas nos olhos. Walsh segurava o



garanhão pelas rédeas. 0 major repetiu as suas instruções sobre a
melhor maneira de chegar a Coígn e avisou-o da lama da estrada
que atravessa o pântano durante cerca de quatro milhas.
-Volta à esquerda daquele carvalho retorcido entre dois caminhos e
vais dar a Colgri -explicou. -Se viras à direita, não vais dar a parte
alguma.

Hammond receava o beijo de Beatriz que não conseguiu evitar e,
logo que pôde, soltou-se dos seus braços e partiu. Beatriz enxugava
os olhos. Hammond apertou a mão a todos. Quanto ao coronel
Butler e aos Sutberwalts, a despedida foi superficial; Charles estava
nervoso e Hammond estranhou a ansiedade do rapaz por o ver
partir; o maior Woodford reteve a mão do rapaz, sacudindo-a
repetidas vezes.
-Penso que será melhor eu escrever uma carta ao teu pai, sobre o
dinheiro -sugeriu-lhe, à parte. -Não tenho muito jeito para escrever
cartas.
-Não vale a pena -disse-lhe Hammond. -0 pai faz o que eu lhe
disser. Ele manda-o ... de certeza.

Um beijo final a Blanche, muito decente, suficientemente ardoroso
para confirmar o seu afecto, suficientemente rápido para não violar
a propriedade, e Hammond montou. 0 grupo afastou-se, para sair
do caminho do cavalo. No rosto de Blanche surgiu um sorriso que
pretendia ser valente, próprio de urna heroína.

Hammond seguiu a passo, olhando para trás e acenando, até chegar
à estrada pública e voltar para sul. 0 resto do grupo não podia
escapar às orações matinais de Beatriz e os Sutherwaits não tinham
qualquer desejo de o fazer.
-Um rapaz muito simpático, e bem instalado, ao que parece-
opinou a senhora Sutherwait. -uma boa esposa levá-lo-á para Jesus.


-Tenciono fazê-lo -disse Blanche, de modo possessivo.

Capitulo décimo segundo

Hammond sentia-se bem, com o cavalo de novo sob ele, a sela entre
as pernas. 0 cavalo estava fresco e irrompeu num trote lento.
Hammond tinha onde ir, mas não tinha pressa alguma, excepto a de
se escapar da saturante afabilidade de Crowfoot. 0 sol caí sobre ele,
quase desconfortavelmente quente.

Bom, tinha cumprido a sua missão, tinha conseguido o que viera
fazer. Estava satisfeito. 0 casamento era uma obrigação para com o
seu sangue Hammond, que não se podia deixar desaparecer.
Blanche era mimada e precisava de ser condescendente para com
ela. Mas para que servia uma mulher branca se não para ser
amimada? Esta era certamente bonita, pelo menos aquilo que dela
pudera ver. Recordou o vestido de lã. Que pequena era a cintura de
Blanche. Que cheios eram os seus seios, apesar de ser tão nova! Que
voluptuosa era a curva sugerida das suas nádegas! Hammond tinha
poucas dúvidas quanto às formas dela. 0 que o preocupava era toda
aquela extensão de carne branca. Não teria que olhar para ela, mas
saberia que estava ali, pálida e desigual. Havia de habituar-se. Não
conseguia considerar que a sua mulher viria a ser, como Beatriz,
surda, pálida e beata. Deve-se conceder certo crédito à astúcia do
jovem inexperiente, pois conseguiu ver através da fingida piedade
de Blanche -uma simples acomodação aos costumes da mãe, na
realidade, aos costumes da comunidade, um baluarte, se dele
necessitasse, para o seu comportamento. Hammond não via
necessidade disso.


A estrada era boa e deixou o garanhão andar à vontade, durante
algum tempo, mas a cilha parecia larga, e ele fê-lo parar, desmontou
e apertou-a. A estrada passava por um bosque e Hammond sentiu-
se estranhamente só. Era uma sensação nova; nunca se sentira só.
Não sentia qualquer desejo de voltar a Crowfoot, para as conversas
sem sentido, mas sim de regressar a Falconhurst, ver os seus negros
e pô-los a trabalhar.


Tinham sido mais as ideias do pai do que as suas que o tinham
afastado de casa; o pai desejava que se casasse, mais do que ele; e
era a paixão do pai pelos mandingos puros que agora o levava à
Plantação Colgri. Saindo do bosque para urna clareira, Hammond
viu abutres no céu, descrevendo círculos e manobrando. Observou a
facilidade e a graça com que se elevavam e pairavam. Mais adiante,
trazido pelo vento, de um grupo de árvores, as suas narinas
captaram o cheiro de carne morta.


Avançara já cinco, talvez seis milhas, sem pressas, e sem encontrar
pessoa alguma, mas estava certo de seguir no bom caminho para
Coign. De súbito, atrás de si, ouviu um rápido galope. Voltou-se na
sela e o outro cavaleiro ergueu o braço e fez-lhe sinal para esperar.
Era Charles.
-Vou consigo -declarou sem fôlego, Charles.
-Não vai,não. Vai voltar para trás e regressara Crowfoot. Fugiu de
lá.
-Não fugi, não. 0 pai disse que,eu podia -protestou o rapaz.
-Podia quê? -perguntou Hammond.
-Que eu podia ir consigo até Falconhurst. Não quer que eu vá?
-Quero, claro que quero. É bem-vindo. Mas está a mentir.
-0 pai disse que sim, disse, de verdade. -Charles falava
veementemente. -Pedí-lhe e ele disse-me que podia vir apanhá-lo e
seguir consigo. juro que disse, juro sobre a Bíblia.



-Não devia ter feito correr o cavalo dessa maneira. Está coberto de
espuma e a arquejar -censurou o mais velho dos dois rapazes,
-Tinha que o apanhar, não acha?
-Continuo a pensar que está a mentir-me. Se fugiu, não vai ter que
esperar por urna sova quando chegar a casa. Eu próprio lha dou.
Charles fez um esforço para focar os olhos e olhar Hammond de
frente:
-Juro -disse. Hammond ainda não acreditava no juramento do
jovem, mas não tinha intenções de voltar atrás só para apanhar mais
numa mentira. A admiração, pelo menos, gera tolerância, e o afecto
dá lugar à bondade. Hammond não confiava em Charles, mas o seu
desagrado por ele modificara-se, e a companhia dele afastou a
solidão que Hammond começara a sentir -não tanto solidão como a
sensação de ser estranho, estranho naquela região, estar perdido e
contudo conhecer o caminho.

Hammond pôs o seu cavalo a passo, para permitir que o cavalo de
Charles, um velho cavalo castrado de cascos pesados, recuperasse o
fôlego. Um grande falcão mergulhou e voltou a subir com um
coelho pequeno nas garras; Charles pensou que a ave pudesse ser
uma águia ainda jovem.

Os cavalos trotaram uma milha ou mais e os rapazes conservaram-
se silenciosos. Chegaram a um pântano, onde tiveram de afrouxar a
marcha, enquanto os cavalos escolhiam o caminho. Nas poças de
água estagnada, os jacintos começavam a florir e algumas
ameixoeiras espalhadas inclinavam-se, carregadas de flores. A luz
passava por entre as folhas novas das árvores, em raios visíveis,
como chuva seca. Um bando de perus selvagens levantou voo, com
um bater de asas. Harrimond sabia o que produzira o ruído, mas
não conseguiu ver senão uma única ave já velha, que fugia a
gorgolejar.


Os cavaleiros sentiram-se satisfeitos ao sair do pântano sombrio,
venenoso, Infestado de insectos, para terreno aberto e ascendente.
Passaram por uma cabana maltratada pelas intempéries, acenaram
para duas crianças meio nuas, esfarrapadas, penduradas naquilo
que devia servir de cerca, e viram três mais pequenas que se
esconderam furtivamente por trás da casa. Embora o sítio fosse
pouco convidativo, sentiam-se esfomeados e voltaram atrás para
ver se podiam arranjar algo para comer.

As duas crianças, vendo os cavaleiros regressar, começaram a fugir.
Atando as rédeas à cerca oscilante, Hammond e Charles dirigiram-
se à cabana e bateram com os nós dos dedos na ombreira da porta
aberta que dava para a única divisão. Uma mulher desmazelada, de
ventre inchado, faces cavadas, descalça, de meia-idade indefinida,
apareceu, vinda de algures dentro da casa e ficou a olhar para eles,
num silêncio truculento. Os rapazes disseram que tinham fome e
estavam dispostos a pagar a comida. A mulher coçou a cabeça
loura, de cabelos emaranhados, hesitou, com indecisão, e
desapareceu, sem dizer uma palavra. Hammond olhou para Charles
e Charies voltou pelo menos um dos olhos para Hammond. já
tinham dado um passo simultâneo em direcção aos cavalos, quando
a mulher voltou com duas grandes cabaças cheias de leite coalhado,
que lhes meteu nas mãos. Depois desapareceu de novo e voltou com
grandes pães de milho.
-Cinquenta cêntimos -disse ela, e foram as primeiras palavras que
pronunciou. Hammond pagou-lhe.
Era pouca comida, mas acalmou-lhes o apetite e sentiram-se melhor.
As duas crianças que tinham estado penduradas na cerca voltaram
furtivamente e puseram-se a ver os viajantes comer. Tinham doze
ou treze anos de idade. Embora ambos usassem algo que se
assemelhava a vestidos, um deles parecia ser um rapaz. Estavam
gordos e pareciam bem nutridos, mas seguiam com um olhar


cobiçoso cada gesto de levar a comida à boca. Finalmente, a
rapariga pediu, incapaz de se conter por mais tempo:
-Posso ficar com aquilo que não comer? Teria mandado chicotear
um negro por menos que aquilo, mas Hammond partiu o escupão
em dois e entregou metade à rapariga, que pegou nela e fugiu sem
agradecer. Charles deu metade do seu ao rapaz que pegou nele e
começou a comê-lo, mas não fugiu.
-A que distância fica a Plantação Coign? Sabes? -perguntou
Hammond ao rapaz que se limitou a abanar a cabeça.
Charles colocou a cabaça vazia no degrau em frente da porta, e a
mulher que devia ter estado a observá-los por uma fenda da parede,
visto que não havia janelas, lançou-se imediatamente sobre ela.
-A que distância fica a Plantação Coign? -perguntou-lhe
Hammond. Ela fez um gesto com a cabeça na direcção que ele já
conhecia, mas não lhe deu resposta quanto à distância.


Quando os dois rapazes saltaram de novo para as selas, Hammond
cuspiu e disse:
-E ainda há quem fale da escravatura?
-Quem? -perguntou Charles.
-A gente do Norte, aqueles abolicionistas, e até gente aqui do Sul.
Dizem que não há direito, não há direito que homens possuam
outros. Nenhum escravo vive como essa gente onde estivemos.
Precisam da escravatura. Limpa-os, ensina-lhes boas maneiras.


Aproximavam-se de uma casa, pequena mas arranjada, com uma
cabina dupla por trás. Um homem branco, um negro adulto e um
rapaz mulato trabalhavam em conjunto no campo para lá da casa.


Quando chegaram ao nível do sítio onde eles trabalhavam, puxaram
as rédeas aos cavalos e Ham perguntou a que distância estavam de
Coign. 0 branco largou o trabalho e veio até à cerca. Podiam-se ver
através dos fatos as articulações salientes da sua figura angulosa.



Tinha cerca de trinta anos, mas a barba negra, de três semanas,
fazia-o parecer mais velho. Trazia um chicote negro pendurado à
volta do pescoço. Ham repetiu a pergunta.
-Coign? -perguntou o estranho, cuspindo o tabaco e encostando-se
à estaca superior da cerca. -A cerca de quatro ou cinco milhas,
penso eu, mais para cinco. Siga a direito até a estrada se dividir e
volte à esquerda. Não há nada que errar. Há um grande carvalho
retorcido na bifurcação. Não há nada que errar. Vire à esquerda.
-Muitíssimo obrigado -disse Ham. Os dois cavaleiros chegaram à
bifurcação, Não havia realmente possibilidade de erro. 0 tronco do
grande carvalho estava retorcido por duas vezes, como um saca-
rolhas; devia ter sido artificialmente torcido em pequeno, pois os
carvalhos crescem a direito. Tomaram a estrada da esquerda que era
a subir.

Colgri estava situada numa elevação a que não se podia bem
chamar colina. 0 letreiro TIje Coign, em letras góticas, rodeada de
filigrana de ferro forjado, cobria dois portões do mesmo material
que estavam abertos. As maçanetas douradas no cimo das estacas
que formavam os portões estavam tão manchadas que pareciam
mais pretas do que douradas. Para lá dos portões estendia-se uma
álea recta, ladeada por nogueiras, cujos ramos se tocavam e
misturavam e entre os quais se podiam ver os pilares de um pórtico
dórico. Ham não previra tal magnificência, mas o local não
precisava de letreiros para proclamar que era TIje Coign.

As nogueiras terminavam abruptamente num relvado, mas o
caminho continuava em volta do relvado, num oval simétrico. A
extensão de relva e ervas era suficientemente vasta para permitir, a
quem avançasse pela área, parar na sua extremidade e apreciar toda
a fachada da mansão georgiana de tijolos, incluindo as alas que a
flanqueavam, de ambos os lados.


Aquela era efectivamente uma mansão. Simples, mesmo austera, a
casa não estava atravancada de ornamentos e o olhar podia apreciar
as proporções delicadas, embora robustas, de todo o edifício. Dos
extremos do corpo principal da casa erguiam-se quatro chaminés,
que não conseguiam mitigar o ar sombrio de todo o quadro. A tinta
branca despegava-se da pesada cornija e dos caixilhos das janelas
das alas, mas estava intacta sob o telhado do pórtico.


Um velho mulato reumático, impecavelmente vestido e calçado,
apareceu, vindo de uma das esquinas da casa, para tomar conta dos
cavalos.
-Boa tarde, senhores. Os cavalos estão fatigados. Vou tratar deles
disse, corri uma vénia, mas sem servilismo, apontando para a porta
com a palma da mão voltada para cima.


Hammond, seguido de Charles, dirigiu-se à porta e levantou o
batente de bronze. Tenras folhinhas de relva amarelada cresciam
numa fenda entre as lajes do chão. A espera foi longa e Hammond
observou uma carriça que transportava palhinhas para o seu ninho,
no topo de uma das colunas de arenito. 0 chilrear da ave e o
zumbido de um insecto qualquer eram os únicos sons que se
ouviam, e Hammond sobressaltou-se com a própria voz quando
disse:
-Parece que não há cá mais ninguém, além daquele preto velho.
Estendia a mão para o batente, pela segunda vez, quando a porta se
abriu silenciosamente.
-Meus senhores! -saudou o criado que abriu a porta. -0 senhor
Wilson está a dormir, mas deve estar a acordar. Não desciam
entrar? -perguntou cordialmente, mas sem grande entusiasmo, e
conduzi-os, através do vasto hall, para uma grande sala, onde os
convidou a esperar. Ajeitou os cortinados, para deixar entrar mais
luz, e retirou-se.



Este mordomo antigo tinha feições caucasianas e pouco lhe faltava
para ser branco. Tinhas as bochechas pendentes como sacos, por
baixo dos olhos, mas tinha sido belo e era ainda distinto nas suas
maneiras e elegante na sua pose. Usava uma libré de cetim azul-
escuro, bem limpa e nada estragada, calções até ao joelho e cabelo
empoado, puxado para trás e entrançado. As suas longas pernas
estavam cobertas com meias de seda branca.

A elegância da sala para a qual os rapazes haviam sido levados
deixou-os pouco à vontade. Falavam em voz baixa. As paredes
eram de nogueira com painéis de damasco cinzento, rodeados de
ouro-velho. Os cortinados eram de veludo azul-pavão, sem
estampados. A carpeta Kirmanshaw, que cobria o centro do soalho,
deixava à vista uma larga margem de carvalho polido. 0 mobiliário,
se não era Hepplewhite, tinha influência HeppIewithe, e as cadeiras
estavam cobertas com um damasco de um tom entre o amareloesmaecido
e o ouro-velho.

Por cima da chaminé de mármore, estava pendurado um grande
retrato de um homem alto, de meia idade, com as bochechas caídas
e olhos papudos, no género do mordomo. A sua longa i-não direita
estava pousada no ombro de um pretinho que olhava para ele com
admiração, e à sua esquerda estava representado um galgo elegante
mas de pernas muito compridas, com os olhos fixos no dono. Não
havia outros quadros ou ornamentos. 0 retrato poderia ter sido
pintado por Benjamin West, mas estava um pouco atrasado para o
seu período americano.

Os rapazes não ouviram entrar o senhor Wilson, quando este
finalmente chegou, e encontravam-se de costas para ele. 0 outro
saudou-os apenas com duas palavras:
-Meus senhores. Velho, fraco e quase paralítico, Wilson continuava
a ser urna figura imponente que dominava a sala, Coign inteira e a


paisagem adjacente. Parecia um monarca. Havia nele uma nova
versão das bochechas pendentes e dos olhos papudos, no gênero
dos do retrato e dos do mordomo.
-Meus senhores -repetiu. -Peço-lhes que me perdoem. Estava a
dormir e o meu criado recusou-se a acordar-me. Queiram
desculpar-me.
É o senhor Wilson? -perguntou Hammond.
0 próprio, ao seu dispor. Eu sou Hammond Maxwell.
-Sim? -inquiriu Wilson, aguardando.
-Sou Hammond MaxwelI, filho,de Warren MaxwelI, da Plantação
Falconhurst.
-0 senhor? -perguntou o velho. -0 senhor? Colocou a mão sobre o
ombro do rapaz e levou-o até uma janela, recuou um pouco e olhou-

o de alto a baixo, focando-lhe o rosto. Abanou a cabeça e estendeu-
lhe a mão.
-Muito bem, muito bem, tenho muito prazer em vê-lo, meu filho. Olhou
para Charies e perguntou: -E este jovem?
-É Charles Woodford, filho do major Woodford, de Crowfoot. Vou
casar-me com a filha dele, isto é, do major, e o Charles vem comigo
até Falconhurst.
-Conheço o maior, mas mal; é pessoa muito apreciável, ao que julgo
-disse o velho, salvaguardando a sua apreciação. -Tenho muito
gosto em vê-lo -disse a Charles; depois voltou-se para Hammond. Parabéns
pelo seu próximo casamento. E filho único, não é verdade?
Ou há outro?
-Não há mais nenhum. Só restamos o meu pai e eu -disse
Hammond.
-Ele é feliz por ter ao menos um filho. Feliz -suspirou Wilson. -0
meu filho mais velho morreu, foi morto a tiro num duelo. 0 mais
novo morreu com febres. Dois rapazes e quatro raparigas, todos
mortos. 0 Warren Maxwell tem sorte.
0 velho procurou com a mão o assento da cadeira em que ia deixar-
se cair.

-Como está Warren Maxwell? Corno vai o seu pai?
-Vai andando, mas o reumatismo não o larga. Contudo, parece
estar a melhorar -explicou Hammond. -Julgo que esteja muito
triste por eu andar longe. Preocupa-se muito quando deixo
Falconhurst.
-E bem pode, e bem pode. Todos os rapazes são uns tolos,
especialmente quando têm vitalidade. É muito novo?
-Tenho dezoito anos -protestou Hammond -, quase dezanove. E o
meu pai não me considera tolo. Confia em mim, mas gosta de me
ter junto dele. Gosta da minha companhia.
-Não me admira, não me admira nada. já lá vão doze anos ou mais
desde a última vez que vi Warren. Era muito mais novo do que eu,
muito mais novo, mas gostava dele. Lembro-me, era louco por
mulheres negras, ou de qualquer outra cor, tanto lhe fazia, mas
quanto mais escuras melhor. Invejava-lhe a juventude e o vigor. Eu
já estava a envelhecer.
-Acho que ainda se interessa por elas, mas o reumatismo...
-Da última vez que o vi, ele veio aqui, falou-me de uma grande
fêmea mandinga, a maior que eu já vi, e da filha dela que tinha três
anos e parecia ter cinco. Bonita. Eu não queria vendê-las, mas o
Warren tinha mesmo que as ter: era louco por mandíngos.
-E ainda é. Foi para isso que eu cá vim -declarou Harrimond.
-Ele ainda terá a fêmea e a filha? A pequena já deve ter idade para
procriar, quase.
-Ainda temos a velha Lucy e a filha chama-se Pérola Grande. Estão
as primas. A Lucy ainda procria e a mais nova está pronta. É isso
que venho fazer à Plantação Coign.
Wilson ergueu-se, apoiando as mãos nos braços da cadeira.
-Vamos para a biblioteca, onde há uma lareira acesa, e lá podemos
conversar melhor -sugeriu. -A tarde está a ficar fresca e, na minha
idade, gosta-se de calor.


0 homem idoso aceitou a ajuda do mordomo, que lhe pegou no
braço e o amparou através do hall. Exceptuando os trajos e o facto
de o mordomo ser mais novo, eram singularmente parecidos, tanto
no porte como na estatura, e nas faces descaídas.
-Não vale a pena lutar contra ele -disse o velho a sorrir,
apreciativamente, quando o outro o ajudou a sentar-se. -Estou sem
defesa. È o que faz ter um filho por criado; faz o que quer de mim e
não aceita ordens. Acha que sabe mais do que o patrão.
-Quer o seu chá, siô?
-Não, não, deixa-me só, Ben -respondeu o velho, mimado. -Mas
podes bem trazer-nos uma garrafa daquele Madeira, se fazes favor;
sabes qual é, o Mairrisey. Estes jovens devem apreciá-lo.
-Sim, siô, trago já, siô.
0 velho apontou o escravo que saía, e explicou:
-Eu não era mais velho que o senhor MaxwelI, não, nem tanto,
quando nasceu o velho Ben, o primeiro macho que eu tive, e o
melhor de todos. Antes disso, só tinha feito raparigas, pelo menos
julgava que eram minhas, embora o meu irmãos mais velho às
vezes entrasse nos meus domínios, e, por isso, não tinha bem a
certeza. Criei o Ben e treinei-o e tem sido fiei. Ao fim de setenta
anos, acaba-se por gostar de um escravo. Creio que o Ben tem
setenta e um ou setenta e dois. Eu tenho oitenta e sete. Se queremos
ter um bom criado, temos, nós próprios, que o fazer e domar,
adaptando-o aos nossos costumes, e já sabemos com o que podemos
contar.

A sala estava forrada com estantes cheias de livros encadernados a
couro, alguns com as lombadas manchadas ou estaladas e, por cima
das estantes, o verniz do apainelamento a branco tinha tomado tons
de marfim antigo. Por trás dos quatro espaçosos cadeirões que se
alinhavam em frente da lareira, estendia-se uma mesa enorme, com
livros de contabilidade, um tinteiro, penas, uma caixa com areia,
três ou quatro livros encadernados que haviam deixado lugares em


aberto nas estantes, e um candelabro de pé, em cada extremidade. A
carpeta estava gasta e a extremidade junto do fogo sarapintada com
pequenas queimadelas, uma das quais era tão grande como a palma
de uma mão feminina e tinha esse formato.


Por cima da lareira de nogueira, sobre a qual havia dois ou três
livros atirados descuidadamente, e um par de candelabros, com as
velas meio gastas, estava suspenso um quadro que representava
duas mulheres nuas e um sátiro, As mulheres eram rosadas e
arredondadas e os tons da sua pele eram quentes, à maneira de
Rubens.


Aquela sala parecia ser o retiro do velho. Usada, mesmo gasta.
Wilson olhava para o quadro, com acariciador apreço, nos
intervalos da conversa.
-0 que eu cá vim fazer foi... -começou Hammond.
-Fazer-me uma visita, espero eu, em delegação do velho Warren,
que há muito se esqueceu de um velho amigo. -Wilson adiava a
descrição da missão. -Este velho túmulo precisa do som de vozes
jovens. Bem gostaria que ficassem uma semana, um mês, um ano,
quanto tempo quisessem, escutando as garrulices de um velho.
-Temos que seguir para Falconhurst -disse Hammond.
-Sim, sim, amanhã ou depois, ou no dia seguinte. Entretanto,
preocupar-se faz bem ao Warren, ensina-o a ter paciência, faz-lhe
ver o que é ter um filho, e como um filho é precioso.
E Wilson inclinou-se para a frente, à custa de alguma energia,
estendendo a mão para dar uma palmadinha no joelho rígido de
Hammond.
-Não quero que o pai se preocupe comigo, ele conta comigo. Ben
voltou com uma garrafa coberta de poeira e três copos, numa
bandeja que colocou cuidadosamente sobre a mesa, como para não
agitar o vinho. Limpou a garrafa com um guardanapo, ternamente,
introduziu o saca-rolhas e puxou a rolha, levou a garrafa devagar



até às narinas para apreciar o bouquet, e despejou o vinho nos
copos. Passou a salva primeiro ao seu patrão, depois a Charles e
finalmente a Hammond, como um soberano a distribuir
condecorações.

0 proprietário passou o copo diversas vezes sob as narinas,
saboreou um pequeno golo e acenou afirmativamente para o
escravo. Ergueu o copo para Hammond e propôs um brinde:
-A Warren Maxwell e seu filho, que se parece com ele. -E, depois,
recordando-se, delicadamente, acrescentou, com uma vénia na
direcção de Charles: -e ao major Woodford e seu filho. -Saboreou
de novo o vinho e fez estalar os lábios. -Que tal o acham, meus
senhores?
Charles esvaziou o copo de uma só vez, antes de olhar para
Hammond, que imitava o anfitrião, o qual tomava pequenos golos,
os saboreava e aspirava o doce perfume do vinho, enquanto ia
observando os nus sobre a lareira.
-É bom, mas não sei de que é. Nunca bebi nada assim até agora disse
Hammond, francamente.
-É Madeira, Malinsey; aprende-se a gostar deste vinho doce -disse
Wilson. -Podes beber também, Ben. Vai buscar um copo.
-Obrigado, siô. já me admirava.
-Admiravas-te? Porquê?
-Dá-me sempre um copo, siô, quando bebe MaInisey.
-Claro, mas tem cuidado com as borras. As borras estragam-no.
0 velho dedicou-se a apreciar o vinho e nada disse até o copo estar
vazio. Hammond estava ansioso por tratar do seu negócio. Gostava
do seu anfitrião, mas custava-lhe perder tempo. Não conseguia
compreender que os motivos do velho para o impedir de falar da
sua missão, eram apenas o desejo de prolongar a sua estada. Wilson
não esparava convidados, mas o seu prazer em os receber era
diminuído pelo receio de que partissem depressa.


Hammond tentou, de novo:
-0 que eu vim cá fazer, senhor Wilson, foi saber se tinha um velho
macho mandingo, pois o pai gostava de pedir-lho emprestado para
acasalar corri as duas fêmeas.
-As duas que me comprou? Warren sabe que aquele velho macho é

o pai das duas, e a pequena já foi gerada por ele.
-Sim, senhor, senhor Wilson. 0 pai sabe disso, mas não conhece
mais ninguém que tenha um mandingo, puro e de confiança.
Gostava de experimentar outra vez e pede que lhe empreste o
macho. Não leva muito tempo e o pai pagava-lhe.
-Que disparate! Pagar? Que disparate! Mas já não tenho o macho.
Morreu. Um boi enfiou-lhe os cornos há três meses, e o velho Xerxes
morreu. Não sei se lhes teria servido de alguma coisa, porque estava
a ficar velho. Já há dez anos que eu não lhe dava fêmeas.
-0 pai tinha contado tanto com ele -disse Hammond, traindo o seu
próprio desapontamento.
-Warren Maxwell e os seus mandingos! Tem a mania dos
mandingos!
-São uns bons negros; eu também gosto deles -disse Ham,
defendendo o pai.
-Claro que gosta; ensinaram-lhe a gostar deles -disse Wilson, -Mas
há mandingos e mandingos. Conheci mandingos que nem valia a
pena matar, embora admita que fossem difíceis de matar. São
tenazes. Tive sorte com os pretos que arranjei, uma sorte danada.
Sorte na progenitura que eles produziram. 0 par original era
formado por dois patifes grandes e bonitos; o velho Xerxes era o
macho inicial. Eram parentes, ou primos ou tinham o mesmo pai,
talvez a mesma mãe, também. Tentaram explicar-me o seu
parentesco, mas nunca percebi bem; se calhar nem eles.
-Isso faz com que Pérola Grande tenha ainda mais raça do que o pai
julga; mesmo Lucy tinha raça, penso eu.
-Não se sabe donde vem já o incesto. Acho que é altura de parar.
Claro, eu sei que daí resulta uma progenítura de categoria

excepcional, ou a mais excepcional degeneração. Não há meio
termo. Produz tipos perfeitos ou monstros, ninguém sabe porquê explicou
Wilson. -Parece que é o motivo porque os reis podem ser
idiotas ou gênios. Na maioria são idiotas; grandes homens ou
maníacos, mais maníacos.
0 assunto aborrecia Charles.
-Não tem negros machos? Um macho é um macho. Não há
diferença.
0 que querem é um filho, não é?
-0 pai tem muita importância, jovem -disse o velho. -De modo
algum se deve acasalar um mandingo com um membro de outra
tribo. Deve manter-se a raça pura. Um cruzamento híbrido com um
mandingo, urna mula mandinga, como eu lhe chamo, é traiçoeira,
indigna de confiança, imprevísivel, um renegado ou assassino. Tal
mula pode ter o tamanho e o vigor de um mandingo, nem sempre
os tem, mas pode tê-los, mas, quando chega à idade de procriar, sai
um mau negro. Metade dos negros maus de que se ouve falar tem
algum sangue mandingo, não puro, claro, mas misturado com
sangue de guinéu, de haúça ou de Angola, ou de qualquer outra
raça. E as fêmeas são tão más como os machos, piores, até. É
possível dominar um macho mau; uma fêmea má continua má até
morrer.
-É o que o pai diz. Por isso ele queria o seu velho macho para as
fêmeas que temos.
-Tem razão. Um mandingo puro é manso como um gatinho,
resistente como um cabo, forte corno um elefante. Um meio
mandingo é uma víbora, acredite. Agora vou dizer-lhe uma coisa,
eu tenho o irmão da tal Pérola, é assim que se chama?
-Pérola Grande, sim, senhor,
-Tenho o irmão da Pérola Grande, filho da Lucy e do Xerxes. É
cerca de três anos, quase quatro, mais velho do que a Pérola. 0
animal mais belo que eu já vi; maior, mais bem feito todo ele do que
Xerxes. Só tem uma coisa má; não posso fazê-lo procriar.


-Quer dizer que não tem sêmen dentro dele? -perguntou Ham.
-Tem muito, provavelmente até de mais; mas é demasiado grande.
Quando chegou à idade de procriar, pediu-me que lhe desse uma
fêmea, e eu mandei Ben chamar a fêmea maior e mais
experimentada da casa, que tinha recebido uns doze ou quinze
jovens robustos, e entreguei-lhe o Medes. Ela ficou satisfeita ao vê]
o, embora ]*à tivesse passado da idade de ter filhos, mas ele era tão
grande e magoou-a tanto, e ela gritou tão forte, que arranquei o
rapaz de cima dela, com medo que ele a rasgasse e desse cabo dela.
Tentei dar-lhe mais uma ou duas outras fêmeas, mas receio que ele
tenha de viver virgem toda a vida, a menos que eu lhe arranje uma
elefante fêmea. -Wilson fez ouvir o seu riso de velho. -É coisa boa,
talvez, mas é de mais.
-Pérola Grande é bastante grande, e eu que o diga -afirmou Ham; e

o senhor conhece a Lucy.
-Não, não conheço, nesse aspecto, ou, se conheci já me esqueci. -0
velho acrescentou deliberadamente novas implicações à frase de
Ham. -Se quiser levar esse Medes para o seu pai o ver e o
experimentar, pode fazê-lo. Isto é, se o Medes quiser ir, e há-de
querer.
-Teria que ficar com ele até Maio, altura em que voltarei a Crowfoot
para o meu casamento.
-Está bem. Fique com ele o tempo que quiser. Quando já não
precisar dele, dê-lhe um passe, dê-lhe um pão e solte-o. Ele voltará
para casa. Só há um problema.
-Diga, senhor Wilson.
-0 Medes está hipotecado, pelo montante de mil e quinhentos
dólares, penso eu. Talvez seja só mil e duzentos e alguns anos de
juros. Toda a plantação está hipotecada, cada peça do mobiliário e
cada escravo. As hipotecas estão todas vencidas e o juro está por
pagar, e eu vivo aqui devido à paciência do judeu, que se recusa a
correr com um velho e aguarda que eu morra para tomar posse da
sua propriedade. 0 judeu Wertheimer de Mobile, digam o que

disserem dos judeus, o judeu Wertheimer é um branco. Se quiser
pedir dinheiro emprestado, não vá ter com banqueiros brancos, vá a
Mobile e fale com o judeu Wertheimer. Com ia dizendo, se o Medes
morrer ou ficar aleijado enquanto estiver em seu poder, teria o
senhor de pagar a hipoteca que pesa sobre ele. Eu não queria que o
judeu sofresse essa perda, depois da sua clemência para comigo,
pois eu não poderia pagar-lhe.
-Claro, está muito bem. 0 pai faria isso, evidentemente. Dou-lhe
uma nota por escrito.
-Não é preciso nota, basta que nos entendamos. Se o filho do
Warren Maxwell não pagasse um negro morto, a minha fé na
natureza humana morreria e eu bem podia, morrer com ela. Não
vivi oitenta e sete anos sem aprender a conhecer os homens,
especialmente se conheço a sua linhagem, e o senhor não pode
negar a sua. Talvez gostasse de ver o tal mandingo.
-Agradecia muito. Gostava imenso de o ver. É um lutador? perguntou
Charles. Só pensas em combates, Charles? -inquiriu
Hammond. Ben, ó Ben! -chamou Wilson, batendo no chão com o
atiçador, para chamar o mordomo, que apareceu imediatamente. Apanha
o Ganimedes e traz-mo aqui.
-Como é que chama o rapaz, senhor Wilson? Ganimedes; que nome
é esse? -perguntou Hammond.
-Geralmente chamo-lhe Medes. Nos livros e na hipoteca, está
registado como Ganimedes.
-Era isso que eu queria saber. Que significa esse nome?
-Bom, para lhe contar sem corar, Zeus, o deus soberano dos gregos,
viu um rapaz chamado Ganimedes e apaixonou-se tanto por ele que
mandou uma enorme águia raptá-lo e levá-lo, nas suas garras, para

o monte Olimpo, onde o rapaz serviu Zeus como copeiro, isto é,
servia-lhe o vinho e servia para outros fins.
A porta abriu-se e Ben perguntou:
-0 Medes pode entrar, siô?

-Sim, ele que entre -respondeu o patrão. Medes avançou e encheu a
sala, que não era suficientemente grande para ele. Andava aos
saltos, não indecorosamente, mas porque as suas pernas pareciam
conter molas que ele não conseguia controlar. Irrompeu como um
garanhão e, contudo, conservou a dignidade de um potentado. Com
cerca de seis pés e duas ou três polegadas, parecia mais alto do que
era. Talvez a idade e a fraqueza do patrão formassem contraste com
a juventude e o vigor do escravo. Parecia incapaz de sentir medo, e
a sua subserviência perante o seu bondoso patrão era a
subserviência da dedicação.
-Medes, vem cá. Mal pronunciara as palavras, já o rapaz
atravessara a sala e se colocara, dócil mas nervoso, em frente da
cadeira do velho.
Hammond notou que a sua pele não era totalmente negra mas de
um castanho profundo e quente, como nogueira polida, com uma
vaga coloração de vermelho nas faces. Tinha os olhos bem
afastados, dentro do rosto largo, mas dentro das têmporas, ao nível
das faces, e não muito proeminentes, sob as sobrancelhas, na testa
baixa. A cana do nariz não era totalmente achatada e as enormes
narinas redondas eram animadas pela respiração. Os dentes
grandes, regulares, eram amarelos e semelhantes a ossos, por trás
da ampla abertura que formava a boca de lábios grossos mas não
proeminentes. A mandíbula inferior era maciça e quadrada. Uma
carapinha espessa crescia em linha recta, por cima da testa.

A cabeça era bárbara. Parecia uma escultura rudemente talhada, um
grande trabalho por acabar, sem pormenores, uma cabeça tão
poderosa, tão primitiva que inspirava medo -excepto quanto aos
olhos, pretos, de longas pestanas, e benignos, confiantes, não só na
capacidade de se defenderem contra o mundo inteiro mas também
no mundo contra o qual não era necessário qualquer defesa. Esses
olhos pousavam-se no patrão com algo que parecia adoração.


-Medes, despe-te e mostra a estes senhores o que tens. -A ordem
fora modulada como um pedido. -Eles nã o se importam com o
cheiro, se o Ben não te deu tempo para te lavares.
-Patrão está a pensar em vender-me? -perguntou Medes com
interesse mas sem alarme.
-Nem pensar nisso -riu-se o patrão. -Sabes muito bem, que eu não
te vendia sem to pedir.
-Precisa de dinheiro, patrão, e eu valho bom preço. Eu não me
importo se quiser vender-me.
Medes ajoelhou-se, para desapertar os sapatos.
-Basta que eu me preocupe em The Coigri para arranjar de comer
para todos nós, rapaz, e não preciso de vender-te. Não como dos
meus escravos.
0 motivo porque gostaria de vender-te era para saber que vai ser de
ti, arranjar-te um bom patrão, antes de morrer.
-Eu sabe, patrão.
-Que o diabo te leve, pára de falar como um negro. Cresceste a falar
inglês.
Era a primeira vez que o patrão se mostrava severo.
-Eu sei, patrão -corrigiu Medes, contrito.
-Assim está melhor. Medes tirou a camisa e despiu as calças.
Hammond acenou afirmativamente.
-Um perfeito rapaz -disse. -Parece-se com a Pérola Grande, mas é
maior. Muito perfeito -repetiu.


Embora a saúde não estivesse em questão, Hammond levantou-se
para percorrer com as mãos, exploratoriamente, os ombros e os
braços do rapaz, deu-lhe palmadas nas coxas, levantou os orgãos
genitais e sorriu admirativamente. Bastava a Hammond olhar para
um bom negro para saber o que era; não era necessário o exame
táctil, mas gostava de confirmar a sua aprovação com as mãos.
Obtinha uma satisfação adicional do contacto com a carne. Era



como se achasse que a saúde, a força, a beleza, fossem contagiosas, e
pudesse absorver esses atributos tocando em quem os tivesse.


Wilson sentia o mesmo. Compreendia o prazer que Hammond
sentira perante um tão magnífico animal e, sendo também um
conhecedor, pressentia a muda aprovação de Hartimond. Ham
limitou-se a olhar para o velho e abanou a cabeça.
-Calculei que gostasse dele. É jovem, não está ainda no máximo,
mas é melhor que o pai. Acho que o Warren gostaria de o usar?
-0 pai gostaria imenso de o ver. É mesmo aquilo que ele deseja para
Lucy e Pérola Grande. Ele é magnífico -respondeu Hammond.
Ganimedes, cônscio da sua magnificência, dernonstrou-a. Flectiu os
músculos, torceu o corpo de um lado para o outro, baixou-se e
levantou-se.
0 seu rosto estava imperturbável, mas a admiração dos brancos
estimulava o seu ego.
-Medes, senta-te aí e escuta-me -disse o patrão. -0 senhor Maxwell
é, ou antes, o pai do senhor Maxwell é um velho amigo meu. Quer
manter a raça pura. 0 senhor Maxwell quer que eu te empreste para
procriar, e eu gostaria de o servir. Queres ir com ele e voltar quando
as fêmeas estiverem cheias ou quando ele te mandar embora?
-Sim, siô, patrão. Faço o que mandar.
-Eu sei. E melhor para ti -disse o patrão, rindo. -Mas queres ir?
Ninguém te obriga.
-Eu quero ir, sim, siô. Mas acha que eu posso? Nunca fiz nada
antes, bem sabe. Sou muito grande. Arrancou-me à velha Célia e
não me deixou.
0 negro olhava para si próprio, para baixo.
-As fêmeas do senhor Maxwell são grandes, diz ele. Acho que as
poderás cobrir. 0 senhor Maxwell decidirá.
-Como quiser, patrão. Quando começamos?
-Depois digo-te. 0 senhor Maxwell fica cá alguns dias. Depois digo-
te. Agora pega nos teus trapos e volta para casa.



Medes meteu a camisa e as calças debaixo do braço e inclinou-se
para pegar nos sapatos.
-Espera-interrompeu Ham, -Senhor Wilson, vende-me este macho?
0 velho hesitou antes de responder.
-Queria-o para si e não voltaria a vendê-lo? -perguntou. Medes
olhou para Wilson, depois para Hammond e de novo para Wilson.
Confiava no patrão, mas não era um espectador indiferente ao seu
destino. Deixou cair as roupas e ficou à espera.
-Quero-o para o conservar -explicou Hammond. -Na realidade,
quero fazer dele um lutador. Tenho andado à procura de um. Acha
que ele serve para lutar? _ Claro que serve. Claro que serve para
lutar-interrompeu Charles. As próprias palavras o excitavam. Compre-
o; porque não o compra?
-Não sei -disse Wilson. -É bastante forte. Quando o velho Xerxes
apanhou uma cornada, o rapaz pegou no boi pelos cornos e partiu-
lhe o pescoço. Foi como se matasse uma galinha. Mas lutar, não sei.
0 Medes não se enfurece, nunca o vi furioso. Sabes lutar, Medes?
-Quem quer que eu desanque? Para quê? -perguntou o negro,
demonstrando interesse, mesmo alacridade. -Sim, siô, sei lutar.
Sim, siô.
-já ouvi falar desse novo desporto da luta, mas nunca vi um
combate.
-Nos meus tempos não se fazia disso -disse Wilson. -Deve ser tão
excitante como uma corrida de cavalos, mas perigoso. Detestava
que o Medes se arruinasse num combate.
-Todos os rapazes têm os seus lutadores -explicou Hammond. -Eu
gostava de ter um. 0 pai disse que eu podia comprar um, mas um
muito bom, que pudesse vencer todos.
-Sim, vendia-o ... a si -admitiu Wilson. -Isto é, se o rapaz quiser ir.
Achas que gostavas de ir, Medes? Queres ser o lutador do senhor
Maxwell?
-E posso ter sempre duas fêmeas? -estipulou o negro.



-Bom, quando não estivermos a preparar-te para um combate. Não
quero que te canses com as fêmas -esclareceu Hammond.
-Não lhe fazia mal nenhum -interrompeu Charles, que todos
ignoraram.
-0 senhor Maxwell há-de tratar-te bem. Boa comida e em grande
quantidade. Claro, não seria como aqui. Terias que descobrir os
costumes do senhor Max. A -e adaptar-te a eles; obedecer-lhe. Que
dizes? Eu não posso viver muito mais tempo, e sempre é melhor do
que seres vendido em bloco sem saber a quem.
É melhor -concordou Medes. Quanto quer por ele, senhor Wilson? perguntou
Hammond. Não sei. Não sei. 0 Medes é uma espécie de
negro de estimação, algo especial que deve valer bastante. Como lhe
disse, o judeu de Mobile, emprestou-me mil e duzentos ou mil e
quinhentos dólares sobre ele, não me lembro do valor exacto, e sabe

o que isso representa quanto ao valor dele especulou o proprietário.
-Não sei quanto esse rapaz me daria, mas para si, para o seu pai,
para ir para uma boa casa, onde não abusarão dele nem o farã o
trabalhar em excesso, três mil dólares estará bem? Ou é muito?
-Acho que ele vale isso. É um rapaz perfeito. -Hammond hesitava.
Estendeu a mão e puxou Medes para ele. -Ajoelha-te -ordenou.
Esquecera-se de examinar os dentes.
-Se descobrir qualquer coisa errada nele quando chegar a casa, ou
se o Warren não o quiser, solte-o e diga-lhe que volte a The Coign.
Não fico aborrecido -especificou Wilson.
-0 pai concorda, de certeza -disse Hammond, dando uma palmada
no ombro do negro.
-Isso é muito -decidiu Wilson. -Não posso explorar o filho de um
velho amigo. Eu disse três mil; passo-o para dois mil setecentos e
cinquenta. Assim é melhor. Basta. Nenhum negro vale mais que
isso.
-Eu volto cá na próxima semana e levo-c, -prometeu Ham. -Não
tenho tanto dinheiro, aqui comigo. Volto, de certeza. Não vende este
negro a mais ninguém, senhor Wilson?

-Não diga disparates. Leve-o consigo. Leve-o consigo. Depois
manda o dinheiro.
Medes pôs-se de pé, pegou outra vez nas roupas, e depois caiu de
Joelhos em frente da cadeira do velho, abraçou Wilson e escondeu o
rosto no seu peito. Os soluços fizeram-no estremecer.
-Que se passa, Medes? Eu perguntei-te primeiro, antes de te
vender. Então, então, o senhor Maxwell liberta-nos do
compromisso. Não tens que ir. Levanta-te.
Medes agarrou-se mais a Wilson.
-É melhor-disse. -Eu quero ir. Eu quero uma fêmea. Eu quero lutar.
Mas eu gosto de si, patrão. É tão bom, patrão, siô, e tão velho. Gosto
muito de si.
Wilson passou os dedos frágeis pela carapinha do enorme negro e
deu-lhe umas palmadinhas ternas. Depois libertou-se do abraço do
rapaz e afastou-o. Havia lágrimas nos seus olhos mas não as
enxugou. Pôs-se a olhar para a janela, enquanto Medes se erguia e
pegava nas suas roupas pela terceira vez.
-Mais nada, patrão?
-Mais nada, Medes. Podes ir-te embora. Isto é, a menos que o teu
patrão, o teu novo patrão, tenha ordens a dar-te.
-Não, acho que não -disse Hammond. -Podes ir. Está pronto
amanhã de manhã, muito cedo.
0 silêncio que se seguiu à saída do negro foi quebrado por Charles.
-É muito poderoso. Levamo-lo à cidade e fazê-mo-lo lutar no
sábado? Eh primo Hammond?
-Primeiro treinamo-lo. Temos que o ensinar e que o endurecer. Ben
entrou com uma braçada de lenha para a lareira e colocou-a no
lume. Enquanto varria as cinzas e limpava a lareira, ninguém falou.
Ele levantou-se para sair.
-Vendi o Medes, Ben -anunciou o patrão.
-Vendeu o Medes? Nunca pensei que fizesse isso, siô.
EntãoTheCoigri está a acabar. Partiremos em breve.



-Sim, iremos em breve -ecoou o patrão.
-A cela está quase pronta, siô. Comeremos uma perna da corça que


o velho Frank matou no bosque.
-Não devia matar corças. Deixem-nas viver e procriar. Diz ao
Frank que não mate corças -disse Wilson.
Capítido décimo terceiro

-Vamos cedo para a cama em The Coign. Não há muito a fazer. Ler
à luz das velas faz-me mal aos olhos, embora queira ler Propércio só
mais uma vez, só mais uma, antes de morrer -declarou Wilson,
afastando a cadeira, à mesa da ceia, e esvaziando o cálice de Porto Acha
então que tem de partir amanhã? Gostava que ficasse mais
tempo. já não vem muita gente a The Coign, e muito menos jovens.
Foi muito agradável.
-0 pai está à espera. Temos que ir, temos de partir cedo. Acha que o
rapaz acompanha os nossos cavalos?
-Talvez o atrase um bocado. Tenciona parar durante a noite? Ou
quer ir directamente? São mais de sessenta milhas, perto de setenta.
-Pararemos. Não quero dar cabo dos cavalos, e muito menos do
rapaz -disse Hammond.
-Não chicoteie o Medes. Ele corre o mais que puder, sem chicote.
-Não trago chicotes comigo. Não tenciono chicoteá-lo. Iremos a
passo -prometeu Ham.
-Hão-de querer raparigas para passar a noite, julgo eu -propôs
Wilson. -Não me esqueci de quando era novo.
-Não é necessário. Estou muito cansado corri a viagem desde
Crowfoot -protestou Hammond, delicadamente.



-E o senhor? -disse o velho, voltando-se para Charles. -Não é
jovem de mais para lutar com uma fêmea saudável? Não desejo
corromper a juventude.
Charles olhou para o prato, com embaraço.
-Eu tenho uma fêmea, em casa. 0 meu pai deu-ma.
-Bem, bem, já calculava -disse Wilson. -Bem, aquelas três raparigas
já estão prontas? Trá-las aqui e deixa os senhores escolherem.
-A Letícia não pode vir, siô. É a altura dela, a altura do mês, siô. explicou
Ben.
-Bom, traz as outras duas -ordenou Wilson. -Tenho estado à
espera de rapazes brancos apresentáveis para estas raparigas. Corri
excepção do irmão delas, meio irmão aliás, não tenho machos
jovens para elas e não gostava de as dar a um velho. São boas de
mais. São mesmo especiais.
-Virgens? -perguntou Charles.
-Receio que sim, se é que a virgindade tem valor. Terei que pedirlhes
que as livrem dela.
Ellen e Edria tinham estado à espera na cozinha. Entraram atrás de
Ben e ficaram na sombra. Edria sufocou um risinho com a mão.
Estavam ambas envoltas em vestidos bem engomados que
chegavam ao chão.
-Venham cá, minhas queridas, e deixem os senhores verem-nas ordenou
Wilson, estendendo a mão num convite.

Edria avançou, seguida por Ellen, fingindo relutância e pôs-se ao
lado da cadeira do patrão. Ambas olhavam para o chão. Ele pegou
na mão de Ellen e deu-lhe uma palmadinha.
-És virgem, não és Ellen? Quer dizer, estás pura, nunca tiveste um
homem. Não é assim? -inquiriu o patrão.
Ellen acenou afirmativamente.
-Estes senhores, o senhor Maxwell e o senhor Woodford querem
que vão dormir com eles, nas suas camas. Sabem o que isso
significa, não sabem?


Ellen corou e acenou outra vez, e Edria sufocou outro risinho.
-Querem ir? Têm a certeza?
-Faço o que o patrão diz -assentiu Ellen. A outra concordou, em
silêncio.
-Vai doer. Vocês sabem -avisou Wilson.
-Eu sei -disse Ellen. Falava por ambas. Edria lançou um olhar
tímido a Charles e baixou de novo a cabeça.
-Os senhores terão que decidir qual fica para qual. Há pouco por
onde escolher, penso eu. Anda cá, Ellen e deixa estes senhores
verem-te.
A indiferença de Hammond era real.
-Qualquer delas -disse.
-Eu gosto da mais pequena, da mais pequena. Eu prefiro aquela declarou
Charies sem reticências.
-Estas duas e a outra são as únicas fêmeas jovens que me restam.
Eu tive um capataz jovem em The Coign durante umas estações, há
dezasseis ou dezassete anos, um rapaz bonito, de boa figura,
chamado Hall, Willis Hall. Era um branco ordinário, mas conseguiu
boas colheitas de algodão. As raparigas da plantação andavam
todas loucas por ele e ele por elas. Eu não tinha um bom macho
para procriar, na altura, de modo que deixei o Hall à vontade. Fe z
estas duas, outra rapariga e um macho pequeno, além de quatro ou
cinco outros que morreram quando eram ainda bebés ou pouco
depois. Tudo o que ele fazia saía bonito mas frágil, não
propriamente enfezado, só frágil. Não sei porquê; ele próprio era
forte, um malandro robusto, capaz de vigiar um grupo de
lenhadores todo o dia e fornicar toda a noite, tendo tanto prazer
numa coisa como na outra, Não era muito grande, mas era perfeito
e cheio de sêmen. Quase deu cabo dos pretos; matava-os com
trabalho, mas o algodão que conseguiu valia mais que os negros
que matou. Ainda cá estaria se não lhe desse para a religião.
Começou a fazer rezas pela plantação toda, e finalmente descobriu
que tinha vocação para pregar. Tinha visões, ou coisa parecida, em


que ouvia o Senhor a chamá-lo para congregar os pecadores.
Durante um mês não tocava nas mulheres; no mês seguinte atirava-
se a elas, pior do que nunca. Creio que o desejo de pregar era
simplesmente saciedade da carne negra e falta de mulheres brancas;
as pretas já não lhe serviam. Foi-se embora e, desde então, não
tenho tido sorte com os capatazes, nem nunca mais tive uma
colheita de algodão razoável.
-Willis Hall Era o pregador de Benson, no ano passado, até se meter
num sarilho qualquer -disse Hammond.
-De vez em quando oiço falar dele, por aí. Fez-se um grande
pregador -disse Wilson. -Sarilho com mulheres, não?
-Não, foi qualquer coisa relacionado com ele e outro tipo de
Natchez tentarem roubar um negro. Se houvesse provas, tinha sido
enforcado. Mas assim, só correram com ele.
-Pois bem, o Hall foi o procriador destas duas. Acho que hão-de
gostar delas. -Wilson ergueu-se. -0 Ben dir-lhes-á onde os homens
dormem, pequenas; vejam se estão bem limpas.

0 velho tentou demonstrar, com valentia, que era capaz de regressar
sozinho à biblioteca, mas Ben seguiu ao lado dele, e, a meio
caminho, Wilson submeteu-se à ajuda do mordomo, Ben auxiliou o
patrão a sentar-se na sua cadeira habitual, junto da lareira, encheu o
cachimbo e levou-lho, acendendo-lhe com uma varinha a arder que
rapidamente foi buscar à lareira.
-E chega-disse ele. -Quando acabar defumar, é a altura de ir para a
cama.
-Eu vou -concordou o patrão. -Estes senhores darão desconto à
minha idade e perdoar-me-ão por não lhes fazer companhia.
Gostava de conversar um pouco, mas os velhos precisam de dormir,
não que eu não vá dormir de vez brevemente. Mas o Ben é quem
manda.
-Nós não queremos incomodá-lo, senhor Wilson -respondeu
Hammond. -Nós também estamos cansados.


-Eu não estou cansado. Não fiz nada, a não ser andar a cavalo protestou
Charles e Ham olhou-o, desaprovadoramente.
-Fiquem à lareira o tempo que quiserem. 0 Ben trará o que
desejarem. The Colgri é vossa -disse Wilson generosamente. -Não
temos distracções para a juventude, mas eu desejava,
egoisticamente, pedir-lhes que prolongassem a vossa estada.
-0 pai está à espera, em casa, com duzentos negros preguiçosos que
nem valem aquilo que comem. 0 pai não os faz trabalhar. Não pode,
por causa do reumatismo. Temos de nos ir embora.
-São horas de ir para a cama, patrão, siô -comunicou Ben. -Venha já,
siô, se faz favor. É altura de se levantar daí.
-Bom, ordens são ordens, meus senhores -disse o velho,
suspirando, resignadamente. -0 Ben tratará dos senhores. Espero
que gostem das as, mas não é obrigação. Não lhes fará mal mais uns
meses de virgindade; nã o é obrigação. Boa noite. Ben leva-os aos
quartos, quando estiverem prontos para subir.
Enquanto falava, a mão do mordomo, sob o seu braço, ajudava-o a
erguer-se.


Hammond levantou-se e fez o sinal a Charles para fazer o mesmo.
Wilson estendeu a mão a Charles primeiro. Enquanto apertava com
força a mão de Hammond, disse-lhe:
-Deus o abençoe por ter vindo, meu rapaz. É como o seu pai. Não
se esqueça de lhe dar os meus cumprimentos.
Depois de a porta se fechar, Hammond ouviu o velho injuriar o
mordomo por o ajudar, mas aceitou a ajuda com gratidão e até corri
certo encanto.
-Não faz mal nenhum aldrabar o velho -observou Charles,
deixando-se cair de novo na cadeira.
-A respeito de quê?
-De tomar conta do preto. 0 velho não sabe nada sobre lutadores.
Nunca pôs negros a lutar.



-0 senhor Wilson já se esqueceu de mais coisas do que as que nós
sabemos; teve mais negros do que todos os que nós já vimos. Olha
para estes livros; já leu todos.
-Falam de negros? Dizem como eles devem lutar?
-Não propriamente. Mas falam de multa coisa. Alguns deles estão
numa linguagem que não conseguimos entender, nem a sabemos
ler.
-Para que servem? Provavelmente para tanto como a Bíblia que a
mãe lê. Ninguém percebe o que aquilo quer dizer. -Charles cuspiu
para o fogo e mudou de assunto. -Aquela fêmea, a Edria, parece
bem boa. E virgem, diz ele. Não tem as mamas muito grandes; mas
são boas e firmes. É melhor que a sua, acho eu. Melhor que a Katy.
-já sabe que não vai chicoteá-la, como fez com a sua, na noite
passada
-avisou Hammond. -Ela é do senhor Wilson e ele não gostava.
Corno viu, trata os seus negros com bondade.
-É preciso fazer com que os negros gostem de nós, olhem para nós
com respeito. Além disso, eu gosto. Dick, o meu irmão, como sabe,
chicoteia sempre as fêmeas antes. Não é para as magoar,
compreende, é só pára as fazer chorar.
-Deixe lá o Dick. Porte-se bem. É tudo. Se não se portar bem,
quando chegarmos a Falconhurst, dispo-o e castigo-o como se fosse
um negro.
Ben abriu a porta.
-Os senhores desejam alguma coisa?
-Só ir para a cama -disse Hammond. -Leve-nos até ao quarto,
quando estiver livre.
-Então venham comigo -disse o velho mordomo, cuja dignidade
obrigava à deferência. -Por aqui, meus senhores.
Mais do que nunca, parecia uma réplica do patrão, mais novo e
mais vigoroso, mas com a mesma pose, os mesmos gestos.
Ao cimo das escadas, abriu uma porta e fez uma vénia.



-Para o senhor mais novo -disse. -Creio que encontrará tudo o que
precisa; mas eu volto.
Um pouco mais adiante, indicou a Hammond um quarto de
esquina, iluminado por seis velas em dois candelabros.
Hammond olhou em volta, para observar a elegância do quarto, de
papel pintado, e do leito de dossel, com cortinados de seda
adamascada, antes de ver Ellen, que se levantara de uma cadeira.
0 mordomo pediu desculpa pelo cheiro a humidade que se notava
no quarto.
-Eu preferia que dormisse noutro quarto, que tivesse sido arejado,
mas o patrão preferiu este quarto tarde de mais, e eu não quis
deixar entrar o ar da noite -disse ele. -Tem aqui uma bebida, se a
desejar, e há mais cobertores naquela cadeira, se sentir frio. Creio
que vai chover.
-Não se incomode -disse Hammond.
-0 nome da rapariga é Ellen. Vai achá-la tímida, não está habituada
à cama, mas é dócil, Vai obedecer-lhe, siô.
-Eu sei.
-Eu trago a caçarola de aquecer antes de estar pronto para a cama disse
o mordomo, curvando-se.
Hammond sentou-se na cama.
-Vais ter de ajudar-me a tirar as botas -disse a Ellen. -Sou aleijado,
como vês.
-Sim, siô; eu sei, patrão -disse Ellen, avançando, ajoelhando
perante Hammond e estendendo as mãos para a bota.
-Não tenhas medo, Ellen. Não vou comer-te.
-Não tenho medo, patrão -mas Ellen tinha medo, mais medo dela
própria do que de Hammond. Conseguiu tirar-lhe as botas antes de
irromper em lágrimas.
-Está bem, negra. Não chores. Não queres ir para a cama com um
aleijado, e ninguém te obriga. Podes ir-te embora, logo que eu me
dispa. Eu não me ofendo.



-Não é isso, patrão. E que eu não sei como é. Não sei o que quer que
eu faça, siô. Eu quero agradar-lhe.
-C laro que me agradas. Agradas-me mesmo muito, és de primeira
categoria.
Hammond ergueu-se e levantou a rapariga e abraçou-a. Estavam
assim quando Beri voltou com a caçarola cheia de brasas para
aquecer a cama.
-A rapariga não quer despir-se? -perguntou e, antes que
Hammond pudesse responder, pousou a caçarola na lareira,
arrancou os botões do vestido da rapariga, que não se defendia, e o
vestido caiu no chão. -Se as trazemos para a casa grande, ficam
envergonhadas, julgam que um senhor nunca viu uma rapariga
nua. Ben aplicou uma pancada rápida nas nádegas da rapariga. Gordas
-disse; -temos que as alisar. 0 peito também está atrasado;
ainda não estás madura.
-Está muito bem. Eu gosto delas arredondadas. Tem boas mamas,
para uma virgem -disse Hammond, defendendo a rapariga. -E
bons membros, também, não é magrizelas -acrescentou, passando a
mão, aprovadoramente, pelas coxas de Ellen. A depreciação que
Ben fizera da fêmea dissipou a indiferença de Hammond perante a
sua beleza e despertou o seu interesse por ela.
Talvez a ache agradável, siô. Tem que ser firme. Use-a como se fosse
sua, siô.
Ben tinha pegado na caçarola e passava-a lentamente, de um lado
para o outro, sobre os lençóis. Soltou os cortinados e puxou-os, aos
lados da cama, deixando um espaço para entrarem.
-Se precisar de mim -acrescentou -eu durmo no chão em frente do
quarto do patrão, que é ao lado deste.
Hammond sentou-se numa cadeira baixa, para que Ellen o despisse,

o que ela fez cuidadosamente, evitando tocar-lhe na carne. Estava
de cabeça baixa e Hammond não percebeu que ela chorava, até a
ouvir abafar um soluço.

-Que tens, Ellen? -perguntou. -Estás a portar-te como uma branca, a
chorar e tudo. Não sabes.que és apenas uma negra? Se não gostas
de mim, não precisas de ficar.
Hammond tentava desajeitadamente consolar a rapariga.
-Eu gosto de si, patrão. Eu gosto de si. Por favor, deixe-me ficar, só
esta noite, só uma noite. Eu sei que não sou suficientemente bonita
para estar na sua cama. Sou gorda e sou feia, mas vou tentar.
Estava de joelhos diante dele, e, apesar de ter sido tão cautelosa a
evitar contactos com ele enquanto o despia, atirou-se
impetuosamente para a frente, abraçou-se ao corpo dele e encostou
a sua face firmemente, ao seu ventre.
As dúvidas de Ellen quanto à sua beleza não eram justificadas. A
sua figura, é certo, era arredondada, não gorda; os seus seios eram
imaturos, mas firmes e os mamilos róseos erguiam-se
orgulhosamente sobre a pele cheia de veias azuladas. Os seus
grandes olhos castanhos eram sombreados por pestanas longas e
estavam bem afastados no rosto oval, de maçãs baixas. Tinha uma
cova no queixo, e apenas os lábios, ligeiramente grossos traíam a
sua origem negra. Embora a pele fosse escura, a sua cor não trairia a
origem, porque era mais clara que a de muitas brancas, dois tons
mais clara que a da prima Beatriz.

Para Hammond, o negro, fosse qual fosse o tom, era negro, mas não
sentia escrúpulos em tocar-lhe. Não apreciava o cheiro deles, que
considerava próprio da raça, mas Ellen não emitia esse cheiro. 0 seu
odor era limpo e ligeiramente pungente, feminino, mas dificilmente
detectável.

0 gesto dela despertou a compaixão de Hammond que a ergueu nos
braços e a beijou com urna piedade que se transformou em paixão.
Ficou confuso, ao notar o que fizera. Segundo o seu código, uma
fêmea servia para fornicar, não para namoros. Na noite anterior
tinha ficado chocado com o afecto que Charles demonstrara por


Katy. Talvez o seu código devesse ser revisto. Ao beijá-la, sentiu o
sangue correr mais depressa, um formigueiro na carne, a sua
intumescência aumentou, e a sua indiferença desapareceu.
Afastou as cobertas.
-Trepa -disse ele -enquanto eu rezo.
-E as velas?
-julgas que eu não posso apagá-las?


Capitulo décimo quarto

-Não gosto nada do aspecto do tempo. Vai chover antes da noite disse
o anfitrião, cheio de esperanças, ao saudar Hammond, ao
pequeno-almoço. -É melhor esperarem mais um dia.
-Estou habituado ao mau tempo, mas agradeço o cuidado. 0
Charies já se levantou? Importa-se de o chamar, Ben? Há-de ser
hora de partir, e o rapaz a dormir.
Hammond sentou-se à mesa e serviu-se de presunto e ovos.
-Dormiu bem, senhor Maxwell? Fez a sua fêmea feliz? -perguntou
Wilson, superficialmente. Nenhuma das perguntas exigia resposta.
Mas a última abriu caminho a um assunto que Hammond relutava
em abordar.
-Aquela fêmea, senhor Wilson -começou ele. -Bem, vende-me a
Ellen?
-Vender a Ellen? -o anfitrião riu-se. -Suponho que ela lhe agradou
muito. Lembre-se que ela não volta a ser a inesina. A virgindade
não regressa.
-Eu não a desvirginei.
-Não? Ela fez-se difícil? 0 senhor era um estranho para ela, sabe?
Larnento ...



-Não foi culpa da Ellen. Ela pediu-me, mas eu quero que ela seja
minha ... toda ela.. antes de a violar. Quer vender-ma? -explicou o
rapaz.
-Penso que a Ellen estará segura consigo, meu rapaz, mais segura
que com os outros. É bonita de mais. É essa a infelicidade dela. É
especial e acabaria por ir parar às mãos de qualquer jovem
desportista que a usasse durante algum tempo e voltasse a vendê-la.
Gostava que ficasse o senhor com ela. Consultou Ellen?
-Ela diz que gosta muito de mim. Quer ir comigo.
-Quanto dá por ela? Qual é a sua oferta?
-0 que quiser, senhor Wilson. Tudo quanto quiser. Mas quero levála
já comigo, se não se importa. Posso deixar o mandingo e voltar cá
para o vir buscar, e trago então o dinheiro. Mas quero levar a Ellen.
Quanto quer por ela?
Hammond tornava-se vulnerável, na sua urgência. Felizmente para
ele, o proprietário de Ellen estava menos interessado no preço do
que no comprador. Fechou os olhos e o rapaz pensou que ele
adormecera. As suas pálpebras agitaram-se e abriu-as.
-Hum, mil e quinhentos, talvez. Eu sei que ela valeria mais, depois
de eu morrer, mas mil e quinhentos está bem.
Muito obrigado. Não é muito. É o bastante. Se Warren não gostar
dela, pode vendê-la com lucro.
-0 pai vai gostar dela. Tem que gostar dela. Tem que gostar dela repetiu
Hammond.
-Se não aproveita aquela uva antes de chegar a casa, o Warren trata
disso. 0 reumatismo dele não pode estar assim tão mal, garanto-lhe.
-Então a Ellen é minha, e posso levá-la?
-Sim, e quero que lhe leve o irmão dela, como presente para o
Warren.
-Eu compro-lho, se a Ellen o quer -ofereceu-se Hammond.
-Não, quero oferecê-lo ao Warren MaxwelI, quero saber que não
será vendido. 0 Warren não venderia uma oferta.



-Acha que não terá problemas com o judeu por eu levar a Ellen e o
macho grande sem pagar?
-Não há problemas. Pode mandar-me o dinheiro, o suficiente para
pagar as hipotecas deles. Quanto ao resto, não há pressa, não há
pressa nenhuma. Ainda vivo mais uns meses, e se não viver ...
Wilson ergueu as mãos dos braços da cadeira, como a completar a
frase, A entrada de Charles afastou o anfitrião dos seus mórbidos
pensamentos.
-Vai ter que levar um negro na garupa -explicou-lhe Hammond.
-A menos que ele fuja, é melhor o Hammond e eu montar-mos no
seu cavalo e dar-lhe o meu. Aquele macho é tão grande como nós os
dois juntos.
-Não é ele. Não é o mandingo. Esse vai a pé, Eu ... eu comprei uma
fêmea e o senhor Wilson deu-me um miúdo, para o meu pai.
-E o miúdo não pode correr? -perguntou Charles. -Quer levar a
fêmea consigo, suponho eu. Porque é que o preto grande não leva o
pequeno às costas?
-Talvez seja melhor levarem a minha carroça -sugeriu Wilson. –
Podem devolvê-la quando quiserem.
-Nós arranjamo-nos, senhor Wilson; Medes vaia pé, o garoto atrás
do Charles e a Ellen atrás de mim. Vamos bem. A Ellen é capaz de
montar escarranchada, não é?
-Se a mandar. É a melhor maneira de montar a dois, para uma
distância grande. Mas sabe o perigo que corre; pode rasgá-la e lá se
vai a virgindade.
-Não se preocupe. já sei que ela a tem. Se o cavalo a rasgar, poupa-
me o trabalho -declarou Hammond.
-Não conseguiu desvirginá-la? Ela lutou? -perguntou Charles
espantado.
-Esqueça isso -disse Hammond. -Esqueça isso.
-Estou satisfeito por ter ficado com a Edria. Nunca me afastou.
Chorou e gritou, e isso tudo; mas não lutou. É sempre o Dick que


fica com as virgens, lá em casa, antes de mas passar. Agora já sei
como é.

-É a educação de um cavalheiro -observou o velho. -Não perdeu
pela demora.
A quietude do dia nublado era agoirenta. 0 velho negro que os
recebera à entrada e agora os conduzia à saída, olhou para o céu,
abanando a cabeça, espantado, pensando qual seria a tarefa urgente
que obrigava um branco a sair com aquele tempo. Medes teve a
ousadia de se sentar sobre o pórtico, sabendo que, com as
despedidas, não seria repreendido.

Jasão deu a volta à casa e foi ter com Medes, mas não se sentou.
Ellen, quando chegou, trazia os olhos vermelhos de chorar e voltou
duas vezes à cabana, mas, de ambas as vezes regressou sem trazer
nada nas mãos. Afastou-se dos outros.

Cerca de vinte trabalhadores, velhos e de meia idade, juntaram-se
perto da mansão, mas nenhum se aventurou a ultrapassar a
fachada. Edria e Letícia avançaram furtivamente, para darem um
beijo final a Ellen, que se agarrou a elas, e a Jason, que fingia
indiferença. Medes observava-as e sabia que, se aqueles beijos
tivessem sido para ele, teria chorado.

Era uma ocasião solene para os três, pois nenhum deles tinha ainda
ultrapassado as fronteiras de Coign. Tinham tomado eles próprios a
decisão de partir. 0 seu antigo patrão não teria disposto deles sem
os seus consentimentos. Na verdade, tinha motivos para os vender,
razões que eles não deviam pretender conhecer, mas todos eles
sabiam que, se pedissem para ficar, ele anularia o negócio, e ficaria
com eles até morrer. Iam, portanto, pelo menos por sua vontade
nominal, mas a sua partida era tão solene, como se tivessem sido
forçados. A atmosfera opressiva não lhes levantava a moral.


A porta da frente abriu-se e Charles saiu, seguido de perto por
Wilson, guiado por Ben. Hamnond foi o último a sair. 0 anfitrião
apertou as mãos dos dois convidados e, entre expressões de prazer
mútuo, Charles e Hammond montaram. Charles estava impaciente
e aborrecido com a prolongada despedida de Wilson dos seus
escravos. Hammond esperava pacientemente.

Medes conservou-se timidamente afastado, enquanto o patrão
beijava e abençoava o rapaz e a rapariga, recomendando-lhes
obediência. Avançou, envergonhado, de cabeça baixa, quando foi
chamado, e, quando o patrão tocou com os lábios na sua face
enorme, sentiu lágrimas nos olhos. Medes não se lembrava de ter
sido beijado alguma vez e, de súbito, pensou que nunca mais
voltaria a ver o homem a que a bondade devia aquilo que Medes
mais desejava -comida à vontade, abrigo, protecção, a ausência de
maus tratos, aquilo que entre patrão e escravo e justiça, clemência
mesmo.

0 garanhão, que não estava habituado a carga dupla, relinchou e
recuou, protestando, quando Ellen, com a ajuda do moço da
cavalariça, tentou montar por trás de Hammond. A segunda
tentativa, sentou-se de lado na sela, mas a sua longa sala impedia-a
de se escanrranchar.
-Não podes montar assim -queixou-se Hammond. -Acabas por
escorregar e arrastar-me contigo. Tens de abrir as pernas.
Ellen puxou o vestido para cima, até ficar pelos joelhos, recuou na
garupa e conseguiu passar uma perna pela frente. Depois ajeitou-se,
procurando ficar o mais confortável que conseguia. Sentia-se mal
por mostrar as pernas e tentou puxar a saia para baixo.
Jasão, com a ajuda do moço, montou facilmente atrás de Charles e
agarrou-se ao corpo dele, ficando com as pernas soltas, sobre as
ancas do cavalo.


-Pronto, Medes? Então vamos -disse Hammond, pondo o cavalo
em movimento e fixando o ritmo em passo lento, enquanto os
cavaleiros rodeavam o relvado e penetravam na área das nogueiras.
Medes seguia os cavalos num trote lento. Levava os sapatos a
baloiçar na mão esquerda. Antes de chegarem ao portão, tinha
ultrapassado os cavalos e seguia à frente. Afrouxou, para saber para
que lado devia voltar.

Capítulo décimo quinto

Hammond dirigíu-se para ocidente. 0 longo caminho pouco
frequentado era bom, cortado por pequenas ravinas e, em certos
locais, por miseráveis ervas daninhas, mas sempre distinto e
utilizável. Os cavalos irromperam num trote lento, e Medes alongou
a passada, correndo facilmente ao lado do caminho. Hammond
perguntou-lhe se ele estava bem, se podia seguir o trote dos cavalos
e o mandingo disse que podia.

Atravessaram um regato e Medes deitou-se no chão para beber um
pouco e correu para alcançar os cavalos. Os outros tinham sede, mas
não suficiente para os forçar a desmontar. As casas eram poucas e,
na maior parte dos casos, apenas pequenas cabanas feitas de
troncos, e uma ou outra, ocasionalmente, de ripas. Passaram por
uma casa de dois andares com uma longa varanda em frente. Por
trás havia quatro ou cinco cabanas, mas não se via ninguém, os
campos estavam cheios de ervas e o local parecia abandonado.
Eram quase duas horas quando chegaram ao núcleo de uma aldeia



uma mercearia, que também vendia secos, e servia uísque, um
ferreiro, um grande celeiro, em cujo pátio duas mulas e um cavalo
esparvonado preguiçavam ao sol, e quatro casas espalhadas, a
maior das quais ficava junto do caminho e tinha duas cabanas por
trás.
-Talvez arranjemos comida. Parece uma cidade -disse Hammond. Desliza
e desmonta, Ellen.
A rapariga deslizou rigidamente para o chão, deslocou o seu
vestido de Osnaburg do traseiro, onde o suor o colara, e baixou
modestamente a saia amarrotada. Hammond ergueu-se nos
estribos, lançou a perna boa sobre a garupa do cavalo e desengatou
agilmente a perna rígida. Jasão deslizou precariamente pelo rabo do
cavalo, com risco de levar um coice, e Charies desmontou com um
suspiro de alívio. Os brancos ataram as montadas à longa e pouco
segura cerca que ficava junto do armazém.
0 merceeiro estava recostado na sua cadeira, ao lado do fogão, onde
nada ardia. Levantou os óculos de aros de aço e colocou-os na testa
com uma mão, colocando de lado o jornal com a outra, mas não se
levantou para saudar os clientes.
-Quem acham que vai ser vice-presidente com o velho Andy, desta
vez? Talvez o Johnson? É um bom homem, apesar de viver com
aquela rameiro, negra. Que é uma rameíra a mais ou a menos? Eu
estou por ele, e todos o querem.
-Acho que sim -concordou Hammond, sem compreender. -Onde
posso arranjar comida para os nossos cavalos e jantar para nós?
0 homem levantou-se e dirigiu-se à montra, antes de responder.
-0 velho Crocodilo, ali do celeiro, dá de comer aos animais. São
dois, não é? Pague aqui; vinte cêntimos cada; quarenta cêntimos,
está certo. Digam ao Crocodilo que eu digo para lhes dar muita
aveia e água fresca. Os cavalos estão cansados e com sede. Vêm de
muito longe?
-Da Plantação Coigri -respondeu Hammond. -Pode-se arranjar
jantar?


-Não sei, A míss Lane mora do outro lado da rua. Esta terra chama-
se Lane por causa do falecido; foi ele quem começou isto, fixou-se
aqui e construiu as casas. A miss Lane talvez diga à Flora Manca
que lhes arranje comida. Não sei. Não faziam mal em experimentar.
Mas digo-lhes que ela é careira. Leva-lhe quase o mesmo pelos
negros. Ninguém a consegue levar. É negreiro? Muito novo para
esse trabalho, a menos que o seu pai já o fosse.
Hammond levou tempo para negar a profissão.
0 merceeiro foi até à porta, pôs as mãos à volta da boca, em concha,
e gritou:
-Crock, Crock! -e esperou. -Crocodilo, meu malandro@
-Sim, siô, patrão -ouviu-se, do celeiro.
-Só respondes quando eu berro. Queres outra sova? Dá de comer
aos cavalos deste senhor. Aveia. Aveia, ouviste, não é milho. E dálhes
água, percebeste? E esfrega-os bem enquanto o senhor come. já
está pago. Trata-os bem ou tens que dormir de barriga para baixo.
-Eu trata bem, patrão, siô. Eu trata.
0 merceeiro tinha dado as instruções directamente ao seu negro e
Hammond achou inútil seguir Medes que levava os cavalos para o
celeiro. Em vez disso, atravessou a rua e bateu à porta da senhora
Lane. Apareceu uma pequena mulher branca, de lábios azulados,
com sessenta anos aproximadamente. Tinha o cabelo tão esticado e
preso no alto da cabeça, que as sobrancelhas se erguiam com a
tensão. Um dedo com a unha suja espreitava de um buraco da sua
meia preta, mas o vestido sem cinto, de algodão cor de indigo, que a
envolvia, era fresco e tinha tanta goma que em certos locais ficava
mais escuro. A fechar a gola tinha um alfinete de peito fininho, no
qual ainda restavam vestígios a indicar que fora dourado.
-Sim, sim, penso que a Flora lhes pode arranjar presunto e ovos, ou
coisa parecida. Dois senhores, três negros, hem? Os negros pagam o
mesmo que os senhores. São duas moedas, vinte e cinco cêntimos,
seja para quem for. Os negros não entram na casa, não os quero cá.


Levam a frigideira e podem comer na varanda da mercearia, 0
senhor Wallace deixa.
Hammond concordou com as condições da mulher.
-Entrem e sentem-se enquanto a Flora prepara a comida. A grande
sala nua era mais fresca do que o exterior e Hammond aceitou o
convite, fazendo sinal ao primo. A senhora Lane indicou-lhes os
lugares e retirou-se.
-Tenho fome -protestou Charies, em tom mimado.
-Não leva muito tempo. Se calhar não presta. Temos que esperar consolou-
o Hammond.
Os odores da comida encheram a casa e, dentro de pouco tempo,
que pareceu longo para Charles, a senhora Lane voltou.
Pode chamar os seus criados -disse ela -Eles que venham à porta
das traseiras; as frigideiras deles estão prontas. É o mesmo que para
os br3ncos, mas sem pratos. Depois podem vir comer.


A toalha de algodão vermeho colocada sobre a mesa coxa, com um
rodízio partido, estava manchada de comida, e a casa de jantar era
gelada, com as suas altas paredes cinzentas, sem qualquer relevo
além de grandes manchas que pareciam ter resultado de ovos
atirados à parede com grande força. Havia cadeiras de cozinha, sem
pintura, com assentos duros e costas torneadas, alinhadas de um
dos lados da casa, com excepção das duas quase encontravam junto
da mesa. 0 chão estava limpo mas nu, havendo apenas um pequeno
tapete de farrapos, enrugado, com um buraco, colocado em frente
de uma cadeira de balanço baixa, com almofadas, que estava junto
da única janela.


A comida estava toda na mesa -numa pungente exibição: presunto
e bacon espesso fritos, ovos mexidos, biscoitos quentes, exalando o
habitual excesso de soda, uma tigela redonda de manteiga dourada,
picles, geleia, um jarro de leite, e uma grande cafeteira de folha com
café.



A senhora Lane sentou-se na cadeira de balanço e deu instruções a
Flora que cozinhara a refeição e se esforçava por serví-la. Pouco
havia para ela fazer, visto que a comida estava ao alcance dos dois
comensais. Flora arrastava o pé direito e não podia mexer o braço
do mesmo lado. Era alta, angulosa, de ossos salientes, com um
grande incisivo ao lado de um buraco nas gengivas, no sítio onde o
dente correspondente faltava, o que a obrigava a cecear as poucas
palavras que pronunciava. Uma década mais nova do que a patroa,
não era totalmente negra, talvez mulata, ou, mais provavelmente,
resultante do cruzamento de um mulato com urna negra.


0 jantar sabia tão bem corno cheirava. Os rapazes estavam
demasiado esfomeados para se queixarem, mas a comida suportaria
qualquer crítica. A senhora Lane, sentada junto da janela,
depreciava a comida para depreciar Flora, mas sabia que estava boa.
-Aquela negra preguiçosa está acabada. Isso mesmo, acabada.
Costumava cozinhar bem, comigo atrás dela e dar-lhe instruções,
mas já não. Queima tudo ou deixa as coisas cruas. Olhem para os
ovos! Flora, enche os copos e passa o presunto, ouviste, e dá picles
aos senhores.
-Sim, siô, patroa -murmurava Flora, revirando os olhos para o lado
da senhora Lane.
-Não a querem? Não querem comprá-la? 0 Ben tenta livrar-me dela
há muito tempo, Vendo-a barato,


Hammond negou o seu interesse, mas a senhora Lane insistiu:
-Ofereço-a a todos os negreiros que passam mas nem lhe tocam,
nem olham para ela. Dizem que os negros estão a subir, mas nem
parece. Claro, Flora não é uma beleza, não a ofereço como se fosse
especial, mas sempre deve valer qualquer coisa. Aquele coxear não
conta. É quase tudo fingido para não a comprarem. Do que Flora
precisa é dumas vergastadas para andar como deve ser. Não leva



uma sova desde que o Lane morreu. Eu não ia fazer isso e o senhor
Wallace da mercearia não quer fazê-lo. Eu pedi-lhe. É disso que
precisas, Flora, dumas boas vergastadas. É ou não?
-Sim, siô -admitiu Flora com relutância. -Mas da última vez que o
patrão bateu em mim, eu ficou aleijada, Acho que castigo arruinou
eu.
Hammond acabou de comer e esperou por Charles. Tinha escapado
a Wallace, mas tinha que aturar a senhora Lane.
Esta prosseguiu no seu monólogo.
-Então não está interessado em comprar Flora? É só meia negra,
mas continuo a tentar. Hei-de ver-me livre dela, algum dia hão-de
ma comprar.
Charles terminou finalmente e Hammond ergueu-se.
-Está satisfeito? -perguntou a senhora Lane. Quando Hammond
disse que estava satisfeito e o jantar estava bom, ela disse:
-É um dólar e meio por tudo, Tenho que cobrar o dobro por aquele
macho grande. Comeu por dois, É um dó lar e meio. Claro, se não
pagar a dobrar por ele...
Hammond pagou sem protestar. Abriu a porta para ver como
estavam os seus negros e viu que o céu estava com mau aspecto.
Tinha-se levantado vento e no céu corriam nuvens debruadas a
cobre. Sentia-se um certo alívio, depois da quietude asfixiante.
Hammond atravessou a estrada e olhou para as frigideiras de ferro
e as cabaças vazias, que estavam na frente dos escravos, no chão.
-0 jantar estava bom? -perguntou.
-Sim, siô, patrão -foi a resposta em coro, a que Ellen acrescentou*
-Obrigado, patrão.
Deu uma cotovelada a Jasão e ele levantou-se, baixou os olhos
envergonhado e disse:
-Obrigado, patrão, siô. Charles observou o firmamento, enquanto
atravessava a rua.
-Vai chover, parece-me; aguaceiros.



-Se partirmos, somos apanhados -disse Hammond. -Era melhor
passarmos aqui a noite. Não vale a pena partirmos depois da
chuvada, se ela parar. Não chagávamos a parte nenhuma.


-Se a miss Lane nos aceitar -reflectiu Charles.
-0 celeiro é seco para os cavalos -disse Ham.
-E para os negros. A velha não os quer lá em casa ~ acrescentou
Charles.
-Acho melhor voltar lá e perguntar-lhe se tem quartos. Hammond
voltou a bater à porta dos Lane e esta abriu-se tão depressa que ele
ficou certo de que a mulher tinha estado a escutar o que se passava,
no alpendre de Wallace.
-Tenho uma cama, larga, para duas pessoas. Limpa. Sem
percevejos. Cinquenta cêntimos. Mas nada de negros, só um macho
se quiserem que ele os sirva, mas nada mais. Nada de mulheres.
Não me interessa o que façam no celeiro, sobre a palha, mas aqui
não. Nada de mulheres. Pode pedir ao senhor Wallace que lhe
arranje cama no celeiro. É melhor dizer-lhe que prenda o velho
Crock, se não quer que ele se agarre à rapariga.
-Também queremos ceia. Não é precisa muita comida, porque
jantámos tarde, mas queremos ceia.
-Não vai ser mais barato por isso -disse a viúva. -Vinte e cinco por
cada refeição, pequeno-almoço, jantar ou ceia, igual para os negros.
Hammond concordou.
-Os negros já comeram; não precisam de mais comida até amanhã.
Mas tem que lhes dar de comer de manhã, pelo menos ao que vai a
pé. Tem de ser. Não pode correr bem em jejum,
-Os negros comem quando eu como -declarou Hammond. -Quero
ceia e pequeno-almoço para eles.


Quando Hammond regressou ao armazém saía dele um homem
grande de pernas fininhas, seguido de um gordo adolescente de
rosto redondo e lábios grossos e protuberantes, rígido com o cabelo



cor de palha e ousados olhos cor de violeta. 0 rosto do homem
estava escondido por trás de uma espessa barba não aparada, com
pêlos ruivos e negros à mistura. Tinha olhos cor de violeta corno o
rapaz. 0 merceeiro saiu, atrás deles, e observou o céu.
É capaz de andar por aí um tufão -disse o merceeiro. Vamos passar
a noite em casa da miss Lane -disse Hammond. -Espero que tenha
lugar para os negros no celeiro.
-Se pagar, claro. São três?
-A miss Lane deixa o miúdo dormir no chão. Diz que é preciso
prender o seu preto por causa da rapariga.
-0 velho Crock é inofensivo; mas ponho-o a ferros, se quiser. Custa-
lhe vinte e cinco cêntimos pelos dois, além de nova ração para os
cavalos. Saí muito caro viajar, especialmente com pretos.
-É verdade -concordou Hammond. A chuva começou a cair em
grossas bagas, inundando a estrada. 0 vento aumentou de
intensidade e a água em breve corria em camadas ondulantes.
Hammond mandou os negros meterem-se mais para baixo do
edifício, para evitarem a água que caía do alpendre. A quietude
dera lugar à fúria. Os relâmpagos cruzavam o céu, seguidos de
trovoada que ecoava ensurdecedoramente. Jasão pôs-se a chorar,
com medo dos elementos e Medes colocou o braço em volta do
rapaz.
-Pára com isso -censurou Hammond a Jasão, -Não te vão fazer mal.
E se fizer, não o podes impedir. Não és nenhuma fêmea. Olha para a
Ellen.
É como aquela tempestade de há dois anos. -disse o merceeiro.
Perdi a sementeira e o feno, nessa altura -disse o homem da barba. Acho
que foi tudo pela ribeira abaixo. Pelo menos nunca encontrei
vestígios de nada.
A chuva abrandou, mas recomeçou logo com mais força e as rajadas
tornaram-se mais violentas. Houve um clarão deslumbrante,
seguido de um trovão, que parecia o fim do mundo. Jasão
estremeceu mas não chorou.


Durante o segundo intervalo o homem da barba disse, sem se
dirigir a ninguém em especial.
-Belos negros. Hammond acenou afirmativamente.


-Tenho andado a pensar em comprar um negro jovem e barato,
aqui para o Aristóteles. Ele tem ataques e suja-se todo e eu quero
arranjar um preto para tomar conta dele e o limpar -disse o homem
da barba.
-Uma fêmea -corrigiu Aristóteles. -Eu quero uma fêmea.
-Macho ou fêmea, tanto faz. Um macho é melhor, não incomoda a
tua mãe. Seja como for, ainda não podes ocupar-te de uma fêmea.
Hammond dirigiu-se à extremidade oriental do alpendre,
ostensivamente, para observar o tempo.
-Miss Lane, do outro lado da rua tem uma fêmea velha que vende
barato. Serve bem para aquilo que pretende -informou Chartes.
-A Flora Manca? -perguntou o merceeiro. -A miss Lane anda a
dizer que vende a Flora Manca há trinta anos, oferece-a barata a
todos os negreiros que aqui passam. Mas nem pagando em ouro
comprava a Flora. Miss Lane morria se não a tivesse para a
apoquentar. Seja qual for a que morrer primeiro, a outra segue-a
logo. A miss Lane dizer que vende a Flora já diverte toda a gente
por aqui. Nem quer nem pode vendê-la.
-Gostava que visse se me arranjava um macho barato, senhor
Wallace. Estão sempre a aparecer negreiros.
-Baratos já não se arranjam ~ respondeu o merceeiro. -Porque não
compra antes uma fêmea jeitosa para o Tóteles, boa para procriar!
Arrumava um miúdo por ano? 0 velho Crock está para ali, só serve
para comer, e nunca foi usado. Não lhe custava um cêntimo. É um
bom cliente.
-Não precisava do Crock. Eu próprio posso fazer isso melhor que o
Crock. Além disso, sou branco. Mas tenho medo que faça o Tóteles
ter mais ataques, estar a ver e não poder fazer nada. 0 Tóteles só tem
um testículo. Além disso, a minha mulher dava-me cabo da cabeça



se eu andasse com uma fêmea, ou com um macho que andasse atrás
das mulheres. Claro, podia castrar o macho.
-A chuva está a parar -disse Hammond. -Podíamos ainda fazer
umas boas milhas, mas acho que é melhor ficarmos. Podemos não
encontrar um sítio tão bom.
0 Sol, prestes a pôr-se, apareceu entre dois cúmulos, e, a oriente,
brilhou um bonito arco-íris. 0 homem da barba pegou na mão do
rapaz gordo e levou-o, rua abaixo.
-A lama está muito espessa, mas eles não moram longe-disse
Wallace. Observou os dois que saltavam sobre as poças de água. Não
gastava cinquenta dólares numa negra nem que fosse a rainha
do Sabá. Mas uma coisa é certa; aquele rapaz fede depois de ter tido
um ataque.
-Agradecia que mandasse o seu rapaz dar de comer aos meus
cavalos outra vez, se faz favor, senhor Wallace, antes de irem
dormir -pediu Hammond. -Tu e a Ellen dormem no celeiro. 0
senhor Wallace dá-lhes palha nova, talvez mesmo um cobertor. 0
Jason fica em casa comigo.
-Quer que nos deitemos, patrão? -perguntou Ellen.
-Depois da ceia.
-Quero pôr-lhes os ferros, antes de anoitecer. É melhor dar-lhes a
ração já.
-Os meus negros não precisam de ferro, mas é melhor pô-los ao seu
Crock, como disse a míss Lane.

Depois da ceia, Charles seguiu Hammond até à varanda da
mercearia, para ver corno estavam os escravos. Ellen não tinha tido
fome e Jason quase não comera. Medes, contudo, tinha consumido
as suas duas refeições, esvaziara a frigideira de Ellen e estava a
acabar o que Jasão deixara. ~ Estás doente, Jasão? -perguntou
Hammond, solícito. -Porque não comes?
-Não, siô, patrão. Ainda estou cheio do jantar. Táva só a pensar.
-Gostavas de voltar a The Coign, não é? Tens saudades?


-Não, siô, patrão. Eu gosto disto. Gosto de andar a cavalo. Gosto de
si, patrão, e gosto do patrão Charles. É tão alto, e tão bonito, e tem
um cabelo tão macio e tão liso. Não quero voltar para junto do
patrão velho, se puder ficar consigo ... e com ele.
Charles não estava habituado a elogios, e a admiração, mesmo
vindo de um escravo, impressionou o seu ego. Endireitou-se e
passou a mão pelo cabelo. Charles era alto, de facto, e tinha muito
cabelo. Pouco mais havia com que elogiá-lo, mas Jasão tinha tocado
nas suas vaidades essenciais.
Já não se sentiu tão satisfeito quando Jasão inquiriu:
-Patrão, por favô, siô, o patrão Charles é seu filho? É o pai dele?
Charles sentiu-se envergonhado da sua juventude e ofendido com a
sua comparação com a maturidade de Hammond. Contudo, sentiu-
se orgulhoso do parentesco, que Hammond explicou em poucas
palavras.
-Se não comes mais, Jasão, tenho que te dar óleo, quando
chegarmos a casa. Quando chegar a Primavera, talvez seja melhor
tomares chá de sassafrás -comentou Hammond.
Ellen tinha ido sentar-se noutro ponto do alpendre, sozinha,
Hammond foi ter com ela e sentou-se. Puxou-a para ele e sentiu os
seus seios endurecerem quando meteu a mão por baixo do vestido.
Ela afastou-se dele e Hammond repreendeu-a, mas com palavras
amáveis.
-Não fujas de mim. És a minha fêmea, agora. As tuas mamas são
minhas e posso brincar com elas sempre que me apetecer, não
achas?
-Sim, siô, patrão. Ele retirou a mão, inclinou a cabeça dela e beijou-a
na boca. A rapariga estremeceu, como que trespassada por uma dor
e ajoelhou-se no chão ao lado dele, pondo os braços em volta do
pescoço dele e beijou-o longamente. Depois, começou a chorar.
-Tens alguma coisa? -perguntou Ham. -Não gostas de mim?
-Patrão, siô, patrão, siô, patrão, eu amo-o, patrão. Não vê que eu o
amo?


Charles veio ao encontro deles. -As mamas dela são duras? ~
perguntou
-São jeitosas. Não muito grandes, mas jeitosas -respondeu,
formalmente.
-A Blanche tem boas mamas, É a única coisa boa que posso dizer da
Blanche é que tem boas mamas.
Hammond esquecera-se completamente de Blanche. A Lua quase
cheia, espalhava a sua luz sobre a paisagem. Hammond disse:
-Podíamos ter seguido. É melhor mandá-los para a cama e irmos
deitar-nos. Podemos partir bem cedinho.
Fez sinal aos escravos para o seguirem e dirigiu-se para o celeiro,
através da lama. ~ Charles, tu e o Jasão podem voltar para trás disse.
-Não vale a pena andarem a sujar-se. Esperem lá por mim.
A aduela que devia fechar o largo portão do celeiro estava presa à
cerca e Hammond ordenou a Medes que a quebrasse. Não era
necessário, pois o portão teve que ser levantado do chão para poder
girar nos. seus gonzos guinchantes. A chuva tinha ensopado uma
meda de feno, a palha, as vagens e as espigas que serviam de tapete
sob a lama, mas que soltavam um cheiro adocicado de estrume e
urina misturados com vegetais em decomposição. Ham abriu uma
das largas portas do celeiro; Medes abriu a outra, que foi preciso
escorar. Sobre o chão de terra batida caiu um trapézio de luar, e a
luz que passava pelas fendas verticais da parede do lado esquerdo
iluminava a parte de trás do chão e formava riscas até ao meio da
parede do lado direito.


Parecia escuro, dentro do celeiro, até que as pupilas de Ham se
adaptarem. Eclipse, sentindo o cheiro do dono, relinchou e
Hammond falou com ele.
-Hei, aí! Crock! -chamou o branco. Crock respondeu do fundo do
celeiro.
-Aqui tá eu, patrão. Aqui tá eu, siô, mas não pode ir, não pode.
Desculpa, patrão, siô, mas não pode ir. Eu tá a ferro.



Hammond caminhou, às apalpadelas, até ao local onde o negro
estava deitado.
-Por favô, patrão, siô, solta eu. Eu não faz mal à fêmea, siô, por
favô. Eu não gosta delas tão branca. Por favô, siô, patrão! -suplicou
Crock.
-Não tenho as chaves dos teus ferros. 0 senhor Wallace é que as
tem. Ele prendeu-te e amanhã de manhã é ele quem te solta.
Hammond apalpou a corrente, deu-lhe um esticão e considerou-a
segura. Tinha cerca de dois pés de comprimento, com uma das
extremidades seguramente fixada na parede a cerca de quatro pés
do chão, e a outra com uma algema em volta do tornozelo de Crock,
forçando-o a estar deitado de costas, com um pé no ar. Wallace
tinha-lhe atado os pulsos atrás das costas. Hammond soltou o nó
complicado. Crock continuou a agradecer a Hammond muito
depois de ele se ter afastado, entremeando os pedidos para lhe
retirar os ferros com expressões de gratidão por ter soltado a corda.
0 branco não fez caso dele; e após alguns violentos esticões à
corrente, Crock caiu para trás, com o pé no ar, mergulhando no
silêncio.

Wallace não faltou à sua palavra. Na parte da frente do celeiro,
Hammond encontrou dois montes de palha fresca, com um espaço
de vinte pés entre eles. junto de cada molho estavam suspensas
grilhetas abertas, uma delas ligada a uma parede e a outra a um
poste, à escolha de Hammond. As correntes chegavam ao chão e
teriam proporcionado menor desconforto às suas vítimas do que a
de Crock, se Hammond as quisesse usar.

Ham deu pontapés à palha para a espalhar e ordenou a Ellen que se
deitasse. Ajoelhou-se junto dela, acariciou-lhe rapidamente os seios
e beijou-a.


-Não é como a da noite passada -disse ele -mas a palha é espessa e
boa. Não é uma cama de penas como teremos em Falconhurst. 0
Medes toma conta de ti, não tenhas medo.

-Estou bem, patrão. Boa noite, patrão, siô -disse Ellen, estendida ao
luar.
-Toma conta da Ellen, Medes, e vê se aquele negro se solta.
-Sim, siô, patrão, se o patrão manda; mas eu vou magoar a Ellen, de
certeza. Ela é pequena e eu sou tão grande -avisou o mandingo. Eu
sei como é, mas preferia esperar para me dizer o que devo fazer.
-Meu malandro, se tocas naquela fêmea esta noite, mato-te à
pancada, nem que lhe toques só com um dedo. Não disse para
tomares conta dela dessa maneira. Quero dizer que não deixes
ninguém tocar-lhe, nem branco nem preto. Percebeste?
-Percebi, patrão. Hammond soltou uma das portas e ia fechá-la
quando Ellen apareceu e o chamou.
-Eu gosto do luar, patrão. Por favor, deixe as portas abertas.
-Está bem -disse Hammond. -Não faz diferença. Voltou a escorar a
porta e Ellen ficou a vê-lo sair a coxear sobre o lixo, abrir o portão
corri dificuldade e desaparecer na rua enlameada.

Quando Hammond se aproximou do armazém, viu Charles sentado
no alpendre. Parecia estar a apertar contra o seu o corpo nu de
Jasão, mas, quando Hammond se aproximou, Charies atirou
subitamente um objecto para a estrada e o rapaz correu a apanhá-lo.
-Não podia esperar que ele chegasse a casa para o despir e observálo
-disse Hammond. -Está bem, não está? Não tem ruturas nem
cicatrizes? Está são?
-Está são, sim-respondeu Charles com certo embaraço -isto é, o que
eu lhe pude ver à luz da Lua. Mas não serve para lutar. É um negro
para o quarto, mas não serve para lutar.
Hammond afastou o assunto.


-Veste as calças, rapaz. Não devias tê-las tirado. A miss Lane podia
...
-0 patrão Charles disse-me para tirar -disse Jasão, justificando a sua
nudez.
-Está bem. Veste as calças. Vamos para a cama. Não havia luzes
vísiveís na casa mas a porta da casa de jantar estava aberta e,
através da janela, Hammond viu a senhora Lane atravessar a sala da
frente com uma vela, em resposta.
-Já é tarde -queixou-se ela, quando abriu a porta. -julgava que
tinham partido. Começava a pensar que não queriam a cama. São
quase oito horas.
-Está pronta? -perguntou Hammond.
-Sim, entrem. 0 negro cheira mal? -perguntou. -Não quero negros
malcheirosos cá em casa. Chega-me a Flora.
-Este não cheira mal, minha senhora-disse Hammond. -Quer dizer,
não cheira muito mal.
-Anda cá -pediu a, mulher ao rapaz que avançou, relutante. Ela
inclinou-se e cheirou-o audivelmente, passando a mão por ele. Não
cheira muito mal -foi o seu veredicto; -e é um macho. No mês
passado, um cavalheiro meteu cá em casa uma fêmea, de calças,
como um rapaz. Não é decente, enganar uma pobre viúva indefesa,
como eu. Eu sei que o senhor não é dessa raça, mas nunca fiando.


A senhora Lane ergueu a vela e conduziu-os, abrindo uma porta na
parede do lado direito.
-Não precisam de vela para se deitarem. Há bastante luar -disse
ela, e saiu, fechando a porta.
No centro do soalho nu havia uma cama de madeira crua. Com
excepção de um cobertor vermelho já gasto, na chão, possivelmente
destinado a servir de cama para o criado, a cama era a única peça de
mobiliário. 0 quarto era comprido e estreito e o luar penetrava por
uma das duas janelas sujas e iluminava o chão, dividido pelas
sombras das couceiras.



Quando Hammond se sentou na cama para Jasão lhe descalçar as
botas, descobriu que esta apenas tinha um fino colchão de palha
sobre uma base de cordas interligadas. Afastou as colchas e viu que
os lençóis estavam amarrotados, como se alguém já tivesse dormido
neles, mas razoavelmente limpos.
-Não sabes limpar-me os pés quando me tiras as meias? -censurou
ele.
-Limpa sempre o suor entre os dedos.
Deitou-se para trás, para Jasão lhe despir as calças e as ceroulas.
Acabando de despir Hammond, Jasão deu a volta à cama para fazer
o mesmo serviço a Charles, cujos pés limpou devidamente sem o
avisarem. Hammond meteu-se entre os lençóis e estendeu-se e
Charles fez-lhe companhia.
-Que quer que eu faça agora, patrão? -perguntou o escravo.
-Olha, deita-te e dorme. Que querias fazer? Põe essa coberta
rasgada por baixo para não ficares em contacto com o chão.
Hammond sentia-se cansado, mas não conseguia dormir. Dava
voltas na cama, impacientemente. Charies dormia de costas,
ressonando e Jasão dormia, enroscado, respirando audivelmente
num ritmo lento. Hammond deu uma cotovelada a Charles e disse-
lhe que se voltasse, o que ele fez sem acordar. Hammond
continuava sem sono.
Hammond levantou-se da cama e foi até à janela que dava para a
rua. Nada havia para ver, excepto o luar que cobria a mercearia, a
loja do ferreiro e o celeiro. Mas Ellen dormia no celeiro.
Pegou nas calças e enfiou-as sem ceroulas. A coxear, descalço, deu a
volta à cama e, com o pé, empurrou Jasão, para o acordar. 0 rapaz,
assustado, sentou-se, sem saber onde estava.
-Que -é, patrão? Que me quer? -perguntou, esfregando os olhos.
-Levanta-te e ajuda-me a calçar as botas. Não faças barulho. Vamos
ao celeiro.
0 escravo, meio desorientado, ajoelhou-se em frente do amo e pegou
nas meias.


-Deixa lá as meias; calça-me as botas.
-Vamos partir? Não sem o senhor Charles -protestou Jasão.
-Cata-te e não penses. Anda comigo. Os pés descalços do rapaz não
faziam ruído mas as botas de Hammond pareciam-lhe fazer um
ruído enorme, enquanto ele se esforçava por atravessar o quarto
silenciosamente. Alcançou a sala da frente e saiu pela porta com
Jasão atrás. Cortando obliquamente em direcção ao celeiro, abriu o
portão do cercado, apenas o suficiente para passar e dirigiu-se à
porta. 0 luar mudara de lugar e a cama de Ellen estava agora na
sombra. Entraram no celeiro sem que os ouvissem. A respiração
estertorosa de Crock ressoava, mas não se podia evitar, pois ele só
podia deitar-se de costas.

Hammond aproximou-se do leito de Ellen e inclinara-se para lhe
tocar, quando o mandingo, subitamente desperto, emitiu um grito
selvagem de terror, e saltou para os ombros de Ham, esmurrando-o
como louco e atirando-o ao chão. Jasão, por sua vez, saltara para as
costas de Medes, mas as suas pancadas e pontapés nem foram
notados.
-Patrão! Patrão! -gritou Jasão. -É patrão, Medes, é o patrão!
O negro, semisonolento, acordou e reconheceu o objecto do seu
ataque.
O rosto de Medes contorceu-se de aflição, mas não chorou. Tentou
falar, mas estava mudo de arrependimento.
-Levanta-te, meu malandro -ordenou Hammond, apertando-lhe o
ombro. -Fizeste bem@ Fizeste muito bem. Eu disse-te para tomares
conta dela.
-Estou envergonhado. Estou tão envergonhado, patrão, perdoe-me.
Eu não sabia que era o patrão. Pensei que vinham violar a Ellen.
-Claro que pensaste. Fizeste muito bem -insistiu Hammond. -Eu
castigava-te, se não tivesses feito isto.
0 ressonar de Crock continuava a ecoar pelo celeiro.


-Ellen, tu e o rapaz vão trocar de fatos. Tira o teu vestido e enfia as
calças. Vou levar-te comigo. Vou transformar-te num macho declarou
Hammond.
A rapariga não conseguia compreender.
-Não te preocupes; não te preocupes -disse o patrão. -Tu e ele vão
despir-se. Ellen e Jasão obedeceram. -Agora, veste as calças do
rapaz e tu, Jasão, veste o vestido de Ellen.
Não sentindo vergonha por se despir, Ellen sentia-se embaraçada
por usar calças.
-Tenho mesmo que vestir? Patrão, tenho mesmo? -perguntou.
-Veste-as -disse Hammond. -E porta-te como um rapaz. Se a miss
Lane te vir, és um rapaz. Agora não te esqueças. Jasão, veste esse
vestido e deita-te na palha. As calças de Jasão ficavam muito
apertadas a Ellen no traseiro e nas ancas, e os seus seios notavam-se
por baixo da camisa dele.
-Deixe-me ir atrás patrão -sugeriu ela. -Tenho vergonha que me
veja vestida de rapaz.
-Não te preocupes, rapariga-respondeu o patrão. -Ficas um
perfeito rapaz. Só tens que as usar até passarmos pela miss Lane e
chegarmos ao quarto. Depois podes despír-te.

0 par não encontrou ninguém e atravessou silenciosamente a sala da
frente até ao quarto. Charies estava estirado no meio da cama e não
acordou. Ellen descalçou as botas de Hammond e despiu-lhe as
calças, após o que tirou as suas roupas também. Hammond
empurrou Charles para o lado direito da cama, meteu-se no meio e
Ellen deitou-se à sua esquerda.

-És bonita -disse ele, beijando-a e puxando-a para si, com um braço
em volta do corpo dela. -Agora já posso dormir. Estava com medo;
tu ali com aquele negro grande. Não podia censurá-lo se fizesse
alguma coisa. Estava com medo.


-0 Medes não me fazia mal -disse ela. -Eu estava segura com o
Medes; mas a si, patrão, amo-o.

0 patrão sentiu a exigência da escrava, admirou-se com a sua
própria letargia. Aborrecia-o reconhecer que o odor suave da
feminilidade da escrava era agradável. Sentia-se satisfeito por se
aninhar contra ela e adormecer.
Pouco faltava para a meia-noite; o silêncio ensopado em luar apenas
foi interrompido pelo uivar de um cão algures, na distância, e pelo
uivo de resposta de outro mais próximo.
0 pequeno-almoço foi uni duplicado das duas refeições anteriores e
Hammond perguntou a si próprio se a senhora Lane nunca comia
outra coisa além de ovos com presunto. Só havia uma diferença; a
senhora Lane não ocupava a cadeira junto da janela.
-A patroa tá danada, tá mêrno danada -ceceou Flora, arrastando a
perna em volta da mesa para servir os biscoitos quentes. -Vai
desancá eu, quando os siô partir.
-Que é que tu fizeste? -perguntou Hammond, sem interesse.
-Eu não fez nada, não fez nada. Ela tá danada por siô trazer sua
fêmea. Ela não tem home. Talvez ela fique satisfeita e não bata na
Flora, se o siô pagã bem. Não sabe. Vai pagã bem, não váí, patrão,
siô?

Hammond afirmou que era essa a sua intenção e, depois do
pequeno-almoço, encontrou a senhora Lane na sala da frente, à
espera de receber o seu dinheiro. Hammond deu-lhe uma moeda de
cinco dólares em ouro, mas ela não tinha troco. Foram forçados a
levar a moeda ao outro lado da rua a Wallace, que também não
conseguiu trocar; mas, como Ham lhe devia dinheiro pela ração dos
cavalos e pelas camas dos negros, a senhora Lane e Wallace ficaram
satisfeitos em guardar os cinco dólares que mais tarde dividiram, e
Hammond procurou no bolso trocos pequenos para pagar o resto
da conta do merceeiro. Crock levou os cavalos à mercearia onde os


brancos montaram primeiro e depois conduziram os cavalos até ao
pé do alpendre, onde o mandingo colocou os outros negros sobre os
cavalos. Ellen sentia-se mal com o seu fato e Jasão estava ainda mais
embaraçado, com o vestido, mas Hammond ordenou que
conservassem os fatos trocados. De calças, a rapariga podia montar
melhor, e o rapaz podia puxar o vestido até às coxas, se fosse
preciso, sem ofender quem pudesse olhá-lo.

A manhã estava fresca e era muito cedo quando partiram; o
mandingo trotava facilmente ao lado dos cavalos. 0 velho Crock
tinha voltado para o celeiro e estava pesadamente encostado à cerca,
acenando ao grupo, quando passou por ele. Jasão voltou-se e
levantou a mão, mas os outros não fizeram caso do aceno do
escravo.
Ao fim de meia milha, chegaram a um sítio onde geralmente havia
um vale num ribeiro sem nome, que agora corria, turvo e
enlameado devido à chuva da véspera, e continuava a avolumar-se.
Não havia outra maneira de atravessar além de fazer nadar os
cavalos e os escravos.
-Ellen, tu e o Jasão desçam dos cavalos e dispam-se. Dêem-me os
vossos fatos e eu levo-os a seco para o lado de lá -ordenou
Hammond.
-Eu não sei nadar -objectou Ellen.
-Nem eu -disse Jasão.
-Nesse caso, Medes, pega na rapariga às cavalitas. Atira-se o miúdo
à água para aprender a nadar; há-de aprender. Tu secas-te a correr;
não precisas de despir-te.
Ellen agarrou-se à carapinha de Medes e enrolou as pernas grossas
em volta do corpo dele. Medes avançou pelo ribeiro enquanto pôde,
nadou sem esforço através do canal mais fundo e depois voltou a
caminhar até à outra margem. Inclinou-se para a rapariga poder
desmontar dos seus ombros, após o que voltou. atrás para conduzir

o cavalo de Hammond pela água. Eclipse recuou junto da água,

mas, entre os incitamentos de Hammond e os puxões de Medes, foi
forçado a mergulhar. Enterrou-se até aos joelhos na lama e até à
barriga na água antes de chegar ao ponto em que era preciso nadar.
Hammond foi impedido pelo joelho aleijado de levantar as pernas e
evitar a água. Tinha puxado as calças até ao joelho e a água
penetrou-lhe nas botas, mas pouca diferença lhe fez.
Depois de Hammond ter atravessado o ribeiro, Medes voltou de
novo atrás para ir buscar Charles e o seu cavalo.
-Atire esse rapaz para a água. Não vale a pena perder tempo. Anda,
Jasão, tens que aprender -gritou Hammond, do outro lado.
Charles observou Ellen, enquanto ela enfiava as calças.
-Ainda não tinha visto aquela fêmea nua. É muito boa, -disse. Faz-
me ficar excitado.
-Pode continuar excitado, que isso não me interessa, mas deixe
estar a fêmea sossegada -avisou Hammond; e acrescentou, num
tom que tentou tornar superficial: -Se toca naquela fêmea, mato-o.
Ouviu?
-Creio que posso esperar até Falconhurst -respondeu Charles.
-Nunca. E é mesmo nunca. Não lhe toca. Nem com um dedo ... nem
em Falconhurst, nem em parte alguma.
-Espero que tenha outras -disse Charles. -Está mesmo caído por
esta. Se não se livra dela antes de Blanche chegar, ela mata-a; vai
ver, pega numa faca de cozinha e espeta-lha na barriga. A Blanche é
um veneno.
-A Blanche é uma senhora branca. Não se importa com negras.
-A Blanche é um veneno.
-Despe-te e torce as tuas roupas antes de continuarmos, Medes disse
Hammond, desviando o assunto. -E tu, Jasão, limpa a lama
das pernas e enfia o vestido. Vou levar-te ao Tombigbee, tens de
aprender a nadar.


Com a ajuda de Medes, Ellen e Jasão voltaram a ocupar os seus
lugares sobre os cavalos, atrás dos brancos, e estes puseram os



cavalos em marcha, com o mandingo a trotar atrás, vestindo a
camisa molhada enquanto corria. A meia milha através da região
arborizada estava coberta de ervas, áspera, irregular. Hammond, à
frente da coluna, levava o cavalo a passo, procurando o caminho.

Quando o grupo saiu de entre as árvores e penetrou em terreno
aberto e nivelado, os cavalos começaram a trotar e Medes teve de
alargar a passada para os acompanhar. Não se tinha apercebido do
frio, mas estremeceu com satisfação quando sentiu o sol quente
sobre os ombros, através da camisa molhada.
-Que se passará com este cavalo? -perguntou Charles, puxando as
rédeas da montada, pouco tempo depois. -Está a coxear.
Hammond olhou para trás.
-Está mesmo -disse ele. -É melhor desmontar e ver. É capaz de ter
uma pedra presa no casco. Jasão, desce.
0 exame, revelou um golpe mesmo ao pé do tendão de Aquiles, que
avançava pela perna acima.
-Acha que posso continuar a montá-lo?
-Não há outro remédio -disse Hammond, encolhendo os ombros. Mas
o pretinho, não. Vamos montar o pequeno no grande. Baixa-te,
Medes, e põe o Jasão às costas. Achas que o podes levar?
-Claro que posso, patrão, siô. 0 Jasão não pesa nada. Assim não,
Jasão. Põe as pernas à volta do meu pescoço.
0 mandingo ergueu-se, sem esforço. Puxou a perna direita do rapaz
e agitou os ombros, para equilibrar o fardo. A saia atrapalhava-o e
teve que ser subida e enrolada em volta da cintura do rapaz.
Charles voltou a montar o cavalo coxo. A rapariga, com a ajuda que
Medes lhe podia dar sem desequilibrar o rapaz, trepou para o
cavalo por trás do patrão.
0 avanço era lento mas não voltou a ser interrompido. 0 grupo
parou junto de uma cabana para comer um jantar que apenas se
compôs de pão e torresmos, mas foi-lhes apresentado com tão
hospitaleira boa vontade que se tornou bastante gostoso e os


satisfez. A cabana abrigava um homem de bigode, a sua magra
mulher e a sua filha de cara de rato e longas pernas, ainda
adolescente que olhava esfomeadamente para Charles e fez diversos
esforços vãos para atrair o interesse dele. Apesar da sua pobreza
que era aparente, pareciam limpos, até aos pés descalços, e o
interior da casa, de uma só divisão, era arrumado e limpo.

A mulher ficou ofendida quando Hammond se ofereceu para pagar
a comida, sentindo-se amplamente compensada pelas suas
respostas de carácter pessoal -de onde vinham, para onde iam, que
iam fazer dos negros, quantos tinham, porque motivo Jasão e Ellen
tinham trocado de roupas, se. a rapariga estava grávida, se os
brancos eram casados. Hammond ficou embaraçado por a mulher
recusar o seu dinheiro, pois sabia que ele lhe fazia falta; e, subrepticiamente,
meteu dois dólares de prata na mão da rapariga que
os aceitou prontamente.

0 dono da casa estava impressionado com o mandingo.
-0 melhor negro que eu já vi -declarou, passando a mão sobre os
ombros de Medes, beliscando-lhe a coxa e abrindo-lhe a boca para
ver os dentes. -É um perfeito rapaz. Quanto é preciso pagar por um
macho destes?
-Dois mil setecentos e cinquenta dólares -respondeu Hammond
com sinceridade.
-An, an. Ouviste, mãe? Dois mil setecentos e cinquenta; é muito
dinheiro, mas vale, lá isso vale, mais do que qualquer outro.
-Nenhum negro vale tanto -disse a mulher. -Isso é verdade? Dois
mil setecentos e cinquenta?
-Palavra -respondeu Ham.
-Tive uma vez uma fêmea, já há muito tempo, mas morreu, morreu
de parto, ela e o bebé que era um macho. Não tenho tido dinheiro
para comprar pretos desde então, mas gostava de começar. Só
queria uma boa fêmea para procriar. Em breve teria uma casa cheia


deles. Não podia ter um macho, é claro, por causa da minha
rapariga. Não o deixava em paz e eu não a quero metida com um
preto.
-Uma branca não deixava um preto tocar-lhe -disse Hammond
horrorizado.
-Esta deixava. Mal me consigo ver livre dela, eu próprio que sou
pai dela, pelo menos penso que sim, mas não lhe toco. jurei que não
lhe tocava. Prometi à mãe. Seja como for, nascem filhos enfezados
de um pai com a própria filha, tenho ouvido dizer.
-É certo -disse Charies, olhando para a rapariga, levemente
tentado.
-0 meu irmão que está em Coffee Country, tem duas boas fêmeas, a
mãe a filha. Se ele morrer e mas deixar, e se eu for até Falconhurst,
pode deixar esse macho cobri-Ias? -perguntou o homem.
-Claro que sim, claro que sim, ambas. Não lhe custa um centavo prometeu
Hammond. ~ Claro -suspirou o homem -, o meu irmão
nem sequer está doente, que eu saiba. No entanto, todas as
Primaveras tem febres. Pode morrer, sabe. Hei-de me lembrar desse
macho, se ele morrer.
Menos de duas milhas mais adiante, o grupo chegou a uma cidade
considerável, uma dúzia de casas, armazéns, e uma taberna onde
poderiam ter obtido uma boa refeição, mas ninguém tinha fome.
Quando se aproximaram da povoação, Hammond ordenou a Jasão
que descesse dos ombros de Medes, baixasse a saia e corresse ao
lado dos cavalos até passarem a zona habitada.

0 grupo continuou a avançar lenta mas seguramente. 0 passo
vagaroso fatigava mais Medes do que o rápido, mas
frequentemente, corria à frente um quarto de milha e estendia-se
sobre as ervas, com Jasão ao lado, à espera que os cavalos
chegassem. Durante a tarde passaram por muitas casas, e por três
plantações consideráveis, com grandes celeiros e inúmeras cabanas
de negros. Hammond tinha ouvido o pai falar de plantadores


daquela área e pôs-se a pensar a quem pertenceriam as diversas
plantações, mas não achou que valesse a pena ir até às casas para se
certificar. Sabia que uma visita implicaria comida e insistência para
passar a noite. Seria perder muito tempo e atrasaria a viagem. A
intervalos irregulares, chegavam a encruzilhadas e a povoações com
um armazém e quatro ou cinco casas, ou a lugarejos maiores, com
uma dúzia de habitantes ou mais.

Finalmente Hammond reconheceu alguns locais e percebeu que
estavam a chegar a casa. Ali, em frente, ficava a High Tower, a
plantação abandonada do velho Ezra Hightower, já falecido.
Hammond estranhou que os herdeiros não a tivessem reclamado e a
tivessem deixado cair em tal estado de destruição. Estranhou ainda
mais que os ocupantes da decrépita cabana do outro lado da estrada
não se tivessem mudado para a casa grande e mais segura. Até
mesmo as cabanas dos escravos de High Tower eram mais
habitáveis.

0 coração de Hammond batia com mais força. Tinha estado fora de
casa menos de uma semana, mas a chegada despertava nele
emoções que não compreendia. Pertencia àquela terra. Tinha sido
modelado a partir daquele solo e reconhecia o seu parentesco com
ele. Chegaram ao caminho que saía da estrada principal e levava à
plantação da viúva Johnson, talvez já pertença de Redfield. 0
caminho agora era a direito; Charles, com o seu cavalo mais lento,
não se perderia decerto. Hammond soltou as rédeas e Eclipse, que
sabia tão bem como o seu cavaleiro que se aproximava o fim da
jornada, começou a trotar e irrompeu a galope, Ellen agarrou-se
firmemente ao corpo de Hammond. Medes não conseguiu aguentar
a velocidade de Eclipse e perdeu terreno gradualmente, e Charles
não fez qualquer esforço para apressar a montada.


Antes de chegar à área, Eclipse começou a relinchar,
intermitentemente e, quando começou a dirigir-se para a casa,
relinchou outra vez e recebeu, dos estábulos, um relincho como
uma resposta. A meio caminho, um cã o, o velho Rugidor, surgiu
aos saltos e a ladrar, saudando não tanto Hammond como Eclipse.
Hammond chegou à casa antes de o mandingo ter voltado para
entrar na álea.


Três ou quatro negros tinham aparecido, de trás da casa,
competindo silenciosamente pela honra de tornarem conta do
cavalo, que Hammond, depois de Ellen ter deslizado para o chão e
ele ter desmontado, entregou a Napoleão.
-Como estão todos? Como está toda a gente? Onde está o patrão?
-Estão todos bem, obrigado, siô, patrão. Tamos contente por ter
voltado.
-Porquê? Correu alguma coisa mal?
-Não, siô, tamos só contente. É só isso. Meg estava no alpendre,
subindo e descendo, extasiado, com um largo sorriso no rosto.
Incapaz de falar, apenas conseguia gorgolejar. Lucrécia Bórgia saiu
a correr e apertou Hammond contra os seios enormes.
Onde está o pai? Onde está o pai? -perguntou Hammond. Vem aí respondeu
Lucrécia Bórgia. E vinha, meio apoiado no braço de
Mem. 0 filho beijou-o, deu-lhe palmadas no ombro, perguntou-lhe
pela saúde.
-Estou bem; estou melhor, estou mesmo melhor. 0 velho
reumatismo já saiu quase todo -garantiu ele a Hammond. -Aquele
Alph está a apanhá-lo todo, mas eu estou a tratá-lo com toddies.
-Eu preparei eles, patrão, eu preparei eles e trouxe eles, como o
patrão disse, siô. Tratei deles como disse, patrão. Sou o teu nêgo,
patrão. Não sou o teu nêgo? -Meg suplicava que ele o reconhecesse.
-Claro que és -foi tudo o que Hammond teve tempo para
responder-lhe, com uma pancada no ombro do rapaz.



-Que é isto? -perguntou o velho, olhando para Ellen. Parece uma
fêmea, com mamas e tudo. Porque é que ela usa calças? -e apalpou,
para determinar o sexo.
Antes de Hammond ter tempo para lhe responder, o mandingo,
com Jasão sobre os ombros, chegou ao fim da álea.
-Um mandingo, um mandingo jovem! Onde é que o arranjaste? No
velho senhor Wilson? Que belo mandingo! Precisamente o que eu
tanto desejava.
-0 meu lutador -explicou Hammond.
-Que é aquela fêmea que ele traz ao pescoço? Que vais fazer dela?
Não tem formas nenhumas,
-Não é uma fêmea. É um macho. 0 senhor Wilson mandou-o para
si. É um presente.
-Que é isto? Um macho de vestido, uma fêmea de calças. Não é
decente. Que é que o senhor Wilson quer que eu faça com um
macho-fêmea como este? É invertido? Acho que tenho de ficar com
ele ... é um presente, dizes tu? Não se pode vender um presente.
Desce daí! Desce, para eu te ver.
-Vem aí o Charles -declarou Hammond. -0 cavalo dele está coxo.
-Quem é o Charles?
-Charles Woodford, o primo Charles, irmão da prima Blanche.
-A prima Blanche? Oh, sim. já a namoras? É bonita? Que disse o
maior Woodford?
Maxwell empilhava pergunta sobre pergunta.
-Vou casar com a prima Blanche. Isto é, se o pai emprestar dinheiro
ao major Woodford. -Ham especificou a sua afirmação: -Prometilhe
dois mil e quinhentos dólares.
-Nunca mais os recebes. Sabes bem. Aquela velha sanguessuga, a
vender a própria filha, uma Hammond.
-Shiu, shiu -fez Hammond, para calar o pai. -Aqui vem o Charles.
-Falamos depois. Charles, ao voltar para a área, tinha tentado meter


o cavalo a galope, mas este transformara-se num trote rápido. A
chegada brilhante que planeara falhou, mas não foi menos

calorosamente recebido. Vulcano agarrou as rédeas do cavalo e
começou a levá-lo consigo.

-Espera aí, deixa-me ver essa pata. Espera -ordenou o velho, antes
de se voltar para o seu convidado e apertar-lhe a mão. -Olha quem
ele é, o filho do major Woodford, vejam bem! Entra, entra. Um
Hammond, sem dúvida, todo ele um Hammond, excepto os olhos,
claro.
-Os meus olhos, os meus olhos não são direitos. -Charles encolheu
os ombros, apologeticamente.
-Isso não é nada -disse Maxwe11. -Pior que os olhos é estares tão
magro. Cresceste depressa de mais, acredita, e tens fornicado de
mais, pelo que eu conheço do major. E não tens bebido uísque
suficiente, pelo que conheço da prima Beatriz.
-A mãe pertence à liga da Temperança -explicou o rapaz.
-Arranja-se isso em Falconhurst. Coma carne preparada pela
Lucrécia Bórgia e com muito uísque do bom, mandamos-te para
casa que nem te reconhecem.
Quando os três brancos entraram na sala, Meg apareceu a correr da
casa de jantar com três toddies fumegantes na bandeja.
-Este é pró patrão, siô, este é o maiô -disse ele, parando em frente
de Hammond e tirando um copo da bandeja.
Hammond aceitou a bebida, mas avisou o rapaz:
-0 maior é sempre para o teu patrão. Ele passa sempre à frente, não
eu.
-Tu é o meu patrão, siô. Eu é o teu nêgo, por favô, patrão.
-Eu sei que és o meu negro, mas o patrão velho está primeiro. És o
meu negro, é certo, Quero que me laves depois do jantar. Espero
que não te tenhas esquecido como é.
Com a excitação, a precipitação, a mordedura da censura, o prazer
antecipado do contacto íntimo com a carne do patrão, Meg enfiou
um dedo do pé numa cadeira de balanço e caiu de joelhos, deixando
cair a bandeja, entornando dois toddies quentes sobre Alph, que


estava no chão, atordoado, e quebrando um dos copos. Rompeu em
lágrimas de mortificação e frustração, e não conseguiu levantar-se.

Hammond ergueu-se, de um salto, assustado e levantou o pretinho.
-Estás ferido? Onde te magoaste? -perguntou. -Só entornaste um
pouco de uísque. Não te rales -disse, para confortar o escravo. -É o
resultado de andares a correr. Aprende a andar devagar, com um ar
orgulhoso, se queres ser negro de casa. Agora apanha aquela
bandeja e vê se vais arranjar mais toddies, sem os deixar cair.
Meg enxugou as lágrimas, esfregou o dedo magoado, e perguntou a
Maxwe11.
-Tenho que arranjá outro pró Alph? Ele tá quase bêbedo já.
-Não faz mal, não faz mal. Arranja-lhe outro.
-Disse-me que nunca desse uísque aos negros -protestou
Hammond.
-Não faz bem aos negros.
-Isto é remédio para o reumatismo do rapaz. Não quero que ele
fique aleijado. Tenho andado a dar-lhe toddies, desde que tu te foste
embora. Não serve para mais nada, a não ser para lhe passar o
reumatismo. Não é vivo como o teu.
-Bêbedo, não tem muitas possibilidades. Como tem andado o Mem,
desde que o castiguei?
-Espertou um bocado. Está bom, mas o teu Meg não o deixa fazer
nada. Espanta toda a gente ver corno o miúdo faz tudo sem lhe
mandarem. Tomou conta de mim como se eu fosse um bebé. Fez-me
tudo, excepto limpar-me o rabo.
-Talvez o queira para si. Eu não estou especialmente interessado
nele. É esperto, mas pode ficar com ele -disse Hammond, com uma
vaga esperança de que a sua oferta fosse recusada.
-Não, não; ele é teu. Fica com ele.
-0 primo Charies gostava de ter o Jasão para o seu serviço. 0 Jasão é
teu. 0 Charles tem que to pedir.


-Aquele macho efeminado que o senhor Wilson me mandou?
Chama-se Jasão? Acho que o Charles pode ficar com ele. Não serve
para mais nada. Começou por ser fêmea, penso eu, e mudou de
ideias antes de a mãe o parir. Não sei o que o velho senhor Wilson
esperava, ou o que quis ele fazer.
-Eu posso ensiná-lo se puder ficar com ele-disse Charles. -É manso
e perfeitinho, acho eu.
-Perfeito, se tivesse mamas -troçou Maxwell. -Não vale mais do
que um capado.
-Nada de o vergastar, Charies -avisou Hammond. -Percebeu? Só
se eu ou o pai dissermos. Claro, se quiser dar-lhe um murro nos
queixos ou umas palmadas no rabo com a mão, não posso evitá-lo,
mas nada de vergastadas como fez com a fêmea em Crowfoot.

Quando Mem apareceu com a sineta para o jantar, Meg correu para
a porta da sala de jantar e abriu-a. Estava a postos para puxar a
cadeira de Hammond, desdobrar lhe o guardanapo, servir-lhe a
comida, agitar o leque de penas de pavão. Estava em toda a parte e
fazia tudo, um minúsculo Crighton, fixado apenas na devoção ao
seu amo. 0 que quer que fizesse pelas outras pessoas, era apenas
para agradar a Hammond. Teria cortado a garganta ao velho
Maxwell tão prontamente como lhe trazia um toddy, se imaginasse
que Hammond aprovaria tal acto.
Meg era, efectivamente, o filho da sua mãe. Dominava pela
humildade. A posição a que aspirava era unicamente a estima de
Hammond.
-A Lucrécia Bórgia terá dado de comer àqueles negros novos? disse
MaxwelI, pensando em voz alta. -Meintion, manda cá vir a
Lucrécia Bórgia.
Meg já tinha ido à cozinha e voltado, trazendo a mãe à frente, antes
que Mem tivesse acabado de servir o café, pousado a cafeteira e
chegado à porta.


-Aqui tá a mãe. Aqui tá Lucrecia Bórgia-anunciou o rapaz, como se
a enorme mulher não dominasse a sala corri a sua presença.
-Deste de comer àqueles negros que o patrão Hammond trouxe?


perguntou Maxwe11.
-Comeram já -respondeu ela -, mas não dei àquele grandão tudo o
que ele quê. Tá roto. Não se pode enchê ele.
-Dá-lhes comida de brancos, tanta quanto eles puderem comer. Ao
grande também. Esse é especial. Dá-lhe tudo o que conseguires
enfiar para dentro dele. Ouviste? -Hammond exigiu a confirmação
da cozinheira.
-Tá a ouvir.
-E quanto àquele mandingo, fá-lo engolir uma dúzia de ovos crus,
oito ou dez; mexe-os bem e obriga-o a bebê-los depois de ter comido
quanto puder -acrescentou Maxweli.
-0 man ... qual é esse?
-0 grande, o mais escuro, Fá-lo engolir os ovos.
-Eu enfia-lhe os ovos pla boca abaixo, mêmo qu'ele fique engasgado
-prometeu Lucrécia Bórgía. -Donde vem aqueles nêgo? Proque não
fala eles como deve sê? Eu nem percebe o que eles diz.
-Eles aprendem. Eles aprendem -disse Maxwe11. -Trata-os bem.
Aquele mandingo é para Lucy e Pérola Grande. Vai ser o lutador do
patrão Ham.
-An, an! -Lucrécia Bórgia expressou a sua desaprovação. -Eu tive a
olhá pra ele. É um macho bem bonito.
-Não precisas dele agora. Talvez para a próxima. Meg estava por
trás da mesa, metendo mais comida no prato do patrão.
-Acabando o jantar -observou Maxwell -quero ver aqueles negros.
-Mando-os entrar para aqui, o grande também? -perguntou
Hammond.
-0 velho senhor Wilson não os mandou entrar? Falconhurst não é
melhor que Coign.



-Mas a Ellen, pai. Ela é bonita. Não quero que a veja suja, cansada e
mordida pelas pulgas.
-Se a achas bonita, filho, é mesmo bonita. És tu que vais gozar na
cama com ela. Eu só quero ver os ossos dela, ver se é perfeita.


-É mesmo perfeita. já vai ver.
-0 Jasão também -disse Charles.
-Aquele mandingo é que é o tipo de negros de que eu gosto. Fizeste
bem em trazê-lo, Ham. Tens que começar a ensiná-lo a lutar. Vê se
ele tem coragem, se tem bases.
-Tenho de o deixar descansar primeiro. Está cansado de transportar


o Jasão às costas todo o caminho.
-Bem, manda-os chamar -disse MaxwelI, empurrando a cadeira. Vou
beber um toddy e observá-los. Quatro toddies, Meg. Um para o
teu irmão.
Os negros novos, embora lhes tivessem dado de comer, tinham sido
ignorados e aguardavam no pátio. Medes adormecera, com a cabeça
entre as mãos, no meio à sombra da nissa. Hammond foi ele próprio
buscá-los, coxeando através do pátio, e acordou o mandingo,
sacudindo-o com o pé.
-E melhor despirem-se aqui -disse-lhes. -Não quero essas roupas
sujas dentro de casa. Têm que vestir roupas novas, depois de se
lavarem.
Hammond encaminhou-os para a sala, onde o seu pai e o primo
seguravam os seus toddies, aguardando que arrefecessem. 0
principal interesse de Maxwell era o mandingo, e chamou-o
primeiro, deixando Ellen e Jasão encostados à parede, embaraçados
não com a sua nudez mas com os seus esforços para se orientarem
na sua nova casa. Medes sentia-se inquieto, sob a tensão do exame,
mudando rapidamente o peso de um pé para o outro, agitando os
braços, esticando e descontraindo os músculos, ansioso por exibir a


sua simetria e a sua força, de que estava perfeitamente cônscio. Não
dava provas de fadiga.
-Acho que vai ser um bom lutador. Hem, primo Warren? comentou
Charles.
Maxwell bebeu um golo de toddy, e fez estalar os lábios, como
preliminar para a sua opinião.
-Dois mil e setecentos, dizes tu? Mas que se passa com o velhote?
Este negro, um mandingo, vale três mil e quinhentos, talvez quatro
mil, qualquer dia, no mercado de Nova Orleães. Nunca vi um
macho melhor.
Hammond suspirou, aliviado. Sabia o valor da sua compra, mas
receava o veredicto do pai.
-Mandingo puro? Tens a certeza? -perguntou Maxwe11. -Não
quero misturas.
Digo-lhe que é irmão da Pérola Grande, filho do velho Xerxes e da
Lucy.
Maxwell acenou afirmativamente.
-Bem, chama a Pérola Grande. Podemos experimentar acasalá-los, e
ver o que dá.
-Pai, aquele macho está esgotado. Hoje não presta.
-Eu não estou cansado -protestou o mandingo. -Estou pronto.
-Se eu digo que estás cansado, estás cansado. Não discutas -disse
Hammond, obrigando-o a calar-se. -Além disso, pai -continuou, esqueci-
me de te dizer que ele talvez não possa procriar.
-Não pode? Porque é que não pode? Para que é que o trouxeste,
então?
-0 velho senhor Wilson diz que ele é tão grande, que rasga as
fêmeas. Diz que podemos devolvê-lo se o não pudermos usar, mas
eu quero ficar com ele, para os combates.
A ideia provocou uma gargalhada do velho.
-A Pérola Grande? -riu-se. -Um bocado de coirato de presunto. 0
velho Wilson nunca ouviu falar de coirato de presunto? Nunca
precisou dele, penso eu, nestes quarenta anos.



Mandou embora o mandingo e Hammond deu instruções ao rapaz
para pedir sabão a Lucrécia Bórgia e ir tomar banho ao rio.
Ellen e Jasão avançaram juntos, mas Maxwell observou-os
superficialmente e sem entusiasmo.
-Muito macia e muito bonita -elogiou ele. -Bastante traseiro, para a
idade. As vitelas também não são magras. Boa leiteira, também vai
ser. Destas têm geralmente bons bebés fêmea; mas não prestam para
ter rapazes, sã o muito finas e demasiado claras. Para ter machos,
deve-se usar urna mestiça ou mulata. Esta já só tem um oitavo de
sangue negro, talvez menos, mais branca ainda. Quanto custou?
-Mil e quinhentos dólares. Não me importava que custasse cinco
mil, é minha e eu quero-a para mim.
-Porque estás a desculpar-te, filho? Compraste-a, não compraste? É
especial, está certo. Não se pode negar. Vale bem o dinheiro,
especialmente se era virgem quando a compraste.
-Ainda é virgem -confessou Ham, corando.
-Onde estiveste tu? julgava que a tinhas comprado para ti. Não vale
a pena pagar mil e quinhentos dólares por uma fêmea para a vender
outra vez. É arriscado, pode morrer ou ser violada, antes de ir para

o mercado.
-Comprei-a para mim e vou ficar com ela ... sempre. Gosto dela.
julgo que a amo, como se costuma dizer. É a única fêmea que eu
quero; a única que hei-de querer sempre; não é, Ellen?
Um tom avermelhado invadiu a cara da rapariga e espalhou-se
pelos seios. Sorriu para o patrão. Embora se tivesse conservado
indiferente ao exame que sofrera, às discussões sobre o seu valor,
sobre a sua virgindade, a menção da palavra " amor" por parte do
patrão tocou a sua modéstia e fez correr com mais força o sangue
das suas veias.
-Que vai dizer disso a tua mulher, a prima Blanche? -perguntou o
pai.
-Claro, ela conta que andes com as negras, mas não vai gostar que
ames uma delas.

-Não importa o que a Blanche gosta ou não. Vai chorar e amuar,
faça o Hammond o que fizer. Ela é veneno, dígo-lhe eu; a Blanche é
veneno.
A denúncia de Charles era enfática.
-Não tenho culpa. Não tinha conhecido a Ellen quando pedi a
Blanche
em casamento -confessou Hammond. -Além disso, a Ellen é negra.
Nenhuma branca se rala com uma negra.
-Talvez não -admitiu Maxwell, com reserva. Voltou-se para Jasão e
sacudiu a cabaça. -0 velho Wilson quis livrar-se deste. Sabe que não
vale nada. E sabe que eu não posso vender um presente.
-0 senhor Wilson está a ficar velho. Prepara-se para morrer.
Escolheu este rapaz de propósito. Quer que tome conta dele.
-Que tem o Jasão de mal? -quis saber Charles. -Que há de errado
nele?
-Bom, é lustroso e de pele fina como aquela rapariga. Metade de
uma coisa e metade de outra; é isso que está errado. Na verdade é
mais fêmea que macho, excepto entre as pernas, e aí não vale muito.
Não vai precisar de coirato de presunto.
-Eu não podia recusar um prescrito. Hammond aceitou a censura.
-Podias trazê-lo acorrer. Trouxeste às costas do mandingo, a cansálo,
e ainda por cima de saias. Ficam-lhe bem. É melhor continuar a
usá-las. Jasão estremeceu e baixou a cabeça, ao ouvir as palavras de
desprezo do velho.
-Eu gosto dele. É um bom negro -insistiu Charles.
-Desde que fique longe de mim, podes ficar com ele. Acho que o
podes usar na cama, até -troçou o velho.
Charles empalideceu, perante a observação, mas ignorou as
implicações. Jasão, sentindo que já não era preciso, retirou-se para o
pé da cadeira de Charles e acocorou-se ao lado dela, e Charles
passou a mão pelo cabelo do rapaz.



Meg tinha andado de um lado para o outro, atrás das cadeiras,
durante a última parte do colóquio, como se tivesse alguma coisa
para dizer. Finalmente Hammond olhou para ele.
-Por favô, siô, patrão, siô -anunciou ele. -A banheira tá pronta
quando quiser.
-Mas eu quero a lareira acesa. Está frio para tomar banho sem lume.
-Tá acesa. A água tá quente. Os fato tão pronta. E o nêgo tá à espera
enumerou Meg.
-0 negro pode esperar -disse Hammond. -Meg, se não deixas de
andar à minha volta, arranco-te a pele. É o que eu te faço.
-Sim, siô, patrão, siô -Meg recebeu a ameaça, sorrindo. Sabia que o
castigo não era a recompensa para quem trabalhava, em
Falconhurst. -Quê que eu traga a palmatória e aquela mistura de
esfregá?
-Não, meu palerma, não. Anda, Ellen. Quero que laves a Ellen
depois de me lavares.
Hammond dirigiu-se para as escadas, com Meg a correr à frente
dele, e a rapariga atrás.
0 jovem escravo despiu o patrão em silêncio, juntou mais água
quente à que havia na banheira redonda, e amparou Hammond
cuidadosamente, enquanto se metia na banheira. Demorou-se, para
seu próprio prazer, a lavar a carne cor-de-rosa do patrão, com os
seus pêlos louros, amolecidos pela água. 0 banho anterior tinha-o
feito aprender. Quando chegou ao ponto de banhar o pé da perna
rígida, levou a ousadia ao ponto de se inclinar e encostar a face ao
tornozelo, mas recebeu pela carícia um coice que o fez cambalear.
Aceitou a censura, acabou a sua tarefa, ajudou Hammond a pôr-se
de pé e esfregou-o vigorosamente com a toalha até estar
completamente seco.
Hammond sentia-se refrescado. A sua carne ficara encarniçada
depois de Meg a esfregar, e soube-lhe bem a roupa limpa em
contacto com a pele. Submeteu-se a que o rapaz lhe enfiasse todo o


vestuário, com excepção do casaco. Sentou-se na cama ao lado de
Ellen, que observara o banho com silencioso interesse.
Agora lava-a a ela -disse Hammond, ao rapaz. Quando Ellen se
levantou da cama, Hammond estendeu a mão e deu-lhe uma
palmada terna na coxa, o que fez Meg estremecer de inveja pela
posição dela em relação aos favores de Hammond. Meg sentia-se
dividido entre a sua rivalidade sem esperanças com a rapariga e o
seu dever para com o patrão. Agarrou no braço de Ellen e
empurrou-a sem grande gentileza para dentro da banheira,
salpicando a carpeta. Para nenhum dos três era mais incongruente
que o escravo banhasse a fêmea do patrão, do que se tivesse sido
mandado dar banho ao seu cavalo ou ao seu cão. A posição de Ellen
como concubina do patrão devia, e de facto fê-lo, abafar qualquer
concupiscência que pudesse atingir Meg, cuja paixão não era desejo,
mas sim ciúme. Começou a esfregar o corpo da rapariga com o
esfregão de banho, com um entusiasmo fundamentado na
determinação de acabar um trabalho desagradável tão depressa
quanto era possível, de modo a deixá-la limpa, e ela não se ressentiu
com a rudeza com que ele a tratava.

Quando Meg acabou de secar Ellen, Hammond disse-lhe que fosse
ter com Lucrécia Bórgia e lhe pedisse um vestido para a rapariga,
mas não de trapos remendados, como os das outras.
-E depois -acrescentou-, bem podes lavar-te nessa banheira que já
está pronta, se quiseres.
Hammond recordava-se de que, no seu banho anterior, o rapaz
tinha pedido licença para tomar banho na mesma água.
Os olhos de Meg reviraram-se com desprezo.
-Eu não quê tomá banho n'água dela, patrão, siô. Só quê a tua. Não
era desobediência declarada, apenas a rejeição da sugestão do
patrão, mas irritou o branco. Pegou em Meg, mesmo vestido, e
mergulhou-o na água suja, depois levantou-o por um pé e
mergulhou-o de cabeça.


-Não discutas de quem é a água; quando eu digo para te lavares,
lavas-te. Ouviste bem?
-Sim, siô, patrão -respondeu Meg sombriamente. -Eu não queria...
-Pára com isso. És um negro preguiçoso, como teu pai. Agora vai
buscar o tal vestido, volta aqui e lava-te... bem.
Meg partiu, a escorrer. A acção violenta de Hammond tinha-o
acalmado. Passou a mão sobre o corpo de Ellen, sentada ao seu lado
na cama, parou para apertar uma mordidela de pulga numa perna
dela, beijou-lhe a nuca e acariciou-lhe os seios.
-É aqui que vamos dormir, todas as noites. Vem para cá logo que
possas, depois da ceia. Estou cansado daquela viagem. Quero-te
cedinho -dísse-lhe ele, antes de descer.
-Que é feito de Charles? -perguntou o pai quando Hammond
entrou na sala.
-Anda por aí, penso eu. Talvez esteja a dormir ou a treinar aquele
preto. Estou satisfeito por nos livrarmos dele e podermos falar.
-Então a irmã dele, a miss Blanche? Vais casar mesmo com ela?
Estás decidido?
-Acho que sim. 0 pai quer, não quer? Não posso voltar atrás agora,
a menos que o pai não mande aquele dinheiro para o major.
-Mando-o, se tu queres, mas parece que estás a comprar. 0 Charles
pode levá-lo quando regressar. Devia ter imaginado que o
Woodford te pediria dinheiro; é mesmo dele. Nunca mais vimos o
dinheiro.
-Eu sei -admitiu o filho.
-A miss Blanche vai ser uma boa mulher para ti. Tem sangue
Hammond. É simpática? E é bonita?
-A Blanche é perfeita. Tem cabelos louros e é branca. Claro, está
sempre toda tapada, deve ter vergonha. Ainda não tinha visto a
Ellen, nessa altura, sabe?
-A Ellen é apenas uma negra -disse o velho superficialmente mas
sem desprezo. -É muito jeitosa e bem feita, mas não é branca. Não
podes casar com ela e ter um filho, pelo menos um filho branco.



-Claro que não. Vou casar-me. Mas fico com a Ellen, tenha a
Blanche ou não tenha a Blanche -afirmou Hammond e o pai baixou
a cabeça, aquiescendo.
-Se eu fosse a ti, conservava o Meg longe do Tombigbce. Este outro
está sempre aqui comigo. É melhor conservares cá o teu aconselhou
calmamente o pai.
-Intrusos? É cedo para aparecerem. E não há mal nisso.
-Pior. Ladrões de negros. Não tenho a certeza ainda, mas parece-
me. Ladrões de negros, atrás dos gêmeos.
Não convencido, mas prudente, Hammond perguntou:
-0 que o faz pensar isso?
-Bem, talvez não seja nada, mas o Willís Hall, sabes quem é, aquele
pregador que correram de Benson por tentar roubar negros. Bem,
esse Hall veio aqui no sábado, montado num belo alazão, depois de
tu teres partido na sexta-feira, e disse que queria comprar negros.
Pensando que eu não o conhecia, disse que se chamava Mason, mas
era o Hall. Queria comprar os gêmeos, sabe tudo sobre eles. Calculo
que fosse o Brownlee quem lhe disse.
-Brownlec?
-Sim, o Brownlee está metido nisto. Eu nem sequer lhos mostrei.
Disse-lhe que estavam ambos com epizootia, embora este estivesse
aqui mesmo a dormir, bêbedo, aos meus pés, e Hall o visse
perfeitamente.
-0 Brownlee está mesmo decidido a ter os gêmeos, parece.
-Tem um comprador à espera em Nova Orleães, um francês rico,
disse Hall -explicou o velho. -Mas eu não quero negócios com o
Brownlee, nem com o Hall.
-Hall -disse Hammond. -Sabe quem é o Hall? Trabalhou há muito
tempo para o senhor Wilson. Foi capataz da Plantação Coign até ser
atacado pela religião e sentir vocação para pregar. 0 senhor Wílson
gostava dele, era um bom capataz.



-0 velho Wilson gosta de toda a gente. Admira-me que o Hall não
roubasse os negros de Coign, embora ainda não tivesse começado a
pregar, nessa altura.
-Na realidade, o Hall é pai da Ellen e daquele Jasão. -Hammond
sentiu que era temeridade dizê-lo.
0 quê? É verdade. Disse o velho Wilson.
-Essa é boa! Talvez queira roubá-los. Pode ficar como macho, que
não me raio nada.
-Não gosta de Jasão? Há-de fazer-se um bom criado para casa.
-Está bem onde está, a servir aquele vesgo do Woodford. Mas não
podemos ficar com o vesgo toda a vida só para ele o servir. Então o
Hall é pai dele? Logo vi que havia qualquer coisa errada com o
rapaz.
-Também é pai da Ellen -acrescentou Hammond, com ciúmes.
-Isso não a prejudica, para aquilo para que tu a queres.
-Pai, acho que tem motivos para estar aborrecido comigo por gastar
tanto dinheiro com a Ellen. Não precisávamos dela. Mas eu quero
tê-la, eu quero-a.
Hammond começou a chorar, devido ao seu esforço para fazer o pai
compreender a necessidade que tinha da rapariga. Contava com a
censura do velho por ter feito uma compra que não beneficiava a
economia da plantação e portanto estava fora da sua competência.
-Então, então, filho. Não chores. A rapariga está bem, é bonita, e foi
barata. Serve para procriar, quando estiveres farto dela e Tense
estiver madura.
-Não vou fartar-me dela. Não desejo a Tense ou qualquer outra afirmou
Ham.
-0 outro preço é que foi muito alto.
-0 mandingo? 0 pai disse ...
-0 mandingo não, a outra ... a rapariga do Woodford, a irmã do
vesgo.
-Mas, pai. Queria que eu ...



-Te casasses com uma branca. Claro que sim, mas não que a
comprasses, a ela e à família toda.
-Pode não mandar o dinheiro -sugeriu Hammond quase
ansiosamente.
-Mandamos o dinheiro. Não é pelo dinheiro. Charles entrou na sala
e interrompeu o colóquio. Atirou-se para uma cadeira, anunciando:
-Gosto disto. Não há rezas nem ordens. 0 primo Warren e o
Hammond tratam-me como um adulto. E não tenho cá a Blanche, a
chorar e a exigir coisas.
-Vais-te embora muito em breve. Não tens tempo para gostares de
Falconhurst -avisou Maxwe11.
-0 Charles e eu vamos a Benson no sábado ver uns combates, ver
como se portam os lutadores e que tipo de negros há para apostar disse
Hammond ao pai.
-E levamos o Medes, para o mostrar -acrescentou Charles com
entusiasmo.
-0 Medes fica em casa, escondido -disse Hammond.
-Quando estiveres em Benson, é melhor comprares uma garrafa de
banha de cobra do doutor Mullbach para esfregar o mandingo sugeriu
Maxwe11. -É esplêndido.
-0 Medes não está doente, não precisa de remédios.
-É melhor trazeres. Cheira mal, más precisas de treiná-lo. Faz com
que ele fique ágil e flexível, se esfregares nas articulações. A gente
do circo usa a banha de cobra do doutor MuIlbach.
-Banha de cobra do doutor MuIlbach, diz o pai -repetiu Hammond
para gravar o nome na memória.
-E amanhã é melhor desenterrarmos aquele pote, que está por
debaixo da árvore grande3 e tirar o dinheiro para o Wilson planeou
o velho. Podes
levá-lo a Benson ao banqueiro Meyer, para que o mande. Não
vale a pena adiar.
-Acha que podemos confiar no Meyer para o mandar?


-Não se pode confiar muito nem em bancos nem em banqueiros.
Mas ele manda-o. 0 Meyer é honesto, na medida em que os
banqueiros o são. É mais seguro ter o dinheiro num pote enterrado.
Mas como havemos de mandá-lo ao Wilson? -Maxwell não deixava
de ter dúvidas.
-E para o maior Woodford? -perguntou Ham.
-Pode-se contar e pôr de parte. Não precisamos de banqueiro para


o mandar. Charles vai-se depressa embora e pode levá-lo. Não
podes, Charles?
-Encantado por o servir -disse Charles formalmente.
-Servír-me? Servir o teu pai. Havia uma inflexão de ironia na voz
de Maxweli.
-Tenciono começar a treinar o Medes amanhã de manhã. Começo a
trabalhar com ele gradualmente.
Ham notara a animosidade do pai e introduziu um novo assunto na
conversa.
-Têm que começar a fornicar corri as raparigas. Estão a perder
tempo. Têm que parir no Outono -disse o pai.
-Não quero tirar forças ao mandíngo, usando-o para procriar objectou
Hammond.
-Não vai enfraquecê-lo. Uma hora ou duas depois está tão bom
como antes. Faz-lhe bem. Compraste-o para isso, ou não?
-Para lutar e para isso, sim.
-Lutar não é tudo. É mais seguro procriar do que combater. Pelo
menos, desta maneira não o perdemos.
-Pode tratar disso no sábado, quando eu e o Charles formos a
Benson. Mas tenha cuidado com as fêmeas. E melhor dar-lhe a velha
Lucy primeiro.
0 Medes é muito grande.

Capitulo décimo sexto


Caía uma chuva fininha, no dia seguinte, mas apesar disso,
Hammond começou a preparar Medes. Pô-lo a transportar lenha
cortada de um lado da casa para o outro, não porque fizesse
qualquer diferença o sítio onde a lenha ficasse, mas para pôr em
acção os músculos do mandingo. 0 negro atacou a tarefa com
energia, e, apesar do peso e do incómodo, devido ao tamanho dos
pedaços de lenha, transportou-os facilmente, mais facilmente do
que Hammond desejaria. Os seus músculos já estavam fortes e a sua
força era prodigiosa.
Excepto para satisfazer a crença de Hammond de que Medes
precisava de preparação, o seu corpo não necessitava de qualquer
exercício. Contudo, apenas dispunha de força; teria que aprender a
usá-la contra o seu antagonista. Hammond compreendeu que a sua
tarefa era preparar a habilidade do negro, mas observou com
orgulho o retesamento e descontracção alternados da carne, sob a
roupa de Medes, e chamou o pai para o observar.
-Não é nada, o que ele está a fazer-escarneceu o velho. -Vais
semear para a semana e há, falta de mulas. Atrela aquele macho a
um arado e usa-o em vez de uma mula. Isso endureceu-o.
-Acho que sim, mas não quero um negro a chicotear o rapaz respondeu
Ham.
-Põe a Pérola Grande atrás dele a guiar o arado e não lhe dês
chicote. Charles emergiu da casa, observou Medes durante algum
tempo e opinou:
-Aquele negro não precisa de preparação. Pode bem lutar. Vamos
levá-lo amanhã.
Hammond olhou para Charles, com ar trocista, e não lhe respondeu.
Pólo e outro escravo, de nome Pompeu, estavam a cavar
tranquilamente e sem pressas na base de uma grande árvore de
chicória, à procura do pote do ouro. Ham, de vez em quando,


observava-os e dizia-lhes que se apressassem, terminando a
admoestação com uma ameaçava.
-Eu sei que o enterrei. Deve estar quase. Talvez a um pé ou pé e
meio do sítio onde estão. Estão muito próximos da árvore -calculou
Maxwell.
-É isto, patrão, siô? -perguntou Pólo, do seu lugar, no fundo do
buraco, entregando a Pompeu uma panela de ferro, coberta de terra.
-É muito pesada, siô. Quase não pode com ela.
-E isso -disse Hammond. -Limpa essa terra e leva-a para casa. Deixa

o buraco aberto para se meter outra vez.
A meio caminho de casa, transportando o pesado objecto, as mãos
de Pólo escorregaram no visco, e deixou cair a panela. Caiu quase
de pé, mas a tampa saltou, fazendo salpicar a água que se infiltrara,
e espalhando meia dúzia de moedas amarelas. 0 acidente valeu a
Pólo uma descompostura e um pontapé de Hammond, mas não
houve problemas. As moedas foram recuperadas e a panela foi
inclinada, 'para escoar o resto da água, e Medes rodeou-a com os
braços e transportou-a facilmente para a sala, colocando-a, segundo
instruções de Ham, no centro da sala, no chão,
Lucrécia Bórgia tinha pouca noção do valor do dinheiro e Meg
absolutamente nenhuma, mas vieram para a sala observar a
cerimônia da sua contagem. Maxwell sentou-se na sua cadeira e
ficou a ver Hammond ajeitar-se no chão, com uma perna por baixo
dele e a perna rígida esticada. Víu-o encher as mãos de moedas e
deixá-las escoar por entre os dedos, para caírem de novo na panela.
Charles sentara-se numa cadeira baixa, à parte, e olhava espantado
para o dinheiro, com a imaginação a trabalhar.

Hammond começou a contar e a empilhar dinheiro. Empilhou cinco
moedas de vinte dólares, mais outras cinco, ao lado de mais dez, até
chegar à soma que desejava. As moedas eram todas de vinte
dólares. Não havia maneira de perfazer exactamente os dois mil e


setecentos e cinquenta dólares, pelo que teve de acrescentar dez
dólares à importância, e empurrou o monte para o lado, entornando
as pilhas.
-Aí tens, Medes. Isso és tu. É quanto tu custas -explicou
Hammond. -Achas que vales tanto?
0 mandingo respondeu com uma risada de embaraço.
-Não siô, patrão, siô -disse ele. -Tanto não. Não fazia ideia
nenhuma de quanto era. Ham fez três pilhas de quinhentos dólares
cada e pô-las de lado,
-Isto é a Ellen -disse ele.
-Onde estou eu, patrão, siô? -perguntou Meg, inclinando-se para
olhar para dentro da panela.
-Tu? Tu não estás em parte nenhuma. Não vales nada -respondeu
Hammond, com seriedade trocista. -Não se compram negros como
tu. Criam-se.
Voltou à panela, tirando, às mãos cheias, moedas que acrescentou
ao monte para contar, no chão. Desse monte, retirou cinco pilhas de
moedas de vinte e cinco dólares cada e pô-las de parte.
-Isto -disse ele, olhando para o pai para obter a sua aprovação -é
para o maior Woodford.
-Isso é a Blanche -disse o pai secamente.
-Veneno -acrescentou Charles. Hammond voltou a colocar as
moedas por contar dentro da panela e colocou a tampa.
-A panela está a ficar mais leve -observou Maxweli, abanando a
cabeça. -Tinha cerca de dezanove mil dólares, se bem me lembro,
dentro dessa panela. Assim baixa para -hesitou, contando pelos
dedos -, para cerca de doze mil. Vamos enchê-la até vinte e cinco
mil com uns extras para ficar certo e enterramo-la de vez no
próximo Outono, quando venderes o gado em Nova Orleães, tal
como as outras três que estão enterradas.
-Uma delas fica vazia, se construirmos uma casa, como pensa disse
Hammond.


-A construção está a subir. Devia ter feito a casa há mais tempo,
quando a tua mãe estava ainda viva; era mais barato nessa altura.
Maxwell ficou como olhar perdido na distância durante uns
momentos, i-nas voltou logo à realidade.
-Não estamos ainda atrapalhados, seja como for; temos que ir
economizando. Põe outra vez a panela no mesmo sítio, ilho, e
manda os negros pisar bem a terra e alisá-la.
Pegou numa das pilhas de moedas destinadas a Woodford, passou-
as de uma mão para a outra, mas não as contou.


Capitulo décimo sétimo

-Não senhor, não temos anéis de diamante -explicou o homem
pequeno, calvo, de rosto comprido, retirando a lente de joalheiro do
olho.
-A gente de Benson não compra disso. Custam caro, os diamantes
verdadeiros são caros.
Hammond ficou confuso.
-Estou a dizer-lhe. Posso mandar vir o anel, para ver... de Orleães.
Tenho-c, dentro de uma semana, senhor Maxwe11.
-Então? -perguntou Ham.
-De que tamanho o quer?
0 homenzinho inclinou-se sobre o balcão tosco.
-Não sei. Suficientemente grande para o dedo de uma senhora
branca.
-Encostou o polegar ao dedo mínimo. -Deste tamanho, penso eu.
0 joalheiro abanou a cabeça.
-Isso é muito grande, três ou quatro carates, sai muito caro.
-Quanto?



-Não poso dizer ao certo, mas aí uns trezentos dólares, mais ou
menos, penso eu; uma pedra bonita e clara sem muito carbono.
Hammond ficou assustado com o preço.
-Bom, talvez sirva uma mais pequena, que valha aí uns duzentos
dólares. -Era o dobro do que ele pensara gastar. -mas quero um
diamante sólido.
-Então vou encomendar, senhor MaxwelI, sujeito, evidentemente, à
sua aceitação quando o vir. A volta de duzentos, não é?
-Isso mesmo, senhor Foreman; arranje-mo. Eu depois digo. A
pequena sineta da porta tilintou quando Hammond e Charles
saíram da relojoaria, com as suas pequenas montras cheias de
bugigangas manchadas.
-Muito caro -disse Hammond, apertando os ombros com as mãos.
-E não vale a pena -disse Charles. Para ela, não vale. já tinham
estado com Meyer e tinham-lhe dado o dinheiro para entregar a
Wilson.
-Isto já está tratado, podemos ir à taberna -disse Hammond. -Acho
que um uísque não me caía mal agora, e calculo que comecem a
aparecer aqueles senhores com os seus lutadores.
Por entre as fendas do estreito passeio de madeira que ladeava a rua
apareciam, aqui e além, pequenas folhas de relva. Entre duas áleas
cheias de ervas daninhas erguia-se um edifício virado a um lado,
com uma falsa fachada destinada a simular um segundo andar. As
janelas estavam tão sujas que nada se podia ver através delas, e a
entrada recuada estava coberta de poeira. Hammond parou e deu a
volta à maçaneta mas a porta não se abriu.

Um homem congestionado que Hammond não reconheceu
atravessou a rua. _ Estão à procura do Redfield? -perguntou. -Não
vem cá desde que se casou. Casou com aquela viúva e com os
negros todos dela. Já não há médico. Querem alguma coisa?
-Nada de especial, -respondeu Ham. -Muito obrigado.


-Redfield talvez vá à taberna logo -informou o estranho. Geralmente
vem ver os combates, ao sábado.
Um vadio que estava sentado numa cadeira, à sombra, por baixo do
toldo de madeira da taberna, ergueu-se e seguiu Hammond e
Charies quando estes entraram na longa sala. 0 empregado do bar,
que estava sentado fora do balcão a falar com Sam Holden, cliente
habitual do estabelecimento, ergueu-se e foi para trás do balcão,
quando viu chegar homens com dinheiro para comprar bebidas.
Holden, que Hammond conhecia de nome, e o vadio, aproximaram-
se do balcão timidamente e encostaram-se a ele, na esperança de um
convite, a que Hammond não faltou.

0 dono do bar chamava-se Pérola Remick, e não sabia que fazer
quanto ao seu nome, além de neutralizar a sua efeminidade através
de uma agressividade jovial e da veemência da sua linguagem. Era
um homem pesado, de faces vermelhas, de mãos grandes e rudes,
cabelo cortado muito curto e voz de estentor.
-0 que desejam, meus senhores? -perguntou ele.
-Uísque -disseram Hammond e Charles em uníssono, e os dois
outros homens acenaram, concordando.
Hammond estava de costas para a porta quando sentiu uma
pancada nos ombros e, voltando-se, deparou com Lewis Gasaway,
vigoroso, radiante e expansivo.
-Viva, Lew. Toma uma bebida -saudou Hammond. -Viva Lije. 0
Lije bebe?
-Acho que não lhe faz mal e a velhota não há-de descobrir. É difícil
afastar o uísque de um Gasaway -respondeu o irmão mais velho.
Lewis apenas tinha vinte e três anos e Elijah, que se mantinha
afastado do grupo, tinha quinze. A sua timidez era agravada não só
pela sua juventude, mas pela consciência do acrie que lhe cobria o
rosto e da penugem por rapar que crescia entre as pústulas. Com
um sorriso envergonhado, pegou no copo de uísque que o irmão lhe
estendia e que constituía não só uma prova da sua inclusão no


círculo dos adultos, como também um refresco, após a sua longa
cavalgada.
Depois de apresentar Charles aos estranhos, Hammond perguntoulhes:
-Não trouxeram um negro? Deixaram de entrar em combates?
-Sementeira -explicou Lewis laconicamente. Elijah, que a bebida
tornara mais ousado, conseguiu dizer:
-0 Lew tentou fazer escapar o Cudjo, mas o pai chamou-o e foi o
diabo. Não foi, Lew?
-0 velhote é todo religioso, não gosta de lutas, amenos que eu ganhe
e leve para casa um bom pretinho.
-Nenhum deles se importa, se ganharem -declarou Pérola.
-Onde está o teu lutador? -perguntou Lewis a Hammond. -Andas
sempre a dizer que vais arranjar um. 0 teu velho não quer? Eli?
Tentava livrar-se da implicação de que dependia da vontade do pai.
-Já tenho um -anunciou Hammond.
-Onde está ele? Porque não o traz? -perguntou Pérola, com
interesse.
-Tenho que o treinar um bocado. Ainda não está preparado -disse
Hammond.
-Um grande macho mandingo. É isso, não é, Ham? Mandingo? -
Charles não estava muito seguro da nomenclatura e não fazia ideia
do que era um mandingo. -Aposto que era capaz de matar
qualquer dos machos contra os quais oprimo Ham o mandasse
lutar, sem parar. E mau, digo-lhes, é mesmo mau.


-É forte, lá isso é, espero que saiba lutar. Ainda não seio que há
dentro dele. É um bocado desajeitado.


A avaliação de Hammond não era só motivada pela modéstia; não
queria desencorajar os combates fáceis que a inexperiência do seu
lutador poderia levar os antagonistas a preparar.



-Ameace-o de que o queima, senão lutar -sugeriu Holden. -Um
ferro em brasa obriga todos a lutar.
-Talvez -disse Hammond, afastando a ideia. Os homens e os
rapazes separavam-se em pequenos grupos; os homens adquiriram
bebidas para si próprios e pagavam-nas uns aos outros, os rapazes
mais jovens, a menos que estivessem acompanhados por um mais
velho, afastavam-se do balcão e a sua sobriedade resultava tanto da
repugnância pelo gosto do uísque como da falta de dinheiro para o
comprar. A maior parte dos rapazes tinha moedas de cinco
cêntimos, de um décimo de dólar ou de vinte e cinco cêntimos para
apostar nos combates, e outros vinham apenas como espectadores.
Pérola tolerava os jovens, como clientes potenciais quando fossem
mais velhos, mas não os deixava usurpar espaço, melhor ocupado
pelos actuais clientes.

-Se querem ver os negros a lutar, seus, garotos, saiam do caminho
destes senhores que querem comprar bebidas -disse Pérola aos
jovens.
-E parem de lutar e ponham-se quietos. Daqui a pouco alguma
aleija-e os pregadores e aqueles tipos da Temperança dizem que fui
eu. Ouviram?
Os rapazes afastaram-s e ficaram quietos durante alguns minutos,
mas não tinham medo de Pérola.
0 Dr. Redfielf entrou vagarosamente com o novo aprumo que a
prosperidade lhe conferira. Viu Hammond entre a multidão junto
do balcão, puxou-o para fora e insistiu em oferecer-lhe uma bebida.
-Bem, bem, bem, agora somos vizinhos, quase -disse ele.
-Quase -concordou Hammond sem entusiasmo. Não via Redfield
desde o seu casamento e não sabia se devia falar dele ou não. Não
encontrava termos para felicitar o homem, cujo casamento, segundo
ele próprio confessava, apenas se destinara a adquirir as
propriedades e os escravos da parteira. Redfield não foi tão discreto.
-Não o vejo desde que consegui aquilo. A viúva aceitou-me.


-Assim ouvi dizer -disse Hammond.
-Não me felicita?
-Claro, claro -disse Hammond, ainda incapaz de compreender se
devia ou não fazê-lo. -Tome uma bebida.
-Quase nunca venho a Benson agora, excepto aos sábados, para ver
os combates. Tenho os meus próprios negros para tratar, agora. É
uma grande responsabilidade, urna data de negros -declarou
Redfield.
Redfield voltou-se para Hammond:
-já fornicou com aquela grande fêmea mandinga, filho -perguntou
em voz alta.
Depois contou a história da sua chamada a Falconhurst para tratar
Pérola Grande, tendo chegado à conclusão de que ela apenas sofria
de paixão pelo seu jovem patrão. Não omitiu qualquer detalhe do
exame feito à rapariga e desatou a rir ao descrever a precipitada
retirada dela da cabana, após o diagnóstico.
-Que fizeste tu, Ham? -perguntou Gasaway. -Queres que eu vá lá
ajudar, ou mande o Lije? 0 Lije não se importa com o cheiro.
Importas-te?
0 acrie de Lije desapareceu sob o tom avermelhado que lhe cobriu o
rosto e ele baixou a cabeça para o esconder.
Hammond enfrentou o embaraço com uma explicação:
-Temos um macho grande para acasalar com ela. já está calma declarou
concretamente, embora sem verdade.
Ficou satisfeito por a conversa se afastar dele devido à persistência
de Lew Gasaway em auxiliar Elijah.
No meio da confusão das conversas, chegou Alonzo Kyle, trazendo
dois negros que se colocaram junto da parede. Ky1e era um homem
pesado, baixo, corado, com pouco menos de quarenta anos, e estava
quase sem fôlego, com medo de chegar tarde.
-Ainda não há combates? Onde estão os negros? -perguntou ele. Não
há ninguém para lutar? Os meus estão prontos.


Houve um murmúrio de explicações sobre os motivos por que mais
ninguém trouxera lutadores.
-0 velho Zarolho -disse Lew Gasaway, observando o escravo maior
de Ky1e. -Que queres tu, que outro negro lhe arranque o olho que
falta?
-0 Doçuras quer lutar. Eu nem queria. Ele suplicou-me que o
trouxesse, não foi Doçuras?
-Sim, siô, patrão; sim, siô -respondeu o preto com entusiasmo. -Dá
uísque a mim e eu mata aquele nêgo, qualqué nêgo. Eu gosta de
lutá, lutá é tão bom com um olho só, como com dois ôlho.
Charies avançou e apalpou o Doçuras, e depois chamou Hammond
à parte.
-Deixe-me ir a Falconhurst buscar Medes. Aquele negro não pode
lutar. 0 Medes não precisa de preparaçã o para lixar aquele.

-Não -disse Hammond.
-Por favor -suplicou Charles. --E se não se fizer isso, não haverá
combates. -Era patético na sua juvenil ansiedade. -Porque não?
-Olha para o pretinho que ele traz para apostar-disse Hammond
com desprezo. -Pequeno, magrizelas, com joelhos salientes, barriga
para fora. 0 meu pai ria-se de mim, se eu ganhasse aquele negro e o
levasse para casa. Nem gastava comida para o criar.
Era evidente que não haveria combates. Embora se consumisse
muito uísque, Pérola sabia que a multidão se reunira especialmente
para ver combates e apenas acidentalmente para beber, e já previa
sábados futuros em que os clientes, desapontados por aquele
sábado, não viriam.
-São aqueles malditos pregadores que os impedem de vir -declarou
Pérola. -Os senhores começam a perder interesse pelos combates,
precisamente quando eu gastei bom dinheiro a construir aquela
maldita cerca em volta do pátio, para que as senhoras e os
pregadores não pudessem ver o que se estava a passar.


-Então, então, então, Pérola, não te rales, não te rales -disse o velho
Waddington, que a bebedeira tornava conversador, para consolar o
taberneiro. -Os negros estão a fazer sementeiras, esta semana. Na
próxima semana, toda a gente traz um negro, toda a gente. Hás-de
ver.
-Se acabam os combates, o sangue dos negros torna-se, como se diz,
degenerado. É preciso que eles lutem, para se manter a raça de
lutadores, como os cavalos de corrida -raciocinou Pérola.
-É certo -ecoou Ky1e. -Tens razão. Se não os fazemos lutar, para os
pôr à prova, começam a procriar só machos enfezados e os negros
acabam. Hão-de ver.

A maioria dos jovens tinha-se ido embora e os homens começavam
a partir.
-Só mais uma bebida para todos, e depois levo os meus negros para
casa -disse Alonzo Kyle, em desespero, atirando uma moeda de
ouro para o balcão.

Já passava muito da hora da ceia quando os rapazes regressaram a
Falconhurst. Meg esperava no alpendre, e tentou sem êxito impedir-
se de começar aos saltos quando viu Hammond. Sabia que era
pouco digno.

Os rapazes desmontaram e entregaram os cavalos a Vulcano, para
que os levasse para o estábulo.
-Patrão, siô, patrão, siô, a ceia tá pronta! Tá à espera -gritou Meg
histericamente, na sua alegria pelo regresso do patrão.
Se não tivesse passado tão perto de Meg ao atravessar o alpendre
para entrar em casa, Hammond teria ignorado toda aquela
excitação; mas não precisava de se desviar do caminho para pregar
uma bofetada na cara do jovem escravo, com a mão aberta.


-Pára com isso -disse sem rancor. Hammond encontrou o pai
sentado em frente da lareira, com um toddy na mão, os pés nus
sobre a barriga de Alph, deitado em frente da sua cadeira.
-Filho, o meu reumatismo está a apoquentar-me outra vez. Resolvi
passá~lo para aquele; explicou o pai, enquanto o filho se dirigia
para ele. Porque vens tão tarde? A ceia está a arrefecer.
-Tive de ir comprar aquela banha de cobra -disse Ham, à laia &
explicação. -Dois frascos, um pareceu-me pouco. É uma coisa
potente; explica tudo por fora.
-Ganhaste ou perdeste, nos combates? 0 Charles encheu a barriga
de sangue?
-Não houve combates, nem um -suspirou Charles.
-Afinal a barriga daquele negro não está a absorver muito o meu
reumatismo. Dá-me o teu braço, Merrinon. -O inváIido fazia
concessões às dores que o atormentavam. 0 seu negro conduziu-o
com gentileza e sentou-o cuidadosamente à mesa.
-Se calhar estava com muitas dores para acasalar a Pérola Grande
com Medes hoje -arriscou Hammond.
-Não fui pessoalmente, não -respondeu o pai. -Mas disse à
Lucrécia Bórgia. Acho que ela os acasalou. Não me disse nada
ainda.
-Quê a minha mãe, patrão, siô? Qué Lucrécia Bórgia? -Meg
desejava saber mais pormenores sobre o assunto, e Ham deu-lhe
ordem para a ir buscar.
A cozinheira chegou, muito conscienciosamente, ajustando o
vestido, com Meg atrás dela, todo ouvidos.
-Este nêgo diz que tu quê vê eu -declarou ela, e ficou à espera.
Sabia perfeitamente porque a tinham chamado.
-Que tal a cobrição da Pérola Grande -inquiriu Hammond. -Ela
aceitou-o?
Lucrécia Bórgia sorriu largamente e riu baixo.
-Ele cobriu bem aquela nêga, sim, siô, patrão, siô.
-Não houve problemas, então?



-Não, siô, não teve problema, depois de eu mostrá aquele nêgo
grande como era, só que tive que batê naquela nêga maluca, pra tá
quieta.
-0 Medes não magoou a Pérola Grande? -Hammond sentia-se
aliviado.
Bórgia disse com desdém:
-Mas ela quase arruinô ele Hammond pôs-se de pé.
-0 quê? E tu deixaste?
-Só mordeu e arranhô, siô. Não foi nada. Aquela fêmea é muito
poderosa, acredita.
-0 Medes é muito potente, não é?
-Parece um burro! -Lucrécia Bórgia enrijou o braço e fechou o
punho.
-Só de vê ele, fiquei toda excitada. Acha que eu pode usá ele, por
favô, patrão, siô, patrão, siô?
-Tu não precisas de macho, Lucrécia Bórgia, agora. Mem ainda é
bom, não és, Merririon? -perguntou o velho, olhando para o seu
criado.
-0 Mem tá preguiçoso desde que tu castigô ele, siô -argumentou a
mulher. -Aquele negrinho na minha barriga não dá pontapé, nem
mexe. Medes talvez desse força a ele, por favô, siô.
-Estou a poupar o Medes para lutar; não quero roubar-lhe forças disse
Hammond, pondo ponto final na questão.
Lucrécia Bórgia reconheceu a sua derrota.
-Sim, siô, patrão, siô -e voltou-se para sair.
-Continuas a alimentar bem o Medes, Lucrécia Bórgia? Ovos crus,
etc.? -perguntou Hammond. -Muita carne.
-Engordar um negro torna-o preguiçoso. Os magros lutam melhor.
Não se lhes dá de comer e esfregam-se com uísque; é isso que eles
fazem todos em Centervílie -declarou Charies.
-0 meu há-de lutar gordo. Mais nada. E a banha de cobra é melhor
que uísque. Diz ali na garrafa.



-Tenho estado a treinar o Jasão -continuou Charles em tom de
posse.
-Talvez lhe pudesse dar uma fêmea, não muito grande.
-Treina Jasão como quiseres. Mas ele não vai lutar. Hammond
empurrou a cadeira e ergueu-se. -Sente-se melhor, pai?
-Doem-me as mãos. Talvez fosse melhor pôr as mãos encostadas ao
negro, em vez dos pés. -Empurrou Mem para o lado e caminhou
lentamente até à lareira. -Talvez um toddy.
Charies começou a caminhar à volta da sala e parou em frente da
lareira, estendendo as mãos para ela, embora não estivessem frias.
-Estás a engordar, filho -disse o mais velho dos Maxwe11. -já tens
boas cores.
Assim parecia, à luz da lareira. Charles apalpou-se.
-E as borbulhas estão a secar -gabou-se. -Gostava era de pôr o meu
olho direito.


-Deixa lá isso. A comida de Falconhurst não vai curar isso. No
entanto, qualquer dia estás bonito, pelo caminho que levas.
-Não fico como o meu irmão Dick e como o primo Hammond.
-Bem, não. Mas vamos mandar-te para Crowfoot dentro de uma
semana, e nem a tua mãe te há-de reconhecer.
Chartes endireitou-se.
-Eu gosto mais de cá estar -disse. -Não me apetece ir embora.
Quero ver o negro de Ham a lutar.
-Claro, claro; não há pressa-disse Maxwell -,mas o teu pai deve
estar ansioso, posso garantír-te.
-0 pai sabe onde eu estou -mentiu Charles.
0 velho tinha perdído um pouco da sua antipatia pelo jovem
insensível.
-Estás muito mais forte do que quando chegaste, acho que devias
ter uma fêmea esta noite; que achas Ham?
-Todo aquele uísque que bebeu esta noite deve dar-lhe potência calculou
Ham. -Acho que sim.



-Arranja uma gorducha e jeitosa e manda o Meg ir buscá-la. A
Lucrécia Bórgia pode lavá-la e levá-la para cima.
Charles corou e abanou a cabeça.
-Não é preciso -disse.
-Esperares muito tempo não te faz bem. Começas a perder peso
outra vez -insistiu o velho.
0 rapaz sentiu-se corar e recuou para a sombra, longe da lareira.
-já me desabituei, penso eu -explicou.
-Temos tão boas como a Katy, mas não a podes vergastar como
fizeste com a tua -disse Ham.
-Não é isso -disse o rapaz, -Mas não quero nenhuma.
-Não lhe faz mal passar sem ela, se não quer -disse Hamniond,
confuso e incrédulo.
-Mas o que vaio major Woodford pensar de Falconhurst? -inquiriu


o proprietário.
-0 pai não sabe -disse Charles, encerrando o assunto. Deixou-se
ficar sentado, durante um pouco mais, e engoliu um toddy que não
lhe apetecia. Após um intervalo decente e aborrecido, ordenou a
Meg: -Vai-me buscar o Jasão, que eu vou para cima. Andar a cavalo
cansou-me.
Quando o ranger das escadas indicou que Charles não podia já
ouvi-los, o pai perguntou:
-Que pensas disto?
-Parece que está aborrecido por não haver combates em Benson. As
lutas excitam-no. Não presta sem elas.
-Jasão diz que o patrão Charles é um bom patrão. Leva ele prá
cama e tudo -interrompeu Meg.
-Não interessa a ninguém o que Jasão diz -respondeu Hammond. Tu,
Meg, levas um castigo como o do Mertirion, se te metes nos
assuntos dos brancos. Não se pode tratar bem um negro.
-Dá-se-lhes a mão e eles tomam logo o pé -disse o pai. -Os negros
tomam logo o pé.


Tinha ficado decidido que os pretos começariam a semear e tinham-
se discutido as áreas que caberiam a cada um deles. As mulas e os
bois tinham vindo das pastagens, tinham-se limpo os arados da
ferrugem, as relhas tinham sido afiadas. Uma inquieta ansiedade de
começar o trabalho levava Hammond a cavalgar pela plantação.

Mandara selar e trazer Eclipse e ia montar quando foi interrompido
por Lucy que estava à espera que ele saísse de casa. Viu Pérola
Grande à espreita, na esquina da cabana, antes de a mãe se lhe
dirigir.
-Patrão, siô, por favô, siô, patrão Ham -começou ela, olhando para

o chão e incapaz de prosseguir.
Hammond percebeu que se tratava de uma petição e a mulher tinha
dúvidas de que ele lhe concedesse o que ia pedir.
-Que há Lucy? Que queres? -perguntou, sem trair a sua
impaciência.
-Patrão, siô, Pérola Grande quê casá -disse Lucy rapidamente.
-Casar? Já sabes como é. Uma fêmea casada, farta-se de chorar se
vendemos o marido dela, e até se o castigamos. Pérola Grande está
muito bem assim. 0 patrão velho quer a Pérola Grande para o
Medes. E para ti também.
Hammond meteu o pé no estribo.
-É o que Pérola Grande quê. Ela quê ficá co macho grande. Pode?
Não é casá. Só ficá com ele. Ela chama a isso casá. Diz às outras que
tá casada.
Pérola Grande não podia esperar mais tempo pelo veredicto.
Incapaz de ouvir toda a conversa do local onde se escondia,
atravessou a correr o espaço aberto entre as cabanas e a casa e
colocou-se atrás da mãe.
-A Pérola Grande vai esgotar o Medes, roubar-lhe as forças para
lutar -objectou Ham.
-Não, siô. Não, siô, por favô patrão -suplicou Pérola Grande.



-Além disso eu também o quero para a Lucy, talvez para outras, se
não nascer de ti um filho forte; e se eu quiser vendê-lo, vendo-o,
sem ti.
-Sim, siô, sim, siô. Pérola Grande admitia a derrota.
-Além disso, se o teu filho sair enfezado, temos que experimentar
outro rapaz contigo, para a próxima.
-Eu vai tê um filho bom e forte para ti patrão. Eu vai ganhá
dinheiro pra ti. Sim, siô.
-Então o Medes não te magoou, não te rasgou? -perguntou
Hammond, para confirmar o testemunho de Lucrécía Bórgia.
-Não, siô. 0 Medes é grande, é monstruoso, mas não rebentou eu
como tu. Não, siô.


Pérola Grande riu-se, ao recordar a honra que o patrão lhe
concedera. Hammond tinha visto Medes e concluiu que a rapariga
estava apenas a lisonjear um branco. Contudo ficou satisfeito com a
comparação favorável e adiou a sua resposta negativa final ao
pedido da mulher.
-Veremos sobre esse casamento -disse, e montou, afastando-se.
Conhecendo, desde a infância, cada palmo de Falconhurst, a
excursão de Hammond era desnecessária para prestar qualquer
contribuição ao seu plano de sementeiras. Apenas serviu para
aliviar a sua inquietação e a sua necessidade de fazer algo. 0 seu
corpo jovem precisava de movimento.


Ao voltar do seu passeio, encontrou o pai e Charles discutindo, para
passar o tempo, as capacidades de luta dos negros escuros e claros.
-Mas isso não depende da cor, seja como for -declarou Maxwell
mas sim da tribo. Os Angolanos não tem bases, ficam parados, nem
tentam. Agora se tivermos um cromantino, esse é rápido e pronto a
lutar; mas é difícil de manejar, capaz de se voltar, e é preciso matálo.
0 melhor é o mandingo, se conseguir enfurecê-lo, mas os



mandíngos são difíceis de enfurecer. São mansos como cães, só
querem é festas.
-0 que eu digo -opinou Charles -é que os mais claros são melhores.
0 sangue humano torna um negro mais esperto.
-Mais brando, mais brando, torna-o mais brando. A esperteza
desaparece toda. Não há negro que consiga ser esperto.


Hammond esperou pela resolução daquela discussão inútil e,
finalmente, interrompeu-a:
-A propósito de mandingo, a Lucy e a Pérola Grande querem
juntar-se com Medes.
-Que lhes disseste? -perguntou o pai, e Hammond contou-lhe o que
se passara.
-Pelo menos sabias o que Medes faz à noite -assentiu Maxwe11.
-Ele dorme de noite. É o mais dorminhoco da plantação -contrapôs
Hammond. -Penso que não anda por aí.


-Tu não vais vendê-lo.
-Não, e quero que ele lute. Talvez queira dar Pérola Grande a outro
macho, para a próxima, se este bebé nascer pequeno de mais ou
idiota, por causa do parentesco deles.
-Nessa altura mudas. A própria rapariga há-de querer livrar-se
dele. Quando vais aprender, faz o que quiseres com os negros e eles
obedecem-te? És brando de mais para eles. Claro, os Mandingos são
diferentes; é preciso enganar os Mandingos para que se sintam
felizes.
-As duas fêmeas grandes vão esgotar o sêmen do rapaz. Não é
bom, para lutar.
0 pai troçou:
-Dá às duas, e não sucede isso. Nenhuma delas vai deixar a outra
tê-lo.
-Então acha que ...



-Claro que sim. Além disso, elas podem aplicar-lhe a banha de
cobra por ti. Aquela mistura tem de ser bem massageada, nas juntas
e nos pontos principais. Não basta aplicar. É preciso esfregar se
queres que ele fique flexível e lustroso corno um verme.
-Bem, é corno diz -concordou Ham. -Acabado o jantar, vou mandar
despir o Medes e dizer às duas fêmeas que o untem bem com a
banha de cobra.
Maxwell abriu e fechou a mão e olhou para ela; depois esfregou o
joelho.
-0 reumatismo piora sempre depois do jantar. Vou contigo até à
cabana para ver a massagem e mostrar-te como se deve aplicar.
Terminado o jantar. Maxwell bebeu outro toddy e deu um a Alph. 0
dia estava tão quente que havia pouca necessidade de lareira, pelo
que as brasas em fogo lento pouco mais eram do que o símbolo de
um sacrifício aos lares.
Hammond foi buscar à parte de cima da lareira uma das garrafas da
banha de cobra do Dr. Mulibach, agitou-a violentamente e
observou-a à luz. Sentou-se e inclínou-se para a frente, com os
cotovelos sobre os joelhos, para soletrar as indicações do rótulo.

Banha de cobra do doutor MuIlbach -leu ele. -0 linimento por
excelência para aumentar a potência da musculatura e a
flexibilidade das articulações. Aplicado copiosamente nos orgãos
masculinos da gestação, assegura o máximo endurecimento, facilita
a penetração e torna o acto mais ditoso. A banha de cobra do Dr.
MuIlbach é um elixir obtido de poções oleaginosas de diversos
géneros de ofídeos, com o aditamento de dispendiosas gomas e
bálsamos das mais longínquas zonas do universo conhecido.
Composta a partir de uma fórmula secreta transmitida ao Dr.
Mullbach através de inúmeras gerações dos seus esculápicos
antepassdos, já era apreciada pelos ginastas venturosos da antiga
Hellas e pelos gladiadores romanos, sintetizada a partir de
ingredientes idênticos aos que hoje são utilizados pelos seus


fabricantes. Muitos reis e monarcas se tornaram potentes pelo seu
uso. A banha de cobra do Dr. Mullbach é utilizada diariamente pelo
Sultão da Turquia e é por ele recomendada a todos os paxás com
um serralho numeroso. Nenhum moderno acrobata, contorcionista
ou pugilista executaria os seus feitos espectaculares sem este
maravilhoso adjuvante. Para obter os extraordinários resultados de
que é capaz a banha de cobra do Dr. MuIlbach, deve ser aplicada à
vontade, com o máximo de fricção e manipulação das articulações.
Deve ser massageada nos músculos com grande força e bem
espalhada. Não aceite substitutos. Use apenas a Banha de Cobra do
Dr. MuIlbach.


Fabricada e distribuída apenas por Companhia da Banha de Cobra
do Dr, MuIlbach Rampart Street Nova Orleães, Luísiana, E. U. A.
Hammond leu alto, na medida em que era capaz de ler certas
palavras; pouco se esforçou para compreender o seu significado.
Contudo, não ficou menos impressionado com as palavras.
-Penso que o Redfield deve saber o que quer dizer toda esta
linguagem de médicos. Mas o produto deve ser bom. An, an@
Bom? É excelente -declarou o pai. É o que diz aqui no rótulo: o 1-in-
i-m-e-n-t-o por excelência -confirmou Ham. -Rapaz, vai-me
buscar aquele saca-rolhas da tua mãe.


Meg trouxe o saca-rolhas e ficou a ver o patrão abrir o frasco
mágico. A rolha saiu mais facilmente do que era de esperar e
algumas gotas salpicaram a carpeta. Ham levou a garrafa ao nariz,
cheirou o conteúdo, e enrugou o rosto, após o que voltou a colocar a
rolha e afastou a garrafa.
-E muito forte -disse, abanando a cabeça.
0 pai pegou no frasco, retirou a rolha, cheirou e acenou
afirmativamente



-Cheira pior do que doninhas. Abanou a cabeça e entregou outra
vez ao filho o frasco. Charles, por sua vez, cheirou também a banha
de cobra. 0 seu cornentário foi:
-Cheira a merda de negro velho. Não esfregava isso no Jasão nem
que o fizesse forte como o White Fink.
-Chama o Medes e diz-lhe que espere por baixo da nissa. Diz que
fui eu que mandei -ordenou Hammond a Meg.
0 pai levantou-se e chamou Merrmon que não aparecia. Maxwell
insultou-o in absentia e chamou Lucrécia Bórgia, sempre pronta,
para ajeitar a manta azul sobre os seus ombros e ajudá-lo a
atravessar o largo até à cabana de Lucy. Lucrécia Bórgia colocou o
braço musculoso em volta das suas costas, regulou o passo pelo dele
e deixou-o levar o tempo que quisesse.
Medes levantou-se e esfregou os olhos.
-Precisa de mim, patrão, siô? -perguntou.
-Despe essa roupa. Tira-a e deixa-a aqui por baixo da nissa. Vou
esfregar-te banha de cobra e pôr-te todo flexível -explicou
Hammond.


Charles passou a mão pelo fianco de Medes e expressou a sua
admiração:
-Este macho mata aquele Doçuras do senhor Ky1e. Um murro no
estômago, só um murro no estômago e o Doçuras cai morto.
-Eu esfrega, depois de tu pôr a cobra nele, patrão, siô -disse Meg
como eu fez c'o Mem?
-Eu esfrego-te e dou-te a cobra, se não voltas para casa e não te
calas. Ninguém te disse para vires -ralhou Hammond e o rapaz
obedeceu, relutantemente, olhando para trás enquanto saía.
0 grupo deparou com Pérola Grande que saía da cabana,
balançando um balde na cabeça, a caminho do poço.
-Larga isso e vem cá esfregar o teu macho; teu e da tua mãe, quero
eu dizer -ordenou Hammond. -Onde está a Lucy?



Encontraram Lucy ajoelhada junto de um alguidar dentro do qual
se encontrava um choroso Baltasar, que estava a ser lavado sem
muita gentileza. _ Meu magrizelas, não tem mais carne do que uma
narceja! Se o patrão vende tu, tem sorte se recebê o pão que gastou a
dar comida pra ti.
-Quanto ao novo rapaz -interrompeu Hammond. -0 meu pai diz
que está bem tu e a Pérola Grande viverem com ele, mas não quer
que as duas dêem cabo dele.
-Eu sabia que tu achava bem, patrão, siô. Eu sabia. Eu disse à
Pérola Grande hoje de manhã, siô. Obrigada, siô , obrigada. Não,
siô, eu não dá cabo dele -prometeu Lucy e olhou para Medes. -An,
an -exclamou.
-Nem deixes a Pérola Grande -avisou Hammond, olhando para a
vigorosa rapariga.
-Não, siô, patrão -disse ela.
-Ele é para vocês -confirmou o velho. -Mas agora têm que o
massagear todos os dias.
-Aqui mesmo, à frente de toda agente? Baltasar, sai daí! Qual de
nós é?
-perguntou Lucy, interpretando mal a ordem.
-Estendam-no na cama, de barriga para cima -disse Maxwe11. -Tu
esfregas o tronco, a Pérola Grande as pernas. 0 patrãoHam despeja o
óleo.

Medes compreendeu o que queriam dele. Reclinou-se sobre a cama,
de braços levantados e pernas estendidas. Hammond voltou o
frasco e deixou escorrer um fio de óleo sobre a carne glabra,
começando pelo peito e continuando pela barriga e pelas pernas.
-Vamos, comecem a massageá-lo -ordenou. As mandingas
começaram a espalhar o óleo sobre o corpo. Quanto mais o
espalhavam, pior era o cheiro que deitava.
-Assim não. É preciso fazê-lo trabalhar, mexer as juntas -explicou o
velho. -Ele não se parte, não se desfaz aos bocados, não é nenhuma


boneca de loiça. Dêem-lhe palmadas, torçam-no e massagem-no
com força.

As mulheres renovaram os seus esforços, mas restringiram a sua
força. Para elas, Medes era, efectivamente, um grande boneco que
não queriam destruir. Não se negaram a esforços, mas as suas
palmadas eram mais carícias do que massagens.
-Para trás -disse MaxwelI, cuspindo o seu tabaco para o chão. -
Lucrécia Bórgia, mostra-lhes como é.
Lucrécia Bórgia avançou.
-Saiam daqui -disse ela, afastando as mandingas para o lado.
Levantou à saia para poder ajoelhar sobre a cama, inclinou-se e
esfregou as mãos sobre o ventre dele, para absorver o óleo. Não
apanhando bastante, estendeu as palmas para Hammond, que as
encheu do frasco. Esfregou uma na outra e começou a trabalhar
conscienciosamente. Esfregou e massageou, esmurrou, torceu, sem
remorso nem piedade, mas o negro não emitiu qualquer som.

Desdenhando pedir-lhe que se voltasse, meteu os braços sob o
corpo do rapaz e virou-o, como se voltasse uma panqueca, pegou no
frasco, despejou o óleo pela espinha e pelas nádegas, voltou a untar
as mãos, respirou fundo e recomeçou. Não esqueceu uma só
polegada de pele. Afastou mesmo os cabelos por baixo dos braços,
para melhor atingir a pele. Deitou mais óleo sobre os pés, esticando
e torcendo cada dedo por si.
-Senta-te nas costas dele e segura ele por baixo -ordenou Lucrécia
Bórgia a Pérola Grande. ~ Vou esticar os membro dele.
A rapariga fez o que lhe mandavam, sem compreender.
-Segura ele por baixo; não deixa ele mexê -avisou Lucrécia Bórgia,
erguendo a coxa em direcção à cabeça. Medes emitiu um grunhido
de dor.
-Não te serve de nada gritá -avisou a mulher -só faz eu dobrá
mais. – E agarrou na outra perna.


Meg apareceu à porta e Hammond ralhou-lhe:
-Eu disse para ires para casa. Que queres tu?
-Por f avô, siô, patrão, chegou o doutô Redfield. Quê qu'eu traga
ele?
-Claro, claro, trá-lo aqui -disse Hammond, dirigindo-se à porta
para ver Redfleld, que acompanhava o negro. -Venha, venha recebeu
o recém-vindo estendendo-lhe a mão direita.
-Que fedor é este? -inquiriu o veterinário. -Mataram um gambá?
-Banha de cobra -disse Maxweli. -Estamos a massagear o novo
macho do Ham. Fico satisfeito por ter vindo.
-Eu queria ver aquele lutador que o Ham se gabou de ter no sábado
passado.
-Aí está ele -proclamou Hammond, orgulhoso.
-Está doente? Ainda bem que eu vim. Hammond fungou, com
desprezo.
-Não. Estamos só a untá-lo. Chega por agora, Lucrécia Bórgia.
Deixa-o levantar-se.


Pérola Grande desmontou do lombo de Medes e ele pôs-se de pé.
-Leva-o lá para fora para o doutor Redfield o observar. Está muita
gente aqui dentro e cheira mal -sugeriu Maxwell.
-Como te sentes? -perguntou Hammond, solícito, a Medes. Cansado?
-Não, siô, patrão -respondeu Medes, esticando o pescoço, flectindo
os braços e enrijecendo as coxas. -Sinto-me extra-bem, mas aquela
Lucrécía Bórgia é mesmo forte. Não tem piedade nenhuma.
No exterior, Ham avisou o doutor Redfield:
É melhor não lhe tocar. Está todo besuntado de óleo malcheiroso.
0 doutor não precisa de tocar nos negros para ver como eles são.
Com a nossa idade, não é preciso mexer muito para ver -disse
Maxwell.
Recífield olhou para o rapaz.
-Não pode estar quieto? -perguntou.



-É vivo e inquieto, como um alazão -disse Ham, como desculpa. Está
quieto, Medes.
Recífield baixou-se e apanhou um grande ramo que caíra da árvore,
quebrou-o no joelho e atirou ao ar a parte maior.
-Apanha -ordenou, e Medes apanhou-a. Redfield acenou com a
cabeça, aprovativamente, e esfregou a barba com a mão.
-Acha que aqueles rapazes de Benson vão ser tão parvos que façam
lutar os trabalhadores deles, a que chamam lutadores, com um
negro corno este, meio-cavalo, meio macho?
-Eles adoram ver lutar os negros -disse Ham.
-0 melhor macho que temos tido em Falconhurst-declarou
MaxwelI, com fingida modéstia.
-0 melhor que eu já vi, em qualquer parte -exclamou Redfleld com
entusiasmo.
-Mas será capaz de lutar? É manso como um gatinho -pensou Ham
em voz alta. -Será capaz de lutar?
-Se me disser para lutar, patrão, siô... -interrompeu Medes, o que
irritou Hammond.
Contudo, absteve-se de o repreender.
0 Maxwell mais velho, que tinha caminhado sem ajuda,
compreendeu, de súbito, que se sentia fatigado, ou que devia sentir-
se. Ajeitou a manta sobre os ombros, e disse:
Preciso de um toddy. Entre a venha beber uísque junto da lareira.
Vai à cozinha e bebe os teus ovos -ordenou Hammond a Medes. Os
ovos põem-te a brilhar. Depois podes vir buscar a roupa à
árvore. Por hoje estás tratado, mas não te esqueças que amanhã, de
manhã cedo, vou pôr-te a ti e à Pérola Grande a semear. já não ficas
na casa das reuniões. Dormes na cabana e faz o que a Lucy te
mandar; não o que diz a Pérola Grande, só o que a Lucy disser.
Ficas para elas, mas não as deixes cansar-te.
Medes observou a expressão de Hammond e expressou a sua
satisfação.
-Este óleo torna-me vigoroso -disse ele, flectindo os braços.



-A Lucy vai pôr-to todos os dias -prometeu Hammond, do extremo
do alpendre. Redfield e Maxwell tinham entrado em casa e Charles
esperava por Ham à porta.
-Levamo-lo a lutar no sábado? -perguntou-lhe, ansioso.
-Talvez, se estiver pronto -disse Ham, fugindo ao assunto.
-Aquele mandingo, como lhe chama,ouvi já falar muito dele, mas
não tenho a certeza do nome) deve procria@ filhos de primeira reflectiu
Redfleld, tirando um copo de uísque da bandeja de Meg. Se
eu arranjar uma fêmea, uma das da viúva, gostava de a acasalar
com ele.
Maxwell bebeu um golo do seu copo.
-0 negro é do Ham; tem que pedir-lhe -disse ele. -0 Ham deu-lhe
aquelas duas grandes. Claro, elas estão primeiro. Depois delas,
talvez.
-0 pai sabe que o senhor, doutor Redfield, pode usar qualquer dos
nossos machos, quando quiser.
Hammond que ouvira a conversa, exagerou a sua generosidade.
Sabia a influência que a opinião profissional de Redfield tinha na
taberna; a organização de muitos combates dependia da sua
aprovação, e decidira vitórias em dúvida.
-Claro, eu ando a preparar o Medes para os sábados, mas pode ser
em qualquer altura que queira.
Suspeitando da oferta, Redfield inquiriu:
-Quanto é que isso vai custar-me?
-Sabe que eu não regateio um macho a um amigo, doutor Redfield;
não os deixo andar por aí, mas qualquer amigo os pode utilizar
numa fêmea só -disse MaxwelI, confirmando a política do filho. Agrada
ao macho, tanto como à fêmea, e eu gosto de os ver alegres.
-0 velho senhor Wilson diz que não se deve cruzar um mandingo
com outra raça -avisou Hammond. -Podem sair negros maus.
-Merda! -declarou o velho com desprezo. -Os negros mestiços não
são piores que os outros. Basta observá-los. Os que têm sangue
humano são os piores de todos.



-Nenhum deles é mau antes de crescer o suficiente para se tornar
atrevido, e eu sei o que se faz aos maus, nessa altura -ameaçou o
veterinário. Não era necessário qualquer elucidação e nem mesmo
Maxwell opôs qualquer objecção.
Redfield levantou-se e ajeitou o chapéu que não tinha tirado, e o seu
hospedeiro, querendo atrasar-lhe a partida, propôs mais um toddy.
-Bem, só mais um toddy, senhor Warren -suspirou Redfield. -A
viúva não há-de notar. Faz muita sede, estar casado com uma viúva.

Capitulo décimo oitavo

A meio da semana Hammond começou a sentir-se preocupado com

o combate do sábado seguinte. Conseguiria arranjar par para o seu
formidável negro? Haveria alguém, depois de o ver que lançasse o
seu negro contra ele? E, se conseguisse arranjar combate, Medes
ganharia? 0 proprietário hesitava sobre se devia acabar com o treino
para não esgotar as forças do negro, ou se devia dar-lhe
prosseguimento.
Na quarta-feira de manhã o Maxwell mais velho estava sentado no
alpendre, ao sol, para supervisar Medes que corria, saltava e fazia
exercícios com pesos. 0 branco estava impaciente e obrigava o rapaz
a aumentar os seus esforços com urna torrente de obscenidades,
sarcasmos, ameaças e imprecações. Medes não podia saber que
eram expressos sem verdadeiro rancor, mas não deixou de notar
que, quando Hammond passava a cavalo, o que sucedia de vez em
quando, o pai se calava. Medes tentava obedecer às ordens do
velho, acompanhadas pela sua linguagem característica, mas


esforçava-se mais por satisfazer as sugestões racionais e sem
maldade que Ham lhe fazia para melhorar o seu treino.

Na quarta-feira à tarde reuniram-se nuvens no céu e caiu tanta
chuva que foi preciso recolher os semeadores. Choveu toda a noite
e, na quinta-feira, o terreno ainda estava demasiado encharcado
para se semear. Durante toda a manhã continuou a cair uma
chuvinha miúda e morna, que não dava sinais de querer parar,
Hammond estava enervado, ansioso por continuar a semear e dar
continuidade aos exercícios de Medes. Enquanto bebia toddies que
não lhe apeteciam, aumentavam as suas dúvidas em relação a
Medes; a luta próxima deixou de ser, para ele, urna simples
tentativa de ganhar uma aposta, e tomou o aspecto de um triunfo
ou uma derrota pessoal. As afirmações que fizera sobre o seu
lutador tinham sido deliberadamente modestas, mas não conseguira
calar Charies quando este o gabava na taberna, pressentia que seria
escarnecido pelos outros se Medes não se mostrasse melhor do que

o escravo contra o qual o fariam lutar, e especialmente, se ele não
fizesse uma exibição digna de crédito da sua força e habilidade. A
simples perda do escravo jovem que iria apostar assumia menores
proporções do que o desabar da sua reputação como proprietário de
gado humano.
Se não fosse a urgência em mandar Charies de regresso a Crowfoot
com o anel para Blanche e o dinheiro para o pai dela e o
desapontamento que o rapaz sentiria se não visse o mandingo lutar
pelo menos uma vez antes de partir, Hammond sentir-se-ia tentado
a conservar Medes em casa no sábado seguinte e proporcionar-lhe
pelo menos mais uma semana de treinos antes de o pôr a lutar.
Charles não incomodava os MaxwelI, andava calado e agradável,
mas era imprescindível mandá-lo para casa.


Medes seria capaz de lutar? Não tinha sido feito qualquer teste da
sua capacidade de luta ou da sua coragem., Hammond corou,
perante a hipótese de Medes fugir e não lutar. Decidiu fazer um
ensaio preliminar.


Nenhum dos outros escravos podia ser considerado antagonista
razoável para Medes. Vulcano era quase tão grande como ele, mas
Hammond considerava-o cobarde. Serviria para contraste. MaxwelI,
já meio embriagado, deu o seu acordo à proposta do filho, e Charles
ficou excitadíssimo.
Meg recebeu ordens para convocar os gladiadores para junto da
casa.
-Traz também aquele fracalhote, aquele ovo de peru, de olhos
deslavados e cabelo encarnado, que está no celeiro, quando vieres.
-0 Trides? -perguntou Meg.
-Esse mesmo. 0 que tem a caparinha enferrujada -disse ainda
Hammond para identificar o rapaz. Posso usá-lo para apostar, não
acha, pai? Sabe qual é..


-Vai transformar-se num bom trabalhador quando parar de crescer
e começar a alargar. Acho que é pena apostá-lo.
-Mas é tão feio que quase sinto vómitos quando o vejo. Parece que
tem a cara coberta de bosta e os olhos parecem de espuma verde.
-Sai ao pai, um irlandês enorme que era capataz em Anson.
Comprei-o num lote de cinco ou seis, num saldo em Anson, quando
ele morreu. E são e vigoroso.
-Eu disse ao Lew Gasaway que ia levar um preto bom e são. Não há
mais nenhum.
-É só para apostar, não vai perdê-lo, porque o Medes ganha interrompeu
Charles, com confiança.
Hammond espreitou pela janela. Os escravos aproxiniavam-se, com
Meg à frente, e ele dirígiu-se para a porta.



-Acho que não vou precisar da manta -disse MaxwelI, olhando
indeciso para a manta azul, e declarando, ao mesmo tempo, que
queria ver a experiência. -Onde está o meu negro; onde está Mem? perguntou.


Charles chamou Mem, que ajudou o patrão a atravessar o hall e a
sair para o varadim. Ficou bem junto da parede, para evitar a chuva,
e observou os dois negros que se despiam e colocavam as roupas
sob a nissa, para as proteger da morrinha. Vulcano era um mulato
maciço e lustroso, e, se não fosse a sua letargia inata, podia fazer um
par razoável com Medes.
-Não deixa ele magoá eu, patrão, siô. Eu não fez nada, siô. Eu tá
com medo -suplicou Vulcano, avaliando o seu oponente. -Ele é
muito grande. Hammond não lhe prestou atenção.
-Quero que lutes corri esse rapaz. Bate-lhe, tanto quanto possas,
mas não o mates -disse a Medes. -Não lhe mordas nem lhe
arranques os olhos. Espera por sábado para fazeres isso. Mas vê se
és capaz de lhe dar uma sova boa.

Meg e Atrides ficaram de pé na extremidade do alpendre; Lucrécía
Bórgia veio da cozinha; Ellen e Jasão observavam de uma janela do
andar superior; e Pérola Grande espreitava da esquina da sua
cabana.
0 espaço para lutar não tinha demarcação, era apenas uma simples
área aberta no terreno enlameado por baixo da nissa. Vulcano
estava de pé, com os braços pendentes, paralisado de medo,
demasiado aterrorizado para fugir. Medes avançou para ele,
batendo-lhe no peito, acima do coração e engalfinhou-se com ele.
Vulcano choramingou e levantou os braços para arrancar o lutador
de cima de si, mas havia pouco esforço na sua resistência. Medes,
com o punho fechado golpeou Vulcano no rosto, abaixo do olho
direito, fazendo-o uivar de dor, mas principalmente de medo.


Vulcano deu um golpe ao acaso e atingiu Medes na virilha. Medes
gemeu e caiu na lama escorregadia, com os músculos faciais
contraídos pela dor. Fez um esforço para se levantar, mas estava
apenas sobre um joelho quando começou a vomitar.
Maxwell troçou:
-Parece-me que o Vulcano salvou o Trides.
-Vai fazer lutar o mais claro no sábado, não vai, primo Hammond?
Leva o vencedor a lutar? -perguntou Charles, que não queria
perder a sua luta. -Ele é melhor, vê-se logo.


Vulcano estava mais espantado com o seu triunfo do que qualquer
dos observadores, mas este foi de pouca dura. Medes ergueu-se,
afastou o patrão que se inclinava, solícito, sobre ele, e, apesar da
dor, correu para Vulcano, abraçou-o e começou a lutar com ele. A
larga base deVulcano não o salvou. Perdeu o equilíbrio e caiu na
lama, e Medes caiu por cima dele. Renovado o seu terror, conseguiu
inverter as posições, mas apenas por um minuto, e ambos
continuaram a rolar, envolvidos.


Finalmente, tendo a dor de Medes sido superada pela fúria,
conseguiu, devido à sua força superior, prender os ombros de
Vulcano ao chão, avançou os joelhos para os apoiar na barriga do
outro, alternando o seu impacto com violentos murros na cara de
Vulcano. Vulcano, embora ainda não inconsciente, deixou de
resistir; ficou deitado de costas e gemia, aceitando os golpes que o
mandingo fazia chover sobre o seu corpo e a sua cabeça. Fez alguns
esforços para lhe dar pontapés, mas em vão.


Hammond gritava a Medes para desistir, sem que este o ouvisse. Os
seus pontapés passavam despercebidos. Agarrou no ombro de
Medes, mas recebeu um golpe não directo, por reflexo, na cara. As
suas ordens foram ignoradas, a sua força de nada servia. Foi
impossível determinar quando Vulcano perdeu a consciência, pois



Medes continuou o ataque muito tempo depois de o adversário ter
deixado de dar sinais de vida. Finalmente a exaustão forçou-o a
desistir. Levantou-se lentamente, com a boca contraída de nojo e
ódio. Esfregou as mãos com desprezo e, com o pé descalço, deu um
pontapé no corpo nu, coberto de lama, que concluiu ser um
cadáver.
-Eu disse-te para não o magoares. Porque não me ouviste? Mataste

o melhor macho do meu pai -disse Hammond, convencido de que
Vulcano estava morto. -Enfornava-te, se não tivesse que levar-te a
um combate no sábado.
Charles respirou fundo pela primeira vez desde que o combate
começara e, aproximando-se de Medes, deu-lhe uma palmada no
flanco, com uma admiração que chegava ao afecto.
-Eu aposto em ti no sábado -disse.
-Aquele Vulcano podia valer mil e quinhentos ou mil e oitocentos disse
o velho, voltando-se para a porta.
Lucrécia Bórgia, apontando para o rapaz morto, perguntou em tom
prático:
-Que quê que eu faça com ele, patrão, siô? Só Atrides observava o
espectáculo com uma indiferença completa. A sua imaginação não
era suficientemente grande para abranger o triunfo, a dor ou a
morte. Tinham-no chamado, viera; aguardava.
Vulcano inspirou e expirou ar, audivelmente. Hammond viu o seu
peito erguer-se e dava um passo para ele, quando Vulcano se sentou
subitamente. Apoiou-se no braço esquerdo, passou a mão direita
pela cara, e lutou para se erguer. Medes avançou para ele, como que
para reiniciar o ataque, e Vulcano gritou:
-Não deixe ele, patrão, siô salve eu? Hammond pronunciou uma
única palavra de aviso em voz baixa mas severa:
-Mede -disse ele.
-Eu gosto de lutar, patrão -disse Medes. -Eu desfaço já outro, se
quiser. Deixe-me lutar com o Pólo, por favô, siô.


-Chega -disse Hammond, aliviado. -Leva o Vulcano ao rio e
lavem-se ambos da lama. Não lutas mais corri ele, ouviste? Depois
volta para a Lucy te olear antes que comeces a ficar rígido.
Voltou-se para entrar em casa.
-Patrão, que quê que eu faz com o Trides? -perguntou Meg.
-Quero que tenhas juízo. É isso o que eu quero. Na sua excitação e
satisfação, Hammond esquecera-se do rapaz das sardas. Voltou-se
para Lucrécia Bórgia.
-Dá-lhe de jantar. Depois despe-o e lava-o bem. 0 Merririon que lhe
rape aquela carapinha encarniçada. Talvez não fique tão cor de
pulga, e põe-lhe calças compridas. Quero-o bem arranjado para
sábado.
-Sim, siô, patrão, siô -concordou Lucrécía Bórgia, agarrando o
rapaz rudemente pelos ombros. Tê-lo-ia afogado, recheado e assado
para a ceia com a mesma vontade se Hammond lhe dissesse para o
fazer.
Hammond já não tinha dúvidas de que Medes fosse capaz de se
enfurecer. Ele iria lutar talvez não habilmente, mas, pelo menos,
com uma vontade que o seu actual dono e o antigo tinham posto em
dúvida.
De trás do seu toddy pré-prandial, o mais velho dos Maxwell
acenou com a cabeça.
-É um macho vigoroso -disse aprovativamente. -Só lhe falta ser
salgado.
-0 que é isso, primo Warren? Salgado?
-Para que é que ele precisa de ser salgado? -perguntou Hammond.
-Tem a pele fina. Tem uma pele de bebé. Aqueles machos rasgam-
no todo. É preciso encoirar-lhe a pele, endurecê-la.
-Como é isso? -perguntaram os jovens simultaneamente, um pouco
perturbados pela crítica ao seu campeão.
-É metê-lo em salmoura. Mergulhá-lo em salmoura quente. Tragam
aquele panelão de água quente, façam-lhe um fogo por baixo e
metam-lhe sal até fazer flutuar um ovo. Aquece-se, não a escaldar,


mete-se o macho lá dentro e deixa-se ensopar durante duas, três
horas, ou mais. Depois tira-se para fora e deixa-se secar o sal em
cima dele. É excelente para peles finas. Fica logo duro.
-Não o enfraquece? -sugeriu Hammond.
-Por uns dias, sim -admitiu o velho. -Não digo agora, antes de
sábado. Digo uma ou duas semanas antes de o quereres usar.
-Na segunda-feira -planeou Hammond.
-Os romanos antigos sabiam disso -disse Maxwell para reforçar a
receita. -Salgavam sempre os seus lutadores.


Capitulo décimo nono

Os brancos detiveram os cavalos e os negros as suas mulas em
frente da taberna de Pérola, e Hammond espreitou pela porta para
observar o ajuntamento, que já era razoável, apesar de ser cedo. 0
tempo estava a aclarar mas ainda havia nuvens no céu, que
intermitentemente cobriam o Sol. Não se podia plantar e os
plantadores estavam, portanto, livres para ir a Benson fazer
compras, visitas, tomar um copo e ver os combates.

Hammond tinha de ir ao joalheiro ver o anel e, com receio de que
algum patife interferisse com o seu lutador, levou o seu séquito com
ele, deixando Medes e Atrides à porta, enquanto ele e Charles


entravam. A sineta da porta tilintou e o relojoeiro pôs de parte a sua
lente e levantou-se da sua bancada.


0 anel tinha chegado. Era uma pedra amarela, sem lustro, cortada
em roseta, de cerca de dois carates, colocada numa sóbria armação,
em solitário.
0 relojoeiro retirou-o do seu estojo e colocou-o em cima do balcão,
com um orgulho que escondia as suas dúvidas interiores.
Hammond pegou naquela ninharia, olhou-a, e levou-a até à porta
envidraçada, para a inspeccionar melhor.
-É só isto? -perguntou. Nem ele próprio sabia o que esperava ver,
mas, pelo menos, imaginava qualquer coisa mais atraente e
espectacular do que aquilo.
-É bem bonito -adiantou o vendedor.
-Bonito de mais para ela -disse Charles com impaciência. -Pague e
vamos para a taberna. Os combates vão começar.
-Quanto custa? -perguntou Hammond.
0 joalheiro respondeu:
-Duzentos e trinta e cinco dólares, e eu não ganho muito com ele,
garanto-lhe, foi preciso trazê-to e tudo.
-É uma data de dinheiro -disse Hammond, suspirando e pegando
numa longa bolsa de couro de que extraiu e contou lentamente
algumas moedas de ouro. -Tem a certeza de que é um diamante
puro e sólido?
-Garanto-lhe -afirmou o vendedor.
-É isso que ela quer -disse Ham, com satisfação. -Vou pôr a caixinha
aqui entre o dinheiro para ficar segura.
-Penso que volta para casa na próxima semana. Tem que levar este
anel à Blanche e aquele dinheiro para o seu pai -anunciou
Hammond, enquanto avançavam ao longo do passeio de madeira,
em direcção à taberna de Pérola.
-Não me obrigue a ir já-pediu Charles. -Gosto mais de si e do primo
Warren que do meu pai e da minha mãe, e quanto a Blanche...



-Não devia dizer isso. Pode voltar, mais tarde, depois de o seu pai
receber aquele dinheiro,
-Blanche já cá estará nessa altura. Ela é veneno. Hammond não
respondeu.
-Quando eu chegar a casa, o pai vai atar-me e chicotear-me, como
se eu fosse um negro -disse Charles, pensando em voz alta. -Eu já
sou muito crescido para castigos, não acha, primo Ham? Não acha?
-Porque há-de o seu pai castígá-lo? -perguntou Hammond
distraidamente, a pensar na taberna.
-Por fugir de casa-confessou o rapaz. -Ele não me deu licença para

o seguir. Pedi-lhe e ele disse-me que não.
-Mentiu-me. Eu vi logo que estava a mentir, quando mo disse-
acusou Hammond.
-Então procedeu tão mal como eu, levando-me consigo e sabendo
que o meu pai não me deixava.
-Vai já para casa, parte na segunda-feira. Não pode ficar mais
tempo, depois de eu saber.
-Vou ser castigado. De certeza -lamentou-se o rapaz. -Vai-me
mandar para o castigo.
-Merece-o, mesmo já sendo crescido.
-Tal como um negro. Eu não sou um negro, e ele não pode bater-
me. Não vou permitir-lho.


Chegaram à taberna, agora cheia de homens e rapazes que se
acotevelavam; os negros estavam encostados à parede, os brancos
adultos junto do balcão, por trás do qual Pérola servia as bebidas
habitualmente e Holden, recrutado para o serviço, o ajudava
desajeitadamente. Hammond colocou Medes e Atrides no final da
fila de escravos e disse-lhes que esperassem, avisando Medes para
tomar conta do rapaz.



já havia sete lutadores, incluindo o zarolho Doçuras de Kyle, seis
rapazes adolescentes para as apostas e uma única rapariga clara, de
onze ou doze anos, não muito bonita, mas de rosto cheio e
gorducha. Hammond reconheceu o lutador de Lew Gasaway,
Cudjo, um mulato escuro, alto, bem feito, a quem faltava a parte
superior de uma orelha, e calculou que Gasaway se encontrasse
algures entre a multidão. Escondendo-se por trás de Cudjo, estava
um rapazito de nariz chato e lábios salientes que Hammond
presumiu ser o Estrela, que Lew propusera, no sábado anterior,
apostar contra o lutador de Maxwe11. Hammond agarrou Estrela
por um ombro e puxou-o para a frente, sem resistência. Estrela
revirou os olhos, interrogativamente, para Cudjo, para quem a
taberna e aqueles rudes exames eram já história velha.


Hammond passou a mão apreciadoramente sobre o rapaz. Estrela
era pequeno mas forte, de membros direitos e bem cheio de carne.
Hamniond calculou que fosse um haúça, possivelmente com sangue
ubângui. As suas feições achatadas e escuras agradavam mais a
Hanimond que a pele rosada e cheia de sardas de Atrides, com os
seus nojentos olhos cinzentos.
Charles colocou-se por trás de Hammond e disse--Não se pode ter
a certeza antes de os despirmos.
-Lew Gasaway garante que ele é bom. Não é preciso despi-lo -disse
Hammond.
Elijah Gasaway, que se aproximava, ouviu o comentário.
-É são, pois. E o melhor da plantação. Eu dispo-o. Sequer observálo.
Não vale a pena. É bom, e espero que o Lew goste do meu. Onde
está o Lew?
-Está além, a beber. Vou buscá-lo. Não foi necessário. Lewis viu o
amigo e separou-se dos companheiros.
-Trouxeste o teu rapaz? -perguntou aproximando-se.
-Ele aí está -disse Hammond, a ontando para Medes.



-Ali, an! -murmurou Lewis. -Tmesmo forte. Passou a mão sobre
Medes, mais por admiração que para apreciação.
-Não sei se vou querer que o Cudjo lute contra ele.
-Tem bom aspecto, mas será capaz de lutar? Nunca o puz a lutar
contra outro -disse Ham, em ar de dúvida.
Charies fungou para expressar a sua confiança.
-Olha lá, Caujo, achas que és capaz de lixar este rapaz? Queres
desancá-lo? -disse Gasaway, voltando-se para o seu escravo.
Cudjo fez cara de mau.
-Eu mata ele, patrão, se o patrão dissé. Eu mata ele -repetiu.
-Mas o rapaz que tu apostas não tem bom aspecto. É muito feio objectou
Lewis. -Que tem o cabelo dele? Escaldaram-lhe a cabeça?
-Foi rapado. Não está doente. É tão bom como o teu taco -declarou
Hammond. -Não o queres para dormir contigo, pois não? É melhor
pôres o teu Cudio a lutar com aquele mulato do major Watson, para
ganhares aquela fêmea gorda -troçou.
-0 Watson sabe bem que não lhe convém fazer lutar o negro dele
com o Cudjo -riu Gasaway. -0 Cudjo vai matar o teu.


-Arrisco-me -disse Hammond, estabelecendo o combate e
estendendo-lhe a mão.
-É melhor dizer ao Pérola -surgiu Gasaway -e tomarmos uma
bebida.


Os outros proprietários estavam a combinar os seus combates
examinando os escravos dos seus adversários e selando os negócios
com uísque. Os espectadores circulavam e faziam pequenas apostas,
que confiavam a Pérola, e iam pagando bebidas uns aos outros. Os
brancos mais pequenos gritavam, lutavam uns com os outro, e
faziam tanto barulho, que Pérola, depois de os mandar calar uma
dúzia de vezes, saiu de trás do balcão e perseguiu para fora da sala
apinhada os mais ruidosos, com excepção dos que estavam
acompanhados por pais ou irmãos mais velhos e bons clientes.



-Saíam daí, saíam desta casa. Não estou para suportar este maldito
barulho-gritou ele, agarrando dois rapazes pelos ombros e
empurrando-os para a porta. -já não há um raio de um espaço para
os senhores se mexerem!
-Eu sou filho do senhor Alcorn -explicou um dos rapazes. -Quero
ficar com o meu pai.
-Pronto, está bem, vai ter com ele e cala-te! -avisou Pérola. Os
rapazes mais novos faziam apostas de dez, vinte e cinco cêntimos e
de meio dólar entre eles, enquanto os combates continuavam a ser
combinados, mas Pérola recusava-se a aceitar o dinheiro desses
pequenos apostadores, visto que, pela sua parte, não consumiam
bebidas. Contra o conselho de Redfield, Charles apostou dez
dólares no rapaz que Asa Gore tinha escolhido para adversário do
Doçuras de Kyle, e dez dólares e vinte e cinco em Medes, contra
Cudio. Hammond não fez apostas em dinheiro, pois interessava-lhe
mais a exibição de Medes do que os ganhos ou perdas.


Elijah Gasaway sentiu que lhe puxavam pelo casaco e, voltando-se,
viu um rapaz mais novo que não conhecia. 0 outro perguntou-lhe
confidencialmente.
-Conheces aquele negro magrizelas e com sardas que vão apostar?
Ele não é perfeito.
-Não é perfeito, mas porquê? -retorquiu Elijah.
-Tem três tomates? -disse o rapaz.
-Como sabes?
-Apalpei-o e senti. Em voz baixa, Lije deu a informação a Lewis que
chamou Hammond, junto ao balcão.
-0 Lije diz que aquele teu rapaz claro não é perfeito. Tem três
tomates. Sabes isso?
-Como é que o Lije sabe? Nem sequer o despiu -respondeu
Hammond. -Não há macho nenhum que tenha três tomates.



-Aquele tem. Eu apalpei-os -declarou o jovem desconhecido.
Hammond recusou-se a acreditar e chamou Atrides, que despiu as
calças.
-Raios, é que tem mesmo! -disse ele, espantado. -Como é que eu
nunca notei? Mando-te outro, se tu ganhares.
-Deixem-me ver -disse Redfield, avançando às cotoveladas através
da multidão que se reunira em torno do escravo. -Garanto que
nunca vi nada assim.
-Estou aborrecido com isto -disse Hammond, desculpando-se.
-Não é imperfeição -participou o veterinário. -É um extra. Vi isto
uma vez num burro, do velho RandalI, mas nunca tinha visto num
negro.


Os homens, meio embriagados, competiam para apalpar os orgãos
genitais do jovem escravo, de longas pernas. 0 garoto começou a
chorar, mas ninguém reparou. 0 jovem que tinha feito a sensacional
descoberta procurou obter crédito por ela, mas ninguém lhe deu
importância.


Redfield puxou Hammond para um lado e disse-lhe:
-Aquele feijão verde de três tomates vale mil dólares, talvez mil e
quinhentos em Nova Orleães, neste momento, antes de crescer.
Obrigue o Gasaway a levar outro, no caso de o seu negro perder.
-Não vale quinhentos -disse Hammond -, com um tomate ou com
uma dúzia deles.
Redfield fungou e explicou-lhe:
-Aqueles cavalheiros de Nova 0rleães gostam de curiosidades que
possam andar a mostrar e não contam o dinheiro. Os monstros dãolhes
sorte, junto às mesas onde jogam o poquer e o blackjack. Um
rapazito com três tomates, os jogadores apostam até rebentar.


A excitação em volta da anormalidade do rapaz diminuiu e o patrão
mandou-o puxar as calças para cima. Aparte o seu embaraço por ter



apresentado o escravo como perfeito, o que era duvidoso,
Hammond estava mais interessado nos resultados do primeiro
combate profissional de Medes.

Chegaram mais três cavalheiros com os seus lutadores e
combinaram-se quatro combates, ficando um dos proprietários
desapontado por não ter arranjado adversário para o seu rapaz. As
apostas estavam feitas e os cavalheiros tinham bebido todo o uísque
que desejavam: Pérola encaminhou-os para o pátio das traseiras e
convocou o primeiro combate, que se travaria entre Doçuras e um
preto grande e musculoso, de face côncava, pertencente a Gore, e
que se chamava Moisés. Quatro ou cinco homens e dois ou três
rapazes permaneceram na sala, enquanto os proprietários despiam
os seus lutadores e lhes davam instruções.

Holden conservou-se ao balcão e cada proprietário comprou um
púcaro de uísque para o seu lutador; mas, como apenas havia um
púcaro para negros, cada lutador tinha que esperar que o outro
bebesse. Doçuras pediu um segundo púcaro e Ky1e ofereceu-lho.
Saindo de trás do balcão, Holden deu uma palmada no lombo de
Doçuras e disse:
-Não sei. Era um bom macho antes de perder o olho, e continuo a
apostar nele.
-Vê bem com o outro. Não lhe faz mal nenhum -concordou o
proprietário.
-Já sabes, Moísés, o que eu te disse, se não lutares bem -avisou Asa
Gore ao seu lutador. -Se perdes este combate, faço-te o que já te
disse. Não me importa que não possas lutar mais. Não te esqueças.
-Sim, siô, patrão. 0 patrão não ia... -e o escravo achou melhor não
dizer o que pensava.
Kyle, por seu turno, prometeu mais do que ameaçou Doçuras.
-Se ganhares este combate, Doçuras, compro-te todo o uísque que
possas emborcar. Ouviste? E amanhã dou-te um passe para ires à


Plantação Roselawn visitar o teu filho e fornicar outra vez com a tua
mulher. Talvez eu ta compre, ou um dos teus filhos; o juiz Bascorrib
não pede muito dinheiro. Que tal?
-Eu vai desancá aquele nêgo, patrão, siô. Vai mêrno. Nós leva os
negrinho pra casa -garantiu Doçuras,


Pérola desocupou um espaço no pátio quando os dois amos, com os
seus negros nus, assomaram à porta, seguidos das pessoas que
tinham ficado para trás para ver despir os rapazes. Holden seguiu-
os finalmente e ficou à porta, pois era necessário que um branco
tornasse conta dos negros restantes.


A multidão impaciente e ansiosa concentrou-se em volta da área
que formava um rinque mal definido, em cujos extremos opostos os
lutadores tomaram lugar, cada um deles escoltado pelo dono.
Pérola ficou no centro do ringue, com um braço levantado.
-Agora todos para trás, por favor, meus senhores, e conservem o
ringue aberto para dar espaço àqueles malandros para LUTAR!


Dramaticamente, Pérola baixou o braço, na altura da última palavra
e desvíou-se para o lado. 05 proprietários empurraram os seus
negros um na direcção do outro, e retiraram-se.


Os rapazes avançaram cautelosamente, murmurando insultos. Era
evidente que cada um deles tinha medo do outro e perseguiam-se
alternadamente em volta do ringue, sem atacar. 0 combate prometia
ser fraco e a multidão estava desgostosa e aborrecida.


Doçuras tinha dado um passo atrás e pisado os espectadores, um
dos quais, irritado pela indignidade de ser atingido por um negro, o
empurrou com força considerável para o ringue e contra Moisés,
que rodeou o pescoço de Doçuras e caíram ambos, ficando Doçuras
de costas no chão. Mas não por muito tempo. Doçuras, sem



qualquer golpe, apenas com uma poderosa torção, trocou as
posições e ficou por cima. Então pôde levantar os braços para
ganhar balanço e desferir um murro na nuca de Moisés que lhe
arrancou a pele dos nós dos dedos. Os braços de Moisés estavam
presos entre os dois corpos. Os de Doçuras estavam livres e ele fazia
chover golpes, à vontade, nos queixos e na cara do outro. 0 sangue
espirrou do nariz de Moisés e a face começou a inchar por baixo do
olho direito.

Moísés conseguiu soltar os braços e ambos ficaram quietos,
apertados num abraço. Moisés conseguia forçar Doçuras e ficar de
costas ou de lado, mas nada mais podia fazer. Conseguiu entrelaçar
as pernas com as do adversário. A intensidade da luta não se
revelava em acção e os espectadores não se apercebiam dela.

Os lutadores exaustos pararam um pouco, por mútuo
consentimento, e separaram-se para respirar fundo, voltando de
novo à luta. Caíram e rolaram novamente, diversas vezes, um sobre
o outro. A luta durava já havia trinta e cinco minutos e ninguém
conseguia perceber como e com que fim os lutadores manobravam.
Moisés tinha metido na boca o dedo grande de Doçuras e mordia-o,
enquanto Doçuras rangia os dentes com dores, mas conseguiu
estender o braço por entre as pernas de Moisés e torcer-lhe o
escroto. A boca de Moisés abriu-se, num grito de agonia, e o dedo
de Doçuras ficou livre. Moisés gritou uma, duas, três vezes, cada
vez mais alto, mas Doçuras continuava a torcer, cada vez mais, até
que Moisés se calou e o seu tormento o mergulhou na inconsciência.
Doçuras não largou até os proprietários entraram no ringue e Gore
conceder a vitória a Ky1e.
-Raio do macaco negro! -murmurou Charles para Hammond. -Eu
não conseguia desancar aquele macho zarolho.
-Conseguia, se tivesse um chicote -disse o rapaz das pernas
compridas, levantando-se.


A multidão ficou silenciosa por momentos e depois caiu num
murmúrio de comentários excitados quando todos se dirigiram ao
bar, onde os proprietários do vencedor e do vencido pagaram, cada
um deles, uma rodada a todos os presentes. Ky1e manteve a sua
promessa de uma enorme caneca de uísque para Doçuras, que
coxeava, enquanto Gore, proferindo insultos, assinava uma nota da
venda do pequeno escravo que perdera.
-0 próximo combate -anunciou Pérola -vai ser entre o senhor
Gasaway e o senhor Hammond Maxwe11. 0 senhor Ham trouxe um
macho novo que ninguém ainda viu lutar, e esta luta vai ser muito
interessante.

A multidão moveu-se pela terceira vez, dirigindo-se ao pátio. Elijah
Gasaway movia-se inutilmente por trás de Lewis que estava a
despir Cudjo, e, da mesma maneira, igualmente inútil, Charles
oferecia o seu apoio moral

* Hammond que via Medes despir-se. Holden conservou-se atrás do
balcão,a servir a caneca de uísque com que os proprietários
fortaleciam a coragem dos lutadores.
Cudjo, que se despira primeiro, pegou na caneca que Lewís
recebera de Holden e despejou-a em dois golos, limpando os lábios
com as costas da mão.
-Que tipo de negro é aquele? -perguntou Lewis. -Tem um cheiro
terrível; parece que está podre. Porque não o lavas?
Hammond riu-se, enquanto pegava na caneca que Holden voltara a
encher.
-Não é o rapaz. É a banha de cobra com que ele se esfregou. Medes
provou o uísque, que o fez tossir.
-Tenho de beber isto, patrão, siô? -perguntou ele -Vai pôr-me
doente.
Dá cá -disse Hammond. É melhor fazê-lo emborcar -avisou
Charles. -Um negro não luta se não estiver bêbedo.

Hammond pousou a caneca no balcão, para que o seu conteúdo não
se desperdiçasse, Gasaway, pegou nela e deu uma segunda dose a
Cudjo.
Mais para garantir a Atrides que não tinha sido abandonado do que
por se preocupar com elas, Hammond atirou as roupas de Medes,
com um pontapé, para o rapaz e avisou-o:
-Toma conta disso. Fica quieto até voltarmos. Holden. apoiou os
cotovelos no balcão e observou Medes criticamente:
-Esse negro parece maior sem roupa do que vestido. Tem músculos
por toda a parte.
-Já vais ver como o Cudjo dá cabo dele-respondeu Lewis. -0 Cudjo
arranca-lhe os músculos a murro.


Redfield ficou junto da porta para ajudar Hammond, se fosse
preciso, mas sem dar a ideia de qualquer associação. Quando viu
que os negros estavam prontos e os proprietários os escoltavam
para o pátio, juntou-se à multidão em volta da arena.


Hammond entrou primeiro, com Medes, seguido de Charles. Lewis
e Elijah, com Cudjo ficaram dez passos atrás deles, pois não se
podia contar que Cudio não atacasse o adversário antes de se
anunciar o início do combate. Hammond deu a volta à multidão e,
com a mão no ombro de Medes, entrou no ringue pela extremidade
mais afastada, enquanto Lewis e Cudjo abriram caminho entre os
espectadores e entraram na arena do lado mais próximo da porta.


Pérola andava à volta do ringue, pedindo aos espectadores que
recuassem e dessem espaço aos lutadores, eles obedeciam quando
Pérola passava, mas voltavam a avançar logo. A área era ampla,
mas Pérola utilizava aquele meio para afirmar a sua propriedade e
autoridade. Dirigiu-se ao centro, levantou o braço e proclamou:



-Todos sabem que o nome deste grande malandro que pertence ao
senhor Gasaway é Cudjo. 0 outro, o do senhor MaxwelI, como se
chama ele, Maxwell?
-Ganimedes -respondeu Harrimond, e, quando todos se riram,
acrescentou: -Pode encurtar para Medes.
-0 outro -repetiu Pérola. -É o Medes, do senhor Maxwe11. Vamos
à luta.
Hammond recuou e juntou-se a Charles, num dos extremos. Medes
olhou em volta, como que desorientado, retesou-se, mas não fez
qualquer movimento. Cudio, encorajado pela insegurança de
Medes, avançou agressivamente, com uma mão à frente, para se
proteger, e a outra atrás, com o punho fechado. Medes esperou. 0
primeiro golpe de Cudjo atingiu-o no ventre e Medes aguentou-o;
mas, antes de Cudio poder afastar o braço, Medes agarrara-o pela
cintura. Fez girar o rapaz e prendeu-lhe o outro braço, apertando
ambos atrás de Cudjo que ficou impotente para o atacar. Cudjo
tentou fazer Medes cair, com o pé, mas Medes levantou-lhe mais os
braços, fazendo-o inclinar o corpo para a frente e forçando-o a pôr-
se nas pontas dos pés, para evitar a dor. Cudjo não podia escapar-se
nem resistir. Ninguém tinha um relógio, mas pareceu a todos que o
combate durara vinte segundos. Além da tentativa de Cudjo para
abater Medes com um murro no estômago, não fora desferido
qualquer outro golpe e nenhum dos dois estava ferido.
-Que quer que eu faça com ele, patrão? -perguntou Medes,
forçando Cudio a avançar para Hammond, nas pontas dos pés.
-Aguenta-o até o senhor Gasaway desistir -disse Hammond,
prudentemente; e perguntou, para o outro lado do ringue: -Que
queres fazer Law.
-Só quero que não deixes o teu negro matá-lo -retorquiu Gasaway,
rindo-se, embaraçado com a derrota, e avançando para libertar o
seu negro das mãos de Medes.
-Que raio de combate -disse Alcorn. Charies bateu na perna e
dobrou-se ao meio a rir.


-Não é muito justo, não me parece -disse Hammond, magnânimo. Ponham-
nos lá para lutarem outra vez, se quiserem.
Redfield não quis ouvi-lo.
-Foi uma luta leal e bem ganha -declarou. -0 melhor ganhou.
Pérola embora a curta luta vendesse pouco uísque, anteviu a
dificuldade de resolver as apostas, no caso de nova luta com
resultado contrário.
-Não, não -disse ele. -0 senhor Maxwell ganhou. Também antevia
uma nova luta com os mesmos negros, noutro sábado. Havia
algumas disputas entre os espectadores desapontados, e alguns
homens que tinham perdido ficaram descontentes, mas a opinião
geral era que a vitória de Medes fora limpa e decisiva. Gasaway,
como bom desportista, não teve outra alternativa além de a aceitar.
Teve um gesto de amabilidade ao oferecer a sua rodada de bebidas
e perdoou mesmo a má actuação de Cudjo.


Cudio chorava, enquanto se vestia, e o patrão trouxe-lhe uma
caneca de uísque e garantiu-lhe:
-Está tudo bem, excepto perdermos o Estrela; mas não faz mal,
ganhamo-lo para a próxima vez. Não chores. Hás-de ter outra
oportunidade de lutar com ele.


Cudio enxugou as lágrimas com a fralda da camisa e recuperou-se
gradualmente da sua humilhação.


Após a luta, Hammond não voltou ao bar, começando a preparar as
suas coisas para partir. Os dois Gasaway juntaram-se a ele,
amavelmente, e Lewis, na medida em que podia, explicou quem era


o seu novo amo ao desorientado Estrela, avisando-o de que devia
obedecer-lhe.
Elijah acompanhou Charles até à porta e viu Medes montar a mula
cinzenta, com Estrela à frente e Atrides atrás. Hammond ouviu falar


em segunda-feira, num colóquio segredado entre Charles e Elijah e
começou a pensar o que estariam eles a combinar para aquele dia.
Contudo não se preocupou muito, pois estava decidido a mandar
Charles para casa, não só para lhe servir de mensageiro, mas
também para o castigar por mentir quanto à permissão do pai para
ir a Falconhurst.

Enquanto se afastavam, a cavalo, Charles revia, com júbilo, os
acontecimentos da tarde. Os seus ganhos eram pequenos mas
felicitava-se por ter ganho. A vitória de Medes sobre Cudjo era, na
realidade, a vitória de Hammond sobre Lewis Gasaway, e a sua
sobre Elijah, por quem sentia forte rivalidade e afecto. Quando se
aproximaram de Falconhurst, Charles confessou que tinha
convidado Elijab para ir com ele fazer uma visita a Crowfoot, cuja
aceitação dependia de Elijah obter permissão para fazer a viagem.
-0 pai não me castiga -projectou Charies -se eu levar uma visita.
Não é assim tão cruel.
-0 seu pai não o castiga se lhe levar aquele dinheiro -declarou
Ham. Suspeitava das intenções de Elijah de fugir de casa, e, se
tivesse sabido antes da viagem, teria avisado o irmão mais velho.
Decidiu não interferir.
Encontraram o Maxwell mais velho enervado. Tentara andar de um
lado para o outro, mas as dores nas articulações impediam-lhe a
actividade, e mandara Merririon levar a sua cadeira de balanço para

o pé da janela, para poder observar o regresso do seu filho. Tentava
disfarçar a apreensão, e viu os rapazes e os negros desmontarem,
sem se mover da sua cadeira. Quando viu o terceiro negro descer da
mula, compreendeu que Medes tinha ganho a luta. Menos
preocupado com o valor do troféu do que com o triunfo do filho e
especialmente com o seu regresso são e salvo, resignou-se a beber o
seu toddy e despejara o último golo quando Hammond entrou na
sala. Os sábados na taberna, ele bem o sabia, eram agitados e

podiam ser perigosos; Charles pouco ajudaria se Hammond se
envolvesse numa briga.
-Trouxemos-lhe outro negro, um machozinho bem jeitoso, anunciou
Hammond beijando o velho, que lhe agarrava a mão
ciosamente.
-Eu sabia que aquele mandingo ia lutar com energia. Não lhe
arrancaram nada, nem o feriram?
Hammond descreveu a facilidade com que Medes tinha ganho, mas
admitiu as suas dúvidas quanto ao valor do mandingo. A vitória
tinha sido demasiado fácil e rápida. A luta não servira de teste para
a força e para o espírito de luta do rapaz.
-Nunca estás satisfeito. Querias trazer o teu negro para casa dentro
de uma banheira? -disse o velho, a rir. -Traz lá o negro do velho
Gasaway, quero ver que tal é.
-É apenas um negro, mas é são. É escuro e cheira pior que uma
doninha. È melhor esperar até amanhã para o ver lá fora.
-já cheiro negros há tanto tempo que o cheiro deles é perfume para

o meu nariz. Trá-lo aqui e vamos beber um toddy antes da ceia.
-Não me apetece uísque. Venho da taberna. Penso que o primo
Charles também não queira.
Charles disse que queria uma bebida e Hammond foi à porta
chamar Medes a quem tinha dado instruções para dar de comer e
cama aos rapazes, e ordenou-lhe que os trouxesse para casa. Meg
trouxera os toddies, demasiado quentes para se poderem beber, ao
mesmo tempo os rapazes chegavam, através da cozinha e da sala de
jantar.
-Meg, ajuda a despi-lo -ordenou Hammond. Meg revirou os olhos,
para protestar, mas obedeceu. Não gostava de tocar em pretos sujos.
-Cheira mal -murmurou entre os dentes. Estrela baixou a cabeça e
recuou. Hammond pôs a mão no ombro do rapaz envergonhado e
fê-lo avançar até à cadeira do pai.
-Não quero mexer-lhe. Só quero olhar para o negro -protestou
Maxwell, bebendo um golo do seu toddy. -Da Guiné, parece.

-Parece-me haúça, em parte -sugeriu Ham.
-Talvez mistura. Seja como for, não tem sangue humano -declarou


o pai. -De primeira. Não pensava que o Gasaway os alimentasse tão
bem. Deve ter treze anos, talvez, penso eu.
-Lewis disse doze -informou Hammond, que ainda não tinha visto
o rapaz nu. -E nem uma marca de chicote nem uma borbulha.
-0 Gasaway não usa muito o chicote. Diga-se em abono dele, não
usa o chicote e dá-lhes de comer, ao que parece.
-Aqui dá co chicote? -disse a criança, ganhando coragem.
-Dou com o chicote nos negros que não dizem "patrão" -avisou
Hammond.
-Patrão, siô -corrigiu-se o rapaz.
-Não há problema se fores bom; mas penduro-te, se fores mau disse
Hammond, respondendo à pergunta dele. -Diz à tua mãe que
lhe dê bastante comer, tudo o que ele quiser, e dorme com o Trides disse
ele a Meg.
-E este? Não preciso de o ver. já o conheço -disse MaxwelI,
olhando para Atrides.
-Mas nunca o apalpou -riu-se Hammond, baixando as calças de
Atrides. -Parece que lhe escapou uma coisa.
0 rapaz tinha começado a sentir orgulho na sua anormalidade, de
que nunca tinha tido consciência. Era a única coisa com que podia
chamar a atenção sobre ele, e, depois de se habituar a ouvir piadas
sobre o assunto, cujo conteúdo não compreendia, começara a gostar
do espanto que causava entre os apostadores.
-juro que nunca vi coisa parecida. Três! -e o pai olhou para
Hammond, como se esperasse uma explicação para o fenômeno. Vi-
os só com um ou sem nenhum, mas com três nunca tinha visto.
-0 doutor Redfield diz que ele vale bom dinheiro em Nova Orleães.
-Não lhe fazem mal nenhum, os três, mas também não o ajudam
muito. Dois sempre me bastaram -gabou-se Maxwell.
-0 doutor Redfield diz que dá sorte e que os jogadores pagavam
bem por ele.

-Já é sorte se pagarem o que ele vale -disse MaxwelI, erguendo-se
ao ouvir a sineta para a ceia e esvaziando o copo. -Dá-lhe bastante
de comer e prepara-o para vender, com os outros, mas tem cuidado
com os jogadores. Não são de fiar.

Capitulo vigésimo

Na segunda-feira o solo já estava seco e podia-se semear, e
Hammond estava a cavalo logo de manhã cedo, vigiando os
semeadores, um a um. Tinha ordenado a Medes e Pérola Grande
que transportassem o caldeirão de escaldar porcos do lugar onde se
encontrava, por trás do celeiro, para mais perto da casa, para que o
pai pudesse vigiar a operação de salgar Medes, após o que lhes
mandou cavar um buraco por baixo, para fazer uma fogueira e
aquecer a água com que o caldeirão devia ser enchido. Voltou mais
tarde e viu que a água estava a ferver, ordenou que apagassem a
fogueira e juntassem água fria à quente, para reduzir a temperatura,
após o que lhe adicionou tanto sal quanto conseguiu dissolver.

Tinha intenção de seguir a fórmula do pai para endurecer a pele de
Medes, mas conhecia a propensão de Maxwell para fazer com
perfeição tudo aquilo em que se metia e não confiava nele com o
receio que escaldasse o escravo. Contudo, deu ordens para
aquecerem água na cozinha, para que Pérola Grande a pudesse ir
juntando à solução do caldeirão, evitando que arrefecesse. Era um
enorme caldeirão de ferro com três pés e sem alça.


Merimon levou a cadeira de balanço de Maxwell para o alpendre,
envolveu-lhe os ombros com a manta azul e Meg trouxe-lhe um
toddy. Alph sentou-se na extremidade do alpendre, sem nada para
fazer. Maxwell habituara-se a ter o rapazito junto dele a servi-lo,
mas raramente lhe dava uma ordem ou lhe dirigia uma palavra. Era
uma espécie de sombra silenciosa.

Quando tudo estava pronto, Hammond ordenou a Medes que se
despisse e entrasse para o caldeirão, explicando-lhe resumidamente
a finalidade da operação. Subia vapor no ar frio, e Medes
mergulhou o braço na salmoura.
-Está quente, patrão, siô -objectou. Hammond meteu a mão no
caldeirão e disse:
-Arrefece num instante. já não está muito quente.
-Tem de estar quente para o endurecer -avisou MaxwelI, da sua
cadeira.
0 escravo respirou fundo, duvidoso, levantou a perna, mergulhou-a
na salmoura e retirou-a.
-Não posso aguentar. Queima, patrão, siô.
-Entra no caldeirão, sou eu quem manda, e enfia-te nele até ao
pescoço
-disse Hammond peremptoriamente.
Medes entrou no caldeirão, esfregou as nádegas e, muito
gradualmente, mergulhou na água.
-Vê-se que estava a precisar disso-, disse Maxwe11. -Não aguenta
uma salmoura um pouco quente.
Medes dobrava-se para poder mergulhar totalmente até apenas a
cabeça e o topo dos joelhos ficarem fora da solução.
-Está muito quente -queixou-se ele. -Ouanto tempo tenho de ficar
aqui dentro?
-Até eu voltar e te dizer que podes sair -respondeu Hammond. -A
Pérola Grande que mantenha a água quente -disse ele ao pai, e
afastou-se a cavalo.


Maxwell passou pelo sono, na sua cadeira, acordando
ocasionalmente e observando o escravo no banho. Nada mais tinha
para fazer.
-É a altura do primo Charles começar a preparar-se para partir hoje
-disse Hammond, ao regressar das suas rondas. -já tem o cavalo
selado, à espera.
Desmontou e entrou em casa; quando voltou, trazia Charles com
ele.
-Tenho de ir hoje? -perguntou Charles. -Não sei se conheço o
caminho. Não posso esperar e ir com o primo Hammond? Só falta
um mês.
-Quero que o seu pai receba o dinheiro e não me posso esquecer do
anel para a prima Blanche -disse Hammond. -Além disso, o seu pai
não sabe onde está. Prepare-se.
Não valia a pena discutir. Charles voltou a casa e subiu ao quarto,
mas regressou em breve, pronto para a viagem. Um rapaz trouxe o
seu cavalo e Maxwell levantou-se e foi vê-lo, a coxear, para verificar
se a perna estava completamente curada. Charles apertou a mão aos
seus anfitriões, em silêncio e, depois de ele ter montado, Hammond
entregou-lhe um saco de pano, cheio de moedas de oiro.
-Tome bem conta disso -avisou Hammond. -Tem lá dentro o anel
para a Blanche, mesmo por cima do dinheiro.
-Vou levá-lo junto ao corpo -prometeu Charies. Afastou-se,
relutantemente, voltando-se de vez em quando, para olhar para
trás.
Hammond viu a temperatura do banho de Medes e prescreveu que
se lhe juntasse água quente. Depois voltou para os campos.

Quando Charies saiu da álea para entrar na estrada, viu uma
carruagem de duas rodas, de capota descida, puxada por um cavalo
alazão cor de canela, entrar, por sua vez, na álea que levava a
Falconhurst. A carruagem era conduzida por uni negro enorme, e o
passageiro era um homem mirrado que levantou cerimoniosamente


o seu chapéu alto para agradecer a Charies ter desviado o cavalo
para permitir que o veículo passasse. Não conhecendo o delicado
personagem, Charles sentiu-se repelido por algo nele que o obrigou
a apressar o passo, mas dirigiu-se para a esquerda, para Benson, em
vez de voltar para a direita, em direcção a Crowfoot.
A chegada da carruagem acordou Maxwell do seu sono. Teve que
olhar duas vezes antes de reconhecer o gnomo que lentamente
descia dela. A sua hospitaleira saudação foi bastante cordial, mas
não havia entusiasmo na sua voz.
-Olha quem ele é -disse, erguendo-se -, o Gideon Gasaway@ Entre,
entre.
-Não se incomode, Warren -disse o homenzinho. -Sei que esta
doente.
-Não estou lá muito bem -admitiu Maxwe11.
-Que tem o seu negro? Está a castigá-lo?
-Não, não, estou a salgá-lo, para lhe endurecer a pele. Ele é bom.
Entre em casa.
Antes de chegarem à sala, Gasaway já tinha abordado o assunto que
ali o levara.
-Não gosto de lhe dizer isto, Warren, mas acho que é o meu dever
começou ele.
-Sente-se, sente-se -insistiu o dono da casa. -Dizia que ...
-0 facto é que o seu rapaz anda pela taberna de Benson, a jogar e
metido em combates de negros. Achei que devia saber.
-Agradeço-lhe imenso, senhor -respondeu Maxwell com ironia, Estou
muitíssimo grato. Só que o Hammond não anda em Benson,
anda nos campos a semear, com as mulas e os negros, tentando
fazer uma boa sementeira.
-Não digo hoje. Refiro-me a sábado. Esteve lá no sábado. Gasaway
mudou o tempo do verbo.
-Oh, no sábado. Isso é diferente. Sim, ouvi dizer isso. Até trouxe
para casa uni macho muito jeitoso que ganhou ao Lewis.



-Eu sei que o Lewis e o Elíjah estavam metidos nisso. Tenho
vergonha por eles, que foram educados de maneira cristã. Não
estou a desculpá-los. Mas aquele negro, o Estrela, é o negro da
minha mulher, o favorito dela. Não é pertença do Lewis para
vender ou jogar. Passei por aqui para o levar. Sabia que o senhor
compreenderia.
Maxwell acenou, mostrando a sua compreensão e Gasaway ficou
mais feliz.
Meg apareceu, trazendo toddies que não haviam sido pedidos.
Gasaway declinou a sua bebida, mostrando certo desdém:
-Eu nunca toco em álcool, nunca.
-Reumatismo -disse MaxwelI, -Tenho que beber toddies por causa
do meu reumatismo. Não me dava um minuto de sossego.
-Isso é diferente, evidentemente. E um remédio, mas vale mais
sofrer.
-Penso que já bebeu tanto que já nem precisa de mais.
-Não, desde que fui salvo, isto é, desde que fui salvo pela segunda
vez, nem uma gota. Continuo salvo. Quando me sinto tentado,
penso em Jesus, e o demónio da bebida foge de mim.
-Põe isso aí, Meg. Eu bebo os dois. Este negro tenta-me bem -disse
MaxwelI, e Meg tapou a mão com a boca para sufocar um risinho
embaraçado, por o patrão ter falado dele.
-Aquele Estrela -disse Gasaway -, venho buscá-lo ...
-Sim compreendo. Foi roubado.
-Bem, não exactamente. Mas o Lewis trouxe-o sem a minha
permissão. É o negro da minha mulher.
-Assim me disse, assim me disse -postulou Maxwe11. -Mas o meu
Hammond não é tolo. Tem uma nota de venda, com a assinatura do
seu rapaz.
-0 Lewis não tinha o direito de o fazer.
-Assim parece, assim parece. Claro, se o negro é seu, senhor
Gasaway, não me oponho a que o leve. De modo nenhum. Mas que
idade tem o Lewis? Vinte e um, não é?



-Vinte e dois ou vinte e três, mais ou menos.
-Mas é responsável. Então acho que ele é um ladrão de negros e o
Ham devia ir falar com o xerife.
Não, não, não quero isso, evidentemente. É coisa de rapazes e eu sei
que não fica com o meu negro, sabendo o que sente a senhora
Gasaway.
-É assunto do Ham. 0 negro é dele. Tem que falar com ele, quando
chegar. -Maxwell pôs o assunto de parte. -Ele devolve-lhe o negro,
mas não a nota de venda. Essa vai para tribunal.
-julguei que seria generoso, por ter um rapaz também, Warren.
-0 meu rapaz não rouba negros.
0 velhote tirou do bolso um pequeno lenço de linho com que
enxugou uma lágrima.
-Juro-lhe, Warren, que não sei o que hei-de fazer -disse. -A terra
da minha plantação esgotada, os meus negros todos velhos e já sem
procriar, três mulheres mortas e enterradas, a quarta doente, os
meus rapazes preguiçosos e vadios. Não sei que fazer. Só desejo que

o Senhor me leve antes de a minha casa e os meus criados irem a
leilão. Agora, ainda por cima, ficou com o meu melhor negro.
Um branco a choramingar, Maxwell sentiu-se enojado. Ficou
embaraçado, sem saber que responder.
-Suponho que o senhor está a experimentar-me, como fez a Job continuou
Gasaway. -Mas não amaldiçoo o dia em que nasci. juro
que não. Sou cristão e digo: -Seja feita a Sua vontade.
-Não falo das suas mulheres e dos seus filhos. Isso não me ficaria
bem -mas Maxwell implicava o pior. -Quanto à sua terra, semeou-a
para fazer algodão e vendeu esse algodão, não vendeu?
-Julgo que a maior parte se foi na enxurrada, tudo se foi.
-E devia ter vendido os negros antes de envelhecerem e não
poderem procriar nem trabalhar. Depois dos vinte e cinco anos um
negro vai valendo menos cada dia que passa. Eu vendo os meus, na


maior parte, com excepção dos procriadores -extra, antes dos vinte
anos.
-Isso divide as famílias. Não gosto de dividir as famílias-
respondeu Gasaway.
-Famílias. Os negros não têm famílias. Eu desmamo os pequenos
cedo, separo-os das mães e mando-os dormir no celeiro. Quando
chega a altura de os vender, os mais velhos não se ralam; mal se
lembram qual era o deles.
-E os maridos e as mulheres?
-Não há maridos nem mulheres em Falconhurst -troçou Maxwe11.
-Eu distribu-os para procriação quando quero, mas, quando vendo

o macho, dou a fêmea a outro. Há sempre muitos jovens por aqui. E
nunca vendo um bebé antes de ser desmamado. Isso todas as
fêmeas querem, um macho para fornicar e um bebé para lhe sugar
as mamas.
-Não é cristão -protestou Gasaway. -Eu quero cristianizar os meus
criados. Por isso Deus no-los deu, para os cristianizarmos e
salvarmos as suas almas.
-Almas de negros -disse MaxwelI, com sarcasmo. -Acha que eles
têm alma?
-Claro que têm almas. Que julga o senhor?
-Vai voar lá para cima, com as asinhas a bater e de harpa na mão,
por entre uma data de anjos negros malcheirosos? Eu não. Eu não
vou, nem canto em coros com eles.
-Bem, suponho que haja uma área do céu separada para eles, a
menos que eles sirvam os brancos. Não sei, talvez se tornem
brancos, quando morrerem e subirem aos céus.
-Nem Deus consegue fazer um branco de um preto. Nem Ele pode blasfemou
Maxwe11.
-Deus pode, se quiser -protestou Gasaway. -Ele pode fazê-lo. A lei
sabe que muitos brancos o tentam.
-Que quer dizer?

-Montando as suas fêmeas e fazendo crianças mulatas. Eu nunca o
fiz, pelo menos depois de ser totalmente adulto. E não deixo os
meus rapazes fazerem-no. Os meus negros são todos totalmente
pretos 'tribos mistas, é claro) mas não têm uma gota de sangue
branco. Não quero fêmeas claras a tentar os meus rapazes.
-Protege as brancas, e salva-as de se submeterem -disse MaxwelI, a
justificar a prática.
-É uma das coisas de que os tais abolicionistas do Norte nos
acusam, dos bastardos mestiços. Disso não podem acusar-me. Nem
disso, nem de separar famílias. É o pior que eles têm contra a nossa
instituição.
-Enquanto forem minha propriedade, monto-as e vendo-as quando
quiser, mato-os e como-os, até, se me apetecer. Os abolicionistas são
uma data de excêntricos e de tarados, ninguém liga ao que eles
dizem.
-Aquele Geriton, Garrison, como é que ele se chama? Está a mexer
as coisas com muita esperteza. já viu o que ele escreve?
-É melhor que ninguém me mostre -disse Maxwell. -Libertador
mais vale que vá libertar os que trabalham no Norte.
-Ele agarrou-se a esta inovação dos combates de negros, e, o que é
pior, das apostas, e vai fazer barulho.

-já havia combates em Nova Orleães e noutros sítios desde que o
velho Hickory correu com os Ingleses, e mesmo antes, já desde
Roma, e em Roma eram seres humanos brancos -declarou Maxwell.
-Mas em Nova Orleães é às escondidas, não onde as senhoras e os
pregadores não possam ver, como em Benson. Ainda há-de haver
quem escreva àquele Garrison, e depois...
-E ainda há alguém que fica coberto de alcatrão montado numa
cerca. Nenhum branco o fazia e nenhum negro pode.
Gasaway ergueu-se e pegou no seu chapéu alto.
-Fique para jantar. Está quase pronto, jantamos logo que o Ham
chegar -insistiu Maxwel].


-Não, não. Tenho de ir andando para casa. Para vir mais depressa,
não fiz as orações da família, hoje. Tenho de ir para casa e pôr-me
de joelhos. 0 ter negligenciado as minhas orações endureceu o seu
coração contra mim, em relação àquele macho. Eu sei.
-Eu nem sabia que não tinha rezado. Como podia ser isso? perguntou
Maxwell ingenuamente. Levantou-se para acompanhar o
seu convidado até ao varandim.
-Perdi urna manhã para lhe vir falar do seu rapaz e do meu macho
e o senhor nem ligou importância.
Eu já sabia -disse Maxwell, irritado pela ligação dos dois assuntos.
Bem, cumpri o meu dever -disse o convidado à saída, em tom
duvidoso. -Não levou a mal?
-Claro, claro -foi a resposta ambígua de Maxwell.
-Venha visitar-me, venha visitar-me. Quando lhe apetecer. Parece
que se esqueceu do caminho para a Plantação Long Grove.
-0 meu reumatismo prende-me aqui -foi a desculpa de Maxwe11.
Os dois homens apertaram as mãos. Gasaway subiu para a
carruagem e Maxwell regressou à sua sala para beber um toddy, de
que bem precisava.


Hammond tinha voltado a casa, como era seu hábito, de hora a
hora, aproximadamente, e tinha reconhecido a carruagem.
Interrogando Pérola Grande, soube que o visitante era um velho e
concluiu de quem se tratava e o que lá ia fazer. Esquivou-se à
situação, pensando que o pai saberia enfrentá-Ia melhor do que ele.
Dava-se bem com Lewis, tinha por ele um sincero afecto embora
pouco respeito; mas pelo velho hipócrita pai de Lewis não tinha
respeito algum. Riu-se consigo próprio, à ideia da suposta fuga de
Elijah corri Charles e pensou se ele realmente teria ido. Deviam já
estar a caminho naquela altura.


Olhou para a porta da casa com uma sensação de culpa por se
esquivar às suas obrigações de hospitalidade para com o hóspede



do pai. Quando voltou de novo para os campos, olhou por cima do
ombro, na esperança de que Gasaway não chegasse a saber que ele
viera a casa e tivera conhecimento da sua presença.

Os semeadores estavam a trabalhar bem e exigiam pouca
supervisão, mas Hammond demorou-se até ao meio-dia, e viu-os
desatrelar e dar de comer às mulas e aos bois. Sentiu-se tentado a
partilhar da sua refeição, que Lucrécia Bórgia tinha enviado, mas
compreendeu que o facto de comer com eles iria embaraçar os
escravos, embora lhes agradasse. Gostava de comer de vez em
quando a comida inferior que era fornecida aos escravos -pão de
milho, carne gorda e leite -mas teria de ir a casa depois para
tranqüilizar o pai por não ter aparecido para jantar, e decidiu que,
uma vez que tinha de enfrentar Gasaway, tanto fazia ser antes como
depois do jantar. Ouando chegou, já atrasado, à vista da casa,
sentiu-se aliviado por notar que a carruagem partira. Pérola Grande
dava de comer a Medes, ainda metido no caldeirão.

A sineta para o jantar já tinha tocado e pai e filho foram
imediatamente para a mesa. Havia uma invasão de moscas e Alph
conservava-se muito ocupado com o leque de penas de pavão,
enquanto Meg se dividia entre verificar se o patrão era
adequadamente servido e impedir que os insectos se instalassem na
comida.
Maxwell riu-se, satisfeito, ao relatar a sua conversa corri Gasaway e
a aflição deste por Lewis ser acusado de roubo.
-Não gostava de acusar o Lew de ladrão de negros, ainda por cima
de um da sua própria plantação -disse Hammond, tentando
defender o amigo.
-Não gostava de o levar ao xerife, nem de o pôr em cima de uma
cerca nem nada desse gênero.
-Claro que não -concordou o pai. -Mas agradou-me muito irritar
aquele filho da puta hipócrita, a tentar fugir a pagar a sua aposta.


-A apoga de Lewis.
-Bem. E o mesmo, julgas que se tu perdesses aquele negro às pintas,
eu andava por aí a tentar recuperá-lo?
-Mas o pai tem o seu orgulho -e o filho proclamava o seu próprio
orgulho ao afirmá-lo.
-Nunca toca em álcool, mas bebe todos os dias uma grande garrafa
de Revigorador Mazda. Aquilo não passa de uísque amargo.
-E mais caro.
-Claro, mas a senhora Gasaway julga que é remédio. E não monta
fêmeas claras. -Maxwell riu-se ironicamente. -A primeira mulher
dele tratava-lhes da saúde. Chicoteava e matava à fome as fêmeas
claras e os bastardos do Gideon, até que ele teve que as vender e
arranjar outras, pretas. Mas o Lewis, nunca teve nenhuma.
-Tem de ir às cabanas para as ter -disse Hammond.
-E vai tudo para leilão, faço ideia@ 0 velho Gideon tem mais
dinheiro enterrado em Long Grove do que as suas árvores têm
folhas. Nada é dele honestamente; pertence aos dois filhos da
segunda mulher, foi ela quem levou o dinheiro para Long Grove.
-Ele não sabe que o Lije vai com o primo Charles, acho eu.
-Porquê -disse-lhe?
-Sim, que o Lije ia com o Charles.
-Fazem um bom par, os dois, com as caras cheias de sarna -disse
Maxwell, afastando a cadeira da mesa.


Lucrécia Bórgia plantou-se na entrada da cozinha para a sala de
jantar.
-Patrão, siô, eu tem de informa que aquele nêguinho do patrão
Charles não velo comê janta,
-Jasão? -perguntou Hammond.
-Sim, siô. Esse mêrno. Que faz eu?
-Não faças nada -disse Hammond. -Há-de aparecer para a ceia.
-Talvez esteja a chorar pelo patrão -concluiu o velho. -Era louco
pelo Charles, mas não veio vê-lo partir.



-Talvez espreitasse de cima. Se calhar está a chorar lá em cima.
-Charles tratava-o bem, parece que gostava dele.
-Eu avisei-o para o tratar bem e não o vergastar.
-Ele vergastava Jasão todas as noites -interveio Meg. Hammond
olhou severamente para o escravo, para o repreender pela
interrupção; depois perguntou?
-Como sabes? Meg ficou confuso pela tácita proibição de falar,
seguida de uma pergunta.
-Diz Jasão -respondeu, encolhendo os ombros. -Ele gosta.
-Conversa de negros.
0 velho regressou à sala sem a ajuda de Meintion que caminhava
atenciosamente ao seu lado, e o filho foi com ele.
Embora Jasão também não aparecesse à hora da cela, Lucrécia
Bórgia não relatou a sua ausência, uma vez que o patrão mostrara
tão pouco interesse ao meio-dia. Contudo, quando viu que ele não
aparecia para o pequeno-almoço, pensou que era melhor falar
novamente no assunto.
-Acha que o Charles levou o macho com ele? -perguntou
Hammond ao pai. -É suficientemente louco para isso.
-Tu viste-o partir. Claro que não levou.
-Talvez tenha mandado Jasão à frente para o ir apanhar. Ele não é
de confiança.
-Confiaste-lhe dois mil e quinhentos dólares em ouro. julgo que lhe
podes confiar um negrinho.
-É diferente. 0 Charles era louco pelo Jasão.
-Não me importo muito, tirando o facto de que o macho era uma
oferta -disse o pai. -Nunca será nada de jeito.
-Se o Charles o levou, eu trago-o quando for a Crowfoot, no mês
que vem. Não o deve ter feito por mal.
-Devia ter pedido, de qualquer modo.
-Claro. Claro. Eu deixava-o ficar lá, até eu voltar.
-Talvez tenhas razão. Deve ser lá que ele está.



-Espero que sim, se não aparecer -disse Hammond, pondo o
assunto de parte.

Capitulo vigésimo primeiro

A semana passou, a arada estava a terminar, e os carripos prontos
para plantar. No sábado, Hammond pegou em Medes e Estrela e
voltou a Benson onde recebeu no correio, além do Comércio de
Nova Orleães, um envelope dirigido ao senhor Warren C. Maxwell,
de C. Wertheimer, de Mobile, contendo as notas de venda de
Medes, Ellen e Jasão, assinadas por Wilson, e quitações das
hipotecas assinadas por Wertheimer. Não havia qualquer carta e os
documentos estavam todos passados em nome do seu pai.
Hammond, conhecendo a integridade de Wilson, não se tinha
preocupado até então, com o seu direito aos escravos que pagara e
que tinha em seu poder. Tais transferências eram supérfluas em
transacções entre cavalheiros, mas foi com uma admiração ainda
maior pelo senhor Wilson, que Hammond guardou os documentos
no bolso do casaco.

Na taberna, havia a habitual excitação em relação aos combates,
bebia-se como habitualmente, combinavam-se os combates e
faziam-se apostas. Os homens eram quase todos os mesmos. Ky1e lá
estava, com Doçuras, que ele propôs opor a Medes, mas o negro que
ele queria apostar contra Estrela era quebrado e não interessava a
Hammond. Na realidade apenas havia dois pretos que Hammond
gostaria de levar para casa, um deles já estava apostado, e outro,
mais novo que Estrela, com cerca de dez anos, mas musculoso, vivo


e alegre. Hammond puxou a criança para o centro da sala e
examinou-a.

A quem pertences? Quem é o teu patrão? -perguntou. É aquele que
vem ali -respondeu o rapaz, apontando para um homem de cerca
de sessenta anos, que se aproximava, a reboque de Redfield. 0 rapaz
não era envergonhado e gostava de cooperar, feliz pela atenção que

o branco lhe estava a dar, ansioso por tirar partido da sua força e do
seu aspecto. Saltou para exibir a sua agilidade, sem lho pedirem, e
meteu os dedos na boca para mostrar os dentes. Notava-se que a
avaliação não era novidade para ele e lhe dava certo prazer.
-já calculava que se interessasse por esse -disse Redfield. -0 senhor
Hodkins vem de passagem, com o seu lutador e este negrinho, mas
calculo que não queira opor o seu mandingo contra o lutador dele. É
demasiado vigoroso.
-0 meu também é vigoroso -gabou-se Hammond. -Faz-se a luta, se o
senhor Hodkins quiser.
-Ainda não o viu -disse Redfleld.
7-Armand, anda cá e mostra-te -chamou Hodkins, passando a mão
pela barba grisalha. -Despe-te.
0 grande negro avançou, relutante, e começou a despir-se
lentamente, tão lentamente que o patrão agarrou na camisa e lha
arrancou, esbofeteando-o violentamente.
-Por favô, siô, patrão -disse o 'negro. Era uma formalidade, porque
ele não tinha medo, e ficou impassível, sem se mover. 0 negro era
maciço, de cor castanha-escura, de raça indefinida, com alguma
mistura de sangue branco; era impossível determinar quanto.
Hammond avaliou a sua altura em pouco menos de dezanove
palmos e a sua idade em menos de trinta anos. As suas coxas e as
barrigas das pernas eram pesadas e musculosas e os bíceps
pareciam frouxos e começava a ter barriga.

Hammond não se incomodou em apreciar o homem
cuidadosamente e não o apalpou. Esta disposto a fazer Medes lutar
com qualquer um, não com confiança total, mas como uma sensação
de que, se ele não conseguisse opor-se a qualquer antagonista, mais
valia não o fazer lutar. Redfleld, para bem de Hammond, estava
mais circunspecto. Dirigiu-se ao negro, como se fosse comprá-lo,
apalpando-o e dando-lhe palmadas. Depois, captando o olhar de
Hammond, fez-lhe sinal que aprovava o combate.
-Cicatrizes de chicotadas -notou ele, esfregando verticalmente as
costas do negro, como para apagá-las.
-Não sei onde as arranjou -disse Hodkins. -já as tinha quando o
comprei. Nunca lhe rasguei sequer a pele com o chicote. E essa
marca no lombo, parece que alguém tentou gravar um R, e esse
bocado de orelha a menos, já ele tinha também. Não sei nada disso.
-Nada disso o arruinou -observou Recífield. -Ensinou-lhe o que
vale um bom patrão.
-Arrisco-me -declarou Hammond a quem as mutilações não
interessavam. -Arrisco o combate, se o senhor Hodklns está
interessado.
-Ainda não vi os seus negros -declarou Hodkins. Hammond
chamou Estrela primeiro e mandou-o despir-se, e depois Medes.
0 estranho passou as mãos sobre Estrela, observou-lhe os dentes e
mandou-o embora com uma palmada no rabo, que fez sorrir o
rapaz.
-Que idade tem? -perguntou.
-Não sei ao certo. -Hammond olhou para os outros homens. -0 Lew
Gasaway ainda não chegou. Ele sabe.
-Garante que é perfeito? -perguntou Hodkins.
-É perfeito -disse Redfield. -Veia por si mesmo.
-Os negros de Falconhurst são todos perfeitos. 0 Maxwell não quer
doutros -disse um espectador para Alcorn.
Hoclkins voltou a sua atenção para Medes, que avançou, nu, para
inspecção. 0 velho coçou a barba e concedeu, duvidoso, a sua


aceitação para o combate. 0 grupo dirigiu-se ao bar, onde
Hammond ofereceu bebidas a Hodkins e RecIfield, para selar o
negócio, convidando Ky1e a juntar-se-lhes, e não conseguindo
evitar convidar Alcorn que se imiscuíra no grupo.
-Donde vem, senhor Hodklns? Qual é a sua terra? -perguntou
Redfield.
0 bom em da barba acenou vagamente coma mão na direcção do
oeste.
-De toda a parte. Natchez, julgo eu. Principalmente Natchez. Nasci
no Termessee.
Hammond não sentia qualquer curiosidade e Redfield achou
melhor não prosseguir o inquérito. De qualquer modo, Pérola
chamava para o primeiro combate e os espectadores dirigiam-se
para a arena, pela porta das traseiras. Dois negros bem
emparelhados, um alto, cor de bronze, o outro baixo, musculoso e
preto, lutaram e esmurraram-se um ao outro, sem grande
habilidade, em volta do ringue. Não havia falta de vontade de lutar
em nenhum deles, mas os golpes eram dados ao acaso ou sem força,
e os espectadores ficaram apáticos.
0 negro baixo e forte aplicou um murro no queixo do outro que o
atirou ao chão, mas conseguiu levantar-se antes de o baixo ter
tempo de cair por cima dele. Notava-se contudo, que estava a ficar
cansado. Mexeu-se, tentando aplicar uma rasteira ao mais escuro,
mas não o conseguiu e levou outro murro nos queixos, perdeu o
equilíbrio e foi ao chão. 0 negro mais baixo atirou-se para cima dele
e os dois esmurraram-se e lutaram no chão. 0 preto cor de bronze,
exausto, acabou por deixar de lutar, deixou-se apenas ficar
estendido, protegendo-se o melhor que podia, com os braços, dos
golpes que o outro disferia. Parecia impossível fazê-lo desmaiar,
mas era tão evidente que estava derrotado, que Hoke Stevens, seu
proprietário, disse a Pérola que acabasse com o combate.


A audiência dirigiu-se ao bar, sem mostrar muito entusiasmo, e
emborcou os copos que o proprietário vitorioso pagou a todos. 0
combate não tinha chegado a ser espectacular, e, excepto para os
que tinham feito apostas, os brancos estavam mais interessados nas
bebidas que no resultado da luta.

Hammond olhava de vez em quando para a porta, para ver se os
Gasaway chegavam, ou Lewls, pelo menos, mas nenhum deles
apareceu. Calculou que o pai os tivesse proibido de lá ir ou que
Elijah tivesse partido com Charles para Crowfoot.

Pérola pagou as apostas que lhe tinham sido confiadas, e demorou o
segundo combate, que se travaria entre Medes e Armand, até ter
vendido todo o uísque que a multidão estava disposta a comprar.
Medes tinha-se vestido de novo e Hammond sentia-se grato por
Redfleld o ter tranquilizado, enquanto viam o mandingo despir-se.
-0 preto do velhote não tem formas; é só massa-segredou o
veterinário. -Eu apalpei-o.
-Mas é um lutador antigo; já tem cicatrizes-argumentou
Hammond.
-As cicatrizes não são de lutar; são de castigos. Nenhum dos
proprietários ofereceu uísque aos seus lutadores. Houve poucas
apostas, pois o preto grande parecia bem emparelhado. A multidão
dirigiu-se, apática, para o pátio e colocou-se em volta da arena.
Alguns avançaram para inspeccionar os lutadores despidos e
oferecer conselhos aos proprietários.

Hammond saiu primeiro, colocou Medes na parte do ringue mais
afastada da porta e esperou. Não existiam regras, além das ordens
de Pérola. Armand apareceu, com Hodkins e agarrá-lo pelo
cotovelo, dando-lhe conselhos e avísando-o para se acautelar. A
ordem final de Pérola, os proprietários tiraram as mãos dos ombros
dos seus lutadores e recuaram, para as linhas laterais.


Medes não se acautelou e recebeu um murro no estômago, pela sua
ousadia. Não o abalou mas ensinou-lhe prudência e recuou,
procurando vantagem. Lançou outro murro com a esquerda,
estendeu o braço e aplicou uma direita no nariz de Armand, 0
sangue espirrou, mas nenhum dos lutadores estava muito ferido.
Armand recuou, limpou com a mão o sangue que lhe corria do
nariz e, inesperadamente catapultou-se contra o adversário,
agarrando-o pela cintura e por um ombro. Medes caiu corri
Armand por cima dele. Os dois ficaram parados, numa luta rígida.
Medes conseguiu libertar o braço direito e aplicou um violento
golpe no sobrolho de Armand, mas foi impossível determinar se a
cabeça de Armand se afastou devido ao murro ou se foi empurrada
pelo impacto. Apanhou Medes no queixo com um longo punho,
mas havia pouca força no soco. A luta no chão era lenta,
aparentemente delíberada, mas era, na realidade, a luta de dois
corpos grandes, incapazes de se mover com a agilidade superior
dos homens mais pequenos.

Os olhos dos espectadores estavam postos na luta que retinha toda
a sua atenção. Apenas Ky1e viu Hodkins levar a mão ao coração e
ouviu-o gritar, antes de cair no chão, dando uns estranhos pontapés,
como se estivesse a dançar no ar, e ficar morto, de costas, com os
olhos abertos e revirados.
-Este homem está a morrer. Está a morrer, digo-lhes eu -gritou
Ky1e.
-Parem essa luta.
A multidão desinteressou-se do combate e reuniu-se, confusa e
curiosa, em volta do homem já morto. Os dois negros continuaram a
sua luta sem qualquer audiência. Se algum deles se apercebeu de
que não estavam a ser vistos, não deu sinais disso.
-Tragam uísque, raios os partam? -gritou Kyle, histericamente.


-Abram-lhe o colarinho. Afastem-se para o deixar respirar ordenou
Gore.
-Quem é ele? -perguntou um terceiro.
-É dono do negro grande que está a lutar.
-Qual deles? Pérola correu para o bar e, na sua confusão, pegou na
caneca dos pretos e encheu-a com uísque que transbordou e se foi
entornando enquanto ele o levava lá para fora. Agachou-se junto do
corpo que Ky1e agarrou pela cintura e ambos tentaram forçá-lo a
engolir o uísque.
Redfield abriu caminho através da multidão e olhou para o homem,
imperturbável. Ajoelhou-se, levantou um dos braços de Hodkins e
deixou-o cair, pôs-lhe a mão na têmpora, meteu a mão por baixo da
camisa e não conseguiu detectar qualquer movimento do coração.
-Não vale a pena; não podem fazer nada; está morto -proclamou,
erguendo-se. -Podem levá-lo para dentro.
Pérola lembrou-se dos negros que lutavam, e que continuavam a
esmurrar-se e a rolar pelo chão, como se nada tivesse acontecido.
Hammond estava num dos extremos, com a atenção dividida.
Viu Pérola entrar no ringue e ouviu-o gritar para os lutadores.
-Parem. 0 combate acabou. Chega de luta. Tentou separar os
lutadores que não o ouviram, mas recuou, com medo de levar
algum murro, e, em vez disso, começou a dar-lhes pontapés,
apanhando Medes no rabo,
-Deixe-os continuar -implorou Hammond. -0 meu negro está a
ganhar. Não pare a luta.
-0 seu negro já ganhou, agora. Damos-lhe a vitória.
-Não é definitivo. Eu quero uma vitória final -argumentou
Hammond. -Não desejava uma vitória indecisa.
-Ganha o seu macho -disse Pérola, e, olhando para a multidão que
seguia o morto que estavam a levar para dentro, acrescentou: -Não
está ninguém a ver, de qualquer modo. 0 seu macho ganha. Tire o
malandrim dali, que eu trato do outro.



Hammond gritou a Medes que desistisse, mas ele continuou a
aparar o ataque de Armand. Hammond agarrou-o pelo ombro e
Alcorn que se atrasara, atrás da multidão, veio ajudar Pérola a
controlar o escravo de Hodkins.
-Este é o melhor. Deixe-os acabar que ele ganha -afirmou Alcorn.
-0 senhor Maxwell já ganhou -declarou Pérola.
-É um empate. Ainda não acabou. Pus o meu dinheiro neste macho
e vi tudo -insistiu Alcorn. -Não vou perder assim o meu dinheiro.
Harrirriond duvidava que Alcorn tivesse apostado, mas achou
preferível acalmá-lo. Tirou do bolso uma moeda de ouro e meteu-a
na mão do outro que a guardou sem uma palavra e parou de
protestar.
Ambos os negros estavam marcados e Armand coberto de sangue,
mas nenhum deles estava gravemente ferido. Medes obedeceu de
boa vontade ao patrão mas, quanto ao seu adversário, foram
necessários insultos e ameaças para o impedir de voltar a atacá-lo e
continuar a luta. A sua honra estava em jogo e Armand, levado para

o canto da taberna, pôs-se a resmungar e começou a chorar.
Ninguém sabia o que fazer com o corpo de Hodkins. Ninguém
sabia quem ele era, donde vinha ou para onde ia. Os seus negros, ou
não sabiam, ou tinham medo de responder. Armand, ao que
parecia, tinha sido seu escravo durante um ou dois anos, já tinha
lutado por conta dele outras vezes, mas não conseguia dizer onde
nem quantas vezes. Disse que o seu antigo dono era o "patrão
Daniel ", mas não sabia se Daniel era o primeiro nome ou um
apelido. 0 rapazinho claro tinha sido comprado poucas semanas
antes em Forks-of-the-Road, perto de Natchez, ao que se
depreendia, de entre um grupo levado de Kentucky para o mercado
de Nova Orleães. Isso era compreensível, visto que o rapaz era
muito novo para ser vendido separadamente, segundo a lei da
Luisiana, embora toda a gente soubesse que era fácil fugir a essa lei.


Exploraram-se os bolsos do morto e encontraram-lhe um saco de
couro com trezentos e sessenta dólares em ouro e sete dólares e
alguns cêntimos de prata. Entre as moedas, dentro do saco, havia
um bocado de papel muito dobrado em que estava escrito " 11 de
Fevereiro de 18 32, $225,00: por $225 em ouro, ao contado, vendo a

C. Miller um rapaz mulato chamado Kittie que garanto ser são de
corpo e de espírito, um escravo para toda a vida. 'assinado) F. C.
Elton. Pelo menos a assinatura parecia ser F. C. Elton, embora não
se pudesse ter a certeza. 0 rapazinho admitiu chamar-se Kittíe ou
Kit.
No bolso interior do casaco havia uma carta escrita a lápis, sem
envelope, que dizia:

Querido amigo, pego na pena para lhe dizer-te nós estamos bem

menos o bebé que tem uma constipação e istá muito doente. 0
Simon já voltou mas aínda não o vi tem algum dinbeiro se tiver
algum mande-me por-favor purque eu preciso a fêmea coxa teve
um filho no mês paçado pur hoje nada mais com amor. assinado
Cary

Nem Kit nem Armand sabiam quem pudesse ser Cary. Os restantes
combates combinados para aquela tarde foram adiados para o
sábado seguinte; mas o morto e as suas posses também constituíram
um bom estímulo para o consumo de uísque.

Ficou decidido que Pérola se ocuparia do enterro de Hodkins,
pagando-o com o dinheiro do saco e ficaria com o restante até ser
reclamado. Kit ficaria para Hammond como troféu do combate,
assim como a nota de venda de Elton a Miller, pelo seu valor.
Ninguém sabia se Hodkins e Miller seriam a mesma pessoa. 0
acordo da multidão quanto à justiça dessa decisão dissipou


qualquer nuvem quanto à vitória de Hammond. Ficou decidido que
Redfield levaria Armand para trabalhar pela comida durante um
período razoável, até se descobrir um herdeiro, embora, no caso de
não se descobrir nenhum, o escravo ficasse para Pérola. Era mais
fácil do que recorrer a formalidades legais, que seriam tão justas
como aquelas.

Quanto à liquidação das novas apostas feitas junto de Pérola, este
devolveu o seu dinheiro e pagou aos vencedores com o ouro de
Hodkins. A luta não tinha acabado e ninguém se podia queixar do
sistema. Todos ficaram satisfeitos.
Logo que pôde, Hammond pagou uma rodada final e preparou-se
para regressar a casa, embora a tarde ainda só estivesse a meio.
Sentia-se grato pelo apoio moral de Redfield e, ao reunir os seus três
criados, perguntou a Recífield quando queria levar a sua fêmea a
Medes, que, para ele, estava à disposição em qualquer altura.
-Pode ser amanhã, se lá estiver. Eu sei que não trabalham ao
sábado. Hammond montou o seu garanhão e disse a Medes que
montasse Kit atrás dele. Medes e Estrela seguiram na mula cinzenta.

Warren Maxwell surpreendido pelo regresso antecipado do filho,
ficou tão satisfeito por o ver como se ele voltasse de unia longa
viagem.

-0 Medes trouxe-lhe outro negrinho -disse Ham, excitado, ao
saudar o velho, a quem preocupava mais que Ham se trouxesse a si
próprio.
-Vens cedo. Vens são e escorreito? Imediatamente lamentou ter dito
"escorreito", porque o fez pensar, e imaginou que Ham também
pensaria, no joelho rígido. Depois de o tranquilizarem, mandou que
lhe trouxessem o novo escravo, para ser inspeccionado.
Kit chegou, foi despido e examinado superficialmente, sendo
aprovado mais entusiasticamente do que Ham previa.


-Muito vivo -concordou o velho. -Bem alimentado e treinado, é
bom para negro de casa. Porque não o entregamos à Lucrécia Bórgia
para lhe ensinar boas maneiras?
-A casa já está cheia deles -objectou Hammond.
-Os rapazes claros treinados para trabalhos caseiros vendem-se
melhor. E um bom mercado -argumentou o pai. -Este é muito
frágil para o campo. Domesticado, dá mais dinheiro e pode-se
vender mais novo. A Lucrécia Bórgia que o mantenha fora do nosso
caminho.
-Depois de domesticados, não os vendemos, não conseguimos
separar-nos deles.
-Vender? Vende-se qualquer um. Vende-se o Memnon, vendem-se
os gémeos, vende-se a Lucrécia Bórgia, se nos pagarem bem.
Quantas vezes já te disse que isto é uma quinta de criação de
negros?
-Não se refere a Ellen? Ou mesmo a Dite? Eu não podia vendê-las.
-Não, enquanto as quiseres, ou até o teu filho nascer à Dite.
Ficamos com esse se for são e gostarmos dele.
Hammond concordou, duvidoso, com o plano para Kit e mandou
Meg ir buscar a mãe.
Hammond sentou-se para relatar os acontecimentos da tarde. Falou
de Hodkins e da sua morte súbita.
-Hodkins? Conheço-o. É esse o nome dele. Um homem grande, com
suíças? É ele -disse Maxwell. -Costumava passar por aqui, a
comprar, a vender e a fazer trocas. Era honesto e decente mas nunca
queria pagar o que se pedia. Queria os negros por dez cêntimos.
Queria que lhe vendesse trabalhadores de primeira por quinhentos
dólares, e deixou de vir cá.
-Estranho, o Redfield não o conhecia. Geralmente conhece toda a
gente.
-Foi antes de o doutor se fixar por cá. 0 aumento dos preços
assustou-0, penso eu, e por isso passou a fazer combates. É verdade;
vinha de Termessee. Tinha-me esquecido do Hodkins.


-Mas, e aquele Miller no papel?
-Não quer dizer nada. Talvez às vezes desse o nome de <Miller@>,
por qualquer motivo. Não te rales; tens direito ao Kit. 0 doutor e a
Pérola apoiam-te. De qualquer modo, o melhor é mudar-lhe o nome
e ensinar-lhe que a Lucrécia Bórgia é a mãe dele.
Hamniond foi até à cabana para ver se Medes tinha sido
devidamente lavado, mas safado com a banha de cobra e metido na
cama. Não sabia ao certo até que ponto ele tinha sido magoado, e,
além disso, queria-o totalmente recuperado para o dia seguinte,
para o caso de Redfield lá ir como previra.


Não gostava especialmente de Redfield mas conhecia o efeito subtil
da conversa do veterinário e desejava continuar a ter a sua amizade
para que ele o apoiasse na taberna. Se não fosse ele e Pérola, a luta
daquele dia podia ser considerada um empate e todas as apostas
canceladas. Sabia que o médico, sem um cêntimo antes de casar com
a viúva, se impressionava com as possessões dos Maxwell e
especialmente com os criados dos Maxwe11. Redfield tinha olho
para bons animais e apreciava a astúcia de Maxwell na maneira de
os negociar. Agora que tomara posse dos negros de Johnson,
tencionava extirpar os velhos, acumular os jovens e vigorosos e
imitar, em menor escala, a economia feliz dos Maxwell.


Na manhã seguinte, Safo estava com dores de parto. Lucrécia
Bórgia anunciou-o ao pequeno-almoço. Hammond acabou
apressadamente a refeição e foi até à cabana onde Dido se ocupava
do nascimento. A mulher estava na cama, lutando e gemendo, com


o rosto distorcido pela dor prolongada, que começara à meia-noite.
Dido tinha feito tudo o que sabia e Hammond sentou-se ao lado da
cama e segurou a mão da mulher que estava impedida, pela
presença do patrão, de manifestar a sua agonia, que o dono julgou
ter diminuído.
Enquanto esperava, chegou o pai pelo braço de Merrinon. Nas

têmporas de Safo havia gotas de suor e pelo seu rosto passavam
ondas de angústia, mas mantinha-se em silêncio.
-Ela não se esta a esforçar. Tem que se esforçar -declarou o velho. Levanta-
te, filho, e deixa-a lutar.
-Nunca teve problemas com os outros -disse Hammond, erguendo-
se.
0 sorriso do pai acalmou a sua ansiedade.
-Não te aflijas, Ham -disse. -Talvez ele tenha a má ideia de querer
sair de rabo. Os negros maus saem assim, mas são vigorosos e fáceis
de criar.
-Mas ela tem dores; ela está mal -protestou o filho. -Não se pode
fazer nada?
-Vai à cozinha -disse Maxwell a Merrinori. -Diz à Lucrécia Bórgia
que faça um caldo de aveia com pimenta forte e trá-lo cá. Acho que
nunca fez nada, mas vale a pena tentar. E o Meg que prepare um
toddy. Queres um, filho?
Hammond disse que não queria.
0 rapaz olhou relutantemente para trás, ao sair e, quando ia a
atravessar o espaço entre as cabanas, encontrou Lucrécia Bórgia que
indicava ao Dr. Redfield o local onde os podia encontrar.
-Foi bom ter aparecido -disse com renovada confiança. -Esta fêmea
parece estar entupida. Talvez o doutor pudesse ...

Lucrécia Bórgia parou junto da cabana, com as mãos cruzadas sobre

o ventre, por baixo do avental limpo.
-An, an -disse, abanando a cabeça. Redfield despiu a sobrecasaca e
entregou-a a Meninon antes de meter mãos à obra. Afastou as
cobertas e examinou a mulher.
-Precisa de ser voltado-foi o seu veredicto. -Está quase a sair; vem
de rabo para fora. Se eu conseguisse voltá-lo, agora. Não sou tão
bom nisto como a viúva. Talvez tenha que lhe arranjar uma negra.
Falava mais para si próprio que para o dono da casa. Hammond
espreitava alternadamente a parturiente ou passeava, coxeando,

sobre o chão de terra. Redfield suava abundantemente, enquanto
lutava com a criança entalada, com as mãos sujas, e ninguém falava.
Finalmente ele voltou a criança e disse a Safo:
-Está bom. Só mais um esforço e ele sai. Só mais um e está cá fora.
Está quase pronto.
A mulher esforçou-se, fracamente, mas Recífield conseguiu agarrar
uma perna da criança. Suspirou, aliviado.
-Já temos uma coisa para puxar. Devagar agora, para não partirmos


o bebé ao meio. Mais um esforço, podes fazê-lo! Aí vem ele.
-Macho ou fêmea? -perguntou Maxwell.
-Fêmea -murmurou Hammond, desgostoso.
-Tinha que ser -observou o pai. -Um macho não suportava um
tratamento daqueles. Além disso, as fêmeas vivem, se as
conseguirmos fazer nascer; e vendem-se e vimo-nos livres delas
ainda novas 'amadurecem depressa), especialmente as claras. Essa é
clara?
-Quase branca -disse o doutor. -Penso que seja do Ham.
-Fica um pouco mais escura -predisse MaxwelI, levantando-se
e apalpando o bebé. -É do Vulcano, penso eu.
-Dê-lhe óleo e deixe-a estar deitada, dois ou três dias, a menos que
precise dela -disse Redfield, apontando Safo. -Está muito fraca.
-Trata dela, Dido. Tens os outros dois filhos dela na tua casa? perguntou
Maxwell.
-Sim, siô, patrão. já são grandes pra comê bem e chupá presunto,
ambos os dois.
Dido levantou a criança até ao seio indiferente de Safo, a que ela se
agarrou avidamente.
-Acho que está tudo feito. Vamos beber um toddy -disse MaxwelI,
voltando-se para sair. -São quase horas de jantar. Foi uma sorte ter
vindo.
Hammond meteu um dólar de prata na mão de Safo.
-E um vestido novo -prometeu-lhe. -Um vestido novo logo que te
levantes. Não me deixes esquecer.

As pálpebras de Safo agitaram-se, mostrando a sua gratidão, mas
não falou.
Hammond apressou-se, na medida em que o joelho lho permitia,
para se juntar aos brancos e apanhou-os no alpendre.
-Trouxe aquela fêmea para o Medes? -perguntou a Redfield.
-Era isso que eu vinha dizer-lhe. Entreguei-a ao Armand, na noite
passada.
Hammond ficou surpreendido com o golpe.
-Acha que ele é melhor? Melhor'que o nosso>
-Não -respondeu Redfield, sem convicção. -Não. 0 vosso é
provavelmente o melhor. Mas acalma o rapaz do Hodklns e fá-lo
ficar. Impede-o de fugir. Ele tem espírito de fugitivo. Lembre-se
daquele RI marcado na garupa dele.
-0 Medes nunca o venceu propriamente, se não fosse o doutor e o
Pérola ...
-Vencia-o, dentro de meia hora. Para quê cansar os machos se
ninguém estava a ver?
-Quero que o meu negro tenho uma vitória definitiva, para que
ninguém tenha dúvidas. ,Hammond lutava, para encontrar as
palavras adequadas.
-Tem tudo e não lhe basta-observou Redfield, aceitando um toddy
da bandeja de Meg. -Repare em mim; nunca tive nada, e casar-me
com uma dúzia de negros velhos e cansados e com uma plantação
de quarta categoria, fez-me sentir um senhor. Repare em si; tem esta
plantação, sempre a teve, os melhores negros à sua volta, e rala-se
porque o seu negro não mata os negros dos outros só de olhar para
eles. 0 senhor é um cavalheiro mesmo, já nasceu assim. Deve ser
terrível viver para sê-lo. Até se preocupa se os miúdos que nascem
não forem machos de primeira.
-É o sangue dos Hammond-afirmou Maxwe11. -0 velho
Theophilus Hammond tinha sempre a melhor terra, os melhores
cavalos, o melhor uísque, os melhores negros, e as melhores
mulheres, e nada disso bastava para o acalmar.


-Parece que o sangue dos Maxwell não conta -disse Redfield,
sorvendo a bebida.
0 velho negou a implicação.
-Não sou orgulhoso, nunca fui orgulhoso, nem o meu pai, antes de
mim, o era. Sei que os meus negros são perfeitos e de primeira. São
os que eu conservo porque são os únicos que vale a pena alimentar,
os que não têm de ficar um mês na prisão de Nova Orleães, à espera
que apareça uma pessoa que os queira comprar.
A conversa derivou para outros temas; o médico relatou, à mesa do
jantar, a sua versão sobre a história de FIodkins.
Hammond, contudo, não esquecia a acusação de orgulho excessivo.
Ocorreu-lhe de novo, à tardinha, enquanto Meg lhe dava banho, e
ele estava sentado na banheira com a perna rírida estendida.
Pensou: um aleijado, como ele, tinha direito a ter orgulho?
Procuraria ele uma perfeição por delegação, ao fixar-se nos escravos
sem defeitos? Quanto à posição, um branco aleijado podia ser um
cavalheiro se tivesse, ou tivesse tido, propriedades. Além disso,
tinha o sangue -três gerações de antepassados plantadores. Ser
cavalheiro era seu direito por nascimento, e podia evitá-lo tanto
como o rapaz que lhe enxugava as pernas poderia adquiri-lo, ou
como Redfield poderia consegui-lo.


Não era coisa para tornar um homem orgulhoso. Um cavalheiro
deve viver para a sua herança, aceitar as suas exigências e
imunidades, mas o homem orgulhoso de ser um cavalheiro era
menos do que um cavalheiro, tal como aquele que aspirava a sê-lo,
por isso mesmo, falhava no seu desejo. Talvez a sua perna aleijada,
curvando-lhe o orgulho, salvasse a sua possibilidade de ser um
cavalheiro. Talvez fosse essa a sua finalidade, purificá-lo.


Pouco podia esperar de Ellen, mas Hammond apelou para ela,
nessa noite:



-Estou a abrir muito as asas, amorzinho? -perguntou-lhe quando
ela se encontrava nos seus braços. -0 Dr. Redfield diz que eu estou a
ficar muito orgulhoso, por comprar um macho como Medes que
vence todos os outros, e uma fêmea como tu, mais clara e mais
bonita do que as que qualquer outro cavalheiro tem. Eu não quero
ser pomposo e arrogante. Achas que eu sou arrogante, perante os
brancos?
-0 senhor doutor não sabe como é um cavalheiro. Eu sei que ele é
branco, e não é um cavalheiro, pelo menos não como o patrão é um
cavalheiro ou o velho patrão Wilson é um cavalheiro.
-Eu não falo do doutor Redfield; falo de mim. Achas que ter
Falconhurst, e bons cavalos, e bons negros, me torna orgulhoso?
-Mas tu és melhor, patrão, siô -insistiu a rapariga.
-Achas que o facto de me casar com uma branca jovem e bonita me
tornará pior? Mais orgulhoso ainda? De tal modo que nenhum
branco me quererá falar?
Os olhos de Ellen encheram-se de lágrimas e Hammond ouviu-a
soluçar, na escuridão.
-Porque estás a chorar? Eu não te fiz nada -disse ele.
-Não posso evitar, não posso evitar, patrão, por favor, siô. 0 patrão
vai casar e eu nada serei para si, nada.
Sentiu-a levantar a mão e passá-la pelos olhos, para enxugar as
lágrimas.
-Não compreendes? -perguntou Hammond. -Tenho de o fazer,
tenho mesmo de o fazer. Prometi. Além disso, não haverá qualquer
diferença para nós, As brancas não gostam de fornicar; não são
como as fêmeas; detestam-no; só se submetem para terem filhos.
Fico contigo na mesma.
-Mas vai gostar dela, mais do que de mim. Patrão, siô, oli, patrão!
-Ela vai ser minha mulher, não compreendes? -argumentou o
rapaz. -Tenho de gostar dela, como de uma branca. Mas continuo a
gostar de ti, como a minha fêmea. Ninguém jamais tomará o teu
lugar, branca ou preta. Hás-de ser sempre minha.


-Ela vai estar primeiro.
-Claro. Tem de estar. É branca -admitiu ele. -Não deves começar a
pensar que, lá porque vens para a minha cama, és mais do que uma
negra. És bonita, limpa e simpática, e eu gosto de ti, mas não és
branca, não podes dar um filho, um filho branco.
Ellen sabia que o que ele dizia era verdade. Não o rebateu.
-Não penses que eu te vou dar a qualquer macho para procriação e
arranjar outra fêmea. És minha, fica tranqüila; e não quero outra.
Agora estende-te e vamos dormir. Tenho que plantar logo de
manhã.


No sábado seguinte tinham que realizar-se os combates combinados
para a semana anterior e que a morte de Hodkins interrompera, e
Hammond não se surpreendeu por não conseguir adversário para
Medes. Nem teria ido a Benson nessa tarde se não tivesse de ir ao
alfaiate para encomendar fatos para o casamento. As mangas e as
calças do elegante fato castanho que comprara em Nova Orleães
dezoito meses antes estavam já curtas e o casaco estava apertado no
peito. Não esperava uma tal obra-prima do fato cor de ameixa que
escolhera em Benson, mas estava demasiado ocupado para ir a
Nova Orleães ou mesmo a Mobile só para comprar fatos.
Tinha ficado decidido que Meg fosse com Hammond para
Crowfoot, como seu criado pessoal e estavam a ser provados em
Estreia, dando desconto à altura ligeiramente superior de Meg, fatos
para ele-um casaco azul com botões de latão, calções até ao joelho e
sapatos de fivela. Maxwell argumentara que Merrírion deveria
acompanhar Hammond na viagem, mas o filho preferiu o negro
mais pequeno. Só precisava de um criado para o ajudar a tirar as
botas, e, se não fosse o costume, que exigia que um cavalheiro
levasse um para tal expedição, sentir-se-ia tentado a dispensar
qualquer servidor.



Lewls Gasaway apareceu, mais magro e pálido. Tinha ouvido falar
da morte de Hodkins e estava desolado por ter perdido a excitação,
mas tinha tido papeira e tínha-a pegado a Elíjah e a todos os
escravos da Plantação Long Grove.
-A papeira deitou-me abaixo e depois passou para o Lije confessou
a Hammond confidencialmente. -Penso que não haverá
mais Gasaway. Acabei com eles.
Encolheu os ombros e riu-se, embaraçado.
-Acho que até tens sorte-foi a resposta bem pensada de Hammond.
-Se não podes fazer nada, escusas de ter que casar com uma branca.
-Oli, posso fazer qualquer coisa, continuo a poder; mas não serve
de nada, não dá geração. Tenho semente, mas está morta -disse
Lewis, negando a impotência.
-É isso o que eu quero dizer-disse Ham, pondo a mão sobre o
ombro do amigo. -Não tens a maçada de te casar com uma branca.
-Acho que não servia de nada.
-0 Lije está doente, não foi com o primo Charles para casa dele?
-Raios, não. 0 velho apanhou-o a tentar fugir com um cavalo e uma
fêmea de primeira. Por isso Lije apanhou a papeira. Se tivesse
fugido, não a tinha apanhado.
-Que fazia ele com a fêmea? 0 pai de Charles tem montes delas em
Crowfoot.
-Queria vendê-la em Nova Orleães, penso eu. 0 velho resolveu isso.
Além de estar doente, o Lije fica sem cavalo e não pode ir a parte
alguma.
Nem sequer pode vir a Benson ver as lutas, quando se curar.
-Então ele não ia com o Charles? 0 Charles dirigia-se para
Briarfield. Lewis encolheu os ombros e perguntou:
-Como hei-de saber para onde ia. 0 Lije estava sempre a falar em ir
para Nova Orleães. Maluco. Nem sabia para que lado fica Nova
Orleães.
-Porque não trouxeste o Cudio? -perguntou Hammond.



-Para que servia, sem um macho para apostar? De qualquer modo,
não o punha a lutar com aquele teu grande malandro. 0 teu é
demasiado vigoroso para ele.
-julgava que querias a desforra? -disse Hammond, acarinhando
mentalmente a concessão de Gasaway quanto à presa de Medes.


Hammond voltou para casa com os seus negros, confiado na
invencibilidade do seu lutador. Na semana seguinte também não
conseguiu arranjar um adversário para Medes. A própria recusa dos
outros proprietários de pôr em os seus escravos a lutar contra o
dele, aumentava a sua crença de que o seu rapaz era o melhor, pelo
menos na área de Benson. 0 seu propósito ostensivo de ganhar
negrinhos era, efectivamente, secundário, em relação ao seu desejo
de ser conhecido como o possuidor do melhor lutador do distrito. já
não havia dúvidas de que as duas vitórias de Medes tinham sido
justa e decisivamente ganhas. Mesmo que Medes não voltasse a
lutar -e Hammond desesperava de encontrar adversário para ele -,
contudo continuaria a ser, mesmo na decrepitude, o maior lutador
do seu tempo e do local, uma peça para exibição de que não
exigiriam demonstrações.

Porém Maio aproximava-se. Hammond tinha de acabar de plantar e
deixar a plantação em ordem, antes de ir buscar a noiva. Embora
não permitisse a Medes que interrompesse o treino e Lucy o
esfregasse todas as noites com a banha de cobra, Hammond não fez
mais excursões ao sábado à taberna de Pérola. Os combates foram
relegados para a periferia dos seus interesses.

0 quarto de sua mãe, fechado desde a morte dela, foi reaberto e
novamente mobilado para passar a ser o aposento da noiva. 0
colchão de penas foi revolvido, o vestuário da antiga dona foi
retirado do roupeiro a que Maxwell chamava a "despensa", a


carpeta foi levantada e batida, tudo ficou preparado para receber
Blanche.
-Acho que devemos dar a Tense à miss Blanche para criada dela. É
suficientern ente crescida, não achas, e é limpa e virgem -propôs
MaxwelI, no seu entusiasmo. -Isso é importante. Não quero uma
fêmea impura a servir a tua mulher.
-Não precisa de se preocupar com isso. 0 maior Woodford vai
certamente dar à Blanche uma negrinha, quando ela se casar. É o
habitual, não é?
Maxwell disse com desprezo:
-Não vejo aquele velho a dar nada a ninguém. Não tem nenhuma
para dar. Estão todas hipotecadas e nem as pode vender.
-E aquele dinheiro que o Charles lhe levou? Pode pagar alguns
escravos. Não seria próprio não lhe dar uma criada a que ela esteja
habituada.
-É melhor pensarmos na Tense, a menos que a queiras para ti. Não
te podes meter corri a criada da tua mulher.
-Não, enquanto tiver a Ellen, não me interesse outra -disse o filho.
-Estás a interessar-te de mais por essa Ellen do que é decente,
parece-me-avisou o velho. -Serve-te para fornicares. Tens que ter
uma fêmea, é claro. Mas não te esqueças de que é apenas urna
fêmea.
-Ainda não tinha comprado a Ellen quando me comprometi com a
Blanche. Se eu tivesse ido a Crowfoot pelo caminho deTheCoign,
creio que nunca o teria feito. Além disso, quer um neto, não quer.
Maxwell admitiu que sim.
-Não te podes esquecer de levar Meirmon ao ferreiro antes de
partires. Não quero um macho vigoroso e sem anilha numa casa
onde há uma senhora branca. ,-Tenho andado a adiar. Mem tem
medo das queimaduras. Da última vez, o ferreiro deixou cair solda
sobre ele. Ficou corri medo.
-Que disparate! 0 ferreiro não vai queímá-lo, nem magoá-lo. Não
precisa de lhe fazer um buraco desta vez; já o tem.


Era evidente para ambos os homens que a presença de uma branca
exigia certas alterações nos costumes da plantação. Maxwell recuou
aos tempos em que a mãe de Hammond estava viva e ao decoro que
ali reinava. Em retrospectiva, não lhe pareceu oneroso; Blanche não
podia ser mais exigente.
-E melhor ir buscar aquelas duas mulas à pastagem e atrelá-las e
olear os arreios -avisou Hammond.
-Vais levar a carruagem? É melhor andar um bocado com as éguas
aparelhadas. Andaram todo o Inverno a pastar.
Hammond sentia-se conspícuo e pouco à vontade, ao deslocar-se a
Benson de carro, para levar os fatos que encomendara. Um rapaz
sem companhia feminina parecia-lhe ficar mal dentro de tal veículo.
Contudo as éguas adaptaram-se facilmente ao arreio; avançavam
em uníssono e sem mais caprichos do que os que seriam de esperar
de animais que haviam estado tanto tempo em pastagem.

E as roupas que mandara fazer eram desconfortáveis mas serviam
para o fim em vista. 0 sapateiro da aldeia procurara fazer botas tão
pequenas quanto podia para os pés de Ham e, embora o
incomodassem, as botas eram jeitosas, mesmo elegantes. As calças
apertavam as nádegas de Hammond, mas pareciam fortemente
cosidas e ele podia sentar-se sem perigo de se descoserem. 0 casaco,
com a sua camisa vistosa, era tão grande quanto as calças eram
apertadas. Daí a dez anos, ao transformar-se num homem maduro,
talvez Hammond enchesse aqueles ombros largos: o alfaiate tinha
pensado na imaturidade do jovem ao tirar as medidas. 0 excessivo
comprimento das mangas escondia os folhos dos punhos da camisa.
Quando Hammond endireitou o fato e o vestiu para o pai o
inspeccionar, o velho ficou menos impressionado com os méritos do
fato do que com a dignidade com que Ham avançava pela sala,
escondendo o seu coxear o melhor que podia.


-Fica-te muito bem -foi o veredicto. -A rapariga tem sorte, penso
eu.
Chamaram Meg para experimentar o fato, de que nada sabia.
-É melhor mandá-lo lavar primeiro -sugeriu Maxwe11.
-É só ver o tamanho, não vão sujar-se-declarou Maxwe11. -Despete
-ordenou ao rapaz, que estava encantado.
Não se preocupando com as meias, que faziam parte do conjunto,
mandou o rapaz enfiar as pernas nuas nos calções, ajustou-lhe o
casaco, e, sentado no chão, Meg enfiou os sapatos nos pés nus, eram
os seus primeiros sapatos e ele apreciava a melhoria de posição que
resultaria do seu uso.
-Agora és mesmo negro de casa. Tens que te portar bem. Não
podes andar por aí a correr ou a arrastar os pés. Nada de pele nua.
Tens que manter este conjunto inteiro -explicou Hammond.
Noblesse oblige. Era preciso respeitar as regras.
-Eu continua a ser o teu nêgo, só teu?
-Vou levar-te comigo para Crowfoot, não vou? Que mais queres?
Achas que és capaz de te portares bem?


Dois dias mais tarde, o patrão e o pequeno hornelI, Mho partiam
para a sua viagem. Pólo tinha trazido o carro de manhã cedo e
esperava pacientemente, segurando os cavalos. Meg, magnífico no
seu casaco com botões de latão, de meias e sapatos, estava sentado,
direito como uma vara, no lugar do condutor, uma hora antes de
Hammond estar pronto para partir.
Havia muita coisa a fazer. Só vestir e ajeitar os fatos já dava um
trabalhão. Uma ida final à cabana de Safo e outra à do mandingo,
levaram algum tempo.
-Vimos no dia dez, no dia onze é mais certo. Acha que consegue
ficar sozinho e dirigir os trabalhadores? Não há nada para eles
fazerem; mas é nessas alturas que fazem asneiras. Claro, na Lucrécia
Bórgia pode-se confiar



-disse Hammond, expressando as suas dúvidas, ao deixar o pai
encarregado da plantação.
-Eu já mandava em negros antes de tu vires ao mundo, ou de cá
estar a Lucrécia Bórgia. Ainda não me esqueci de como é -garantiu
Maxwell ao filho. Depois, receando não valorizar a ajuda do jovem,
acrescentou: Claro, era mais novo nessa altura, sem este
reumatismo.
-Eu volto cedo e começamos a cortar árvores antes de aparecerem
as ervas danínhas.
-Vai-te embora, agora, e não te rales. Lembra-te do que te disse
sobre as brancas. Tens que ir devagar e nã o a assustar. Não são
corno as fêmeas.
-Ninhuma branca vai fugi de um cavalheiro bonito como patrão
Ham -interveio Lucrécia Bórgia. -An, an! Tá mêrno bonito com esse
fato novo.
Estava no alpendre, ao lado de Ellen, que viera despedir-se.
Harrimond beijou ambas e ignorou Alph e Meirmon que serviam o
pai. Os olhos de Ellen encheram-se de lágrimas mas não soluçou.
Ele beijou o pai e apertou-o contra ele.
-Tem Juízo, nêgo, e faz o que o teu patrão mandá, tudo o que ele
mandá -avisou a mãe de Meg. -E tem cuidado c'os fato novos.
-Não levo chicote de negros, mas posso bem desancá-lo com este
dos cavalos -disse Hammond, subindo para o carro e empurrando
Meg para o outro assento.
-Muito bem, patrão -aplaudiu Lucrécia Bórgia, solenemente. Espero
que dê cabo dele, patrão, siô. É a maneira de dobrá um nêgo.
Tudo estava verde em Maio e o sol aquecia bem. As estradas cheias
de sulcos atrasavam o carro, que se retorcia sobre as molas, mas não
havia pressa. 0 casamento estava marcado para o dia oito, e
Hammond tinha contado com quatro dias para a viagem, que podia
fazer em três, ou em dois se apressasse. As éguas eram fogosas e
Hammond teve que as refrear, não por causa delas, mas para
endireitar o carro.


0 dia foi aquecendo, e Hammond despiu o casaco, dobrou-o e
colocou-o no banco de trás. Mais tarde, mandou Meg descalçar-lhe
as botas que começavam a tornar-se desconfortáveis. Passaram por
plantações e quintas, atravessaram riachos, passaram por
aldeamentos, alguns dos quais aspiravam a ser cidade. Encontraram
ocasionalmente cavalheiros que o cumprimentavam e alguns deles
paravam para falar sobre o estado do tempo e perguntar para onde
iam. Passaram pela diligência do correio, puxada por dois cavalos,
que levava dois passageiros brancos e, relegado para o mais
afastado dos assentos, um negro alto e muito escuro, possivelmente
propriedade de um dos brancos. Acampado junto da estrada havia
um grupo de brancos, uma família constituída por três homens,
duas mulheres e diversas crianças, além de uma parelha de bois,
duas mulas e dois cavalos, com acessórios caseiros, vindos da
Geórgia a caminho do Arkansas, para arranjarem nova casa. Ao fim
da tarde, antes de chegarem a uma dúzia de casas que constituía a
cidade a que chamavam Fairfax, encontraram dois cavaleiros, de
barba, que escoltavam um grupo de escravos a pé, com grilhetas,
nenhum dos quais era suficientemente robusto para merecer sequer
uma rápida avaliação de Hammond.

A casa de Fairfax parecia prometedora e talvez estivessem ainda
muito longe de outro aldeamento onde pudessem passar a noite.
Hammond parou os cavalos e desceu do carro. Antes de entrar no
hotel, vestiu o casaco e sentou-se nos degraus, para que o criado lhe
calçasse as botas.
-Sim, acho que posso arranjar-lhe ceia, para si e para o seu macho acedeu
o dono do hotel, da cadeira onde se reclinava, com as costas
inclinadas até tocar na parede da sala vazia que servia de vestíbulo.
Quanto a dormir, no entanto, têm que ficar com outro senhor. Está
bem?
Hammond aceitou a condição que não era inesperada,


-É um rapaz muito simpático, que vai para os mesmos lados.
Parece limpo. -Assim lhe descreveu o dono do hotel o seu
companheiro de quarto.
-0 negócio está bom. Dois cavalheiros no número um; e agora
outros dois no número dois. Espero que não venham mais, pelo
menos para dormir. Detesto recusar um quarto a um cavalheiro.
Suponho que queira ração para a sua parelha e sítio para as éguas
dormirem. Tenho um estábulo lá atrás. Tenho tudo, estábulo e tudo.
-Eu levo-as -sugeriu Hammond.
-Não se preocupe. Não é necessário. 0 moço de estrebaria leva-as disse
ele, batendo na parede com os nós dos dedos.
Uma rapariga mestiça meteu a cabeça pela porta e disse, com ar
mimado:
-Sim, siô.
-0 Papa que leve o carro deste cavalheiro lá para trás -ordenou o
homem, voltando a recostar-se na cadeira.
Hammond esperou que o escravo aparecesse e, quando ele
finalmente chegou, saiu para lhe dar as suas instruções.
-Eu sabe, eu sabe. Não é preciso dizê, siô -protestou o negro de
meia idade, que tinha apenas um braço. -Mas não tem aveia. Só
milho. 0 patrão não compra aveia.
-Ele desperdiça-a-disse o proprietário, que seguira Ham até à
porta.
-Dá-lhes sempre comida e palha de mais. 0 Papa é louco por
cavalos. Não precisa de preocupar-se com as suas éguas.
-Eu dá comê a elas. Eu dá mimo a elas-disse o Papa esfregando a
cara afectuosamente contra o focinho de uma égua.
-Quer o seu macho na estrebaria ou quer levá-lo para o quarto?
Mais vinte e cinco cêntimos e um cobertor no quarto. Também fica
bem no estábulo. 0 Papa toma conta dele e não o deixa fugir.
-Eu quero-o no quarto -declarou Hammond.
-Na cama não. Não há espaço. E além disso não consinto.



-Fica no chão -disse o dono de Meg. -Está habituado. A ceia era
melhor do que Hammond previra -galinha cozida e puré de maçã,
papas de milho e salada, biscoitos quentes, leite e café. Os quatro
hóspedes brancos sentavam-se à longa mesa do hotel, servidos pela
fêmea clara. Meg comeu algures, nas traseiras do estabelecimento.

Os dois hóspedes mais velhos sentaram-se um ao lado do outro
após a primeira saudação e nada mais disseram. 0 rapaz de
bochechas pesadas e face redonda, mais ou menos da idade de
Hammond, poderia ter sido loquaz se não fosse a sua preocupação
em atafulhar a boca de comida. Inclinava-se sobre a mesa, onde
apoiava os cotovelos, acumulava a comida no boca e bebia leite para
a engolir. De cada vez que bebia, ficava com os lábios molhados,
deixando um aro em volta da boca.
-Para que lados vai? -perguntou a Hammond, entra duas dentadas.
-Para a Plantação Crowfoot, no caminho de Briarfield.
-É para leste, não é? Hammond aquiesceu.
-Também vou para leste, amanhã. Volto para casa. Vivo a cerca de
quarenta milhas; trinta, quarenta, é mais do que quarenta.
Podíamos seguir juntos. Que diz? É muito solitário, para se ir
sozinho.
-Eu parto cedo -disse Hammond sem entusiasmo. -Tem que se
mexer.

-Ao nascer do Sol, se quiser. Dormimos Juntos, levantamo-nos ao
mesmo tempo e partimos Juntos. Amanhã à noite quer dormir em
minha casa? Será bem recebido. Não tenha dúvidas -convidou
afavelmente o rapaz -Não é muito fino, mas é melhor que isto.
É muito amável da sua parte, mas quero ver até onde chegamos.
Porque vai lá? Vive em Crowfoot? Onde tem estado? Vivo perto de
Benson -explicou Hammond. -Vou a Crowfoot para me casar. Pelo
menos conto corri isso.
-Casar?


0 jovem mostrou-se consternado.
-No próximo domingo.
-Casar! Casar!, eu não me casava, nem que fosse com um anjo!
-Porquê? Não tenciona casar-se nunca? -perguntou Hammond,
incrédulo.


0 rapaz com cara de lua cheia encheu a boca de comida e leite e
encolheu os ombros. Enquanto engolia, sorriu e acrescentou:
-Medo, penso eu; medo. 0 meu velho casou-se coma minha mãe; já
vi coisas de mais. Ela a mandar nele, a bater-lhe, até ele morrer.
Morreu disso; atirou-se a um poço e afogou-se. Fiquei livre dele, de
qualquer modo, mas a velha ainda vive e está ali para as curvas.
-A minha esposa, a senhora com quem vou casar-me não é desse
género. É tímida e dedicada.
-Como é o seu nome? Temos de ficar a conhecer-nos. Vamos
dormir juntos.
-Chamo-me Maxwell, sou filho de senhor Maxwell da Plantação
Falconhurst -identificou-se Hammond.
-0 meu nome é Church, Mad Church. Chame-me Mad1. Vamos ser
amigos.
Hammond não se mostrou muito ansioso, mas não rejeitou a oferta.
-Trouxe a égua de raça, do meu pai, Luar chama-se ela, ao cavalo
de raça do capitão Taylor, chamado Gastador ou Esplendor, ou
coisa parecida, mas seja como for é filho do Zeno, que foi
importado, mas não os vi, não posso suportar ver coisas daquelas.
-Ver que coisas?
-Vê-los acasalar, os cavalos. -As suas faces redondas ficaram
coradas.
-Não sei o que os leva àquilo. Não acho decente.
-Como quer que nasçam potros, se eles não o fizerem? -perguntou
Hammond. -E pensei que disse que o seu pai tinha morrido.
-Morreu, mas a Luar não. Deu-lhe o nome de Luar antes de se atirar
ao poço, e a minha mãe diz que temos que fazer o que ele pediu e



levá-la a um cavalo. -Mad levantou os cotovelos da mesa,
equilibrou-se nas pernas de trás da cadeira, resmungou e olhou com
pena para a comida que não conseguia consumir. -Quer ver a Luar?
É bonita.
-De manhã -declinou Hammond, corri indiferença. Mad foi aos
estábulos, passando pela cozinha e Hammond voltou ao hall de
entrada distendeu-se e sentou-se à espera da hora de ir para a cama.


0 dono do hotel apareceu e comentou:
-Fala como um idiota! Come como um idiota, também. Mas isso
não me importa. Há bastante comida. Gosto de os ver encherem-se.
Só espero uma coisa; espero que ele não o mantenha acordado, com
a conversa dele.


-Não mantém, não, da maneira como eu me sinto.
-Parece muito moralista, não olhou para os cavalos, como ele diz
prosseguiu o dono do hotel. -Não herdou aquilo do pai. Eu
conheci-o. 0 velho Was Church, conheci-o.


Hammond grunhiu o seu acordo e, tanto para evitar a conversa,
como para observar o tempo, resolveu ir passear lá para fora, ao
anoitecer. Madison Church apareceu, vindo das traseiras, com uma
mão sobre o ombro de Meg, guiando-o.
-Este pequenito é seu? -perguntou, não esperando pela resposta. É
muito esperto, manso e engraçado. Os botões dourados pôem-no
muito elegante.
Meg tirou da boca uma substância amarela-clara e disse:
Ele deu isto a mim, patrão, siô. 0 siô diz pra eu comê isto. É apenas
um rebuçado de limão. Não lhe faz mal. Quer um? Hammond
declinou a oferta; Madison meteu a mão no pequeno saco de papel
que guardava no bolso e tirou dois rebuçados de limão, metendo
um na boca e outro na boca de Meg.
-Trago sempre disto -explicou ele.



-Não lhe dê mais -avisou Hammond. -Faz-lhe dores de barriga;
não está habituado.

0 Sol tinha-se posto e a Lua, três quartos cheia, tinha aparecido.
Uma rã coaxou à distância. 0 perfume das flores silvestres e da terra
recentemente revolvida que enchia o ar abafado, era penetrado, de
vez em quando, por um ligeiro odor de gambá, demasiado
longínquo e pouco frequente para se tornar desagradável. Os dois
hóspedes mais velhos tinham desaparecido, talvez tivessem ido
para a cama.
-Vou entrar -decidiu Ham. -Quando se deitar, pode empurrar-me
para o lado.
-Que fico eu a fazer a pé? Vou deitar-me -disse Mad. Hammond,
depois de acender uma vela, examinou a cama e apalpou o colchão.
Era de penas e os cobertores pareciam limpos. Não tinha lençóis. 0
cobertor cuidadosamente dobrado, no chão, escondia os buracos.

Hammond despiu o casaco e dobrou-o cuidadosamente, despiu as
calças apertadas e colocou-as sobre a mesma cadeira. Sentou-se na
cama e estendeu as pernas para que o seu negro lhe tirasse as botas
e as meias, depois inclinou-se para que o rapaz lhe despisse a
camisa e a camisola. Baixou as ceroulas e sentou-se outra vez para
que o rapaz lhas tirasse.
-Agora despe-te -disse a Meg, esfregando o corpo com as mãos. Para
não amachucares as tuas roupas. Não te deixo dormir com
elas. Já cheiram mal, com este tempo. Meg não usava roupas
interiores e em breve estava nu, corno o patrão. Mad começou a
despir-se e Ham ordenou a Meg que o ajudasse a descalçar as botas.
-Não vou tirar tudo -disse Mad. -Não quero que me veja todo nu.
Não tenho pêlos tão bonitos como os seus para me cobrir. Não se
importa?
-Não tire mesmo nada, se não quiser. Eu não consigo dormir, se
não me despir todo.


Madison, de camisa e ceroulas, pegou na vela e, segurando Meg
pelos ombros, examinou-o criticamente.
-Juro que este macho é bem macio e bonito -disse ele, baixando e
levantando a luz. -É melhor sem roupa, apesar dos botões
dourados, do que com ela. An, An.
-Nem uma marca, nem uma borbulha -proclamou Ham, metendo-
se entre os cobertores. -Negro, embrulha-te e deita-te ao lado da
cama. Nã o faças muito barulho.
-A cama é larga. Deixe-o dormir aqui. 0 chão é terrivelmente duro observou
Mad. -Pode dormir entre os dois, ou até ao meu lado.
-Cheira mal. Deixe-o em paz -murmurou Ham. Mal deu por Mad,
cuidadosamente para não o incomodar, apagar a vela e enfiar-se na
cama. Dormiu profundamente, agitando os braços de vez em
quando e flectindo as pernas, esquecendo-se do seu companheiro.

0 Sol tinha aflorado o horizonte quando Hammond acordou e
começou a pensar onde se encontrava. Estava só na cama, estendido
e ocupava o espaço todo. Madison Church tinha saído. Hammond
saltou da cama e agarrou as calças, procurando o saco de cabedal: o
seu dinheiro estava intacto. Dando a volta às altas costas da cama
para acordar Meg, viu Mad adormecido, no chão, com o escravo nos
braços, ambos embrulhados na mesma manta suja. Tinham as caras
encostadas, sobre uma almofada que Mad levara com ele, ao deixar
a cama.

Com o pé descalço, Ham deu um pontapé a Meg para o acordar e
ordenou-lhe que se levantasse. Os esforços do rapaz para se libertar
da manta bem enrolada, acordaram o branco que se sentou, direito,
e esfregou os olhos com os punhos, como uma criança pequena. 0
nojo que Hammond sentiu perante aquele espectáculo não o levou a
pedir urna explicação, embora fosse severo para com o escravo
sonolento que o ajudava a vestir, e chegou a dar-lhe uma bofetada
por a camisola ter ficado de lado, e pontapés quando ele lutava com


uma das botas. Era prorrogativa de um branco, supunha Ham,
dormir onde lhe apetecesse, no chão com um escravo, se quisesse,
mas Ham sentia-se confuso com a escolha de Madison.
-0 senhor dá tanto aos braços e ressona tão alto que eu não
conseguia dormir. A certa altura quase correu comigo da cama a
pontapés. Achei melhor ir para o chão, para junto do rapaz esforçou-
se Mad por explicar.
-Eu devia estar ferrado no sono. Porque não me acordou?
-Foi o que eu fiz, mas não serviu de nada. Voltava a adormecer e a
fazer o mesmo. Não teve importância. Peguei numa almofada e
tinha o negro para me aquecer.
-Mas o chão é duro e o rapaz cheira mal. Notei que ele cheirava
mal, ontem à noite, depois da viagem e de suar tanto, mas não
podia fazer nada. Hoje faço-o nadar e lavar-se, se encontrar um
ribeiro.
Entretanto Meg vestira-se e ajeitava uma meia que o patrão notou
estar torta. Sem lho ordenarem, ajoelhou-se aos pés de Mad para lhe
calçar as meias e as botas.
-Isto é que eu gostava de ter, um negrinho para me ajudar a vestir.
Como o senhor. Tratava-c, bem, se tivesse um, assim clarinho como
este.

Hammond desceu, através da cozinha que estava ligada
directamente ao edifício principal do hotel, deixando lá Meg, para
tomar o pequeno-almoço, e foi ao estábulo, mandar atrelar a
parelha. Quando voltou, encontrou Mad sozinho à mesa do
pequeno-almoço, comendo sofregamente. Hammond sentou-se em
frente dele.
-Não sabe de alguém que tenha um negrinho como o seu que
queira trocar? -perguntou Mad, com a boca cheia de comida.
-0 meu pai tem um, que eu ganhei num combate de negros, não
como este, um pouco mais novo. Talvez o trocasse, se recebesse
bastante.


-Dou em troca a égua de raça do meu pai, se a mamã me deixar.
Tenho que perguntar-lhe. Só quero chegar aos vinte e um anos ...
-0 meu pai não o trocava por um cavalo, de qualquer modo.
-Foi coberta pelo garanhão do capitão Taylor, filho de Zeno. -Não
obtendo resposta, Mad acrescentou: -talvez trocasse por uma negra,
aquela fêmea clara de que lhe falei. Gostava que a mamã a trocasse;
para se ver livre dela. Perguntamos-lhe, hem?
-Eu não posso parar. Vou para Briarfield. As ofertas para comprar
ou trocar escravos eram tão vulgares e geralmente tão inúteis que
aborreciam Hammond. Estava cansado da conversa incessante de
Mad. _ Não vai parar? -exclamou Mad, incrédulo. -A mamã vai
ficar aborrecida, e eu também. Por favor, pare. Diga que vai lá.
-Vou casar-me, já lhe disse, no próximo domingo.
-Hoje é sexta-feira ainda. Tem tempo, tem muito tempo. Pare para
ver a minha mãe e os meus negros, a tal fêmea clara. Vamos
perguntar-lhe se podemos trocá-la. A mamã não lhe mostra a idiota.
É melhor não lhe perguntar por ela, a minha irmã idiota, chamada
Clara.
Acabado o almoço, Mad insistiu em pagar a conta do hotel de
Hammond juntamente com a sua.
-Eu tenho dinheiro -disse ele. -É o meu companheiro de cama e o
meu companheiro de viagem. Eu pago.
Ficou ofendido com a recusa de Hammond, mas isso não bastou
para o conservar calado.
0 moço maneta da estrebaria tinha cuidado excelentemente dos
cavalos que tinham comido bem e sido escovados até brilhar. 0
escravo beijou o nariz de Luar enquanto a segurava para Madison
montar. A brilhante égua baia era pequena e delicada, corri um
pescoço comprido que terminava numa alta crina -era, de facto,
uma égua de raça, e o dono pertencia-lhe, fazia parte dela. Uma vez
montado, perdia a frouxidão e sentava-se erecto na sela, e as suas
mãos assumiam uma delicada autoridade sobre a boca da égua.


Hammond trepou para o seu lugar no carro e disse a Meg que se
sentasse do seu lado direito, avisando-o para ir direito e endireitar o
casaco. Madison seguia ao lado do carro, ficando para trás quando a
estrada era muito estreita ou muito sulcada.
-Porque não pára em minha casa? -gritou Mad.
-Vou casar-me, já lhe disse.
-Mas é só sexta-feira -repetiu Mad, sem obter resposta. -Não gosta
de mim, pois não? Não sei porquê. Eu gosto de si, gosto até muito
de si.
-Eu gosto de si -declarou Hammond. -Que fiz eu para pensar isso?
-Foi por causa do que fiz com o seu macho?
-Que é que fez?
-Dormi com ele, e abracei-me a ele. Meg, sem voltar a cabeça,
revirou os olhos para o patrão.
-Hum -resmungou Hammond. -julga que isso me importa? Se
quer dormir no chão, numa manta esfarrapada, com um preto que
cheira mal, pode fazê-lo,
-Então vai parar. Hammond não respondeu, Madison ficou para
trás do carro, que atravessava um terreno baixo, escassamente
arborizado, com uma estrada onde apenas cabia um veículo. Era
cortada por um ribeiro estreito, fácil de atravessar.


-Bom local para fazer nadar o seu negro, como disse -sugeriu
Madison para lhe tirar o cheiro.
Há um ribeiro maior, mais adiante -disse Ham. -É melhor. Não é
do lado onde eu vivo. Eu quero vê-lo a nadar, sem roupas -explicou
Mad.
-Não há nada para ver. É apenas um negro nu que não sabe nadar
muito bem.
Madison frustrado nos seus desejos, começou a chorar. Tentou
esconder as primeiras lágrimas que corriam pelo rosto largo, mas
não conseguiu esconder os soluços mimados que se lhes seguiram.



-Está zangado com o Mad -soluçou ele, falando na terceira pessoa.
-Não deixa o Mad fazer nada. 0 Mad gosta de si. 0 Mad quer ser seu
amigo.
Hammond refreou a parelha e desceu do carro, meio irritado com a
conduta infantil do outro, meio desejoso de satisfazer o seu
companheiro.
-Sai -ordenou a Meg -sai daí e despe-te, e mostra àquele cavalheiro

o que sabes nadar. Talvez ele se queira despir também e tirar o mau
cheiro que apanhou de ti.
Madison não fez caso da implicação, mas desmontou, atou Luar a
uma árvore, e limpou as lágrimas que tinham parado de correr. Os
soluços eram secos agora, e menos frequentes.
-Não quero despir-me, porque podia rir-se de mim. Não vai ver-me
despido -declarou.
-Não ponhas o casaco azul no chão. Dobra-o bem e coloca-o no
carro, e despacha-te. -Hammond estava impaciente com Meg que
se despia.
Agora, atira-te à água e esfrega-te bem, cabeça e tudo, e entre as
pernas, vê se tiras esse cheiro.
Meg avançou pela ribeira clara, que corria rápida, e Mad sentou-se
na margem, a observá-lo. ,
-Tá fria, tá muito fria, patrão, siô -disse Meg, apertando os braços
contra o corpo e tremendo. -Tem que ir, patrão, siô ?
-Faz o que te disse -Hammond reforçou as suas ordens. -Deita-te.
Deita-te e esfrega-te com força. Não sentes o frio.
-Eu vai-se afogá, patrão, siô. Eu vai-se afogá, de certeza.
-Faz o que eu te disse. A água, na parte mais funda, dá-te pelo rabo.
Não consegues afogar-te. Dá aos braços.
-Não o obrigue. Não quero que ele se afogue -suplicou Mad. -É
bonito de mais.
-Primeiro queria que ele se lavasse. Agora não quer, mas ele vai
lavar-se, de qualquer modo.

Meg acocorara-se na água e atirava-a por cima dos ombros com a
mão.
-Deita-te na água. Deita-te e esfrega-te bem ou levas -disse
Hammond, quebrando uma longa vara flexível que crescia como
um rebento por trás de uma árvore de chicória. -Isto vai aquecer-te.
Voltas para casa, com as pernas sem pele.
Meg mergulhou na água e começou a esfregar-se.
-Não vai fazer isso, não vai chicoteá-lo. Por favor, não faça isso,
senhor Maxwell -suplicou Med.
-Vou, se ele não obedecer -afirmou Ham, de pé, junto da margem,
com a vara na mão. -Mergulha a cabeça, vê-se bem lá em baixo.
Esfrega a carapinha e lava bem as orelhas. Quero-as bem limpas.
Devia ter trazido sabão.
-Tenho sabão em casa. A minha mãe faz sabão -interveio Mad,
tendo desaparecido o seu receio de que Meg se afogasse ou fosse
chicoteado.
-Não me serve de nada agora -respondeu Hammond. Observaram
os esforços do rapaz para se limpar e, finalmente, o amo deu-lhe
permissão para sair, em relação ao que, olhando para a vara, Meg se
sentia tão relutante como se sentira em entrar para a água Conrudo,
era o escravo do seu patrão e tinha que aceitar o que ele lhe
impunha. Começou a caminhar para fora da água, tirando com as
mãos a água do corpo. Mad puxou o rapaz para ele e ajudou-o, com
as suas mãos maiores, a secar as pernas e o corpo.
-Deixe-o rolar pela relva -disse Hammond. -Rola-te bem e seca-te e
depois volta a vestir-te.
Madison levantou-se para ver o negrinho rolar por entre as ervas.
Quando Meg vestiu as calças, Madison desatou Luar, montou e
esperou por eles, mas sem impaciência.


Depois do ribeiro, pouco mais de uma hora separava o grupo da
quinta dos Church, sem cercas e sem marcos. Madison exagerara a
sua distância de Fairfax, pois estava mais perto de vinte e cinco



milhas do que de quarenta e o Sol ainda não atingira o zénite
quando chegaram.
-Esta é a minha quinta, a de minha mãe; vivo aqui -proclamou
Madison.
-Muito boa. Algodão e tudo -disse Hammond.
-E já está a crescer -acrescentou Mad. -Além há trigo. Também já
está a crescer.
Um pequeno pomar de macieiras deformadas, em filas tortas,
estendia-se até à estrada e, por trás dele erguia-se, livre e
desprotegida, à vista dos passantes pouco frequentes, uma galáxia
de pequenos edifícios sem sombras, casas, celeiro, cabanas e
telheiros. 0 celeiro, rodeado por um recinto relvado e cercado, onde
pastavam uma vaca, duas mulas e diversos porcos, era o maior de
todos. A casa principal, de um só andar, feita de ripas não pintadas,
incluía um alpendre, átrios cobertos e alguns aditamentos que
pareciam ter sido acrescentados à medida que se tornavam
necessários ou que os meios o permitiam. Duas cabanas de toros,
possivelmente para os escravos, estavam situadas um pouco longe
de casa, e havia ainda um forno, com chaminé, uma manjedoura, e
um pequeno edifício com um pórtico gradeado, que Hammond
concluiu ser a latrina.

Uma mulher branca, descalça, mexia com urna pá um caldeirão
pendurado sobre o fogo, no pátio da frente da casa, e uma rapariga
cor de açafrão, na varanda, ergueu-se lentamente e baixou o batedor
de manteiga. Dois bebés, negros, brincavam e rolavam-se no chão
com um cão igualmente preto, demasiado gordo.
Harrimond não virou para a passagem que não era mais do que um
caminho cheio de ervas, e Madison disse:
-Onde vai? Eu vivo aqui, aqui mesmo.
0 cão gordo deixou os seus companheiros de brincadeira e avançou
agitando a cauda preguiçosamente.
-Bem, espero que voltemos a encontrar-nos -disse Hammond.


-Venha comigo. Tem de vir. Tem de vir -disse Mad, como que
aterrorizado.
-Tenho de ir andando para Briarfíeld.
-Tem de jantar, não tem? E a altura-contrapôs Mad. -E tem devera
mamã e o potro da Luar e os negros. E a mama tem de o ver, a si e
ao seu negro; quero que ela veja o gênero que eu quero.
Hammond, receando mais lágrimas, voltou para a quinta. A
mulher, de mãos nas ancas, observava o carro que se aproximava e
voltou-se, para falar com a rapariga, que deixou a batedeira e
desapareceu dentro da casa.
-Luke, oh Luke, anda cá para levares os cavalos para o celeiro gritou
ela. -Desmontem, desmontem e sentem-se até o jantar estar
pronto -disse ela, acolhendo o convidado.
-Este é o meu amigo, mamã, o melhor que eu tenho tido, mamã. É o
senhor MaxwelI, ou coisa parecida; e este é o negrinho dele, mamã.
É o género que eu quero que me compre, mama -explicou Mad,
histerícamente.
-Meu Deus, não esperava que viesse gente -explicou a
mulherzinha, prendendo uma madeixa solta, no carrapito, e
enxugando a palma da mão no vestido, antes de a estender. -Peçolhe
desculpa pelo meu aspecto. Estava a derreter gordura; acho que
é bom dia para isso.
-0 seu filho é que insistiu para eu parar. Eu queria continuar -disse
Hammond, para explicar,a sua aparição.
-Oh, eu não queria dizer isso. É bem-vindo; claro que é bem-vindo.
Estou muito contente por ter vindo. Só quero dizer que não tenho
tudo arranjado. Custa-me que me veja assim.
Luke, um negro forte, cor de ébano, de meia-idade, sofrendo de
estrabismo, apareceu e tomou conta da parelha e de Luar.
Ela tá coberta? -pergunto ao seu jovem patrão. É o que diz o capitão
Taylor, eu não vi -respondeu Mad. Entre, entre, deve estar cansado
depois de toda esta viagem -disse a senhora Church, sem fazer


ideia da distância que Hammond tinha percorrido. -Mas tem de
ficar a conversar com o Mad enquanto eu trato de tudo.
-Mas, mamã -protestou o filho, empurrando Meg para a frente,
com a mão sobre o ombro da criança. -Tem de ver o negrinho do
senhor Maxwe11. Não é amoroso? Corri botões dourados e tudo.
Mamã, mamã, olhe para ele. É o gênero que eu gostava de ter, é
mesmo assim.
-Bem podes calar-te com isso. Sabes que não posso comprar-te um
negrinho. Se comprar um negro, compro um grande que possa usar
na Eminaline. Está a perder-se -protestou a senhora Church, irias
parou para perguntar: -Quanto quer por este? Calculo que seja
caro.
-Este não está à venda mamã. Não está à venda. Eu ofereci a Luar e
a Emirialine juntos, mas o senhor Maxwell não troca -explicou
Mad.
-Oli! -A Senhora Church compreendeu. -Detesto não dar ao Mad
tudo o que ele quer e vê-lo chorar, já basta não ter pai. Mas se não
está para venda ...
Olhou para si própria, voltou-se e entrou em casa. Mad não
mostrou disposição para chorar, mas voltou-se para os dois bebés,
com os quais o cã o brincava de novo. _ Estes dois -disse ele,
levantando a mais pequena das crianças, totalmente nua, e
estendendo-a para que Hammond a observasse. -É gordinho, não
é? A Jerim e está a desmamá-lo.


Mad meteu à força um rebuçado de limão na boca do bebé.
Hammond começava a sentir fome e, como não se falava em jantar,
sugeriu:
-É melhor eu ir andando para Briarficid.
-Meu Deus -disse a senhor Church, emergindo da casa. -Vai ficar e
comer connosco. Não faz sentido ir-se embora à hora do jantar.
Nem quero ouvir.



Usava um longo vestido, limpo, cheio de goma, de algodão
vermelho e tinha-se calçado. 0 seu cabelo louro tinha sido penteado
de novo e preso no alto da cabeça. Um longo alfinete de 'peito, do
qual caíra apenas uma pequena camada de ouro, a revelar a sua
base de latão, enfeitava a parte da frente do vestido. A rápida
mudança transformara a mulher desmazelada numa senhora de
razoável beleza e ela sabia-o. Sorriu, de maneira coquete,
escondendo as mãos avermelhadas nas dobras da saia.
-Não quero incomodá-la, minha senhora. Só parei porque o seu
filho não me deixou continuar.
-Eu ficaria aborrecida, terrivelmente aborrecida, se não o tivesse
feito
-respondeu ela, baixando os olhos. -Fico muito satisfeita por gostar
do meu Madison. A maior parte das pessoas não gosta. Ele não faz
nada por m al.
Hammond não viu necessidade de negar. Porém, o potro de um ano
que Luke conduzia para a casa era outra coisa. Ali havia graça,
beleza, força, espírito, aristocracia.
Mad abriu os braços e gritou:
-Queridinho, vem cá! -e o potro ergueu as orelhas, relinchou e
escoicinhou.
De pernas compridas, como todos os potros jovens, tinha os joelhos
ossudos, e a sua manta de Inverno que o cobria parcialmente, estava
remendada e roída pelas traças; mas, na formação dos quartos, na
curta distância do pelvis até à cernelha na medida da cilha, no
comprimento do pescoço esguio, e na postura das espáduas,
Hammond viu um conjunto de potência e velocidade. Andou à
volta do potro, aproximou-se cuidadosamente dele e percorreu com
a mão uma pata da frente. 0 cão gordo ressentiu-se da interferência
de um estranho na propriedade da família e rosnou um aviso, que
fez Mad repreendê-lo suavemente e dizer-lhe que se deitasse. 0 cão
apenas olhou para ele e agitou a cauda.


-Não há dúvida que é um bonito cavalo. Gostava dever como se
move. Luke, sem ordens, levou o potro a cinquenta i ardas de
distância e fê-lo regressar, após o que Madison subiu para a garupa
nua e, guiando-o com a crina, galopou ao acaso pelo pátio.
Deslizando para o chão, abraçou o pescoço do potro e beijou-o nas
espáduas.
-A mamã diz que esta estrela na testa há-de cintilar. Acha que sim?
-Vai diminuir de tamanho -opinou Hammond. -Mas não faz
diferença. Tem os ossos.
-Mas estas meias brancas ficam? Não as vai perder?
-Essas ficam; mas isso que interessa? Claro que gostamos que eles
sejam bonitos, mas não é a cor que faz um cavalo. São os ossos que
interessam, e ossos tem ele.
-Leva-o para o celeiro, Luke. Não o leves para a pastagem outra
vez. Põe-o no celeiro. Ouviste? -ordenou Mad ao escravo.
Luke olhou para o patrão e entortou os olhos três vezes.
-Põe no celeiro, patrão, siô.
-0 Mad é tal e qual o Wash Church -declarou a mulher. -Louco por
cavalos. Toda a vida desejou ter um puro-sangue e quando teve
aquela égua, atirou-se ao poço. Oh, bem; não tem importância, acho
eu; agora ela é do Mad e ele encanta-se tanto com ela como o pai.
Encaminhou-se para casa, com eles atrás. A porta abria
directamente para a sala, através da qual o grupo passou para a
pequena casa de jantar. Tinham disposto a louça ordinária para
quatro pessoas, em volta da mesa redonda que tinha um rodízio
partido, o que a fazia oscilar.

-Não há muito -desculpou-se a senhora Church. -Sente-se. Devia
ter sido avisada da sua vinda. Nem sequer estava certa de que o
Mad vinha. Tem de desculpar.

A mesa estava carregada de comida, presunto e ovos, galinha frita,
batatas cozidas, batata-doce, vegetais cozidos, pão de milho, i arros


de leite, geleias, doces e picles. Mad sentou-se entre a mãe e
Hammond e começou imediatamente a empanturrar-se, enquanto a
mulher, na sua ansiedade por que Hammond se servisse e comesse

o que devia, mal conseguia comer.
-Não come quase nada -disse a senhora Church a Hammond. Lamento
que não haja melhor.
-Há muito, minha senhora; muito e do melhor que tenho comido -o
convidado dizia literalmente a verdade.
-Tem de desculpar o meu Mad por comer tanto. Agora tem muito
bom apetite. Costumava ser um passarinho a comer. Nunca comia o
suficiente, só para se aguentar. Está a parecer-se com o pai; Wash
Church era bom a comer. Gostava de boa comida.
-Eu disse-lhe que aqui se comia melhor do que em Fairfax. -Mad
fez uma pausa para falar. -Não acha? -perguntou a Hammond que
confirmou a sua opinião.
-Quando lhe mostrámos os negros, o Mad não lhe mostrou a fêmea
dele. Dá uma volta, Etrimaline, e deixa o senhor ver-te -ordenou a
senhora Church. -0 Mad não gosta dela, mas eu acho-a muito
jeitosa; não acha, senhor Maxwell? Não sei donde veio, é a única
clara que a Jermie teve. Penso que fosse o Wash Church, mas nunca
o culpei, nunca na vida.
-E um tipo de fêmea muito útil -comentou Hammond, mas não
especificou para quê.
-Tive três filhos idiotas, além do Mad, e parei. Dois deles
morreram, mas tive-os. Tenho uma viva, no quarto com a avó. Mas
não quis mais filhos e não tive mais. Por isso não podia censurar o
Wash Church por qualquer coisa que ele fizesse. Penso que é por
isso que esta é clara e as outras são todas pretas. E também não
culpava o Mad por isso. já é suficientemente crescido e não lhe faria
mal, se ele a pudesse suportar, mas não pode.
-Talvez o Luke -sugeriu Hammond.

-A Jenny diz que o Luke anda a falhar. Além disso, é o pai dela, diz
que é, pelo menos. Se cá ficasse esta noite... -delicadamente a
senhora Church não terminou a frase.
-Não, senhora! Não, senhora! Mamã@ -objectou Mad. Ele vai
dormir comigo na cama, ele e o pretinho. 0 macho é limpo. Lavámolo.
-Eu não posso ficar, Mad. Vim só cá comer para que não chorasse.
Não compreende? Não posso.
-Gosta muito do queridinho, não gosta? -perguntou Mad.
-É o potro mais bonito que eu já vi. -A aprovação de Hammond
não era fingida. -já lhe disse que gosto dele.
-Então oiça. Posso, mamã, posso? Dou-lhe o Queridinho se ficar,
dou-lhe o Queridinho. Posso, Mamã?
-Que diria o teu pai? 0 seu potro puro-sangue? -A senhora Church
hesitou e olhou para o filho. -Está bem, está bem, não chores. Não
chores, Mad -suplicou ela. -Ele é teu. Faz como quiseres.
-Não, senhora. Agradeço na mesma. Tenho de ir-me embora e
agradecia-lhe que mandasse vir a minha parelha. Agradeço imenso,
minha senhora, este óptimo jantar.


Hammond levantou-se da mesa, decidido a livrar-se o mais
depressa possível, da estranha paixão do seu anfitrião. Pairava
sobre aquele local uma aura de indefinivel pecado que o fazia
sentir-se pouco à vontade e ansioso por partir.
-Não pode ír-se embora ainda -argumentou Mad. -Tem de esperar
que o seu macho coma. Ele tem fome.
-Penso que ele já comeu. Agradeço-lhe por lhe arranjar comida.
Hammond resignou-se a esperar. Mad mandou vir Meg da porta,
onde ele esparava, impaciente, fê-lo passar pela sala, onde
Hammond aguardava, para a casa de jantar, onde o sentou no lugar
donde ele próprio se levantara. Amontoou comida das diversas
travessas para o seu prato sujo e disse:
-Come bastante.



-Sim, siô, patrão, siô -respondeu Meg, embaraçado por comer na
casa de jantar de um branco. Sentou-se, muito rígido e erecto, na
cadeira que era demasiado baixa para ele, e tentou manipular o
garfo como vira o patrão fazer.
-Preferia que viesse para aqui e parasse de servir esse negro -disse
Ham, pouco à vontade. -Um branco; não é próprio.
-Gosto de ver aquilo comer -respondeu Mad. Meg era um
brinquedo animado para Mad, que era suficientemente branco no
seu esquema de vida para recear qualquer rebaixamento da sua
posição por se dedicar ao seu capricho de servir o rapaz à mesa. 0
emprego do pronome demonstrativo revelava que diferenciava o
escravo de um homem.
0 estômago de Meg já não aguentava mais comida e por isso parou
de comer, mas não sabia se podia sair da mesa.
Hammond estava de pé, andando de um lado para o outro, e o
carro estava à espera. Agradeceu à dona da casa e despediu-se dela
enquanto saía. Meg trepou para o assento do carro.
Mad agarrou na mão do seu convidado e envolveu-lhe o corpo com

o braço esquerdo. Formaram-se lágrimas nos seus olhos. Quando
Hammond conseguiu libertar-se do seu abraço e tomou o seu lugar
no carro. Mad desatou a soluçar.
-Nunca mais volto a vê-lo -choramingou ele. -Ele é meu amigo e
vai-se embora, vai-se embora. Vai buscar o Queridinho. Quero que
ele fique com o Queridinho para se lembrar de mim. Vou dar-lho,
mesmo que ele não queira ficar a dormir cá. Luke, disse-te que
fosses buscar o Queridinho.
Hammond não esperou. Não valia a pena dizer que não ao jovem. 0
rosto de Mad estava convulsionado e as lágrimas corriam-lhe pelo
rosto em caudal, à medida que o seu melhor amigo se afastava, sem
levar o seu presente. Hammond ouviu os vãos esforços da mãe para
consolar o filho.
-Patrão, siô -perguntou Meg -, purque tá o siô a chorá?


-Não tens nada com isso -respondeu o patrão. -É assim mesmo,
Endireita esse casaco e senta-te como deve ser, e pára de olhar para
trás.

Capitulo vigésimo segundo

Hammond chegou a Briarfield ao fim da tarde. Podia ter adiado a
sua saída por mais um dia, mas a ocasião para a viagem era tão
adequada que não lamentava a perda de tempo. Poderia ter ficado
em Fairfax onde o hotel e a comida eram melhores do que os que
iria encontrar em Briarfield. Ainda havia luz suficiente para
continuar a sua viagem até Crowfoot, mas, de certo modo, sentia-se
relutante em chegar ao seu destino.

Não conhecia ninguém em Briarfield, exceptuando o seu contacto,
na infância, com Dick Woodford e evitava encontrar-se com ele para
não ser obrigado a desistir do seu quarto no hotel para dormir com

o seu futuro cunhado. Desejava ter uma cama só para si e, sendo o
único hóspede da Casa Maddox, conseguiu ter uma.
0 estábulo ficava do outro lado da rua, em frente do hotel, e
pertencia a outro dono. Hammond foi até lá, para instalar os
cavalos. 0 negro alto e magro que estava encarregado do estábulo
era tão lânguido e preguiçoso que Hammond resolveu ficar ao pé
dele para ver se os cavalos eram devidamente alimentados e tinham
uma boa cama para passar a noite.


-Onde está o teu patrão? -perguntou Hammond. -Parece-me
estranho, deixarem um malandro indolente como tu a tomar conta
dos cavalos de um cavalheiro.
-Eu tá alugado-explicou o escravo. -Tu conhece eu, siô. Eu é nêgo
do major Woodford de Crowfoot. Ele aluga eu ao patrão Jackson
que tem este estábulo, siô. Eu viu o siô em Crowfoot, faz tempo.
-Hei-de dizer ao maior Woodford que não prestas para nada. Estás
a precisar de chicote. É o que precisas, se não te apressas com essa
aveia.
-Não5 siô; não siô, patrão. Não diz isso ao patrão Jackson. Eu traz
aveia. 0 que o siô dizê ao patrão majó não faz nada. Ele não vai fazê
nada. Eu tá hipotecado, parece.
-Então conheces o senhor Dick Woodford. Onde é que eu posso
encontrá-lo?
-Eu não sabe bem, siô, onde tá patrão Dick. Eu viu ele outro dia.
Talvez reja em Crowfoot.
-Ele fica em Briarfield -disse Hammond.
-Talvez fique, talvez não -disse o negro, encolhendo os ombros. -0
patrão Charles não tá em casa; ele fugiu.
-Já voltou, agora.
0 negro, não ousando contradizer um branco, encolheu de novo os
ombros.
-Aquele nêgo com botão d'ouro é teu, siô? -perguntou ele. -Não é
muito grande. Porque tu não troca ele por um grande? Um como
eu? Tu anda sempre dum lado pró outro; eu gosta de andá dum
lado pró outro.
Ah, meu filho da mãe preguiçoso! Se fosses meu, dava-te de comer
aos meus porcos. Vê se tens juízo!
-Sim, siô; sim, siô! -0 negro riu-se -alto com a ideia, que não lhe era
permitido levar a mal. -0 siô dorme no hotel? Eu tem uma mulhé ...

-Preta e malcheirosa, calculo eu.


-Não siô, patrão. Eu lava bem ela. Quê que eu traga ela? Custa só
um dólar.
-Não vale a pena -disse Hammond, declinando tal prazer.
-Cinquenta cêntimos, siô?
-Nem por vinte e cinco -disse Hammond, com desdém. -Mete
mais palha nessas camas, o dobro do que lá puseste.
-0 dinheiro não é para mim. 0 dinheiro é pró patrão majó. Há
muitos ,cavalheiro que usa ela.
-Quero essa parelha limpa e pronta logo de manhã, ao nascer do
Sol. Ouviste? -disse Hamniond ao rapaz, regressando ao hotel.
Levou Meg à cozinha, onde a cozinheira gorda e preta ficou
desolada pela recusa do rapaz, que estava empaturrado com a
comida dos Church, em comer o que ela lhe oferecia.
-Tu é esperto! -informou a cozinheira, quando o patrão de Meg se
foi embora. -Tu é muito esperto! Onde é que teu patrão foi buscá
tu?
-0 meu patrão fez eu à miss Lucrécia Bórgia. Ela é minha mãe declarou
Meg orgulhosamente. -Eu é o nêgo do patrão, sempre
nêgo dele.
-É mêrno? Ele trata tu bem, parece. Veste tu bem, com botão
dourado e tudo.
-Mas às vezes pendura eu e dá c'o chicote. Quase todas as semana;
e depois de desancá eu bem, esfrega eu com pimenta e arde muito.
Tá e doê agora, as minhas costa e o meu rabo -mentiu Meg, para se
gabar, juntando mentira após mentira, para tornar a história
melhor.
-Proque é que teu patrão desanca tu assim? Parece um siô muito
bondoso. Tu é mau e faz as coisas mal?
As perguntas da gorda cozinheira envolviam simultaneamente
compaixão e reprovação.
-Eu anda atrás de Ellen. Por isso o patrão bate tanto a eu. Ellen é a
fêmea clara do patrão. Ela dorme cum ele, mêrno na cama dele.



-Tu anda atrás dela? Tu não tem tamanho prá andá atrás duma
pulga. Meg duvidava que a cozinheira acreditasse totalmente na
sua história.
-Além disso -acrescentou, para embelezar -, eu rouba o uísque do
patrão e bebe ele. Eu fica mêrno bêbado. Pra curá meu reumatismo.
-Tu tem reumatismo? Ai, isso é mau -disse com pena a cozinheira,
meio crédula. -E é tão pequeno?
-Oh, eu passa ele, passa ele a um nêgo pequeno que o patrão deu a
eu pra passá. E ao outro dói, não é a mim. Eu só bebe os toddy.
A cozinheira fez estalar os lábios, cheia de pena e abanou a cabeça.
-E eu mente. Mente muita ao patrão. Foi por isso que ele pendurou
eu da outra vez. É por isso que eu tem cicatrizes p'1o corpo todo.
Mas geralmente o patrão não percebe que eu mente. 0 patrão é
palerma.
-Não deves falá assim do teu patrão. Ele ouve tu. E depois ...
-Não faz mal. 0 patrão não faz nada agora. Vai vendê eu, vai vendê
eu, logo que volte pró casa, depois de a gente se casá.
-Depois de tu te casá? Coin'é isso?
-Nós vai casá. É por isso que ele leva eu. Utima sinhora branca.
Quando voltá, vai vendê eu ao patrão Mad. Ele é pió. Tá sempre a
baté nos nêgo. Todas as manhãs ao pequeno-almoço, patrão Mad
chicoteia eles, até havê sangue por to'dá parte. Parte os ossos deles e
tudo. E faz eles passá fome, quase não dá comé p'ra eles. E faz eles
trabalhá!


Lágrimas de medo e de autocompaixão corríam pelas suas faces e
molharam-lhe a manga e todo o seu corpo estremecia de terror.
-0 patrão Mad diz que vai dobrá eu nem que parta eu todo aos
bocado. Diz ele. Diz que vai dá a eu uma dose de chicote todas as
manhã até eu tá curado. Eu vai fugi. É isso que vai fazê. Eu vai fugi
pr'áqui. Não é muito longe. Tu escondes eu e dás comê p'ra eu até
patrão Mad não podê apanhá eu? Eu foge mêrno -'áqui.



-Ai isso não, sió! Não precisa fugir pr'áqui! -A prudência substituira
a compaixão nos sentimentos da cozinheira. -Se os brancos bate a ti,
eles tem razão pra batê. Os branco sabe o que faz. Tu és deles. Eles
faz o que quizê. Não siô. Eu não concorda. Mêrno que o teu novo
patrão dá cabo ti, tu não foge pr'áqui. 0 meu rabo tá inteiro e eu
quero conservá ele inteiro. An, an.
Não, siô!


Hammond, tendo comido a sua ceia, abriu a porta para chamar o
seu escravo.
-Estiveste a chorar. Dói-te alguma coisa? -perguntou ele, levando o
rapaz à sua frente, com a mão sobre o ombro dele.
-Ela bateu a mim. Aquela nêga bateu a mim. Eu não fez nada alegou
Meg, estendendo os lábios para a frente.
-Calculo que ela tenha tido motivos. Não te incomodes a desculpar-
te
-disse o patrão, pondo de parte a acusação. -Ela deu-te de comer,
não deu? Isso basta.
0 rapaz admitiu que tinha comido. Não tendo nada que fazer,
Hammond pôs-se a passear pelo caminho arborizado, sob a
cobertura das árvores, olhando para a direita e para a esquerda.
Nada mais viu, além de urna rapariga negra que levava à pastagem
uma vaca, seguida do seu vitelo.
0 dono do hotel tinha puxado uma cadeira para o passeio e sentou-
se no topo das costas com as pernas estendidas.
-Mande o seu rapaz ir buscar uma cadeira e ponha-se à vontade. É
ainda muito cedo para ir para a cama -disse ele. -Belo tempo.
-Bem bom. Está a aquecer -concordou Hammond. Hesitou e depois
mandou Meg ir buscar uma cadeira para ele. Sentou-se e disse ao
rapaz que lhe tirasse as botas, que começavam a magoar-lhe os pés.
Feito isto, Meg sentou-se na ponta do passeio.
-Donde vem? -perguntou o dono do hotel.
-Dos lados de Benson. Da plantação do meu pai.



-Plantador, hem? Logo vi que era um cavalheiro, com um carro,
unia boa parelha, um negro todo enfeitado, e tudo o resto. E tem
outros penso eu.
Hammond admitiu ter outros escravos.
-Algodão?
-Todo plantado -disse Hammond.
-Tem chovido bastante. Aqui estão atrasadas as plantações.
-Talvez conheça o Richard Woodford. Está a estudar leis. já era
suficientemente tarde para Hammond perguntar por ele.
-Refere-se ao Dick? 0 filho do major Woodford? Bem, andava a
estudar, julgo eu. já aqui não está.
-Não está?
-Partiu. Deu-lhe para pregar, ao que ouvi dizer. Tornou-se
religioso. É muito extravagante. Penso que são os que fazem
melhores pregadores. Tem boa figura e é bastante esperto, mas não
tem juízo nenhum. 0 irmão mais novo fugiu. Não se sabe para onde
foi. Foi duro para o velho.
-0 Charles já voltou -informou Hammond. -Esteve em minha casa, a
fazer-me uma visita.
-Não ouvi dizer isso -disse o homem do hotel. -Eu oiço quase tudo


o que se passa, mas não ouvi dizer isso. Não ouvi dizer.
-Voltou há cerca de um mês, mais ou menos. julgo que o pai o
tenha bem preso, depois de ter fugido.
-0 meu irmão, que mora a cerca de três milhas, tem um ou talvez
mesmo dois de que gostava de se ver livre. Não quer comprar? disse
o dono do hotel, mudando de assunto.
-0 quê?
-Negros. Pensei que soubesse o que eu queria dizer.
-Tenho a casa cheia deles -disse Hammond.
-Não está interessado, hem? Os do meu irmão são muito bons.
Mestiços novos. Grandes e perfeitos.
-Não trago dinheiro nenhum comigo -disse Hammond.

-Isso não tem importância, penso eu, se vai casar-se com uma
Woodford, não é que o crédito dos Woodford seja bom, mas é o
nome da família.
0 Sime ficaria com a sua nota de compra, por três ou seis meses. 0
senhor é um cavalheiro, nota-se logo.
-É a última coisa que eu quero, mais negros -declarou Hammond,
sem convicção, tanto para o interlocutor como para si próprio. Mestiços?
E perfeitos?
-E baratos. Sime quer ver-se livre deles, mas não os quer vender a
um negreiro. Os negreiros estão sempre a passar e a querer
comprar-lhos. 0 Sime não vende. São dele, mesmo dele, feitos por
ele próprio, e quer vê-los numa boa casa, quer saber para onde vão.
-Não posso comprá-los -suspirou Hammond. -Acho que não. No
próximo Outono, depois da colheita do algodão, hei-de vir vê-los.

Os escravos para venda eram, na sua maioria, um grupo
lamentável, e, só vendo o que lhes era oferecido é que os Maxwell
poderiam recrutar um aditamento ocasional à criadagem de
Falconhurst.
-Pague depois da colheita. Está certo. 0 Sime não precisa do
dinheiro. Só precisa de se ver livre dos machos. A mulher dele, a
nova mulher dele, não os pode suportar por serem dele. Mata-os à
fome e obriga-o a castigá-los e está sempre a queixar-se deles, a
arranjar sarilhos a todo o momento. É muito boa para os pretos, mas
não para estes. Ameaça deixá-lo se ele não os vender.
-Que tamanho têm eles? -Hammond não podia conter o seu
interesse.
-Não é que eu os queira.
-Oli, um deles já é crescido, tem quinze ou dezasseis anos, grande,
com dezassete palmos, mais ou menos. 0 outro é o segundo da
fêmea dele, tem cerca de catorze anos, aproximadamente. E tem
pele de branco, excepto quanto aos olhos. Tem olhos pretos. E o
Sime também tem olhos pretos. Mal se pode distinguir de um


branco, a não ser pelas unhas e pelas raízes do cabelo. Não saiu
nada negro.
-Os brancos fogem e nunca mais os conseguimos apanhar objectou
Ham. -Claro, os nossos nunca fogem.
-0 negócio está parado, se não comprava-os, para ajudar o Sime a
resolver o problema dele. Claro, ele prefere que estes se vão mesmo
embora, que saiam da região, pelo menos é o que a mulher quer.
Não sei o que fazia com eles. Vendia-os outra vez, acho eu, se me
pagassem bem.
-Eu não ando a comprar negros, tanto mais que vou casar-me. Não
ia levar uma senhora para casa, dentro de um carro cheio de negros
estranhos.
-Esses, ninguém diz que são negros, a não ser que a gente diga, tão
humanos parecem. Era melhor ir vê-los. De manhã, mando o rapaz
do Jackson, ali ao estábulo, buscar o Sime. Não há problemas, o
rapaz pouco mais tem de fazer depois de dar de comer às éguas, e o
Jackson não se importa de que o utilize.

Também já eram horas de deitar para o dono do hotel, mas
continuou sentado, à espera do escravo que estava atrasado no seu
regresso ao estábulo onde dormia. Quando ele chegou, descendo
relaxadamente a rua, o homem do hotel chamou-o e endireitou-se
na cadeira.
-Sabes onde mora o senhor Sime Maddox?
0 negro agitou o braço no sentido do sul e respondeu:
-Sim, siô. Vive além, naqueles sítio. Vai-se andando, vai-se
andando, té virá pra este lado, patrão, siô. Pode ir perguntando p'1o
caminho.
-Eu não vou. Tu é que vais -explicou o branco. -Quero que lá vás
ao nascer do Sol; mais tarde não. Diz ao senhor Sime que venha cá
depressa e traga os dois machos brancos que tem para vender.
Percebeste? Que traga os dois machos brancos e largue tudo o que
estiver a fazer.


0 negro coçou a cabeça.
-0 siô quê a parelha de manhã cedo. Não pode ir ...
-já te disse que fosses logo de madrugada e não atreles a parelha
sem eu te dizer. Deixa os cavalos em paz. Percebeste?


Hammond acordou cedo e ficou aborrecido com o atraso do
pequeno-almoço, que o dono do hotel mandara retardar. Ficou
ainda mais irritado por a sua parelha não estar pronta e por não
conseguir encontrar o moço da estrebaria.
0 dono do hotel aceitou as queixas do hóspede e explicou:
-Deve estar a chegar a todo o momento. Apronta os seus cavalos
rapidamente, assim que chegar. Foi, por ordem minha, buscar o
meu irmão e dizer-lhe que trouxesse aqueles mestiços para o senhor
os ver.
-já lhe disse que não vou comprar negros -protestou Hammond. Para
que o mandou lá? 0 que eu quero é a parelha pronta.
-Só queria que os visse. Talvez conheça alguém... -disse Maddox,
em tom persuasivo. -Não pensei que os comprasse; mas pode vêlos,
não pode?
Deixou-se cair numa cadeira, complacentemente, enquanto
Hammond coxeava até à porta, olhava para a estrada e voltava a
esperar.
-Não há outro rapaz, não há mais ninguém que possa atrelar o
carro?
-perguntou Hammond, após o que lhe pareceu uma espera
demasiado longa. 0 Sol já estava completamente acima do
horizonte. -Não se preocupe a dar-lhes de comer. Dou-lhes comida
quando lá chegar.
-Ele vem ali -anunciou Meg. -Vem um siô a cavalo, patrão, siô.
-Deve ser o tal branco. 0 negro vem mais devagar atrás,
naturalmente. Hammond não se dirigia a ninguém em especial, mas
foi-se dirigindo para a porta.



Mas o cavaleiro que Meg vira era o escravo, com dois outros
montados atrás, no cavalo estrábico que trotou para o estábulo. Dois
garotos esfarrapados e desorientados deslizaram para o chão e,
depois de o negro ter atado o cavalo a um poste, seguiram-no pela
estrada até ao hotel, mesmo pegados a ele.
-Eu disse-te que queria a minha parelha pronta logo de madrugada
-disse Hammond, indo ao encontro do escravo. -Eu próprio te vou
desancar. Deixa lá a comida. Atrela os cavalos.
-Sim, siô; sim, siô-confirmou o negro, cheio de confiança. -0 patrão
Eph, siô, mandou eu. Patrão Eph diz pra eu ir. Eu trata dos cavalo,
siô, é pra já, sim siô. Não é como eu diz, patrão Eph?
-Onde está o senhor Sime? Eu disse-te para o ires chamar interrompeu
o dono do hotel.
-Sim, siô, eu disse a ele, sim, siô patrão. 0 patrão Sime tava todo a
tremê. Tá muito doente, parece. Mandou estes dois macho. Diz pró
siô vendê eles, siô -explicou o negro alto. -A Sinhora Sime diz pró
siô vendê eles. Ela diz que mata eles si eles volta, mata eles. E tava a
falá verdade; mata mêmo. Ela diz pra vendê eles, vendê mêmo eles.
E tava a falá verdade.

Os dois rapazes estavam indiferentes à ameaça. Deixaram-se ficar
sobre as ervas para lá da estrada, deslumbrados pelo cenário não
habitual, o mais novo agarrando-se o mais que podia às calças do
mais velho. A brancura dos seus rostos não se notava através do
tom queimado do sol e da sujidade. A semelhança das suas feições e
dos seus olhos, tão negros que nem pareciam ter pupilas,
proclamavam o seu parentesco. _ Aí os tem, tal como eu lhe disse,
perfeitos, uns mestiços bem jeitosos. Que tal os acha? Ouviu o que
disse a mulher do Sime? Para eu os vender -disse o dono do hotel.

Hammond saiu da estrada e passou a mão superficialmente sobre
os rapazes, abriu-lhes as bocas e observou-lhes os dentes.


-Escanzelados -foi a sua opinião, Pressentia uma pechincha.
-Não lhes davam de comer, creio eu. Aquela mulher, Sime fez
asneira. Podem engordar. São bastante robustos.
-Quanto é que ele pede, sabe? Ham estava suficientemente
interessado para inquirir, mas sem mostrar entusiasmo.
-0 maior deve custar uns setecentos -calculou o vendedor. -0 outro
uns quatrocentos e cinquenta ou quinhentos. -Depois, notando a
falta de interesse de Hammond, acrescentou: -Mil pelos dois."Paga
mil e leva os dois. 0 Sime vai ficar aborrecido, mas pode ficar com
eles.
-Porque estás aí parado -perguntou Hammond ao moço da
estrebaria. -Prepara a minha parelha. E melhor dares-lhe de comer
primeiro, já se está a fazer tarde.
0 negro acusou a recepção da ordem corri um "slim siô; sim sio", e
afastou-se preguiçosamente, olhando por cima do ombro para os
negociantes.
-Deviam valer isso, sem dúvida; mas quanto dá? Ouviu o que disse
a mulher do Sime. Não tenho coragem para os mandar de volta.
-Não estou a oferecer nada, mas, por quinhentos pelos dois, já
podia vê-los, só vê-los, repare. Não os quero, na realidade -propôs
Hammond, com aparente indiferença.
-Olhe, setecentos e cinquenta pelo par, e são de graça. Qualquer
negreiro dava mais por eles.
-Então venda-os a um negreiro. julgava que o seu irmão não queria
negócio com eles.
-E não quer; mas eu não me importo. Sou eu que estou a vendê-los.
São filhos dele, não são meus.
-Aquele negro do major Woodford é um preguiçoso. Todos os
trabalhadores dele serão assim? Não admira que ele não medre.
Maddox notou a impaciência de Hammond para com o moço e
sentiu que podia estragar-lhe o negócio, tal como Hammond
pretendia que ele pensasse.


-Vamos dividir a meias. Seiscentos e vinte e cinco? A meio caminho
entre quinhentos e setecentos e cinquenta -propôs Maddox. -Dois
mestiços por seiscentos e vinte e cinco, é quase roubá-los.
-Por esse preço não, não quero. De qualquer modo eu nem quero os
negros. Talvez os venha ver quando chegar o Outono e o senhor os
tiver engordado. Agora não.
-Se a mulher do Sime não começar a dar-lhes de comer, não vivem
até ao Outono -disse Maddox, concordando que os rapazes
estavam mal nutridos. -Bem, se não oferece mais, coloca-me num
beco sem saída. -
Maddox suspirou. -Acho que vou aceitar a sua oferta.
-Eu não fiz oferta, só disse que os ia observar. Se os achar espertos e
perfeitos, talvez dê os quinhentos. Hammond estava concentrado
no seu negócio, mais interessado em conseguir uma pechincha do
que em casar-se no dia seguinte.
-Diz àquele negro que me traga um chicote dos cavalos -ordenou
Maddox a Meg. -Eu já os esperto.
-Por favô, siô, patrão. Eu tá esperto. Não dá co chicote. Que quê sió
que eu faz? -disse o rapaz mais velho, falando pela primeira vez.
-Não é preciso chicote -apoiou Hammond. -Não quero vê-los mexer
à chicotada. Qualquer negro fica esperto quando está a ser
chicoteado. Quero vê-los ao natural.
Já tinha decidido comprar os mestiços, se não lhes encontrasse
qualquer defeito. A sua única preocupação era encontrar um
pretexto para tirar mais cinquenta dólares ao preço, o que lhe
parecia duvidoso.
-Quê que eu corra e salta? -perguntou o mais velho dos rapazes,
encorajado pela moderação do branco, e demonstrando que já tinha
sido observado antes.
-Quero que fiques quieto -respondeu o comprador. Deu um
pontapé numa pedra da estrada, e, apanhando-a no ar, atirou-a com
toda a força. -Agora vai buscar.


0 rapaz desatou a correr e recuperou a pedra, com agilidade.
-Salta -ordenou Hammond e o rapaz saltou, desajeitadamente, por
três vezes.
-Agora o outro -disse Hammond, atirando a pedra de novo.
0 rapaz mais pequeno avançou a correr, aumentando de vez em
quando a velocidade, para mostrar do que era capaz; mas, na sua
pressa e ansiedade de ultrapassar o irmão, caiu e feriu-se num
joelho. Devido à ferida, foi obrigado a regressar a coxear, esperando
um castigo que não recebeu.
Em vez disso, Hammond inclinou-se e examinou-lhe o joelho.
-Não é nada -opinou. -Agora salta. Salta o mais que puderes.
0 rapaz esforçou-se por saltar, mas a ferida não lhe permitia que
fizesse muito.
-Ele sabe saltar, salta bem. Está só a fingir -disse Maddox receando
que a venda tivesse falhado. -Diz àquele negro que me traga o
chicote.
-Não vale apena. Ele estava a tentar-disse Hammond, desculpando

o rapaz. -Eu também tenho uma perna aleijada. Vamos lá para
dentro ou para o celeiro. Quero despi-los e ver se estão quebrados,
ou coisa parecida.
Maddox conduzíu-os ao hotel e, no escritório, deu ordens aos
rapazes para se despirem. 0 mais velho puxou as calças e tirou-as
com um pontapé e depois despiu a camisa. Uma vez despido,
arrancou as roupas ao irmão. A pele dos sítios que andavam
cobertos era branca, com a brancura do marfim que os seus olhos
negros preconizavam, mas nada tinham de africano. A cor dos
troncos e das coxas fazia um forte contraste com os rostos, os
pescoços e a parte de baixo das pernas queimados pelo sol.
-São feios, não são? Têm o ventre,inchado e brilhante, como as
lagartas. Não é saudável -disse Hammond estremecendo. -E estão
magríssimos, parecem gafanhotos. E estou a ver aqui uma coisa nas
costas. Este rapaz foi chicoteado, ao que parece -disse Hammond,
esfregando as marcas verticais que atravessavam as costas do rapaz,

num esforço fútil para as apagar. As feridas eram superficiais e a
pele não tinha sido rasgada.
-Não quero negros com marcas de chicote. Os nossos em
Falconhurst estão limpos. Que fizeste tu, rapaz? Porque foste
chicoteado?
0 rapaz olhou para ele, num silêncio assustado, e Hammond repetiu
a pergunta, abanando a criança pelos ombros. 0 rapaz abriu a boca
corno se fosse falar e desatou a chorar.
0 mais velho tentou responder à pergunta:
-Foi por roubá, roubá pão. A Miss diz que ele comia de mais e fez o
patrão Sime chicoteá ele.
-Quem te perguntou? -disse Hammond, fazendo-o calar. -Fala
quando te mandarem. Vistam-se outra vez, essa roupa não passa de
farrapos, os dois. Têm nomes?
-Sim, siô, patrão -respondeu o rapaz, o mais sucintamente possível.
-Então?
-Eu chama-se Ás, siô, patrão. Ele chama-se Trunfo.
-Podiam ser piores -disse Hammond.
-Calculei que os quisesse, depois de os ver -disse Maddox,
tentando fechar o negócio. -0 rapaz cura-se da ferida, uma a duas
semanas, já ri e se nota.
-Diz que fica com a minha nota até eu chegar a casa e lhe mandar o
dinheiro? Só tenho comigo sessenta dólares em ouro que possa
dispensar.
Hammond contou o seu dinheiro e o vendedor aceitou as suas
condições.
-Tenho que os deixar aqui até voltar, já casado. Não posso ir casar-
me num carro cheio de pretos.
-Mas tenho que lhe debitar a despesa -especificou o estalajadeiro. Deste
tamanho comem bem e ainda por cima estes andam
esfomeados. Não é pelo Sime; ele dava-lhes de comer. É a mulher
dele.



-Tem que me garantir que fica com eles. Eles são novos e podem
fugir.
0 senhor fica responsável.
-Eu agrilho-os à cama. Não fogem e dou-lhes bastante de comer prometeu
o dono do hotel.
-E lava-os? Não há aí ninguém que os possa lavar? Estão nojentos. 0
rapaz do estábulo ainda os punha piores. Aquela fêmea da cozinha.
Não pode lavá-los?
-Custa-lhe dez cêntimos. Dez cêntimos cada um -especificou
Maddox. Abriu a porta e chamou: -Marta, Marta!
-Faça os seus papéis, senhor -pediu Hammond.
-Não percebo nada de fazer papéis. Importa-se de os fazer? Eu
assino.
0 advogado Rogers; pode fazê-los, por meio dólar, se o senhor não
sabe.
-Eu sei, bastante bem, até -disse Hammond. -Não escrevo lá muito
bem, mas lê-se.
Quando Marta apareceu à porta, Maddox designou-lhe a sua tarefa.
-Lava estes dois rapazes -disse ele. -Lava-os bem. Trata um de
cada vez. Chama o Fred, se precisares de os agarrar. Nunca foram
lavados, desconfio.
-Eu lava eles bem. Temas carapinha comprida; precisa cortásugeriu
a mulher.
-Não é carapinha, é cabelo; cabelo como o dos brancos. Penso que
este cavalheiro deseja que o conservem, desde que esteja limpo.
-Deixe-o ficar -ordenou Ham -, mas lave-o bem. Tem sabão?
-Tem sabonete e água quente, ficam limpo e sem cheirá durante um
mês inteiro.
Marta agarrou Ás pelo pescoço e empurrou-o à sua frente; quanto a
Trunfo, estendeu o braço e levou-o agarrado pelo ombro.
-E queima os trapos deles. Vou comprar-lhes roupa nova -gritoulhe
Hammond.



-Com botões dourado e tudo? -perguntou Marta, que não teve
resposta.
-Arranje-me coisas para escrever e vamos a ver se eu faço os tais
papéis, enquanto ela os lava -sugeriu Hammond. -Podemos
despachar isto.

Hammond chamou Fred e ordenou-lhe que desatrelasse as éguas e
lhes desse de comer. Voltaria a pedir os cavalos quando os quisesse.
0 negro murmurou um "sim, siô", de má vontade, pelo trabalho
desperdiçado.
0 patrão descobriu os dois escravos ainda na cozinha a comer de um
tacho comum. Estavam sentados um em frente do outro, no chão, ao
pé da lareira, com as pernas abertas e os joelhos dobrados, com o
tacho entre ambos, as mãos cheias de comida, que introduziam na
boca tão rapidamente quanto conseguiam engoli-Ia cada um deles
receando que o outro ficasse com toda a comida. Pareciam dois
cachorros esfomeados, a meio do crescimento, que lançavam
olhares em volta mas estavam demasiado absorvidos para rosnar.

Marta estava de pé, com as mãos na cintura, observando-os com
satisfação. Voltou a encher o tacho quando os rapazes o esvaziaram,
com batatas-doces, carne gorda e pão de centeio.
-Por favô, patrão, deixe eles -disse ela, olhando para Hammond. Eles
inda não tinha comido hoje. Eles tá cum fome.
Hanimond observou a glutonice dos rapazes.
-Não dês cabo deles -avisou. A mulher riu-se.
-Tá a enchê eles, patrão, tá a enchê eles, diz eu. 0 siô dá comida boa
aos nêgo; eu vê por aquele negrinho.
-Mas também o desanco. Tem o rabo às tiras. Hammond inclinou-
se para a frente, para examinar a pele de Á s, para ver se estava bem
limpa. 0 rapaz levantou os braços para proteger a batata-doce que
tinha numa mão e a carne que tinha na outra, enquanto o patrão lhe
apalpava as costas e o ventre, e lhe levantava a perna, forçando o


escravo a deitar-se, para ter a certeza que a marca por cima do
tornozelo era do sole não de sujidade. 0 rapaz, afastando o cabelo
dos olhos como pulso dobrado, olhou ressentido para o irmão, que
continuava a comer.
-Eu disse-te que lhe cortassem as unhas dos pés -disse Ham a
Marta.
-Eu vai já cortá, patrão, siô. Eu vai já -garantiu ela. -Parece garra
de abutre.
-Bom, veste-lhes essas roupas limpas depois de comerem -disse
Ham à mulher. -Tens de enrolar as mangas e as calças do mais
pequeno e que apertar as calças em cima para não lhe caírem. E dá
qualquer coisa ao Meg, se essa pastilha de hortelã-pimenta não lhe
fez mal. Não consigo impedir as pessoas de lhe darem porcarias,
como essa.

Foi para a casa de jantar, ao encontro de Maddox que estava a
acabar o seu jantar, que consistia em presunto com molho de carne,
batatas-doces e biscoitos, leite, manteiga, geleia, picles e café.

Marta estava mais interessada em dar de comer aos escravos do que
em servir os patrões, mas não negligenciou o serviço. No final da
refeição, disse a Hammond:
-já arranjou as unha deles, siô. Tão curtinha pra não apanhá lixo e
terra. Tavam bem sujos, siô; passei eles por três água, ambos os
dois. Tão a cheirá bem agora. 1 ao a cheirá bem agora. Não cheira
mal nem um bocadinho.
-Os mestiços não cheiram tão mal como os outros negros, de
qualquer modo -disse Maddox. -Aqui a Marta, se não se lava
durante uma semana ou duas, tem um cheiro que é de cair para o
lado.
-Eu lava-se, patrão, siô. Eu lava sempre -protestou a preta.
-Passas-te por água, queres tu dizer -disse o patrão.


-Os fato novos deles tão muito bons -disse Marta, servindo uma
terceira chávena de café a Hammond e colocando ao seu alcance o
melado. -As mangas e as calça tão grandes pró mais pequeno, mas
na barriga não tá, e inda fica mais apertado depois dele comê.
-Estão a inchar, hem? -pensou Hammond em voz alta. -Têm
vermes. Os vermes fazem-nos ficar com a barriga inchada depois de
se encherem. Têm razão para estarem escanzelados. Espero que não
comecem com ataques antes de eu chegar a casa e tratá-los.
-Não admira. 0 Sime dá-lhes nata deleite, muita nata. É barato.
Toda agente sabe que o leite faz vermes -disse Maddox. -Devia ter
cuidado para os purgar dos vermes; mas também o Sime está
sempre doente... -disse ele, desculpando o irmão.

Hammond tinha intenção de partir para Crowfoot logo a seguir ao
jantar mas pensou que seria interessante ir até à taberna durante
meia hora para ver os combates e o tipo de negros, que lutavam. Na
realidade, talvez encontrasse Charles Woodford e poderiam seguir
juntos para Crowfoot. Colocou Meg no carro e avisou-o de que
devia manter-se direito, sem se mexer, e aguardar o seu regresso.
Ordenou a Fred que voltasse a atrelar a parelha.
-Vai mêrno, desta vez, siô? -perguntou, na dúvida, o alto negro.
Não obteve resposta.
Na taberna, Hammond encontrou urna reunião apática de pouco
mais de urna dúzia de homens de que faziam parte os habituais
vadios, em número de dois, dois ou três jovens, além de diversos
escravos para combater e para apostar. Um bar, sem espelho
ocupava um dos lados da sala, cujo maior espaço estava preenchido
com uma área cercada de cerca de quinze pés quadrados, com
tábuas à volta até uma altura de quatro tábuas de pé, com os pregos
frouxos, de modo a poderem ser levantadas e retiradas quando
necessário. Era naquela arena que se realizavam os combates, que a
opinião pública forçara a retirar do pátio aberto nas traseiras.


Os homens afastaram-se para deixar passar o estrangeiro coxo, de
fato cor de ameixa, de que sentiram um suspeitoso receio, primeiro
por ser um estranho, e segundo por calcularem que se tratava de
um cavalheiro. Ele aproximou-se do balcão estreito, olhou em volta
à procura de alguém conhecido que pudesse beber corri ele, e pediu
uísque, convidando o empregado do bar, à falta de melhor
companhia, para beber com ele. A sua reputação parecia tê-lo
precedido.
-Está hospedado no Maddox, não está? -perguntou o empregado e
Hammond admitiu a acusação. -0 Eph vendeu-lhe aqueles mestiços
do Sime? -Hammond bebeu o uísque de uma só vez, acenando
afirmativamente. -Espero que não tenha pago muito. Andam a
querer vendê-los há imenso tempo.
Hammond começou a duvidar do seu negócio.
-Que é que eles têm de mal? -perguntou.
0 empregado do bar mostrou desprezo.
-Mestiços -basta isso. Ninguém compra mestiços. São frágeis. As
fêmeas, pelo contrário, se eles fossem fêmeas. Além disso, o Sime
não lhes dava de comer.
A coragem de Hammond voltou. Os gostos quanto a cor variavam,
e os rapazes podiam engordar. Eram apenas esqueletos, mas eram
esqueletos perfeitos. Podia-se ver a sua figura e eram os ossos que
contavam, como o pai sempre lhe ensinara.
-Pensei que o Charles Woodford estivesse por aqui. Ainda vem?
perguntou.
-0 Charlie? -repetiu o empregado do bar. -0 Charlie fugiu. Foi atrás
de um vadio qualquer que veio namorar a irmã. Disse que era
primo, ou coisa parecida. Claro, o major correu com ele. E o Charlie
foi atrás dele. É mesmo dele; quanto pior um tipo é, mais o Charlie
gosta dele.
-Oh, o Charlie já voltou, há muito tempo -protestou Ham, a quem a
conversa desagradava, mas não deixava de o divertir.


0 empregado abanou a cabeça, duvidoso.
-Se calhar o major tem o rapaz preso por fugir daquela maneira. 0
Dick, também nunca mais o vi. 0 Dick fez-se pregador da liga da
temperança. Concordo que é preciso que haja alguns; pregadores,
claro.
Bateu com uma garrafa no balcão, para chamar a atenção e gritou,
com um pretenso rasgo de amabilidade:
-Venham cá, venham cá, todos, juntem-se aqui. A primeira é por
conta da casa. -Voltou-se para Hammond e troçou, em voz baixa: Veja
como eles vêm.
A bebida soltou as línguas e os cordões das bolsas. Três homens
pagaram rodadas e Hammond sentiu-se forçado a pagar por sua
vez. 0 seu dinheiro derreteu o gelo e os homens dirigiram-se-lhe
com uma espécie de deferência tímida, não o considerando já como
um estranho inescrutável.
Num dos extremos do bar, um homem acotovelou o seu vizinho,
murmurando:
-Rico! Seja ele quem for, tem dinheiro. Vê todo aquele ouro, quando
ele abre a bolsa?
Outro homem, de meia idade, que pagara a segunda rodada, pediu
desculpa a Hammond pelos negros que ia ver combater, que eram,
efectivamente, um lote heterogéneo de trabalhadores do campo,
dispensados para combater. Pretos e castanhos, altos e baixos,
gordos e magros, saudáveis e doentes, Hammond não viu nenhum
que qualquer dos negros de Falconhurst não pudesse vencer, para
não falar no mandingo. A explicação do homem foi que os mais
altos expoentes do exercício pugilístico não tinham podido trazer os
seus negros por uma razão ou por outra. Um deles tinha uma égua
prestes a parir; outro tinha a mulher doente; um terceiro estava ele
próprio doente; um quarto tinha sido convocado para ir a tribunal e
partira para Montgornery; um quinto, talvez ainda aparecesse mas
sem o seu negro que tinha sido mordido num pé por uma cobra
cascavel e cuja recuperação era duvidosa. A sua morte seria um


duro golpe para o desporto e uma perda considerável para o seu
proprietário.
-Eu disse ao Mac que devia tê-lo vendido -gabou-se um homem
corado, com barba de uma semana. -Eu tinha razão, tinha razão,
quando o negreiro lhe ofereceu dinheiro por ele, eu disse-lhe.
Agora, olhe para ele mordido pela cobra e quase a morrer.
-Dá azar não se aproveitar o que é oferecido, sempre eu disse acrescentou
um vizinho.
-Pouca sorte -disse o empregado do bar, abanando a cabeça. -Eu
andava a pensar em fazer lutar o macho do Mac outra vez com
aquele macho grande do Hodkins. Havia de ser bonito. 0 macho do
Hodkins nunca foi vencido, nem o Mac nunca perdeu.
Hammond apurou o ouvido.
-0 meu venceu o de Hodkins em Benson. -gabou-se sem qualquer
discrição e lamentou logo tê-lo feito.
-Deve ter sido há pouco tempo -disse o homem do balcão. -Não
quero desmenti-lo, senhor. Em Benson? É daí que conhece o Charlie
Woodfort? Benson? É onde vive aquele tipo atrás do qual ele foi.
-0 velho Hodkins deve estar a vir-disse um exuberante desportista.
-
É um cavalheiro de categoria. Nada mais faz, além de andar a fazer
combates com o seu negro. Ganha sempre.
-Pode fazer isso. É rico -interrompeu uma voz. A riqueza implicava
dinheiro que chegasse para o sustento de seis meses mais ou menos,
conforme o avaliador.
Sim, o Hodkins deve estar a aparecer por cá -confirmou o homem
do balcão. -Vem sempre, por esta altura. Vem cobrar os juros,
tentar cobrá-los.
-Juros sobre quê?
-Do maior. Hodkins detém a hipoteca sobre Crowfoot e tudo o que
eles lá têm e sobre os negros, pelo menos o que resta deles -confioulhe
o homem do balcão.



-0 major nunca pode pagar. Não tem com que pagar. Se tivesse,
comprava um gigante ou coisa parecida -disse rindo, o homem que
pedira desculpa pelos lutadores. 0 maior limita-se a aumentar o juro
e o Hodkins aceita. Agora ele tem de pagar vinte por cento.
Prometeu pagar.
-julgava que era o banco. 0 major ...
-0 maior é cheio de...
-0 banco não suportava uma dívida daquelas. 0 banco já lhe tinha
tirado tudo há muito tempo.
-0 Hodkins não ousa tirar-lhe tudo. Nunca o fez. É melhor ir
ficando com a dívida.


A informação que Hammond recolhera deixou-o um pouco mais
aliviado quanto à situação financeira de Woodford. Com Hodkins
morto e ninguém consciente do facto, com excepção do círculo de
Pérola, Crowfoot nã o corria um perigo imediato de execução da
hipoteca. Hammond teve vontade de morder a língua depois de ter
dito que conhecia Hodkins, mas a delicadeza da resposta do
empregado do balcão, a sua recusa em disputar a afirmação de
Hammond, eram uma garantia de que não o tinha acreditado.


Talvez Hodkins tivesse herdeiros, que poderiam eventualmente vir
a saber da sua morte e insistir com Woodford pelo pagamento da
sua dívida, mas havia também a probabilidade de não haver
herdeiros, de não se encontrar nem um, de os documentos de
hipoteca estarem escondidos ou terem-se perdido, ou de as notas
nunca chegarem a ser apresentadas para pagamento. 0 mais
provável era que a morte de Hodkins tivesse deixado Woodford na
livre posse da sua propriedade. Contudo as hipotecas invalidavam
os direitos do maior, pois poderiam impedir o velho de vender ou
hipotecar novamente a sua casa.
Hammond não vira um único escravo que gostasse de possuir. Os
combates não era suficientemente interessantes para o tentar a



apostar neles. Somente o uísque puro e branco o retinha e bebeu
mais do que tencionava, mais do que desejaria. Não se interessou
absolutamente nada pelo melhoramento da raça dos lutadores, mas
estava suficientemente bêbedo para se divertir com o fiasco.

Voltou ao balcão para uma bebida final, pois as anteriores
estimulavam-lhe o desejo de mais uma. já era muito tarde para ir
para Crowfoot. Duvidava que conseguisse lá chegar antes da ceia e
não queria chegar naquele estado. No dia seguinte de manhã ainda
ia a tempo. Receava a reunião com todos os convidados de
Woodford que lá estariam reunidos. Além disso, sentia sono.

Dirigiu-se ao estábulo, ordenou a Fred que desatrelasse e
alimentasse a parelha e lhe arranjasse cama, sem se incomodar com

o desagrado patente mas silencioso do preguiçoso escravo. Meg
tinha-se conservado sentado no carro, mas nem sempre direito. Não
ousara exibir a nervosa impaciência que sentira, e que não
desaparecera totalmente quando viu o patrão chegar. A sua
circunspecção especial não lhe serviu de nada, pois Hammond,
embriagado, era menos truculento do que habitualmente. Levou o
rapaz para o hotel e encomendou a ceia para ele e para os mestiços.
Para si próprio, não quis ceia; só desejava dormir.
-Houve muitos combates? -perguntou-lhe o dono do hotel, quando
o viu entrar.
Hammond fez um gesto de desprezo.
-Eu tinha ido, mas com o Sime a morrer ...
-Não perdeu nada -disse Hammond -excepto uma dor de cabeça
pela manhã.
-Devia comer -insistiu o proprietário do hotel. Hammond abanou a
cabeça.
-Quero ir para o quarto, logo que os meus rapazes acabem de
comer.

-Não há ninguém no outro quarto. Aos sábados nunca há negócio.
0 melhor é eu pôr os negros a ferros lá. Vão mantê-lo acordado com

o barulho das correntes, toda a noite.
-Não lhes ponha ferros. Deixe-os ficar soltos no meu quarto. Têm a
barriga cheia, vão dormir.
-Acho que -concordou Maddox -eles sabem onde está a comida.
Não vão fugir de onde podem comer bem para voltar para a mulher
do Sime.
Sem se despirem, os mestiços deitaram-se no chão, aos pés da cama
de Hammond, utilizando como manta uma carpeta de trapos já
gasta. Meg despiu-se para evitar amachucar o fato e embrulhou-se
numa colcha. Hammond estava cheio de sono por causa do uísque e
por isso esqueceu-se da habitual cerimônia da oração nocturna. A
sensação de náusea que o invadiu mal se deixou cair pesadamente
na cama não o impediu de adormecer.
Meg ouviu o patrão resmungar enquanto ressonava. Assustou-se,
mas não ousou acordar o branco e, em breve, habituando-se àquilo,
adormeceu também.
Capitulo vigésimo terceiro

Hammond acordou por volta das duas e meia com a sensação de
que algo estava errado; não sabia o quê; sentiu dificuldade em
orientar-se. Ergueu-se sobre o cotovelo, antes de descobrir onde se
encontrava. Viu Meg, deitado de barriga para baixo, dormindo
placidamente e ouviu a sua respiração firme e regular. Mas a porta
do quarto estava aberta; pensava tê-la fechado, mas não tinha a
certeza absoluta. Talvez fosse isso que estava errado.


Deslizou da cama para ir fechar a porta e, vendo a carpeta enrolada,
lembrou-se pela primeira vez dos seus novos escravos. Tinham
partido. Tinham-lhe fugido. Ficou confuso com essa descoberta.
Depois írritou-se, tanto com o seu próprio descuido como com os
escravos. Se ele não se tivesse embebedado, aquilo não teria
sucedido.


Enfiou à pressa as calças, sem ceroulas. Descalço, dirigiu-se ao
vestíbulo, batendo com o dedo do pé contra a soleira da porta. Não
sabia ao certo qual das portas correspondia ao quarto de Maddox,
mas, como não havia outros hóspedes, bateu em ambas.
-Eles fugiram -berrou. -Fugiram, os mestiços, raios os partam,
fugiram.
-Espere um momento -ouviu Maddox dizer. -Só um minuto. -
Maddox apareceu à porta, de camisa e ceroulas e perguntou -Que
está a dizer?
-Os rapazes fugiram, desapareceram.
0 homem esfregou os olhos e bocejou.
-Eu sabia -disse. -Eu sabia, disse-lhe que os prendesse. Depois,
sem se aborrecer por ter sido acordado, começou a rir, com maligna
satisfação.
-0 senhor disse foi que eles sabiam onde estava a comida. Disse que
eles não precisavam de ficar presos.
-Foi só para concordar. Eles são seus; tenho a sua nota de compra.
Era o senhor que decidia.
-Não estou a tentar fugir ao pagamento. Quero-os. Calcula para que
lado é que eles foram? Há alguém que tenha bons cães?
-Os cães não servem de nada. Os rapazes tomaram banho ainda
ontem. Além disso, são quase brancos e não largam cheiro.
Maddox continuou a rir do ar desconcertado do seu hóspede.
-Aquela carpeta em que eles dormiram deve servir para dar a
cheirar aos cães.



-Provavelmente não estiveram lá mais de dez minutos -objectou
Maddox. -Os mestiços são espertos. Não se pode confiar mais neles
que num branco.
-Que achaque eu posso fazer? -perguntou Hammond, desesperado.
Vista-se.
-Penso que eles tenham voltado para a casa do Sime. Dê-lhes tempo
a lá chegar -disse Maddox complacentemente. -Eu vou lá, logo de
manhã. Trago-lhos. Volte para a cama. Nada pode fazer até ser dia.


-Mas eu não posso esperar. Vou casar-me amanhã.
-Pois vá casar-se. Case-se. Eu tenho-os aqui à sua espera quando
voltar. Isto é, se eles estiverem em casa do Sime.


Hammond aceitou o conselho de Maddox e voltou para a cama.
Meg nem acordou. Conrudo, Hammond nã o conseguiu voltar a
adormecer. Deixou-se ficar deitado, censurando-se a si próprio pela
sua falta de cuidado, por ter bebido tanto, por confiar em escravos
dos quais nada sabia, por não os ter posto a ferros. Imaginava a
gargalhada de troça do pai quando lhe contasse o incidente, troça
que seria mais desapiedada que os ralhos. Não receava que o pai o
acusasse, mas o seu riso, feria-o mais. Harrimond começou a pensar
se lhe seria possível desenterrar o panclão e pagar a nota de dívida
sem o velho saber. Ele nunca precisaria de chegar a saber. Era uma
quebra de confiança, mas o filho sentia-se tentado.


Quando apareceram os primeiros raios de luz a oriente, levantou-se,
sacudiu Meg para o acordar, e vestiu-se. Fez o mínimo de barulho
que lhe era possível, dirigiu-se em bicos dos pés à cozinha, para
beber um copo de água e viu a gorda Marta estendida em frente da
lareira a dormir no chão.


Saiu para a manhã fresca e silenciosa, caminhou meia milha,
impacientemente, para cá e para lá, depois dirigiu-se ao estábulo



para ver as éguas que não lhe deram qualquer importância. Viu
fumo a sair da chaminé da cozinha e compreendeu que Marta já
estava a pé e finalmente preparava os pequenos-almoços. Fred
desceu do sotão do celeiro e Maddox apareceu à porta do hotel.
-A que horas vai? -saudou Hammond.
-A casado Sime? Oh, quando estiver pronto para ir. Não há pressas.
Se o Sime morrer, não saberá que eu lá estive e se os rapazes lá
estiverem, esperam lá até eu chegar.


Hammond nada via a preparar excepto confiar o suspensório
esquerdo do homem, mas compreendia que não conseguia apressálo.
Gritou a Fred que queria a parelha atrelada e ainda ouviu parte
do seu resmungo " sempre a atrelá e a desatrelá mas nunca vai".
Sabia que, apesar do protesto do escravo, a ordem seria cumprida.
Maddox chamou-o para o pequeno-almoço e compreendeu que
Meg já estava na cozinha.
Quando saía da casa de jantar, avisou Maddox:
-Quando os apanhar, é melhor prendê-los. Não corra o risco, como
eu fiz.
-Os rapazes? -perguntou Maddox, antes de responder. -Eu
guardo-os quando os apanhar, e se os apanhar. Mas não vou
castigá-los por si. Não quero que diga que eu lhes fiz cicatrizes. Só
os guardo aqui para si.
-0 castigo pode esperar até eu chegar a casa.
-Se não é feito logo, eles esquecem-se do motivo por que estão a
apanhar. É preciso apanhá-los em flagrante. É essa a altura para os
castigar. Mas tem que ser o senhor a fazê-lo, não eu.
-Eu lembro-lhes o que fizeram. Não são como os pretos vulgares;
são mestiços. Quanto lhe devo?
Maddox sugeriu que o pagamento da conta do hotel fosse adiado
até o hóspede regressar, mas Hammond insistiu em pagar
imediatamente.



Capitulo vigésimo quarto


Quando Hammond pegou nas rédeas, apeteceu-lhe satisfazer o
impulso das éguas de voltar para casa, em vez de se dirigir a
Crowfoot. Compartilhou o impulso, mas a resolução estava tornada
e puxou as rédeas, fazendo-as avançar.

Desagradava-lhe deixar para trás a tarefa inacabada de recuperar os
escravos fugitivos. Preferia nunca os ter visto, nunca ter parado em
Briarfield. Receava aquilo que o esperava -o casamento, cuja
perspectiva o teria irritado menos se tivesse podido evitar as
festividades que a ele se ligavam. Crowfoot estaria cheia de
convidados que lhe eram estranhos, entre os quais se sentiria pouco
à vontade. Era próprio do major Woodford tirar o máximo partido
do casamento de sua filha. Teria que suportar ficar de pé, à espera,
para pronunciar os votos em frente de toda aquela gente, o jantar
depois disso, e todos os gracejos habituais, teria que se esforçar por
se comportar como um cavalheiro, ele que não estava bem certo de

o ser. Tudo isto assustava Hammond. Refugiando-se no ensino de
boas maneiras a outrém, avisou o seu criado de que deveria actuar
como devia ser: manter o casaco direito e as calças abotoadas, comer
o que lhe ofereciam e não pedir mais, não meter o dedo no nariz,
não se descuidar, e não contar mentiras embaraçosas.
Os pensamentos de Hammond estavam noutro assunto, na quinta
de Simon Maddox e em Briarfield, e até mesmo em Falconhurst, e
avançavam à frente para Crowfoot, enquanto guiava o carro na
manhã vibrante e quente. Não lhe dava qualquer prazer a
luxuriante paisagem verde, as terras plantadas, as ninhadas de
codornizes que fugiam à sua aproximação, os cantos da cotovia nos
bosques, o falcão que parecia um ponto na abóbada cor de turquesa,
a cascavel que deslizava pela estrada, fazendo recuar os cavalos.


Quando chegou ao ponto em que, a caminho da igreja com Blanche,
tinham encontrado Charles que voltava da cidade, recordou-se da
truculência do rapaz e de como Blanche o tinha enfrentado com a
ameaça de revelar algo aos pais que sabia dele. Fosse qual fosse o
pecado, a ameaça tinha dado um resultado maravilhoso. Por muito
imaturo, impulsivo e instável que Charles fosse, Hammond, tinha
conseguido não desgostar dele e sentia vontade de voltar a vê-lo,
apesar da infantil animosidade de Charles pela irmã, que talvez não
passasse de ciúmes.
Pouco faltava para o meio dia quando a carruagem chegou a
Crowfoot.
-Põe-te direito agora, estamos a chegar. Quero que te portes bem avisou
o branco, quando voltaram para a álea que levava até à casa.
-Eu porta bem, patrão, siô -respondeu o rapazinho com decisão.
Hammond ficou aliviado e um pouco espantado por ver tão pouco
movimento. Possivelmente, pensou, o maior decidiu não fazer um
festival do casamento da filha. Um escravo esfarrapado acorreu
para tomar conta da parelha e, antes de Hammond chegar à porta,
apareceu, vindo de urna porta lateral, o velho criado, para o receber.
-Onde está o teu patrão? Onde está o major Woodford? -perguntou
Hammond.
-Foi à igreja, patrão, siô. Os branco foi todo ao culto -respondeu o
escravo. -Mas eu conhece o siô. É aquele siô branco que cá veio faz
tempo. Eu conhece. Vem, siô, faz favô, siô.
Abriu a porta da frente.
-Eu espero aqui -disse Hammond, sentando-se num extremo do
varandim. -Penso que não irão demorar muito, agora, por causa do
casamento.
-Vão todos jantá à Plantação Sterling, todos menos patrão Dick. Ele
vem esta tarde aqui, siô, pra mergulhá na ribeira os nêgo que inda
nã foi baptizado. Ele vem -disse o negro, arrastando uma grande
cadeira que trouxera de dentro de casa.


-Mas o casamento... -insistiu Hammond.
-Não sabe nada disso, patrão -disse o negro. -0 patrão nunca falou
disso, siô.
Hamniond pensou que tivesse confundido a data marcada. Subiu e
sentou-se na cadeira, durante algum tempo, enquanto Meg
continuava sentado no chão, mas depois Hammond levantou-se e
começou a passear impacientemente, de um lado pra o outro,
olhando para a entrada, de dez em dez passos. Tinha consciência
dos olhares dos negros, nas cabanas, mas não se preocupou com
eles.
0 escravo voltou para perguntar:
-Posso trazê qualquer coisa pra comê, patrão, siô, enquanto tá a
esperá?
Hamniond apenas queria que o esclarecessem.
-Eu espero -disse.
-Quando volta patrão Charles, siô? Foi co siô que ele fugiu, não foi,
siô? -perguntou o negro, sem qualquer dúvida.
-Ele já voltou. 0 Charles já voltou há algumas semanas -afirmou o
branco. -Não voltou? -perguntou, pensando melhor.
-Não, siô, patrão, siô; não, siô. Patrão Charles nunca mais voltou.
Ah!, aí estava a razão da falta de preparativos para o casamento!
Sem dinheiro, não havia noiva! Que sucedera a Charles? Que lhe
teria acontecido? E ao Jasão? Charies tinha fugido com o dinheiro
dos Maxwell, o anel dos Maxwell, e o escravo dos Maxweli. Não era
um ladrão, mas pior ainda, era um ladrão de escravos, e não havia
nada mais baixo que isso.
Hammond, longe de ficar perturbado, sentiu-se até um tanto
satisfeito por se ver livre do seu compromisso. Seria embaraçoso,
contudo, explicar que o casamento não se tinha efectuado. Era um
rapaz ingénuo e, na altura, corou,ao pensar como se explicaria. Não
tinha um desejo ardente de se casar, mas preferia ir ao altar do que
ser corrido, posto de parte. Teria que casar-se para gerar um
herdeiro, mas já não duvidava que encontrasse uma mulher


adequada. Agora já lhe era fácil pedi-Ias em casamento, e o pior que
lhe podia acontecer era mandarem-no passear. Confiava em que lhe
seria fácil arranjar uma mulher, sem ter que pagar dois mil e
quinhentos dólares.

Que parvo tinha sido em confiar tanto dinheiro ao filho do major
Woodford! E que parvo estava a ser em esperar ali. Se partisse
agora, seria ele que a punha de parte, em vez de ser corrido ou
pensar que o fora. Tinha decidido pedir de novo os cavalos, quando
surgiu um cavaleiro ao fundo da álea.

Dick desmontou e entregou as rédeas ao mesmo negro que se
ocupara da parelha de Hammond. Todo vestido de negro, tinha
uma bela figura; se não fosse o ar louco, fanático, irresponsável e
embriagado dos seus olhos azuis-pálidos, poderia ter sido mesmo
belo. Mas não era o álcool que o embriagava. Hammond
encaminhou-se para ele.
-0 senhor! 0 senhor é o tal Maxwell! -Foi a saudação de Dick. -É
aquele que se comprometeu a casar com a minha irmã! Que faz
aqui? Se eu não fosse um pregador e o senhor um aleijado,
arrancava-lhe os dois olhos; cortava-lhe as tripas e obrigava-o a
comê-las, na ponta de uma faca! Que faz em Crowfoot?
-Que faço eu em Crowfoot? -disse Hammond, dominando-se. -Vim
casar com miss Blanche, tal como disse. Foi este o dia que ela
marcou.

-Depois de influenciar o irmão dela a fugir consigo? E de não
mandar o dinheiro como tinha dito que mandava? julga que ela se
casa com um filho da puta como você?
-Eu mandei-lhe esse maldito dinheiro. Mandei-lho pelo ladrão de
negros do seu irmão!
Hammond começava a irritar-se.
-Não pragueje! Não pragueje! Sou um pregador, bem vê! Não
pragueje! -disse Dick, refugiando-se na sua vocação.


-Então também não pragueje --avisou Hammond. -Aquele
negro disse-me agora que Charles nunca voltou, nunca trouxe o
dinheiro ao major Woodford.
-E confiou-lhe o dinheiro? Confiou no Charles? -Dick estava
incrédulo. -Não se pode confiar cinquenta cêntimos àquele
malandro. Não credito que o tenha mandado.
-Há cinco ou seis semanas, que ele partiu. Levou um dos meus
negros com ele, um negro do meu pai, e dois mil e quinhentos
dólares em ouro.
-Ouro! Um negro! -Dick sentou-se no degrau do varandim e
começou a rir. -Não se pode confiar a Charlie um dólar quanto
mais um negro. 0 Charlie fugiu, talvez esteja no Texas, neste
momento. Onde quer que o Charlie esteja, o dinheiro já está gasto e

o negro vendido.
0 seu riso tomou a intensidade histérica que havia nos olhos de
Dick. Mas era contagioso e Hammond começou a rir-se com ele,
embora sem tais espasmos de hilariedade. Era ele a vítima daquela
díspensiosa piada e divertir-se com ela era a melhor maneira de
suavizar o choque.
-Mas para que é que o levou consigo? -perguntou Dick, enxugando
os olhos com a mão. -Teve o que merecia, por o entusiasmar a ir
consigo.
-Entusiasmar? 0 Charles apanhou-me no caminho e disse-me que o
pai tinha dado licença para ir; jurou-me que tinha -e Hammond
contou-lhe a história de como fora apanhado no caminho e
acompanhado pelo jovem Woodford.
-E acreditou nele? Acreditou em Charlie, naquilo que ele dizia, no
que ele lhe jurava? Devia ter voltado as frases ao contrário. 0
Charies nunca disse a verdade, na sua vida.
-Em Falconhurst portou-se muito bem, era de confiança.
-Estava a preparar-se. A preparar-se para fazer mal. Mas eu
acredito em si. Acho que está a falar verdade. Quanto a si e a
Blanche, temos que esperar que o pai regresse. -Dick levantou-se.

Vamos comer. 0 jantar está pronto. Talvez não haja muito, com a
família fora. Mas venha.

Enquanto atravessavam a sala, em direcção à casa de jantar, Dick
avaliou alto o seu convidado. _ 0 senhor é bom e parece-me honesto.
Não me importo que seja aleijado. Tem dinheiro e todos aqueles
negros. Vou gostar de si, seja o que for que os outros digam.
-A minha mãe era uma Hammond -acrescentou o convidado, a seu
favor.
-Também a do Charlie, e a minha -contrapôs Dick. Depois do
jantar, Dick pediu-lhe que o desculpasse.
-0 meu pai tem andado a ensinar os negros -explicou. -Ainda
nunca baptizei, até agora, mas hoje tem de ser, há duas ou três
fêmeas e um macho que ainda não foram salvos. 0 pai tem andado a
adiar. Não quer molhar as calças. Acho melhor passar pelo sono, ou
qualquer coisa do gênero. Eu despacho-me. Não leva muito tempo.
0 brilho fanático, a marca do seu evangelismo, reaparecera nos
olhos de Dick, enquanto se afastava.

Dormir era a última coisa que Hammond queria. Andou de um lado
para o outro dentro da casa, passeou na varanda, passeou pela álea.
Não sabia quanto tempo duraria a incerteza. Estava habituado a
fazer planos e a levá-los por diante. Preferia ter ido com Dick ao
culto religioso dos negros e esteve tentado a segui-lo, mas pensou
melhor e decidiu não o fazer. Era preferível esperar. Podia suportar
ser recusado pela noiva, mas tinha que resolver aquele assunto de
uma vez por todas.

Pensou quanto Blanche lhe tinha já custado, dois mil e quinhentos
dólares, o anel e as duas viagens a Crowfoot. Claro, a primeira
viagem tinha incluído a visita a The Coign, e a compra de Medes e
de Ellen, que não lamentava. Se ao menos lá tivesse ido primeiro,
antes de pôr os pés em Crowfoot! Mas, por muito cara que Ellen lhe


fosse, não era sua mulher. Isso estava fora de causa. Não sentia
obrigações nem remorsos perante ela; nada fizera de mal, No fundo,
precisava de uma mulher, para lhe dar um herdeiro; se não fosse
Blanche, seria outra.

Incluiu mesmo nas despesas, por causa de Blanche, os mestiços de
Maddox que comprara e perdera. A culpa era dela, raciocinou, pois,
se não tivesse ido a Crowfoot, nunca os teria Visto nem comprado.
Pensar nos mestiços, por muito doloroso que fosse, afastava-lhe do
espírito o fiasco mais grave do seu casamento. Pensou se Eph
Maddox teria conseguido descobrir os rapazes são e salvos na
quinta de Sime e se eles estariam à sua espera no hotel de Briarfield.
A menos que eles tivessem voltado para casa de Sime,
compreendeu que talvez nunca mais chegasse a encontrá-los; eram
brancos, ou podiam passar por brancos, se andassem decentemente
vestidos. Podiam muito bem dirigir-se para o Norte e conseguir a
liberdade, se soubessem o que era a liberdade. Decidiu contar toda a
história ao pai e suportar a sua troça. Talvez a pena que o velho
sentiria pelo ínsucesso do seu casamento aliviasse o seu sarcasmo
quanto aos escravos, Mas não troçaria também da história do
sacairiento? 0 riso era o bálsamo do pai contra o azar, mas
Hammond sabia que ele não sentiria amargura. Mostrar-se
divertido, era a sua maneira de demonstrar simpatia.
-Molhei-os bem, molhei-os bem -gritou Dick, triunfante,
regressando do baptismos. -Foi fácil. Sou capaz de o fazer. Só
aquela fêmea magríta é que me escorregou das mãos e por pouco
não se afogava.
-Está todo encharcado. Olhe para as suas calças. É melhor vestir
roupa seca -sugeriu Hammond, interrompendo o seu solilóquio.
-Peguei neles e mergulhei-os -disse Dick. -Elas secam. Do que eu
preciso é de um uísque. Só como remédio! Sou abstêmio,
evidentemente. Mas é levar as coisas longe de mais, nem sequer o


usar como remédio, impede-nos de apanhar qualquer coisa. Não é
abstémio, pois não? Quer uma bebida?
Dirigiu-se para a estufa, onde o major guardava o seu uísque.
Hammond estava efectivamente a precisar de uma bebida e seguiu


o seu anfitrião com um sentimento que se aproximava da gratidão.
A primeira bebida criou-lhe sede para a outra, e a segunda para a
terceira. A tarde já estava a chegar ao fim, mas Hammond sentia-se
indiferente quanto à chegada tardia dos WoodIord. Encontrara o
esquecimento.
0 som de cascos de cavalos na álca quebrou o encanto em que a
bebida os mergulhara:
-A quem pertences tu? E ouviu Meg responder delicadamente:
-Eu é o nêgo do patrão Ham Maxweli, patrão, por favô, siô.
-Entra e vai para o teu quarto e não voltes sem eu te mandar. Ouviu
o maior baixar a voz, que mesmo assim continuava bastante alta, e
murmurar para dentro da corneta acústica da mulher:
-0 Hammond Maxwell. Como Beatriz não o compreendesse, ele
repetiu duas vezes, lenta e silabicamente, como para lhe permitir ler
pelos lábios:
-Hammond! Hammond Maxwell! A mulher respondeu com um
influxo sobressaltado:
-Ob, Dick e Hammond emergiram da estufa a tempo de ver Beatriz,
toda de castanho, serenamente, sem um olhar para a direita ou para
a esquerda, entrar em casa pela porta da frente. Blanche, com o
mesmo vestido de lã fina com que Hammond a vira pela primeira
vez, seguiu a mãe, mas assumiu um ar de dignidade, de cabeça
erguida, e um andar trágico que declarava a sua resolução de não
olhar para trás.
0 major manteve-se à espera que o rapaz se aproximasse. 0 carro
rodou para o estábulo.
-Pai, este é o senhor Maxwell -disse Dick, apresentando o seu
convidado como se o pai o não conhecesse.



-julgas que não conheço essa doninha? -perguntou o maior,
esticando-se para ficar mais alto. -Devia tê-lo conhecido melhor.
Atirar a minha pobre filha para a desgraça! Que quer daqui agora?
-Ele mandou! Ele mandou o dinheiro! -apressou-seDick a dizer,
para acalmar o pai.
-Então porque é que ele não chegou?
0 major não acreditava na afirmação do filho.
-Mandou-o pelo Charles! Ah! ah! ah! Mandou-o pelo Charles! Dick
batia com os pés, acompanhando o ritmo das gargalhadas, perante a
inconcebível estupidez de se confiar qualquer coisa ao seu irmão.
-Foi para isso que ele convenceu o Charles a ir com ele, para poder
dizer que mandou o dinheiro e ele não o trouxe. É muito esperto.
Não tem o dinheiro nem nunca o teve. Nunca tencionou mandá-lo.
Hammond ainda não falara. Então disse, simplesmente e sem
mostrar rancor:
-Se não acredita em mim, não acredita que mandei o dinheiro, não
acredita que mandei o anel à miss Blanche, não acredita que o
Charles me roubou um negro quando partiu, não aceita a minha
palavra de cavalheiro, só me resta pedir-lhe que mande trazer os
meus cavalos. Vim para me casar com a miss Blanche, como ela
tinha dito; hoje é dia oito de Maio. Podia ter-me poupado a viagem,
era o menos que podia fazer, senhor. Quer ter a bondade de mandar
buscar os meus cavalos?
Sentia-se orgulhoso de si próprio, pelo discurso que fizera.
-Eu nunca disse isso; nunca disse que não acreditava na sua
palavra. Espere um momento -disse o major, como que
embainhando a espada. Talvez
possamos entender-nos. Talvez as coisas se componham.
Digo-lhe uma coisa: se mandar aquele dinheiro, isto é, se prometer
mandá-lo outra vez, talvez possa casar com a minha filha. Talvez o
tenha mandado; não digo que não tenha. Mas tem que mostrar boa
fé e mandá-lo outra vez.



-Queria os meus cavalos, se faz favor, senhor. Não vou comprar a
sua filha pela segunda vez. Se o seu filho roubou o meu dinheiro e o
meu negro, agüentamos as nossas perdas, mas não peço ao meu pai
nem mais um dólar para si, nem sequer cinquenta cêntimos. Nem
miss Blanche tem culpa, nem eu. Caso-me com ela, mas não a
compro.


0 major Woodford hesitou. Os pretendentes à mão da sua filha eram
bastante raros, e não havia mais nenhum à mão. Aquele homem,
entrando na família, melhoraria o seu crédito, e mais tarde não
podia deixar de o ajudar a sair das suas complicações financeiras.
Tinha o direito de estragar as possibilidades de Blanche e talvez as
suas próprias, só por orgulho?


Decidiu que não tinha. Além disso pensou em Charles. Maxwell não
iria mandar prender o seu cunhado por roubar um negro, o mais
vergonhoso dos crimes. Se Charies fosse apanhado, o roubo seria
ignorado ou considerado como um simples engano. 0 major não
abandonaria o seu filho.


Todas estas coisas passaram rapidamente pelo seu espírito, não
como pensamentos sucessivos, mas como um único bloco.
-Estou disposto afazer o sacrifício, se a mãe de Blanche concordar.
Ela é uma Hammond, bem sabe. É orgulhosa. Mas, por outro lado,
não quero que a minha filha fique doente por amor, como tem
andado.
-Vamos, vamos -apressou Dick. -Está tudo bem. Não se rale. A
mamã faz o que o meu pai manda. Sempre fez.
Empurrou Hammond para a sala Império. Segurando a porta,
perguntou:
-Quer que eu mande entrar o seu negro, ou mando-o para as
cabanas?



-Está habituado a casa -respondeu Hammond, sentando-se
cuidadosamente no sofá de damasco.
Meg entrou, e, por ordem do patrão, sentou-se no chão. Escolheu
um local perto dos pés de Hammond, que se inclinou e endireitou
uma das meias do rapaz.
-Essa liga é grande demais, -observou, ajustando a meia. -Tens
deter cuidado.

0 pretendente ouvia o pai da rapariga discutir o casamento com a
mãe surda, na sala do lado. Dick estava junto deles, mas pouco
tinha a dizer; estava de acordo com o casamento, mas achava
conveniente não mostrar demasiado entusiasmo. 0 maior bem
tentava baixar a voz, mas os seus murmúrios, para serem
suficientemente altos para penetrar na corneta acústica de Beatriz,
tornavam-se audíveis para Hammond. Este esforçava-se por não
ouvir, mas, se não apanhava uma frase da primeira vez que era
pronunciada, não podia evitar ouvi-Ia quando era dita pela segunda
vez, como sucedia na maior parte das vezes. 0 maior já tinha
tomado a sua resolução, e a consulta à mulher era simples
formalidade para se desculpar por não ter imposto e extraído
condições mais severas, esforçando-se, na sua capitulação, por
salvar a honra.

Garantiu a Beatríz que Hammond negara ter levado Charies com
ele e que Charles tinha afirmado ter licença do pai para o seguir.
Contou-lhe da partida de Charles de Falconhurst com o dinheiro
dos Maxwell e o anel de Blanche.
-Isso é mentira -disse Beatriz com indignação. -Ele não está a dizer
a verdade. 0 Charles trazia o dinheiro. 0 meu filho trazia-o. Ele
nunca o mandou. Eu não criei o Charles para ser um ladrão.
-Mas é -contrapôs o maior -, é um ladrão de negros. Levou um dos
machos de Warren.


Teve que repetir esta declaração três vezes antes de conseguir que a
mulher o ouvisse; a sua dificuldade em perceber era mais relutância
em acreditar na história do que incapacidade de compreender as
palavras. ,2uando a acusação penetrou na sua consciência, Beatriz
ficou ofegante.
Depois deu um grito agudo e deixou-se cair para trás, na cadeira.
-Ele está morto! 0 Charles está morto -murmurou, com a sua voz
vazia, -Aquele negro matou-o e roubou-lhe o dinheiro. 0 meu filho!
Meu pobre filho! Está morto!
-Não está nada morto! Tu sabes que ele não está morto! -0 major
colocou a mão sobre o braço da mulher, para dar maior ênfase à
afirmação e para a consolar. -Nada disso. 0 Charles anda por aí a
gastar o meu dinheiro. Hás-de vê-lo aparecer por aí a cavalo, um dia
destes.

Assumiu um tom tão alegre quanto conseguia e reforçou-o com
urna careta que se assemelhava a um sorriso, embora a sua
segurança não fosse muito confiante. Na realidade, se não fosse pela
mulher, sentir-se-ia indiferente com a sorte do filho, embora não
com o destino dos dois mil e quinhentos dólares.
-Ele está morto. Digo-te que está morto. Eu sei; eu sinto-o protestou
Beatriz, fazendo rolar a cabeça para trás e para diante. -0
meu filho está morto.
E começou a chorar. Dick afastou o pai para o lado, a fim de poder
falar pela corneta.
-E não foi salvo! -geirou. -0 Charles nunca se voltou para Jesus! Eu
sabia que isso sucederia. E se está morto, está a arder no inferno,
neste momento, a arder! 0 demónio pôs Charies na sua grelha, e está
a espetá-lo com a forquilha e há chamas em volta dele. Nunca se
salvou.
-Não! Não! Não! -gritou a mãe. -Eu rezo por ele; eu tenho rezado
por ele todos os dias e todas as noites. Talvez ele esteja salvo. Talvez


quando o negro o atacou ele tenha visto Jesus e se tenha agarrado a
Ele. Jesus é bondoso; Ele salva o meu rapaz se puder.
Caiu de joelhos e inclinou a cabeça, em silenciosa oração.
0 major pegou na corneta que caíra, e colocou-a junto ao ouvido de
Beatriz:
-E o casamento? Que queres fazer quanto a isso? -vociferou.
-Faz o que quiseres! Faz o que, de qualquer modo, já tinhas
resolvido fazer! ~ A mãe desolada olhou-o com irritação por
interromper a sua oração. -Afastaste o Charles; agora mandas a
Blanche embora. Vende-Ia como se fosse uma negra. Vá, vende-a, se
é isso o que tu queres.
-Eu não estou a vendê-la. Ele mandou aquele dinheiro e o Charies
roubou-o. já não manda mais.
Woodford segurava a corneta junto ao ouvido da mulher, mas,
embora falasse alto, não falou directamente para o aparelho. Não
sabia se Beatriz o ouvira e pouco se importava.
Ela recusava-se a afastar-se dos seus esforços para salvar o filho
assassinado do fogo do inferno entregava ao pai a responsabilidade
de dispor da filha. 0 marido colocou a corneta sobre a cadeira e
olhou para Dick.
Dick acenou afirmativamente.
-Trate disso -disse ele, em voz baixa para não interromper
novamente a oração. -Acho que é o melhor. Ele é rico. Além disso,
não há mais ninguém que a queira. Não tarda que ela fique uma
solteirona, e depois?
0 major Woodford preparou-se, esticou o pescoço, ajeitou o casaco,
e assumiu o seu ar mais pomposo. Dirigiu-se então à sala do lado,
onde Hammond esperava.
-A mãe de Blanche e eu estivemos a falar do assunto -anunciou. Discutimos
o caso e decidimos. Decidimos deixar que o amor siga o
seu curso. Não nos podemos opor a ele. E se quer a minha filha e a
Blanche o quiser, assim será.



Hammond pôs-se de pé. Tinha ouvido toda a conversa.
-Eu sabia que o senhor e a prima Beatriz não haviam de obrigar-me
a fazer toda esta viajem para nada -disse ele, apertando a mão que

o major lhe estendia.
-É melhor ires buscar o pregador -disse o major, voltando-se para
Dick. -Vai ter com o Jories e trá-lo cá o mais depressa que puderes.
-Não há pressas -sugeriu Ham. -Podemos esperar até amanhã.
-Adiar um casamento depois de estar marcado? -disse o maior,
horrorizado. -Dá azar; não quero essa culpa. Tem de ser hoje ou
nunca mais. Sente-se um pouco e deixe-se estar tranquilo, que eu
vou lá acima buscá-la.
Não estava ameaçada a perda da paz de Hammond. 0 major subiu
as escadas e Dick desapareceu, atravessando a sala contígua e a
cozinha. Pouco depois pela janela viu passar o cavalo de Dick, a
trote, que se transformou em galope logo que chegou à estrada.
Hammond pôs-se à espera. Nada mais havia a fazer. Começou a
sentir-se pouco à vontade, à medida que o tempo passava e pensou
se a rapariga se mostraria recalcitrante. A altivez com que ela
deixara a carruagem e entrara em casa podia ser real. Meg revirou
os olhos, solenemente, para o patrão. Pressentia certa gravidade na
situação, que não compreendia. Era inimaginável para ele que
alguém, fosse qual fosse a sua cor, tentasse atravessar-se à vontade
do seu patrão, mas não ousava falar nem fazer perguntas.
Finalmente, incapaz de aguentar por mais tempo a sua incerteza,
levantou-se e, com um ar tímido, segredou ao ouvido de
Hammond.
-Sim, se precisas. Mete-te por trás daquelas chicórias, mas não sujes
o fato, e depois volta -disse Hammond, concedendo-lhe permissão.
A palidez do rosto de Blanche fora sublinhada por uma camada de
pó de arroz, observou Hammond, enquanto ela descia as escadas,
seguida pelo pai. Hammond concluiu que ela tentara disfarçar os
efeitos das lágrimas, mas não sabia se ela chorara por lhe terem
proibido que casasse com ele ou por lhe ordenarem que o fizesse

agora. Continuava a usar o vestido de lã fina, que, aos olhos do
noivo, sublinhava a beleza que ela possuía. Não poderia ter
escolhido um fato que mais o encantasse. Hammond não sabia que
era o melhor do seu limitado guarda-roupa, e pensava que era a
mulher e não o vestido que o fazia achá-la bonita.

Ela estava trémula e austera quando ele se levantou para ir ao seu
encontro. Parou no fundo das escadas e ele avançou e tomou-a nos
braços. Ela nem resistiu nem retribuiu o beijo que ele lhe deu, mas
olhou para ele com um sorriso resignado e triste.
A conversação era restrita.
-Julgava que não viesses -forçou-se ela a dizer.
-Sabias que eu vinha, eu disse-te que vinha quando tu marcaste.
-Disseste que me mandavas um anel -acusou ela.
-E mandeí-o. Entreguei-o ao Charles para to trazer.
-Ao Charles! -disse ela, num tom de desprezo, para fazer ver a
Hammond a estupidez de ter confiado no seu irmão.
-Talvez ele esteja morto. Talvez o matassem no caminho. -
Hammond tentava justificar a sua confiança no rapaz. -Como a tua
mãe disse.
-Devia estar, mas não está -disse Woodford. Blanche sentou-se no
sofá.
-Não tenho vestido -desculpou-se ela, lançando um olhar ferido
para o pai. -0 papá pensava que tu não vinhas e não mo comprou.
-Eu estava à espera que o dinheiro chegasse -repisou o velho,
-Eu não vou casar-me com um vestido -declarou Hammond, sem
se aperceber de quanto o vestido de lã fina o encantara. -Podemos
comprar vestidos, todos os que tu desejares, todos os que precisares
-disse, modificando a frase.
A visão dos vestidos ilimitados entusiasmou a rapariga. Sorriu, com
um ar distante, e imaginou-se coberta de sedas e rendas e jóias, num
salão nobre, rodeada de admiradores que lhe beijavam a mão, que já
não estaria vermelha e áspera, com as unhas partidas e roídas.


Conservar-se-ia sempre fiel ao seu esposo e amante, desprezando os
corações que ia desfazendo. Todos os vestidos que desejasse!
0 som da sineta para a ceia fê-la regressar a Crowfoot e à realidade.
Meg que regressara rapidamente, conforme lhe tinha sido
ordenado, foi enviado à cozinha, para comer. 0 major foi procurar
Beatriz que desaparecera silenciosamente, após a sua oração. Voltou
desanimado, pedindo desculpa pela mulher. Desolada pelo
assassinato de Charles, ela retirara-se com o seu desgosto e não
desejava cear, segundo ele dizia, embora todos compreendessem
que ela estava tão ressentida pelo consentimento do ma-rido ao
casamento de Blanche quanto triste pela suposta morte do seu filho.
Foram cear os três. Hammond e Blanche sentaram-se um de cada
lado do anfitrião; a cadeira vazia em frente dele parecia urna
acusação. As velas, não totalmente necessárias, bruxeleavam no
anoitecer. A conversa tinha um ar de tentativa, de tensão, e
evitavam-se todos os assuntos que estivessem mais próximos
daquilo que eles estavam a pensar. Com pausas entre os assuntos,
que Blanche tentava preencher com olhares envergonhados mas
namoradeiros para o rapaz sentado na sua frente, a conversa passou
da saúde do pai de Hammond para o preço do algodão, as
hipóteses das colheitas, o tempo passado, presente e futuro, os
negros de Falconhurst, e a subida de preços dos negros.
-Comprei dois ontem, dois mestiços muito espertos. Mas fugiram e
não sei se conseguirão apanhá-los.
E Hammond contou a história da fuga dos dois rapazes.
-Eu não vou com eles no carro -declarou Blanche com indignação. julgava
que vinhas a Briarfield buscar-lhe, e vens comprar negros.
Pois leva os negros. Eu não vou.
-Não vai conseguir reavê-los -disse o pai, desdenhoso. -Sime
Maddox? Os negros foram para casa. 0 Sime vai escondê-los e dizer
que nunca os viu. Vende-os a outro e nunca chegará a saber.
-Eu não me importo. Se ele leva negros, eu não vou -repetiu
Blanche.


0 pai deu-lhe umas palmadinhas na mão.
-Então, então -disse, para acalmar a sua ira. -Se ele os descobrir, o
que não vai suceder, não te fará mal nenhum ir com eles. Ham
mandou-os lavar, não mandou? E não vai deixar-te ficar só com
eles, nem por um minuto.
-Bem -disse ela, à experiência.
-Ele é o teu marido, vai sê-lo. Tens que fazer tudo o que ele disser,
tudo -avisou o pai.
-Ela vai fazê-lo -disse Hammond, com confiança. Não tendo
absolutamente mais nada para fazer, foram-se demorando à mesa,
mesmo depois de a fome estar satisfeita. já estava escuro e a Lua
não aparecera. A luz cor de açafrão das velas projectava sombras
contra a parede.
0 som dos cascos de um único cavalo na álca interrompeu a
discussão sem saída, e, na altura em que Dick chamava um rapaz e
lhe entregava o cavalo, o major já descia as escadas.
Onde está o Jones? -inquiriu o major enquanto Dick entrava. Sime
Maddox está a morrer -explicou o mensageiro. Deixa-o morrer, mas
onde está Jones?
0 irmão Ben foi a casa do senhor Maddox para o preparar, para
enfrentar o Criador -disse Dick.
-Soube alguma coisa dos meus mestiços? -interrompeu Hammond.
Foram para casa?
-Eu não fui lá. Sabia que ele não abandonava um moribundo para
vir.
-Raios me... -o maior interrompeu-se pela presença da filha. Porque
calculaste que ele não vinha? Não vai receber nem um
cêntimo do Sime, e o Hammond dar-lhe-ia dois, três, talvez cinco
dólares. És um palerma, Dick, és um palerma chapado. E agora que
vamos fazer?
Voltou-se e subiu a escada para relatar a Beatriz o insucesso de Díck
e culpá-la pela estupidez do filho.


-Não tenho culpa, não podia trazê-lo -disse Dick, tentando
absolver-se e deixando-se cair numa cadeira.
-Com certeza -reconheceu Hammond. Blanche desatou a chorar.
-Claro que pode, vale tanto como qualquer outro -ressoou a voz do
major, lá de cima, cheia de nova esperança. -Tinha-me esquecido. E
se tu viesses para baixo, e ele o fizesse? E podias dar-lhe a tua
benção. Bem, é isso que vamos fazer.
Blanche enxugou as lágrimas e ergueu os olhos para o pai que
descia ostensivamente as escadas. Hammond resignava-se a tudo o
que pudesse vir a suceder e Dick receava a acusação do pai quanto à
sua inutilidade.
-Dick -anunciou o maior, dando uma palmada no ombro do filho. -
Dick. 0 Dick é um pregador. Ele pode fazê-lo, tão bem como
qualquer outro. Ele é santificado; é um pregador? Porque não
pensámos nisso? Porque mandámos buscar o Jones?
-Pai! Não! -objectou o filho, perante a solução do pai. -Eu não
posso! Estou só a começar. Não posso casar brancos, nunca o fiz.
-Podes, podes -protestou o pai. -Não é diferente casar pretos ou
brancos, só não se usa a glesta. Podes fazê-l& 0 Hammond dá-te
dinheiro, tal como daria ao Jones.
-Acha que é legal? -perguntou Hammond, com cepticismo.
-Tão legal como o Jones -opinou o major. -0 Dick é um pregador,
não é? Não interessa que não tenha pregado ainda para brancos. Vai
fazê-lo. Ele diz as palavras e eu escrevo-as na Bíblia, e ambos se
casam, e depressa.
-Eu não sei as palavras -protestou Dick.
-Não interessa o que disseres. É só gente da casa? Além disso, a tua
mãe quer que sejas tu. Se tu os casares, a tua mãe vem cá abaixo ver.
Acedeu a fazê-lo, se for o Dick a casá-los. Não vais estragar tudo. Só
tens que perguntar-lhes e dizer-lhes. É fácil.
1 A figura castanha de Beatriz descia as escadas. 0 sangue
desaparecera do seu rosto solene, deixando-a ainda mais pálida do


que antes. Aproximou-se do marido sem falar, estendendo para ele

o aparelho auditivo.
-Levanta-te, Ham; levanta-te, Blanche. Coloquem-se em frente da
janela -disse o major, preparando a cerimónia. -Tu, mãe, ficas aqui
ao lado de Blanche, para poderes ouvir melhor -disse ele, para
dentro da corneta.
Meg, ignorado por todos, ergueu-se também. Não estava certo de
que esperavam dele e quase desejava que o mandassem sentar de
novo no chão.
-Não sei. Acho melhor ajoelharmo-nos, primeiro -improvisou Dick.
Quando todos estavam firmemente ajoelhados, Dick ofereceu a
Deus a sua oração, desapaixonadamente. Sentia-se tão pouco
seguro, que duvidava que as suas palavras chegassem ao Trono.
-Bom Deus-rezou ele-, estamos aqui todos juntos para unir,
perante Ti, estes dois brancos, nos laços do matrimónio, no santo
matrimónio -repetia-se, inseguro do que devia dizer. -Pedimos-Te
que abençoes a sua união com uma longa vida e alegria, e que se
confortem um ao outro na velhice, Pedimos-Te que lhes concedas a
Tua benção e que eles criem filhos que cresçam para Te louvar.
Rezamos para que eles tenham filhos e sejam rapazes. Oh, Deus,
porque o Hammond deseja ter um rapaz para o ajudar a dirigir a
plantação do seu pai e para a receber das suas mãos quando morrer.
Oh, Deus! A minha irmã Blanche é teimosa. Oh, Deus, Tu sabes
como são as pessoas teimosas. Oh, Deus, tira-lhe esse defeito do seu
coração, meu Deus; livra-a da camada de teimosia que ela tem
dentro do coração. Faz com que ela o entregue ao seu esposo, meu
Deus, para que faça o que ele quer e obedeça às suas ordens. Oh,
Meu Deus, como é seu dever. Abençoa este serviço religioso, oh,
Deus, e torna-o legal; torna-o legal e faz com que constitua um
compromisso para ambos. E abençoa o Teu servo e o seu ministério
e as suas pregações e livra-medas tentações da carne, para que eu
possa servir-Te. E abençoa o meu pai e a minha mãe aqui presentes.
Faz chover sobre eles todas as bençãos, assim corno sobre o Charles,

se ele estiver vivo. Se estiver morto, salva-o do fogo do inferno e
aceita-o na Tua divina Graça. E abençoa este negrinho do
Hammond e todos os negros dele, e todos os negros do meu pai.
Oh, Deus, para que sejam libertados da servidão quando morrerem.
Penso que é tudo, por agora, Oh, Deus. Não me recordo de mais
nada. Faz aquilo que Te peço. Oh, Deus, em nome de Jesus. Amen.
-Amen -disse Beatriz, acenando com a cabeça aprovativamente,
enquanto se levantava. -Eu sabia que tu eras capaz. Só que te
esqueceste do primo Warren. Fiquei satisfeita por abençoares o teu
irmão, onde quer que ele esteja.
0 major procurou o olhar da mulher e levou um dedo aos lábios,
para a fazer calar.
-Bem, estão prontos? -perguntou Dick. -Hammond, aceitas esta
senhora, de nome Blanche, para tua esposa legal, para o melhor e
para o pior, na doença e na saúde, no bem e no mal, para a amar e a
proteger até à morte ou a distância os separar?
-Sim, senhor -disse Hammond, assentindo com a cabeça.
-E tu, por teu lado, Blanche, aceitas o Hammond, aqui presente,
para teu esposo legal, para o melhor e para o pior, na saúde e na
doença, no bem ou no mal?, para o amar e lhe obedeceres sem
protestar, até à morte ou a distância os separar?
-Aceito-o -prometeu Blanche, firmemente.
-Então é tudo -afirmou Dick. -Vou declarar-vos marido e mulher,
e que Deus tenha piedade das vossas almas, amen!
Dick apertou o braço do noivo e, cuidadosamente, relutantemente,
beijou a noiva. A mãe chorou enquanto abraçava o embaraçado
casal e o pai deu-lhes a sua benção, radiante.
-Não vai beijá-la? -perguntou Dick a Hammond.
-Ele está incomodado e está toda a gente a olhar. Espera até ficarem
sós -disse o major, desculpando a omissão. Agarrou um braço de
Hammond com uma mão e um braço de Dick com a outra, levando-
os para fora, em direcção à estufa.



Dick -protestou:
-Não está certo. Eu sou um pregador. Sou abstêmio.
-Esta tarde também eras abstêmio, não eras? -perguntou o major. Um
copo de uísque para festejar o casamento da tua irmã não te vai
mandar para o inferno. Além disso -acrescentou, dando uma
cotovelada nas costelas do genro -, o Hammond vai precisar disto.
Hammond precisava mesmo.
-É melhor deixá-las juntas um bocado. A mãe vai explicar à tua
mulher o que vai ser o casamento, que filhos da mãe os homens são.
Sem ser subtil, o homem também não foi directo, apesar de lascivo,
nas suas alusões à consumação do casamento. Contudo, a ocasião
proporcionava liberdade à sua gulodice, e o uísque soltou-lhe a
língua. Vítima dos melindres da mulher, se não mesmo da sua
frigidez, o major Woodford, entre homens, estava pronto a afirmar
os direitos maritais do homem, que já não procurava fazer valer.
Dick, com as suas inibíções religiosas, não foi menos ofensivo que o
seu pai. A libidinosidade da sua imaginação estava espartilhada por
uma severa moralidade que a sua vocação lhe impunha.
-Nenhum branco toca numa mulher branca a menos que queira um
filho -declarou ele.
-E que vai ele fazer? Tu e as tuas pregações! -escarneceu o pai. Julgas
que eu te queria a ti, ou ao Charles, ou uma rapariga? Falas
como a tua mãe.
-Não está certo, obrigar uma senhora a submeter-se ao nosso
desejo. Não era isto que São Paulo queria. Para isso é que servem as
negras. Pode-se ter uma fêmea, não é?
-Há homens que não têm fêmea, ou ela é demasiado negra, ou
qualquer outra coisa. Que dizes a isso?
-A maior parte dos cavalheiros têm-nas, uma ou duas pelo menos.
Hammond declarou-se suavemente do lado da moralidade, que não
podia ser concedida aos que não possuíam escravos.


-Além disso, há alei. Alei dá direitos ao homem. A senhora nada
pode fazer. -0 major ria ao empunhar o seu argumento. -Estão
casados, não estão?
-Para crescerem e se multiplicarem, estão. Sim, senhor -admitiu
Dick.
-Mas não para se divertirem. Isso é pecado!
-0 meu único pecado é o uísque-disse o major, despejando o quarto
copo, -Sirva-se. Acho melhor entrarmos, antes que a minha mulher
diga à tua que não te deixe entrar na cama.

Os homens tinham-se demorado tanto tempo na estufa, que as
mulheres tinham subido. Meg adormecera no chão e Hammond
teve que o abanar para acordá-lo. o major escoltou o seu novo genro
até à porta do quarto de Blanche e foi para o quarto ao lado, onde se
ouvia Beatriz ainda a movimentar-se incansavelmente.

Blanche estava recostada na sua enorme cama, pudicamente
envolvida numa pesada camisa de noite abotoada até ao pescoço.
Harrimond imaginou, sem ver, a brancura, o cor-de-rosa-mármore
do corpo louro da sua mulher, e a ideia do contacto com ele enojou-

o. Ele próprio era ligeiramente mais arruivado, mas estava tão
habituado à vista de peles mais escuras que o simples facto de olhar
para a parte glabra do seu próprio ventre o fazia sentir-se enojado,
como se estivesse leproso ou sujo. Casara-se com Blanche pela sua
pureza racial, de que o seu cabelo louro era garantia, mas sentia-se
grato pela camisa de noite abotoada que poupava aos seus olhos a
necessidade de ver toda a extensão de pele nacarada, e grato pelos
seus escrúpulos de branca que deixavam uma tão grande parte da
pele feminina à imaginação do homem.
Era evidente que a jovem tinha estado a chorar, o que o marido
fingiu não ver. Meg, meio adormecido, descalçou as botas do patrão
e tirou-lhe as meias, ajudando-o a despir as roupas exteriores. Não


conseguiu compreender por que motivo o branco conservava as
roupas interiores vestidas, mas não fez perguntas.
-Não há coberta para ti. Vais dormir vestido; mas vê se dormes
direito e não amarrotes a roupa -avisou Hammond, empurrando-o
para a porta. -E levas com o chicote se te apanho a espreitar pelo
buraco da fechadura. Vais ver se não te penduro?
Meg estendeu-se, demasiado cansado, demasiado ensonado para
sentir curiosidade. De resto, porque havia de sentir curiosidade?
Mais tarde Meg foi acordado pelo patrão, que tropeçou no seu
corpo. Hammond saíra do quarto, de casaco vestido, meias e botas
na mão, e dissera ao rapaz meio adormecido que o acompanhasse.
Desceram a escada e o patrão puxou uma cadeira em que se sentou,
enquanto o escravo o calçava. 0 patrão permaneceu ali sentado, com
um ar preocupado e confuso. Finalmente levantou-se e pôs-se a
andar de um lado para o outro da sala, dirigiu-se à porta e começou
a passear ao longo da álea. 0 negrinho, sem saber porquê, sentia-se
tão preocupado como o patrão, que ele pressentia estar
extremamente perturbado.

Hammond dirigira-se aos estábulos e decidira atrelar os seus
próprios cavalos sem incomodar os escravos, e partir, quando a
porta lateral se abriu e Dick apareceu, perguntando-lhe se era ele
que ali estava e o que se passava.
-Não consigo dormir e levantei-me -foi a explicação que
Hammond lhe deu. -Estava incomodado, ali, sem dormir.
-Foi aquela Blanche-adivinhou Dick. -Volte lá e diga-lhe que está
casada, está casada e tem que cumprir o seu dever. Quer que eu vá
consigo ou chame o pai?
-Não, não é isso. Não consigo dormir. A prima Blanche está a
dormir profundamente. Volte para a cama -disse Hammond, com
voz suave.


A sua decisão de fugir quebrara-se. Andou a vaguear todo o resto
daquela noite agonizante. Meg sentou-se num degrau do varandim
e adormeceu.

Começou o movimento. jovens negros atravessavam a zona em
aberto, para ir ao poço. Fumo azul começou a sair das chaminés das
cabanas. Katy saiu do quarto de Dick e dirigiu-se para casa.
Começara o dia na plantação. Hammond receava a chegada dos
Woodford, com as suas perguntas silenciosas e a sua curiosidade
obscena. Sentia-se grato pela surdez de Beatriz. Perguntaria Blanche
por que motivo ele saíra da sua cama, ou preocupar-se-ia com isso?
Hammond ergueu o olhar e viu o major à porta, radioso e alegre. 0
velho limitou os seus comentários à beleza do dia e uma pergunta
insinuosa sobre o estado de saúde de Ham e como dormira.
Hammond ignorou a insinuação e admitiu que não dormira bem e
se tinha levantado cedo, mas não disse a que horas,
-Como está a Blanche? -sugeriu o pai. -Ela virá para baixo a tempo
do pequeno-almoço?
-Penso que sim -disse Hammond.
-Fiquei muito aborrecido por não se fazer um casamento de
categoria, mas escrevi-o na Bíblia de Beatriz. Ficará gravado. Devia
ter arranjado urna fêmea para ela, era o mínimo que podia fazer.
Parece mal. Não sei o que o Warren vai pensar.
-Ele e eu já escolhemos uma das nossas para o serviço dela. Não
esperávamos nada. _ Sabe como é. Os trabalhadores estão
hipotecados. Não me posso separar deles. Claro, se quiseres ficar
com a hipoteca e pagá-la, é contigo. Fica com todos, com todos os
que eu tenho -disse o major com uma cortesia que sabia seria
recusada. -0 raio daquele Charlie!
Fosse qual fosse o aspecto de alegria, real ou fingida que os outros
trouxeram para a mesa do pequeno-almoço, a austeridade de
maneiras de Beatriz anulou-o. A sua relutância em separar-se da
sua filha era agravada pela convicção de que o casamento, no


mínimo, era para a mulher um desgosto somente ultrapassado pelo
celibato. Assim tinha sido o seu. Toda a noite estivera a imaginar o
corpo puro de Blanche à mercê da bestialidade masculina e chorara
por ela. 0 seu horror ao casamento como instituição envolvia um
ressentimento pelo homem com quem a filha casara. Sentira-se
imediatamente impelida a implorar-lhe que restringisse o seu
apetite, que, sendo ele homem, ela sabia ser grande, mas foi
impedida de o fazer por um decoro feminino que proíbe a alusão a
tal tema. Nem se atrevia a sugerir a Blanche que pedisse clemência
ao marido.

0 rosto solene de Blanche não era, corno a mãe imaginava, inspirado
pelo ardor de Hammond, mas antes pela sua falta dele, que o levara
a abandonar o leito após pouco mais de uma hora junto dela. Os
seus sonhos de êxtase matrimonial não incluíam tal veleidade.

A parelha estava à espera, atrelada ao carro, quando o pequeno-
almoço terminou, mas a partida por que Hammond se sentia
impaciente, foi atrasada pelos preparativos de Blanche. Beatriz
intercalou as suas sugestões reservadas, as suas perguntas veladas,
os seus avisos, conselhos e informações, com a arrumação do
limitado guarda-roupa da filha dentro de um espaçoso saco de
carpeta, que constituia a sua única bagagem. A surdez de Beatriz
tornou a maior parte das respostas de Blanche desnecessárias, uma
vez que não conseguia ouvi-Ias. Blanche acusou a recepção dos
avisos da mãe com acenos de cabeça e movimentos dos lábios,
alguns dos quais Beatriz conseguiu interpretar. Raramente, a
rapariga interrompia o seu trabalho e ia até ao pé da cama, onde a
mãe estava sentada, para falar para dentro da corneta. Embora a
mãe lamentasse a separação, a rapariga não sentia escrúpulos de
deixar a sua casa, pois a partida era para ela uma aventura divertida
com um marido rico e uma promessa de luxo.


Eram quase dez horas quando Blanche ficou pronta para partir. Os
homens tinham passado o tempo a conversar e em visitas à estufa,
embora Dick, com um ataque de virtude, recusasse acompanhar o
pai e o cunhado nas suas libações.

Blanche desceu as escadas, vestindo mais uma vez o vestido de lã
fina, seguida por um criado com a mala de carpeta; esta foi colocada
no assento de trás do carro. Beatriz, num esforço para atrasar a
separação, sugeriu que se fizessem orações em família, mas
Hammond declarou que não podia esperar e Blanche estava tão
interessada em sujeitar-se a elas como o marido.
-Senta-te no assento detrás e toma conta daquela mala-disse o amo
a Meg. -Senta-te e não te ponhas a fazer barulho, pois vais viajar
com a tua ama.
-Não se esquece de nada? -perguntou Dick corri timidez. Ao ver
Hammond erguer as sobrancelhas, interrogativamente, Dick
acrescentou: -Por fazer o casamento. Não vai pagar? Claro, não
precisa de o fazer; não lhe estou a pedir nada.
Hammond mergulhou a mão no bolso para tirar o saco do dinheiro.
-Claro que me esqueci-disse, tirando as moedas. -Ainda bem que
me lembrou.
Não conseguindo encontrar as moedas de cinco dólares, que
considerava ser o pagamento adequado para a cerimônia, entregou-
lhe uma de dez dólares.
-É de mais, é de mais -protestou o pregador que, no entanto se
apressou a metê-la no bolso.
-Fique com ela, fique com ela. Acho que podemos pagar isso. De
resto, fica tudo em família, agora.
A declaração de Hammond deu ao major uma esperança do acesso
de qualquer Woodford às reservas dos Maxwell.
Dick retirou a moeda do bolso e, depois de a polir nas calças,
estendeu-a sobre a palma da mão em direcção à mãe.


-0 primeiro dinheiro ganho a pregar! -disse, com orgulho. -Vou
guardá-lo para semente.
Com relutância mútua, Beatriz e Hammond trocaram um beijo.
-Deus te abençoe! -disse ela. -Sê bom para ela, primo Hammond, e
não sejas demasiado exigente.
Envolveu a filha nos braços e nunca mais parava de beijá-la,
enquanto Hammond apertava a mão ao pai e ao pregador. Dick deu
a Blanche um respeitoso beijo na face, e o pai, depois de lhe dar um
beijo na testa, puxou ostensivamente de um lenço sujo e enxugou os
olhos em que não se viam lágrimas. Não havia qualquer fingimento
no paroxismo de soluços sem lágrimas que atacou Beatriz, quando
Harrimond levou a mulher para o carro. A mãe não lamentava o
casamento, mas a separação da sua filha mais nova causava-lhe
uma emoção que ela nem sabia se era tristeza ou satisfação.
Hammond trepou para o assento do condutor e desenrolou as
rédeas do chicote. 0 moço de estrebaria negro afastou-se das cabeças
dos cavalos e estes começaram a trotar. Enquanto seguiam pela álea
que levava à estrada, Blanche nunca olhou para trás. Não tinha
vontade de prolongar o encarceramento paternal.


Os cavalos pressentiram que seguiam para casa e Hammond,
ansioso por notícias dos escravos fugitivos, deu-lhes largas. 0 bom
tempo tinha secado as estradas e reduzira de tal modo os sulcos que
a carruagem não saltava nem estremecia muito.


-Tu não dizes nada. Não estás satisfeito? -perguntou a rapariga.
-Satisfeito? -perguntou-lhe o marido, preocupado.
-Satisfeito por estarmos casados, satisfeito por partirmos? elucidou
ela.


Hammond não respondeu. Quando Blanche estendeu os braços e
lhe envolveu o pescoço, afastou-a e olhou para o assento das



traseiras para a avisar da presença do escravo, que poderia notar a
sua falta de decoro.
-Sou tua mulher, não sou? -disse Blanche, defendendo o seu
comportamento.
-Penso que sim -admitiu Hammond, relutando em continuar a
conversa.
-Porque te levantaste na noite passada? Não dormiste -disse ela,
voltando ao assunto.
É sempre assim, não consigo dormir, quando me ponho a pensar. A
pensar? Em que estavas tu a pensar? És tão estranho. Estava a
pensar, a perguntar a mim mesmo que homem te teve primeiro.
Não acreditas, com certeza, que eu não conheço uma virgem.
-Eu era virgem -declarou a rapariga.
-já foste -disse o marido, sucintamente. -Mas não eras, na noite
passada.
Blanche começou a chorar, mas o marido ficou indiferente às suas
lágrimas. Voltou-se e olhou para o rapaz que ia atrás, avisando-o de
que devia tomar conta da mala de carpeta. Na realidade, estava
menos preocupado com o saco do que com o facto de Meg
compreender a conversa que se travava no assento da frente. 0
rapaz bem tinha aguçado o ouvido para a escutar, percebia que
havia desacordo, mas não conseguira compreender o que se
passava. Meg voltou a recostar-se no assento, com um ar de
inocência. Fosse qual fosse o motivo da discussão, sabia que a razão
estava do lado do patrão.
-Hammond Maxwell, estás a acusar-me de uma coisa que eu nunca
fiz. Nunca fiz, nunca fiz, nunca -repetia Blanche. -Que outra
refutação poderia opor à acusação?
-Não me venhas com essas -disse Hammond, duvidando da
negativa dela. -Pensas que eu não conheço uma virgem quando a
vejo, quando durmo com urna e tenho relações com ela?
-Não! Não! Não! -gritou ela, recomeçando a chorar.


-Não serve de nada eu afirmar uma coisa e tu responderes que não,
mas eu sei. Não podes negar.
Blanche soltou um longo suspiro.
-Vale mais dizeres-me quem foi. Talvez eu mate esse filho da puta,
talvez lhe pregue um tiro como a uma doninha ou outro animal
semelhante É melhor dizeres-me.
-Já te disse que não houve ninguém. Eu estava pura, até dormir
contigo.
-Eu? Eu tenho licença para o fazer; casei-me contigo. Mas se eu
tivesse sabido disso antes de ontem à noite, não o fazia, não me
casava contigo.
-Hammond, Hammond, como podes pensar uma coisa dessas?
Como podes tu?
Inclinou-se para ele e pôs-lhe os braços em voltado pescoço,
procurou a boca dele com a sua, mas ele voltou o rosto para evitar o
seu beijo. Compreendeu que não estava convencido.
A certa altura estivera tentada a revelar-lhe a verdade, mas mordera
a língua. Se ele soubesse, talvez lhe perdoasse, tão pequeno fora o
seu pecado e feito havia tanto tempo. Por isso ela odiava Charles e
Charles a odiava, era esse o facto que mantinha suspenso sobre a
cabeça do irmão, ameaçando contá-lo. Ela pouco mais tinha que
treze anos e Charles era dois anos mais velho. Tinha estado a
brincar às casinhas, ela era a mãe e ele o pai, e a sua filha era uma
boneca. Na altura tinha-lhe parecido bastante inocente, embora
ambos soubessem que tal acto era proibido. Charles, na sua
brincadeira, tinha insistido nos seus direitos de marido, enquanto
que ela imitava a frigidez de sua mãe, embora não pudesse disfarçar

o prazer que sentira na sua violação. Ocorrera havia tanto tempo.
Como poderia o marido saber e acusá-la? Se Charles ali estivesse, se
alguém soubesse onde ele estava, ela poderia ter contado a
Hammond aquilo que guardara durante tantos anos de seus pais.
Hammond mataria Charles e ficaria satisfeito? Desembaraçar-se-ia
do problema.

Mas não lhe disse coisa alguma, e foi inflexível, categórica, quase
convincente, na sua negação. Corno é que Hammond podia saber
que ela não era virgem? 0 que o fizera suspeitar? Ela nem imagina a
sua educação com Sukey, Afrodite, Pérola Grande, Ellen, e todas as
outras mulheres que haviam partilhado a sua cama, em diversas
alturas.

Deixou-se ficar, a tremer, cheia de medo de que o marido a
rejeitasse, a mandasse embora, a devolvesse a Crowfoot. Nenhum
outro homem a quereria agora, depois de saber do seu casamento
com MaxwelI, que nã o podia ser ocultado. A sua virgindade, a jóia
mais preciosa de uma jovem em idade de casar, seria dada como
perdida. 0 facto de Hammond não voltar para trás, convenceu-a de
que ele tinha dúvidas, de que estava convicto até, se não mesmo
seguro, das afirmações dela.

Mas Hammond não tinha dúvidas, tinha mesmo certezas. A
conversa terminara, mas os pensamentos continuavam a girar. 0
dueto dos passos das éguas sobre a terra da estrada formava uma
estranha melopéia. A recuperação dos escravos deixará de
interessar ao seu proprietário. 0 seu espírito era unicamente
torturado pela degradação da mulher. Os cavalos deixavam-se
conduzir por si próprios, em frente, em direcção a casa. Hammond
não os fez voltar para Crowfoot. Não havia regresso.
Finalmente, ele disse:
-Sim, estamos casados, penso eu. Nada há que possamos fazer,
agora. Estamos casados -repetiu. -Temos que tirar o melhor partido
disso.

Blanche sentiu a anomalia da sua posição, mas ficou aliviada por o
marido a aceitar. Suspirou. -Mas não devemos falar disto ao meu
pai. Ele nunca deverá saber que tu não estavas pura. Quebrava-lhe

o coração, quebrava-lho em dois, saber que Falconhurst pertenceria

ao filho de uma... -Procurou o termo, mas não descobriu nenhum
que fosse aplicável. -Como tu -disse, concluindo a frase.
0 seu erro de infância, meio esquecido, parecera a Blanche um
simples pecadilho, mas sabia agora que o não fora. 0 marido
aceitava-a como algo já usado, manchado, sem gosto, em segunda-
mão.
Ela não imaginara a continência prematura do homem com quem
viesse a casai. Esse conceito tê-la-ia assustado, ou mesmo revoltado.
Conhecia os costumes do irmão com as fêmeas, e suspeitava dos do
seu pai. A satisfação dos seus desejos era uma prorrogativa
masculina a que não se podia atribuir culpas. Mas porquê restringir
as capacidades da mulher? Porquê a ficção de que não existiam?
Que era uma virgem? Como é que um homem sabia?

Viu-se a si própria como sempre suspeita, incapaz de opor objecções
ao que quer que o marido fizesse. Não previra tal desenlace para o
acidente, o acidente trivial que ocorrera anos antes, tal como não
imaginara que ele pudesse ser a causa de o marido sair da cama e
andar a passear pela estrada ao luar. Mas, ao menos, ele não a tinha
rejeitado, não a tinha desprezado. Continuava a avançar, levando-a
em direcção a Briarfield, para Falconhurst.
-Gostava de saber se aquele Maddox apanhou os mestiços -disse
Hammond, mudando de assunto. -Estamos a chegar a Briarfield.
Penso que tenhas fome e te apeteça jantar. -Não obtendo resposta,
falou afavelmente para Meg, voltando-se para trás: -Estás com
fome, rapaz? Aguenta-te; pouco falta para a velha Marta te dar uma
caçarola cheia de comida.
Blanche, por ressentimento, desejou que os escravos não tivessem
sido apanhados. Não se encontrava em posição de protestar quanto
a levarem-nos no carro -não estava em posição de objectar a coisa
alguma que o marido decidisse fazer, a partir dali.
Os cascos dos cavalos ressoaram sobre a ponte de madeira que
atravessava o ribeiro enlameado e entraram em Bríarfield. Junto da


Casa Maddox, Hammond desceu e ajudou Blanche a descer, antes
de levar os cavalos para o estábulo e dar instruções a Fred para os
alimentar. Eph Maddox já estava à espera à porta, quando
Hammond voltou a atravessar a estrada, seguido do seu negro, e se
juntou à noiva.
-Veio tarde, mas eu sabia que viria. Guardei o jantar -disse
Maddox, saudando-os.
-Apanhou os negros? Conseguiu agarrá-los? -perguntou
Hammond, mais interessado no seu investimento do que na
comida.
Maddox fez sinal com os ombros para o seguir e abriu a porta do
quarto.
-Encurralei-os bem. Hoje de manhã cedo estavam a espreitar duma
meda de feno do Sime. 0 mais pequeno fugiu, mas, quando viu que
eu tinha apanhado o maior pelo pescoço, veio ter comigo e deixou-
me apanhá-lo.

Os cativos estavam de joelhos, acorrentados a um poste da cama. 0
mais pequeno agarrou-se ao irmão mais velho, e recuaram até onde
as correntes lho permitiam; nas suas pupilas brilhou um medo
verde, o medo dos animais encurralados, que fez contraste com o
negro das suas pupilas. Os seus fatos eram tão resistentes quanto o
vendedor reclamara serem, visto que ainda estavam inteiros, mas a
sua cor castanha estava suja e manchada.

As roupas pendiam das suas pernas e braços compridos como se
estivessem vestidas em espantalhos e faziam-nos parecer ainda
mais magros do que antes. A carne visível, os pés, as mãos, e a cara,
estavam tão sujos como antes de Marta lhes ter dado banho, e o seu
cabelo liso estava de novo todo emaranhado e cheio de palhas.
Uns restos de comida dentro de urna caçarola de ferro oblonga e
enferrujada, que estava no chão, provavam que os rapazes tinham
sido alimentados.


-A mulher do Sime queria escondê-los até o senhor se ir embora e
vendê-los outra vez. Mas eu pus os pés à parede e trouxe-os. Não
me quero meter em roubos de negros -afirmou Maddox, com uma
conscienciosa probidade. -Não se esqueça deque a nota que lhe dei é
para me pagar a mim e não à mulher do Sime.
Harrimond sabia bem a quem tinha de pagar. Avançou, agarrou no
braço de As e ordenou-lhe:
-Levanta-te. Trunfo levantou-se ao mesmo tempo que o irmão.
Ambos tremiam e olhavam furtivamente para aquele homem severo
que controlava os seus destinos. Sabiam qual seria o seu destino
imediato. Era inútil tentar fugir-lhe.
-É melhor comer primeiro, antes que a comida fique fria -sugeriu
Maddox. -Guardei-os para si. Não lhes toquei, só dei uns pontapés
no mais pequeno. Calculei que quisesse castigá-los o senhor mesmo.
-Estou muito satisfeito por ver estes patifes -disse Harrimond,
suspirando de alegria. -Detestava contar ao meu pai que tinha
comprado dois pretos e os tinha deixado fugir, logo os dois.

0 interesse de Blanche pelos escravos recuperados era negativo, pelo
que esperou no escritório, enquanto Hammond os foi ver. Sentía-se
satisfeita por ele se absorver no assunto, pois assim afastava a
atenção de outro assunto menos agradável. Ele veio ter com ela e
entraram juntos na casa de jantar.
-An! An! -murmurou Marta, trazendo comida da cozinha. -Que
sinhora bonita! Casou cum ela, patrão, siô? An! An! É mêrno bonita.
Foi um lindo ajuntamento.
Hammond apreendeu o espírito das felicitações da preta e
agradeceu-lhe.
A rapariga esta enervada e comeu pouco, mas notou que o apetite
de Hammond não fora prejudicado. Meg comeu na cozinha.
Quando Harrimond lhe pediu uma nota das suas despesas, Maddox
revirou os olhos, para fazer os cálculos.


-Cerca de, cerca de um dólar e vinte e cinco -disse ele. -Isto é, por
tudo, na verdade deveria ser um e cinquenta, da maneira porque os
mestiços comeram. Além disso, fui ao Sime, mas ia lá de qualquer
modo, e não lhe levo nada por os trazer. Mas não os deixe fugir
outra vez, senão ...
Hammond pagou sem protestar. Maddox seguiu-o até ao quarto
onde os escravos estavam acorrentados e soltou a corrente da cama.
-Gostava de lhe comprar um par destes ferros para o grande. 0
pequeno não foge. Com esse posso eu.
-Leve-os e mande-mos outra vez. Não lhe vale a pena comprá-los.
Tem muitos em casa, penso eu.
-Tem a certeza de que não vai precisar deles?
-Para quê? Não tenciono pôr grilhetas à Marta. -Maddox riu-se
com a ideia. -Só os tenho para pessoas que possam aqui ficar com
escravos. Mas mande-mos, logo que puder. Guarde a chave no
bolso das calças.

Hammond tirou as grilhetas dos tornozelos de Trunfo e avisou-o
para não fugir. Empurrou Ás, impedido de dar grandes passos
pelas suas grilhetas, e levou-c, lentamente até à estrada, prendendo-

o à parte de trás da carruagem. Trunfo seguiu-os, agarrado à manga
do irmão mais velho. Havia poucas probabilidades de ele fugir
sozinho, mas Hammond tomou a precaução de o colocar no meio
do assento, entre Ás e Meg, que se sentou o mais longe possível
para evitar a contaminação e cujo interesse por aquelas bagagens se
caracterizava por uma nítida determinação de os ignorar. Blanche
olhou com desprezo para os mestiços, quando o marido a ajudou a
subir, mas reteve, sensatamente, qualquer comentário sobre eles.
Levantara-se uma ligeira brisa e uma camada de nuvens, pouco
mais do que uma névoa, ofuscou o brilho do Sol. Hammond
levantou os olhos para observar o tempo, antes de subir para o
lugar de condutor.


-Talvez chova -prognosticou. -Mas não deve ser antes de amanhã.
Talvez consigamos chegar a casa primeiro.


A comida e a bebida tinham refrescado as éguas que partiram com
determinação. Também elas pareciam sentir a mudança do tempo
que as impelia a voltar para casa, para se abrigarem. Para conduzi-
Ias, bastava restringi-Ias um pouco, para que o carro não balouçasse
e saltasse nos sulcos e altos da estrada pouco utilizada.


Blanche pensou se o silêncio de Hammond seria dirigido ao seu
pecado. Contudo, o pensamento dele estava noutro lado.
-Acho que vamos pararem casa de miss Church -disse ele,
finalmente.
-Miss Church? Quem é? -perguntou Blanche.
-A miss Church? É uma senhora, uma senhora viúva, que tem uma
quintarola em Fairfax.
-Porquê? Porque é que paramos? julguei que estivesses ansioso por
chegar, por chegar a casa.
Hammond reprimiu o riso, perante o seu plano.
-Ela tem um filho, a miss Church, que tem grande desejo de ter um
negro, um negrinho esperto. Como eu sei que ela tem dinheiro,
penso que lhe interesse comprar um dos negros que levo aqui. Se
tivesse pensado nisto, tinha-os mandado lavar e pentear outra vez,
em Briarfield.
-Tu e os teus negócios de negros! -disse Blanche, com desprezo,
simultaneamente aliviada e desapontada por os pensamentos dele
se não reportarem a ela.
0 zéfiro brando que aumentara de força e a névoa que encobria o Sol
prenunciavam uma chuva fina que em breve começou a cair. 0
vento arrastava pequenas gotas que entravam no carro do lado de
Blanche. Formaram uma espécie de orvalho sobre o vestido dela e
depois ensoparam-no, mais do lado esquerdo que do direito. A



chuva afligiu-a, mais por medo de que o vestido se estragasse do
que pela sua saúde, e ficou bastante satisfeita quando voltaram para
a quinta dos Church, e se livraram do mau tempo.
Madison, que regressava a casa, vindo do estábulo, parou, ao
reconhecer a equipagem, e depois galopou ao encontro deles.
-0 meu amigo, o meu amigo! -gritou ele. -0 senhor Maxwell!
Mamã, venha cá depressa! 0 senhor Maxwell voltou!
Meteu o braço dentro do carro, na sua exuberância, para agarrar no
braço de Hammond e bater-lhe no ombro. Agarrou depois nas
rédeas dos cavalos e correu, à frente da parelha.
Quando chegaram junto da casa, a senhora Church, com uma das
mãos enfiadas numas ceroulas de Mad que estava a remendar, saíra
para o varandim.
-Meu Deus, é mesmo ele! -exclamou com entusiasmo. -0 Mad está
todo contente, e todos nós ficamos, por o ver. E esta é a sua mulher?
Que bonita, que simpática, que inocente! Entrem! Saiam desse mau
tempo.
-Esta é a senhora Maxwell. Ela é que vai ser a minha mulher -disse
Hammond, apresentando Blanche, sem fazer caso das observações
da outra mulher.
-Ora esta! Entrem e saiam da chuva! Gostava tanto que o Mad
fosse... arranjasse uma mulher bonita e pura, como a sua. -A
senhora Church abanou a cabeça, com desespero. -Tens tu que
desatrelar a parelha do senhor MaxwelI, Mad. Nunca há negros
quando precisamos deles, nunca cá estão.
-Não é preciso. Não posso ficar -disse Hammond.
-Não pode? -perguntou Mad, com surpresa e desolação na voz. Com
esta chuva? Pode ficar aqui tão bem como em Faírfax. 0 efeito
é o mesmo.
Hammond estava certo de ser assim acolhido.
-Veremos, se o tempo não levantar -disse, em meio prometimento.


-Vejo que ainda tem o negrinho dos botões de ouro -disse Mad,
estendendo os braços para ajudar Meg a descer do carro. -Mas
quem são estes rapazes brancos? Venham.
-Não são brancos; são mestiços -corrigiu o dono. -Acabo de os
comprar.
-Mestiços? Os mestiços são caros.
-Pensei em si e lembrei-me de que queria um rapaz de pele clara e
esperto.
-Pensou em mim? -perguntou Mad, acreditando na lisonja.
Ninguém jamais fizera coisa alguma a pensar especificamente em
Mad.
-Pode ficar com eles, com aquele que quiser.
-Ele está acorrentado! -anunciou Mad, como se fizesse uma
descoberta. -Não gosto disto. Porque é que o acorrentou?
-Eu sou aleijado, compreende. Se ele tentar fugir, não consigo
apanhá-lo.
-Oh! -exclamou Mad, cheio de comiseração por Ás. -Ele não vai
fugir de si. Abra-lhe as grilhetas e traga-o para casa connosco.
-Ele está bem onde está -disse Hammond. -Deixe-o ficar no carro.
-0 pequeno não foge, pois não? Esse pode ir.
-Se quer que ele vá. Não está lavado.
-Quanto quer por eles? -perguntou Mad, ansiosamente. Depois,
com desespero, disse: -A mamã não me compra nada.
-Setecentos e cinquenta pelo grande, por ser para si; e quinhentos
pelo pequeno, parece-me bem -disse Hammond, à experiência. Uma
vez que são mestiços.
-São perfeitos?
-Dispa-os, se quer ver. Estão magritos, não lhes davam de comer,
mas são perfeitos, com excepção de algumas marcas de chicote nas
costas do mais pequeno, são chicotadas que hão-de desaparecer.


Hammond baixou as calças de Trunfo e tirou-lhe a camisa, expondo
os ombros com cicatrizes.



-Quem fez isso a uma coisa bonita como esta? -perguntou Mad,
com retórica simpatia. -Não foi o senhor, pois não?
-Ele já as tinhas. Estão a secar. E o vendedor esfregou a palma da
mão sobre a superfície marcada, num esforço inútil para apagar as
cicatrizes.
Mad passou a mão pelo cabelo de Trunfo e afastou-lhe do rosto.
-Eu preferia, o pequeno -escolheu, melancolicamente. -Mas a
mamã não quer. Não serve para nada. Ela não o quer; vai ver, não o
quer.
-Não quero insistir; só estava a pensar em si.
-Se ao menos ele tivesse botões dourados, como o seu.
-Bom, podem trocar de roupa, se o seu puder vestir a deste. Meg,
despe-te.
0 rapaz olhou fixamente para o patrão, sugou o lábio inferior e tirou


o casaco. Formaram-se lágrimas nos seus olhos, enquanto despia as
calças. Interpretava a privação do seu uniforme como um
afastamento do seu cargo e da sua posição como criado particular
do patrão. Tentou conservar os sapatos e as longas meias brancas já
sujas, mas recebeu ordem de os tirar também.
A troca de roupas transformou Trunfo num Triunfo. Era maior do
que Meg, especialmente mais comprido de braços e pernas, e
parecia rebentar dentro do casaco de botões de latão. As meias
enrugavam-se nas pernas magras, embora tivesse lutado para enfiar
o seu grande pé nos sapatos de Meg. Os fatos que Triunfo despira
caíam ainda pior em Meg do que no outro rapaz; só os suspensórios
impediam as calças de cair.
Mad não viu qualquer incongruência no modo como as roupas de
Triunfo lhe assentavam e ficou indiferente em relação às de Meg.
Estava mais preocupado com os botões do que com a carne por
baixo deles. Deixando Ás agrilhoado ao degrau do carro, Mad
agarrou na mão de Triunfo e correu, aos saltos, para casa.


Hammond seguiu-o, mais devagar, debaixo de chuva, com Meg que
lutava para conservar a roupa vestida.
-0 senhor Maxwell trouxe-me um pretinho, mamã! -disse Mad,
entrando de rompante na sala onde a senhora Church tentava
estabelecer conversa com Blanche. -Que pensa disto? 0 senhor
Maxwell lembrou-se de mim. Viu este negro e pensou que eu
gostava de tê-lo. Não foi, senhor Maxwell? -disse, pedindo a
confirmação de Hammond, que entrava.
-Não sabia se gostaria dele. Só pensei -respondeu Hammond mais
timidamente do que quando falava do assunto só com Mad.
A senhora Church observou o escravo superficialmente.
-Não é suficientemente grande -objectou ela. -Eu quero e hei-de
arranjá-lo, um suficientemente grande para se ocupar de Erarnaline.
-Tenho um maior, mas é mais alto -disse Hammond. Suficientemente
grande para se ocupar dela.
-Não, não, não, mamã, não -amuou Mad. -Eu quero este. Chamei-
lhe Triunfo; não é senhor Maxwell? 0 outro não tem botões
dourados, nem nada. Eu quero este.
-0 meu pai, que vive em Kentucky -explicou a senhora Church,
sem fazer caso do filho -cria mulas. -Quando ele morrer, o
Madison poderá ter todos os negrinhos que deseja. 0 meu pai nunca
me perdoou que fugisse com o Wash Church, ainda não sabe que o
Wash se atirou ao poço. Mad sabe muito bem que não pode
comprar mais negros antes de o avô morrer.
-Bem, não faz mal -disse Hammond, desculpando-se. -Eu sabia que

o Mad desejava um rapaz de pele clara.
-E deseja mesmo. Não sei para quê.
-Mamã, mamã -choramingou Mad. -A mamã tem dinheiro, eu sei
que tem dinheiro. 0 senhor Maxwell só pede quinhentos dólares.
Tem esse dinheiro para gastar.
-0 pouco que temos tem de durar até o avô morrer, e tu ficares com
a plantação dele, as mulas e os negros. Mad não compreende que
tem de esperar. Nunca visita o avô.

-Mas eu quero este, mamã. Olhe: botões dourados e tudo. Eu vou
chorar, mamã; eu vou chorar.
-Não chores; não chores, Mad, não chores -suplicou a mãe,
aterrorizada.
-Vou chorar -continuou Madison com ameaças.
As lágrimas eram a artilharia pesada de Mad. Conhecia o seu efeito
sobre a mãe. Não estava certo de conseguir fazê-las sair, mas
contorceu o rosto. Ainda de joelhos, afastou-se com ar mimado, do
regaço da mãe, e abraçou-se a Triunfo pelas ancas, enterrando o
rosto no casaco do rapaz. Após três ou quatro soluços esforçados, as
lágrimas brotaram dos seus olhos. Continuou a esconder o rosto, até
estar certo de ter os olhos vermelhos. Levantou a cabeça e espremeu
mais lágrimas, deixando-as escorrer pelas bochechas gordas.
Levantou-se e, olhando acusadoramente para a mulher desanimada
declarou:
-Nunca há-de ter nada de mim. 0 meu papá saltou para o poço por
sua causa.
Não era uma ameaça aberta, contudo o jovem esplenetico saiu pela
porta fora e fechou-a com força. Os seus passos rápidos no chão do
varandim dirigiram-se para o pátio onde ficava o poço em que o seu
pai se afogara.
A senhora Church começou a gritar, impotente.
-Não o deixem, não o deixem! Salvem-no! -gritou ela. -0 meu
filho, o meu filho!
Era inútil para Hammond, como seu joelho rígido, tentar apanhar
Mad. Talvez, pensou ele, o pudesse salvar depois de se atirar ao
poço, e começou a segui-lo. Antes de chegar à porta, a senhora
Church já o ultrapassara, perseguindo o filho.
-Volta, Mad; volta, Mad! Não faças isso, Mad! -gritava ela. -Eu
compro-to. Vou comprar-to. Vou sim, Mad. Não saltes. Mad; não
saltes. Volta e eu compro-to. Tudo, tudo, tudo o que tu quiseres.
Madison parou e voltou-se.


-Não volto antes de o fazer. Diz que compra, mas quando eu voltar,
já não compra -disse ele friamente.
-Eu compro Mad. Compro-to já. Vou buscar o dinheiro e podes
comprá-lo. Volta.


Madison voltou lentamente para trás, com um sorriso impertinente
no rosto coberto de lágrimas. A mãe esperou no varandim até ele
chegar ao seu alcance. Depois puxou-o para ela e beijou-o três
vezes, o que ele lhe permitiu que fizesse, sem mostrar qualquer
emoção.
-Eu nunca disse que ia saltar. Só disse que o meu pai saltou. -0
rapaz riu com sarcasmo. -Mas a mãe prometeu e tem que cumprir,
senão salto mesmo; digo-lhe que salto.
-Eu cumpro. Eu cumpro. Vou só buscar o dinheiro. Não saltes,
Mad, não penses nunca em saltar. A tua mãe faz tudo o que puder.
Não te lembres de saltar.
0 rosto da senhora Church perdera toda a cor e as suas mãos
tremiam quando entrou no quarto onde estavam a avó e a idiota,
para ir buscar o seu dinheiro, que conservava dentro de um cesto de
costura de abrir ao meio, escondido por baixo da cama da idiota. 0
cesto curvava-se com o peso das moedas, quando o levou para a
sala; puxou a sua cadeira usada, e esvaziou o conteúdo do cesto,
uma mistura de trapos, moedas de ouro e prata de diversos tipos, e
notas, em masso e amarrotadas, para dentro do regaço.
-Quinhentos dólares -diz o senhor, não é? -Olhou para Hammond. Não
acha que poderia baixar um pouco o preço? Eu sei que os
mestiços são caros...
-Foi o que eu disse ao Madison, quinhentos. Hammond sentia-se
tentado a baixar o preço.
-Não o explores, mamã. Eu quero um preto de quinhentos dólares.
Não quero um preto barato -interrompeu Mad.
A senhora Church respirou fundo e olhou para o monte, no seu
regaço.



-Acho que tenho isso. Suspirou e começou a endireitar o dinheiro,
escolhendo as moedas e contando-as.
-Não confio naquela gente dos bancos. Estão sempre a falir quando
queremos receber o nosso dinheiro.
-0 meu pai também não confia neles -concordou Hammond. A
mulher ergueu o olhar da sua tarefa e perguntou.
-Aquele negro é perfeito? Garante-mo?
-E perfeito! já o vi despido -insistiu Mad, ansioso por consumar o
negócio.
-Excepto algumas marcas de chicote que estão a sarar -especificou
Hammond, meticulosamente. -E não garanto que ele não fuja. Não
garanto.
Nada disse, sobre a fuga de Briarfield.
-0 Mad não percebe-disse a mãe. -Não saberia dizer se é um macho
ou uma fêmea.
-É um macho. Eu não quero uma fêmea, não as suporto -protestou
Mad.
-Há aqui mais do que eu suponha, mais do que sabia -disse
pensativamente a senhora Church, endireitando uma pilha de notas
no joelho. -Aqui tem. Quinhentos dólares. É muito dinheiro só por
um, que nem cresceu.
Mad tirou a pilha das mãos da mãe e deu-a a Hammond.
-É melhor contá-lo. Não sou muito boa para essas coisas -disse a
senhora Church, arrecadando o resto do dinheiro dentro do cesto. Tenho
que me agarrar ao que resta. Só espero que dure até o m eu
pai morrer. Penso que tudo correrá bem e arranjemos bom algodão
este ano.
Hammond contou o dinheiro por duas vezes e descobriu que ela lhe
pagara quinze dólares a mais, que devolveu.
-Ainda bem que estava a mais, ficava muito aborrecida se estivesse
a menos. -A senhora Church aceitou o excedente e meteu-o debaixo
dos trapos no cesto, que colocou ao lado da sua cadeira. -Nunca


soube contar bem e o Madison também não. Sal a mim, nisso. 0
Wash Church nunca se enganava,
Triunfo estava de pé, mudo, no meio da sala, apercebendo-se só
muito vagamente da transferência de propriedade.
-Posso dar-lhe de comer, mamã? Posso? Só um bocado de pão com
melaço? -perguntou Madison. -Isto tem fome.
-Não o podes deixar sossegado? Podes esperar até todos comermos
a ,ceia. Não o ponhas já doente, enchendo-o de comida -aconselhou
a mãe. Mad meteu a mão nas algibeiras e encontrou três rebuçados
de limão sujos que enfiou à força na boca do escravo, para acalmar a
sua imaginária fome. Triunfo nunca provara rebuçados. Concluiu
que fosse um remédio até se dissolver agradavelmente na sua
língua. Lançou então um sorriso pálido e furtivo ao seu novo
patrão, por este sinal de favor.
-Posso lavá-lo, mamã? Está todo sujo -disse Madison, passando a
mão sobre a carne do rosto e do pescoço do rapaz.
A senhora Church fungou.
-Com esta chuva toda? Queres que ele fique tísico? Quando o
tempo estiver bom, podes mandar o Luke lavá-lo.

Chegou a hora da ceia e, depois de todos os brancos, incluindo a
avó, descalça, terem comido, Mad fez sentar Meg e Tríunfo à mesa e
encheu-lhes os pratos de comida, ordenando à amuada Emirialine
que trouxesse café e leite para os ajudar a engolir a comida. Triunfo,
que não conhecia garfo e faca, comeu com as mãos, excepto quando
Madison, que andava por trás deles, espetou uma morcela num
garfo e a colocou na boca do surpreendido rapaz. Meg conservou os
olhos postos na mesa e tentou não ver os cuidados impróprios do
patrão para com o seu escravo. Desprezava um homem branco que
se rebaixava àquele ponto.
Continuava a chover quando Madison chamou Lulce ao varandim
para se assegurar de que ele dera de comer aos cavalos, incluindo os
de Hammond.


-Que vai fazê àquele rapaz branco que tá preso no carro? perguntou
Lulce. -Devia trazê ele pra dentro.
Hammond ouvira a pergunta do interior da casa. Coxeou até à
porta e gritou:
-Atirem-lhe qualquer coisa para comer! Pão ou coisa parecida e
deixem-no estar. Não se rale com ele. Não pode ficar solto.
-Ele tá a chorá -adiantou Luke. -Quê o outro.
-Eu faço-o chorar, quando chegara casa-ameaçou Hammond. -Faz


o que eu te disse, mas dá-lhe de comer.
A senhora Church entregou ao casal de noivos a sua cama que
ficava no quarto de Mad, e dormiu numa cama de rodas que tinha
debaixo da cama de quatro colunas da idiota, à volta do qual puxou
os cortinados, quando Blanche e Hammond passaram pelo quarto a
caminho da sua cama. Avisou Madison de que devia despir-se no
escuro e só depois de Blanche estar na cama. Meg foi forçado a
dormir no chão da sala longe da porta do quarto do seu amo.
Triunfo, contra a vontade de Mad, que o queria na sua cama, foi
mandado para a cozinha, para dormir com a rapariga clara com a
qual, apesar de muito novo, talvez viesse a acasalar, segundo a
senhora Church pensava. Se não agora, pelo menos em breve. Tinha
visto Eminaline a olhar para o rapaz e sabia que, pelo menos pela
parte dela, não seria difícil.
Enquanto estava deitada na sua cama de rodas, a senhora Church
pensou se não teria sido mais sensato, em vez de comprar um rapaz
para o Mad, dispender uma soma maior de dinheiro e comprar o
irmão mais velho de que ouvira Mad e Hammond falarem ao jantar,
mas que apenas vira quando a carruagem passara junto da porta em
direcção ao celeiro. Isso poupar-lhe-ia definitivamente a
necessidade de alugar ou pedir emprestado um macho para a núbil
Eminaline. Contudo, Madison tinha-se decidido pelo rapaz mais
pequeno e agora seria impossível alterar a sua escolha.

Madison era mimado e pouco razoável, sabia-o bem. Ela própria o
estragara, mas não o lamentava. Se ao menos pudesse continuar a
satisfazer sempre o seu único filho e a dar-lhe tudo o que ele
desejasse para se conservar feliz! Ele era tão grande como o senhor
MaxwelI, tinha a mesma idade ou estava muito perto, contudo
Hammond era um homem e Mad continuava a ser uma criança.
Mad nunca gostara do seu pai, mas se Wash Church fosse vivo,
talvez Mad tivesse crescido. Não culpava o rapaz; na realidade,
agarrara-se à sua infância e prolongara-a.


Lamentava a necessidade de deitar aquele casal de noivos no
mesmo quarto de Madison; mas que outra coisa poderia fazer? A
sua intimidade pouco poderia ser perturbada pelo rapaz na cama
oposta, que dormiria, sem tomar conhecimento do que se passava.
A porta abriu-se e Madíson, com a roupa interior, apareceu.
-Mad -disse a mãe. -Tens alguma coisa?
-Eles estão a fazer aquilo, mamã. Estão a fazer aquilo! Não quero
ficar lá -murmurou o rapaz.
-Vai para a cama. Não os escutes. Não olhes. Não te fazem mal.
-Sinto-me enjoado -disse ele.
-Bem, então veste-te. Ainda te matas.
-Vou para a cozinha para o pé do lume, dormir com o Triunfo,
depois de vomitar. Porque é que eles têm de fazer aquilo?
-São casados -explicou a mãe. -Que é que esperavas. Madison
passou sobre Meg que estava ao lado da porta sem o acordar, e
encaminhou-se para a casa de jantar, daí passando à cozinha. 0 seu
desejo de vomitar desaparecera. Emnialine estava estendida
sozinha. Triunfo desaparecera. As achas da lareira iluminavam a
casa.
Com o pé descalço, Mad acordou a rapariga.
-Onde está o Triunfo? -perguntou, assustado. -Onde foi ele? Porque


o deixaste ir?

A rapariga abriu os olhos e tentou focá-los no patrão que teve de
repetir as perguntas.
-Não sabe, não, patrão, siô -respondeu a rapariga, mais
preocupada em coçar-se do que em saber onde estaria Triunfo. -Eu
não viu ele. Eu não fez nada.
-Fugiu. Foi isso. Fugiu. Não gostou de mim -murmurou o rapaz,
começando a chorar.
-A siôa pôs o rapaz aqui e disse a ele para se deitá com eu pra ficá
quente, mas ele não ficô. Ele saiu pela porta ali, eu esperá, mas ele
não voltô explicou a rapariga.
Mad convocou o seu espírito de decisão e limpou as lágrimas.
Descalço, sem se vestir, correu para o estábulo. Não havia um
minuto a perder. Se o fugitivo seguisse pela estrada, Luar
apanhava-o. Madison nem se importou com o tempo. Não tinha
outra alternativa além de perseguir o escravo. Provavelmente ele
seguira na direcção de Briarfield, donde tinha vindo. Mad ia a
correr quando chegou ao estábulo silencioso. Entrou aos tropeções
na divisão onde guardava os arreios e levantou a sela até ao ombro.

Quando saía, viu o carro de Hammond e, vagamente, na
obscuridade, divisou duas figuras entrelaçadas, no assento de trás.
Urna delas era Triunfo que viera dormir com o seu irmão.
Encantado por descobrir o seu escravo, Mad deixou cair a sela.
Entrou no carro, abraçou-se ao rapaz profundamente adormecido e
transferiu a cabeça dele do ombro do irmão para o seu ombro. A
forma flácida não acordou e até se ajeitou contra o seu dono, sem se
aperceber da mudança de posição. Mad, na sua satisfação por
encontrar Triunfo, adormeceu. Assim encontrou Luke o seu patrão,
ao amanhecer, quando chegou para dar de comer ao gado.

Mad mandou Luke a casa buscar as suas roupas para poder voltar e
enfrentar os seus convidados decentemente vestido. A mãe tinha-se
levantado cedo e estava na cozinha, dando ordens a Eminalme para


que apressasse a preparação do pequeno-almoço. 0 presunto chiava
ao lume. Hammond apareceu, vestido e impaciente por partir cedo,
esperando chegar a casa ao anoitecer ou pouco depois. Só Blanche
se demorou a vestir-se, mas também acabou por aparecer,
queixando-se da continuidade da chuva através da qual lhe custava
a prosseguir viagem.

A senhora Church insistiu para que ficassem até a tempo melhorar,
mas Madison apesar de admirar muito Hammond ressentia-se da
presença da sua mulher e ficou satisfeito com o seu amigo pela
decisão de partir. Além de se ver livre de Blanche, desejava ficar só
para se gozar bem de Triunfo, que ficaria livre de quaisquer laços,
quer ao seu anterior dono quer ao seu irmão mais velho.

Mais por dever do que por esperar que ele o fizesse, Hammond
convidou o seu hospedeiro a visitá-lo em Falconhurst. Quando
subiu para o assento do condutor, olhou para trás e viu Meg
sentado, com ar impertigado e autoconsciente, tão afastado de As
quanto lhe era possível chegar-se para o canto oposto.

A senhora Church recuou para o varandim e tirou o avental da
cabeça, acenando com ele. Mad estava de pé , à chuva, com um
braço em volta do ombro de Triunfo, como para o impedir de seguir

o veículo. Luke soltou a brida por que segurava a égua do lado de
fora. Quando o carro atingiu a estrada exterior, apenas Ás olhou
para trás e acenou.

Capitulo vigésimo quinto


Depois de Fairfax, o Sol espreitou, numa tentativa, através das
nuvens fugitivas. A chuva fina parara de cair. Por causa da chuva,
as estradas estavam em piores condições e dificultavam o avanço da
parelha, apesar da sua ânsia de chegar a casa que anulava a fadiga.
A meio da tarde, as nuvens tinham-se afastado para ocidente, no
horizonte, o Sol apareceu por completo, e a paisagem lavada
brilhou através do vapor que dela se erguia.

Havia poucos viajantes nas estradas. A parelha alcançou pedestres
que passavam ocasionalmente, na maioria negros que paravam para
olhar e acenar, e encontrou cavaleiros, pouco frequentes, por vezes
seguindo a par, que os saudavam gravemente e faziam comentários
sobre o tempo. A certa altura passaram por uma caravana de
ciganos, acampados à beira da estrada, com dois vagões, uma
carroça, três mulheres de roupas desbotadas que outrora tinham
sido de cores berrantes, ocupadas a cozinhar junto de uma fogueira,
meia dúzia de homens desocupados e outras tantas crianças nuas,
acenando e gritando desarticuladamente enquanto corriam atrás do
carro. Amarrados de ambos os lados da estrada havia cavalos e
mulas de pescoço curto e esparvonados, e uma égua cinzenta que se
tornava notada entre eles por ser perfeita e de excelente aspecto.
Hammond chicoteou a parelha, ao passar pelo acampamento, para
proteger Blanche do espectáculo dos rapazes nus.

Apenas o ruídos dos cascos dos cavalos quebrava o silêncio
monótono. Blanche pensava nos vestidos que ia comprar.
Hammond viu um campo plantado em que começavam a nascer
ervas daninhas e começou a pensar se os seus rapazes estariam a
cortar algodão na sua ausência. Não conseguia contar com o pai
para pôr os negros a trabalhar. Teria Lucy esfregado Medes todas as


noites com a banha de cobra, como lhe mandara? Era a altura de
Pérola Grande estar grávida já, se o rapaz prestasse para alguma
coisa; e Lucy também, naturalmente. Possivelmente Medes era
estéril, como Pólo, que era grande e cheio de vitalidade, mas não
conseguia procriar. Se Medes fosse estéril, como havia de arranjar
um macho, se o pai insistia em manter pura a raça mandinga? Lucy
tinha tido filhos de diversos machos, e a influência dos
acasalamentos anteriores poderia influenciar o sangue mandingo
daquilo que ela viesse a produzir por obra de Medes; mas o filho de
Pérola Grande seria indubitavelmente puro, uma vez que ela não
tivera outras relações sexuais, excepto com ele. Quase se esquecera
daquele sábado à tarde em que a desfiorara. Poderia isso, pensou
ele, atenuar o sangue mandingo do filho que ela tivesse de Medes? 0
seu pai insistira para que o fizesse e só dele seria a culpa se o bebé
de Pérola Grande (isto é, se ela tivesse algum) trouxesse
semelhanças com o seu filho. Sorriu ao imaginar a satisfação do pai
se o filho de Pérola Grande fosse parecido com ele; para o velho isso
seria melhor do que um mandingo puro, apesar da conhecida
maldade que resulta da mistura de sangue mandingo com o de
outras raças.

Lembrou-se de Ellen e do seu desgosto pelo seu casamento. Como
Blanche aceitaria a situação, não sabia ele, mas tencionava continuar
as relações com ela sem as tornar ostensivas, evidentemente.
Blanche suspeitaria, sem dúvida, mas decerto lhe ficaria grata por a
poupar aos seus desejos lúbricos.

Naturalmente, as brancas sentiam repulsa pela intimidade física,
embora Blanche lhe tivesse parecido bastante complacente, na noite
do casamento. As fêmeas eram diferentes; gratas pela honra que o
branco lhes dava, retribuíam a paixão sem vergonha ou reserva.


0 Sol pôs-se claro, mas havia nuvens a oriente que obscureciam a
Lua que se erguia, apenas a quatro dias de ser cheia. Continuaram a
avançar dentro da escuridão e das sombras. Os cavalos reconheciam
a proximidade da casa e Hammond deu-lhes rédeas. Cansadas,
tendo viajado desde o pequeno-almoço sem comer, tornou-se
necessário um pulso firme para as deter quando voltaram à álea que
levava a casa.
-Falconhurst -murmurou Hammond, reverentemente, como se se
aproximasse de um santuário.
-Tudo isto? -perguntou Blanche, quando o carro parou e ela pôde
olhar para a casa.
-É isto! -declarou Hammond. Apareceu um rapaz, vindo das
sombras e acendeu-se uma vela na cozinha. Brilhou luz também no
quarto de Maxwell.
-0 Vulcano que tome contados cavalos -disse Hammond ao rapaz. Têm
fome.
Lucrécia Bórgia apareceu, a bambolear-se, no varandim.
-Oh, siô, patrão, siô -abraçou Hammond com afecto. -E esta é a
nova sinhora? Que linda! -e colocou o outro braço sobre Blanche,
que se libertou. -Desde que a mãe do patrão morrê eu tava a desejá
tê outra sinhora, e agora já tem uma -continuou Lucrécia Bórgia.
Meg escapou-se do carro e abraçou-se às ancas da mãe, reclamando
a sua atenção.
-Onde tão os teu fato bonito? -perguntou ela. -Tu sujou eles, não
foi? Não pode ficá limpo.
-0 patrão vendeu eles com um nêgo -tentou Meg explicar.
-Arranjam-se outros fatos -disse Hammond, tranquilizando o
rapaz, e pondo-lhe um braço sobre o ombro. -0 Meg portou-se bem.
Foi o meu criado permanente.
0 Maxwell mais velho auxiliado por Memnon, com a manta azul em
volta dos ombros, apareceu à porta da frente. "Ham", foi tudo o que
disse, quando o filho correu a beijá-lo. E limpou uma lágrima.


-Esta é a miss Blanche. É a tua filha, agora, pai. Que tal a achas?disse
Hammond, apresentando a mulher, uma figura branca, na
escuridão.
0 velho puxou a rapariga para ele e beijou-a na testa.
-Vou gostar dela como tu, e como ela gosta de ti. Bem-vinda,
minha querida, a Falconhurst. Não é uma grande casa, não é tão
fina corno Crowfoot, mas é muito confortável. Sentimo-nos bem.
-Onde vais construir a nova casa? -perguntou Blanche.
-Na colina, acho eu -disse Hammond, apontando -, se a
construirmos.
-Entra, entra, estás em tua casa. Eu tinha ficado a pé, se soubesse
que vinham esta noite -disse o velho.
-Vai como pai-disse Hammond à mulher. -Eu espero que o Vulcano
trate das éguas.
Logo que a porta se fechou, voltou-se para Lucrécia Bórgia.
-Como está a Ellen? -perguntou. -Onde está ela?
-Ellen, pobrezinha, tem tado sempre a chorá desde que patrão
partiu, siô. Ela dorme com eu na cozinha, siô. Não quê saí de lá.
Hammond riu, sem convicção.
-Achas que faz diferença com a Ellen, estando eu casado?
-Não, siô, eu acha que não -concordou Lucrécia Bórgia, com certa
dúvida.
-Diz à Ellen que não chore. Ela é a minha fêmea, e vai sê-lo, sempre.
Diz-lhe isso. Diz-lhe que eu a vou ver logo de manhã. Ela sabia que
eu tinha de casar, visto que o meu pai queria um neto.
-Eu sabe, patrão, siô. Eu diz a ela o que tu diz. Não serve de nada,
mas eu diz a ela.
Vulcano emergiu da escuridão e saudou o patrão, cujo regresso
significava mais trabalho, embora, ao desejar-lhe as boas-vindas, o
negro não se lembrasse disso.
-As éguas não comem desde a manhã, e estão cansadas. Dá-lhes
bastante de comer, farelo e aveia, e arranja-lhes uma boa cama.
Estão cansadas -foram as instruções que Hammond deu ao rapaz.



-Que faz eu com siô branco acorrentado atrás? -perguntou
Vulcano.
-Não é branco. Quase me tinha esquecido dele. Solta-o do carro.
Aqui tens a chave. Mas deixa-lhe as grilhetas nas pernas. Gosta de
fugir. Diz à Lucrécia Bórgia que lhe dê de comer e lhe arranje cama.
Durante algum tempo, comida de brancos -avisou -, porque ele está
muito magro.
-Eu dá comê a ele -disse Lucrécia Bórgia. -E deixa as grilheta,
patrão, siô? -perguntou, erguendo o olhar.
-Gosta de fugir-repetiu Hammond. -Há ceia? Não comemos. Podes
arranjar qualquer coisa, Lucrécia Bórgia?
-Pode, sim, patrão, siô, é só um minuto. Não tem problema,
nenhum. Senta só e deixa este negrinho teu arranjá um toddy
enquanto tu espera. 0 patrão velho vai querê um, pelo certa. Tá
outra vez corri muita dô. Aquele Alph não presta. Não faz nada pra
rirá as dô ó patrão.
Lucrécia Bórgia abriu a porta da frente para o seu jovem patrão
passar e voltou em direcção à cozinha.
-0 Medes e os outros estão bem? Todos os negros estão bem? perguntou
Hammond, detendo-a.
-Eu pensa que tu vai deitá Medes no estábulo. Pérola Grande já não
precisa dele; nem Lucy.
-Estão cheias? -perguntou Ham, com satisfação.
-A Lucy diz que tá-confimou Lucrécia Bórgia, mas acrescentou para
que o seu próprio estado não fosse esquecido: -E eu acha que eu vai
tê gêmeos outra vez. Dois dele. Eu sente como da outra vez.
-Acho que ainda não se pode avaliar -disse Hammond, entrando
em casa.
Mal Hammond se sentara, Meg apareceu com uma bandeja com
toddies fumegantes -três.
-Para quem é o outro? -perguntou o patrão.
0 rapaz ergueu o olhar, com medo de ter ofendido.



É prá patroa, siô. Tá bem? -perguntou ele, sugando o lábio inferior.
As senhoras nunca bebem uísque. Não sabias isso? Uísque? Dentro
de casa? -perguntou Blanche, espantada. -Eu sou pela temperança.
Não vai haver uísque, onde eu comer.
-Remédio -explicou o velho, acalmando-a. -É só remédio. 0 meu
reumatismo.
-Nesse caso... -acedeu Blanche.
-E o Hammond está cansado. E tu também estás. É melhor beberes
um toddy, para a tua dor de cabeça, se tens alguma. É mau, eu sei;
mas faz muito bem.
-Não conseguiria, Não se deve beber. Nem suporto o cheiro protestou
Blanche.
É remédio -insistiu Maxwe11. Dói-me a cabeça horrivelmente, de
vira baloiçar naquele carro -disse Blanche, estendendo a mão para o
copo. Cheirou a bebida, fez uma careta, e provou-a.
-Bebe-a toda, tão quente quanto possas aguentar -insistiu o velho.
A rapariga bebeu outro golo.
-Parece-me que me faz bem à cabeça -acedeu. -Mas sabe
horrivelmente.
-Isso é verdade -concordou o pai, bebendo o seu. Hammond
descreveu a viagem ao pai, contou-lhe do casamento, falou-lhe da
saúde do major e da prima Beatriz, da dificuldade em encontrar um
pregador, e do oficio de Dick. Contou-lhe que Charles não voltara a
casa, mas nada lhe disse sobre a ausência de Woodford quando
chegara nem das suas ameaças de não consentir no casamento. Não
sabia ao certo se seria conveniente que o pai tomasse conhecimento
das partes desagradáveis, e adiou a narração para uma altura em
que Blanche não estivesse presente, pelo menos.


Contou-lhe a experiência com os mestiços. Quando chegou à altura
da fuga, o velho interrompeu-o.
-Eu tinha-te dito, se lá estivesses. Mestiços? Têm sangue humano.
Não se pode confiar neles. Não te rales. Tens de aprender. Manda



lhe o dinheiro. Nunca mais os apanhas. Quando um mestiço foge,
nunca mais se apanha.
-Mas eu apanhei-os; o Maddox, aliás, é que os apanhou.
-Raios te partam! Trouxeste-os contigo?
-Só o maior. Vendi o pequeno pelo mesmo valor que dei ao
Maddox por ambos. 0 nosso não nos custou nada.
0 rosto do pai brilhou com orgulho pela astúcia do filho.
-É perfeito e forte? -perguntou. -Os mestiços não têm rabo,
geralmente.
-Tem boa estrutura, mas é só ossos. Precisa de comer. Acho que
vou ter de o pendurar, por ter fugido.
-Tíra-lhe as correntes das pernas, amanhã de manhã e encarrega
um dos nossos de o vigiar. Engorda-o um bocado, antes de lhe
bateres. Deixa-o ficar à espera do castigo, com medo. Ao que parece,
as sovas não curam um escravo fugitivo.
-Odeio castigá-los -suspirou Ham.
-já nasceste para vender negros, filho -declarou o pai,
aprovativamente.
-Foi o que eu disse -observou Blanche. -E logo após o nosso
casamento.
-Não há nada de mal em negociar de ocasião, se se for honesto.
Ninguém gosta que lho digam, mas todos negoceiam, desde que
façam bom dinheiro.


Memnon tocou a sineta para a ceia e foi ajudar o patrão, que
recusou o seu braço. Maxwell ergueu-se da sua cadeira, e apenas em
parte por necessitar do seu apoio, pôs os braços em volta das
cinturas de Ham e Blanche e conduziu-os à casa de jantar. Tomou
lugar à cabeceira da mesa, embora nada comesse, pois já tinha
ceado antes de ir para a cama.


Mertirion serviu a sua patroa, que tentava impressionar o sogro
com a sua finura. Brincou elegantemente com o guardanapo,



estendeu o dedo mínimo, e teve o cuidado de pousar a faca e o
garfo, quando não estava a utilizá-los, sobre o pão ao lado do prato.
Embora protestando que não tinha fome, comeu com grande
apetite.
A meio da refeição, Hammond mandou Meg ir buscar Lucrécia
Bórgia que apareceu e se plantou confiadamente na passagem para
a cozinha.
-A Tense, está pronta?
-Sim, siô, patrão, siô; a Tense tá toda lavada, como o patrão diz, e
pronta para servir míss Blanche.
0 patrão sugeriu que era melhor a rapariga vir e Lucrécia Bórgia foi
buscá-la.
Esta é aquela que te disse que o pai e eu escolhemos para ti, para te
servir e para fazeres dela o que quiseres -explicou Hammond a
Blanche. -Vai ser mesmo tua.
Lucrécia Bórgia voltou, trazendo-a, com urna mão sobre o ombro, e
a rapariga vinha de cabeça baixa, com um ar de timidez. 0 seu
vestido simples, que lhe chegava até aos tornozelos nus, estava
limpo, e Lucrécia Bórgia pregara sobre ele um laço branco. As suas
pequenas feições eram expressivas. Era toda pequena, elegante,
quase frágil. Só essa fragilidade e os seios, que começavam a inchar,
a salvavam de parecer um rapaz.


Hammond estendeu a mão para a rapariga, num convite:
-Anda cá Tense. Ninguém te vai fazer mal. A rapariga, sem medo
do patrão, avançou.
-Não, do outro lado da mesa -disse ele. -Esta é a tua nova patroa,
como já te tinha dito. Faz-lhe uma vénia, como deve ser. Vais ser
dela e trabalhar para ela, vais fazer tudo o que ela te disser, tudo o
que ela te mandar. Percebeste?
Hortense foi até ao outro lado da mesa, conforme lhe mandavam, e
fez algo que se destinava a ser uma vénia, mas conservou-se fora do
alcance da patroa.



Hammond levantou os olhos para o rosto da sua mulher, para ver
se o presente lhe tinha dado prazer.
-Que tal a achas? -perguntou.
-Aquilo? -perguntou Blanche. -Pensas que eu vou suportar aquilo?
É a tua fêmea, vê-se bem.
-Não fales assim. Não em frente do pai. -0 rosto de Hammond
corou, enquanto falava. -Não é. Nunca lhe toquei.
-Então porque é que ela foi logo para o teu lado da mesa? Não tem
medo de ti, como tem de mim. Não precisas de me dizer, eu sei.
Uma fêmea bonita como esta, e tu nunca lhe tocaste? Vê-se pela
maneira como ela revira os olhos para ti.
Hammond empurrou o prato e encolheu os ombros. Meg olhou
para a mãe e sugou o lábio. Queria ajudar o patrão, que via ser
acusado, embora não compreendesse de quê.
Lucrécia Bórgia deu um passo atrás, como se tencionasse voltar
para a cozinha. Depois, incapaz de deixar o patrão em dificuldades,
avançou para Tense.
-Não sinhora, miss Blanche, patroa -protestou ela. -Tense tá pura
ainda. -Levantou as saias da rapariga. -A sinhora pode vê.
-Não! Não! Lucrécia Bórgia! -gritou Hammond. -A miss Blanche é
uma senhora; nada sabe desse gênero de coisas,
-Bom, de qualqué modo, Tense tá virgem. 0 patrão não tomou ela,
nem sequé olhou para ela, ainda -murmurou Lucrécia Bórgia,
apesar da censura. -A Dido tava a guardá ela pró patrão, quando
patrão quisesse.
Hammond fez sinal a Lucrécia Bórgia, com a cabeça, para que se
retirasse. Maxwell limpou a garganta, e esfregou uma mão com a
outra, para aliviar a dor, que subitamente piorara. 0 rosto corado de
Blanche inundou-se de lágrimas; lamentava ter levantado o assunto.
Hammond cruzou os braços e afastou a cadeira da mesa, esperando
que a mulher parasse de chorar.
Finalmente as lágrimas acabaram e ele disse:



-Se não gostas desta, podes escolher qualquer outra. Vai às cabanas
e faz a tua escolha. -Fez reservas mentais quanto a Ellen e Dite. -
EstaTense, no entanto, é a melhor que temos, perfeita e esperta, bem
educada e pura, nunca lhe tocaram. Não é assim, pai?
-Eu não sei-disse o velho, abanando a cabeça. -Que importância
tem isso? Às senhoras, isso não interessa.
-Esta serve -resignou-se Blanche; mas não conseguiu impedir-se de
acrescentar, com despeito: -Penso que já as tiveste todas.
Erguendo-se da mesa Hammond olhou para o pai, que estava
ocupado a massagear as mãos, e depois olhou de soslaio para a
mulher.
-Não ias decerto pensar que eu era virgem? -perguntou, com ar
casual.
-Mais um toddy, só mais um, antes de subirmos -sugeriu Maxweli,
embaraçado com a discussão. -Faz-lhes bem a ambos. Devem estar
exaustos, de carro todo o dia, logo após o casamento. 0 teu rapaz
que os prepare, Ham. Ele gosta disso e prepara-os melhor do que o
Mem.
Meirmon que levava o seu amo da casa de jantar para o ajudar a
sentar-se numa cadeira baixa, sabia porque motivo os toddies de
Meg eram preferidos aos seus e resolveu usar mais uísque nos
próximos que lhe pedissem. A água quente estava ao lume e Meg
preparou os toddies rapidamente, como um perito. A dor de cabeça
de Blanche tinha voltado e ela bebeu o toddy medicinal com menor
relutância do que bebera o primeiro.
A discussão terminara. Blanche perguntava a si própria porque a
começara. Apenas a delicadeza e a beleza de Hortense tinham
suscitado os seus ciúmes. Não tinha provas da acusação que fizera,
mas sabia que uma tal fêmea não teria escapado por muito tempo a
Dick, a Charles e provavelmente mesmo ao seu pai, em Crowfoot.
Esvaziou o seu copo. A dor de cabeça desaparecera, mas sentia-se
ligeiramente tonta, quando Hammond se ergueu para a conduzir ao
quarto que fora de sua mãe. Segurou-a pelo cotovelo, para a apoiar,


enquanto subiam as escadas. Lucrécia Bórgia levara o saco de
Blanche para o seu quarto, acendera as velas e dera as últimas
instruções a Tense, que esperava, cheia de medo de errar para
começar a servir a sua nova senhora.
-Prepara-te e deita-te -disse Hammond. -Eu já volto.
-Onde vais? -perguntou a mulher, surpreendida.
-Lá abaixo para falar um pouco mais como meu pai. Vai-te
despindo. Eu volto já. A Tense que te ajude.
Ao chegar ao fim das escadas, Hammond voltou em direcção à
cozinha, onde sabia que encontraria Ellen. Tremia de ansiedade por
voltar a vê-Ia. Ás, com as suas grilhetas, dormia em frente da
lareira. Meg estava à mesa, a comer o que Hammond deixara no
prato; Ellen estava a limpar os pratos que a Lucrécia Bórgia lavara.

Ellen ergueu os olhos e viu o amo à porta, estendendo os braços
para ela.
0 prato que estava a enxugar escorregou-lhe das mãos e estilhaçou-
se no chão de tijolo, e As estremeceu, no seu sono, enquanto a
rapariga corria, em êxtase, ao encontro dos braços que a chamavam.
Hammond abraçou-a e beijou a sua boca ansiosa.
Os olhos da rapariga encheram-se de lágrimas, onde se misturavam

o medo, a dúvida e a alegria. Enterrou o rosto no casaco dele e
começou a soluçar. 0 rapaz continuava a apertá-la, sem nada dizer.
Finalmente, ergueu-lhe a cabeça e beijou-lhe as pálpebras molhadas
pelas lágrimas.
Ficou longo tempo com ela nos braços, sorrindo-lhe. Meg continuou
a comer, lançando uma ocasional olhadela furtiva para os dois
amantes. Com o seu pequeno escravo ou com a mãe dele, o patrão
não se sentia coibido. Meg poderia ter olhado à vontade que não
seria repreendido. Ham confiava na lealdade de ambos, sabendo
que o consideravam incapaz de fazer mal.
Ficou assim durante minutos, abraçado à rapariga sem que nenhum
deles falasse. Finalmente afastou-a, olhou-a nos olhos e disse:

-Amanhã! Libertou-se dela e partiu. Sentia-se refrescado, limpo,
triunfante, quando voltou à sala, onde o pai bebia um toddy final, e
este insistiu com ele para que também bebesse um. Hamniond não
sentia necessidade da bebida.
-Aquela miss Blanche parecia nervosa, esta noite. Está cansada. Tu
não estás habituado a mulheres brancas. Não ligues quando ela
começar a armar-se -aconselhou MaxwelI, procurando minimizar a
importância da explosão de Blanche. -Ela é uma Hammond, muito
nervosa. Há-de fazer-se uma boa mulher, e há-de habituar-se às
coisas.
-Sim. Há-de ficar bem, acho eu.
-Claro, uma Hammond é orgulhosa. Hammond grunhiu o seu
acordo.
-Achas que já lhe terás feito um filho? Isso põe as mulheres
esquisitas.
0 rapaz negou, com conhecimento. Sorriu, perante a impetuosidade
do seu pai. Notou que o velho tentava tirar nabos da púcara.
Ham. ergueu-se para se ir deitar, e o velho fez sinal a Meirmon para
que o ajudasse a levantar. No cimo das escadas, Meg aguardava,
para ajudar o amo a descalçar as botas. Hammond beijou o pai e
entrou no quarto de Blanche.
-Que estiveste a fazer? 0 que te demorou? -queixou-se ela.
-Estive a conversar com o meu pai.
-Então ele não está zangado, com o que disse ao jantar?
-Ele diz que tu estás estafada. Meg estava de joelhos e descalçava as
botas do patrão e despia-lhe as meias. Hammond tirou o casaco e a
camisa e sentou-se para que Meg lhe puxasse as calças. Ficou de
roupa interior.
-Onde vai dormir esta fêmea? -perguntou Blanche.
-Pode ficar estendida no chão -sugeriu o marido. -Aos pés da
cama.
-Aqui não. No quarto não -protestou Blanche. -Ela que fique no
hall, deitada à porta.


-Mas e o Meg? Ele dorme sempre no hall, junto da minha porta.
Não podem ficar os dois juntos. -Hammond hesitava; depois
acrescentou: -Aos pés da cama fica muito bem. Esta noite não
vamos fazer nada. Estou cansado. Não ia incomodar-te logo à
chegada, para não falar do que o meu pai pensaria.

Capitulo vigésimo sexto

Hammond estivera cinco dias fora de casa. Era ali que estava o seu
coração -naquelas cabanas, armazéns e celeiros, nos campos de
algodão e nas reservas de madeira e nas pastagens. Levantou-se
muito cedo, afastou os cortinados e olhou para a sua preciosa terra,
antes de abrir a porta e de sacudir Meg, com um pé descalço, para
que ele acordasse e o ajudasse a calçar as botas. De botas e roupa
interior, seguido pelo seu criado, atravessou o hall até ao seu quarto
onde deixara os fatos velhos que usava na plantação. 0 fato cor de
ameixa ficaria de parte para ocasiões especiais. Desceu as escadas, a
coxear, e, sem esperar pelo pequeno-almoço, saiu em direcção aos
campos de algodão. Pouco mudara na sua ausência. Começavam a
aparecer pequenas ervas entre as filas plantadas que viriam a ser
algodão, mas, à distância, viu o seu grupo de trabalhadores que
lentamente manejava as sacholas. Depois do pequeno-almoço
montado no Eclipse, iria até junto deles, para inspeccionar o
trabalho. Um controlo prematuro das ervas daninhas evitava a
necessidade de cortar ervas grandes. 0 mal estava em que os negros,
mais por falta de cuidado que por deliberação, segundo Hammond
cria, cortavam frequentemente a planta do algodão, em conjunto
com as ervas, apesar de ele estar sempre a recomendar-lhes


cuidado. Não acreditava que eles previssem que, quanto mais
plantas destruíssem, menos algodão teriam de colher. De qualquer
modo, as plantas teriam que ser desbastadas, mas sistematicamente
e não devido a sacholadas descuidadas. já contara, nesse ano, com
as sementes que apodreceriam e não germinariam, mas, no
conjunto, a plantação parecia-lhe melhor do que no ano anterior, em
que fora necessário replantar a intervalos. Talvez as sementes
brancas do tipo Petit Guli que ele persuadira o pai a comprar, para
substituir o algodão de Termessee, com as suas sementes negras,
que anteriormente se usava em Falconhurst, brotassem com
menores perdas.

Voltando para casa, Hammond deu uma volta pelas cabanas. Viu
Tigre, o primeiro filho que gerara, agora com quatro anos de idade,
e inclinou-se, estendendo os braços para o escravozinho mimado.
Sukey, a mãe da criança, saiu da cabana, com uma criança mais
pequena e mais escura sobre a anca.

-Eles tão a dizê prái que tu foi embora e se casou, patrão, siô, c'uma
sinhora branca? -Sukey pronunciou a afirmação como uma
interrogação e esperou pela resposta. -Ari, an! -murmurou ela. -Eu
desejava muita alegria para ti; deseja mêrno. -Suspirou. Ainda
gozava da posição de ter dado à luz um filho do seu jovem patrão.

Hammond agradeceu-lhe e passou à cabana de Lucy, para
confirmar o que Lucrécia Bórgia lhe dissera. 0 cheiro da banha de
cobra chegou-lhe às narinas, antes de chegar à porta. Encontrou
Medes, regalado, estendido na cama, todo nu, enquanto Lucy o
massageava. Pérola Grande estava por trás @dela, segurando no
frasco. Quando o amo abriu aporta, ainda ouviu Medes resmungar:
-Não tens força, mulher? Esfrega o meu ombro com força. Ouviste?
Com força. E torce-o bem.


0 seu tom era simultaneamente mimado e imperioso.
-A Lucy sabe como deve massagear. Deixa-a fazer isso. -disse
Hammond, repreendendo o jovem mandingo. -Tu não dás ordens.
Levanta-te.
-Aqueles Medes! -queixou-se Pérola Grande. -Tá sempre a dizê:
faz isto, faz aquilo. Pense que ele fez tudo; não quê dá parte a
ninguém.
-Parte de quê? -interrogou Hammond.
-Parte de fazê aquele bebé que tá dentro d'eu; mãe diz qu'eu tem.
-Pérola Grande, fecha a boca. Se patrão quizé sabê ele pergunta ralhou
Lucy, com ciúmes por a filha revelar as notícias de que tanto
se orgulhava e que considerava sua prorrogativa contar. -Pérola
Grande tá cheia, patrão, siô; tá mêrno cheia, e eu também.
-Tens a certeza?
-De certeza! A velha Lucy num s'íngana.
-Isso significa um vestido novo -prometeu Hammond.
-Encarnado? -perguntou Pérola Grande.
-Encarnado, se quiseres. -Medes tem qualquer coisa a ver com o
assunto, mas não é caso para se armar em gente grande -disse
Hammond, incapaz de disfarçar a satisfação que ainda sentia pela
informação que Lucrécia Bórgia já lhe dera. -Se ele continua,
ponho-lhe uma anilha e mando-o para o estábulo. Não quero que se
arme em mandão, pelo menos em Lucy.
-Não, siô, patrão, por favor, siô -objectaram os três escravos em
coro, pois as mulheres estavam tão desejosas de reter o seu homem
como ele estava de ficar na cabana delas.
Hammond estava atrasado para o pequeno-almoço. Encontrou o pai
e a mulher, de toddies na mão, à espera, na sala.
-Que é isso? -perguntou, olhando para a bebida de Blanche. Julgava
que eras abstêmias.
-E sou, mas ainda me dói a cabeça e o teu pai pensou que...
-Não lhe faz mal. Está muito fraca e tem dores de cabeça. É remédio
-disse MaxwelI, tentando acalmar o desagrado do filho.



Hammond olhou desconfiadamente para a mulher que levava o
copo à boca, bebia um golo, à experiência, e o baixava de novo. Com
que género de mulher se casara? Não lhe parecia ume senhora!
-Está tudo bem? já foste ver? -perguntou o pai.
-Acho que sim -disse Hammond, sem convicção. 0 mandingo está
armado em gente grande, a responder torto à Lucy, e sem querer
trabalhar.
-Dá-lhe uma sova. Desanca-o -prescreveu Maxwe11.
-Ao Medes? Dou-lhe óleo de castor. já é bastante mau. Hammond
susteve a notícia da gravidez das duas fêmeas por lhe parecer
indelicada para os ouvidos da mulher.
-Filho, não dês muita importância àquele mandingo. Ele é grande e
vigoroso, sim. Mas não é Deus. E teu; não és tu que és dele. Se ele
precisa de umas palmatoadas, dá-lhas. Vê o bem que fizeram ao
Meirmon; transformaram -no num macho novo. É preciso aprender,
quanto aos negros. São macacos. A única coisa de que têm medo é
do chicote.
-0 Medes não está a precisar de chicote, pai. Arruinava-lhe o
orgulho. Era o mesmo que matar o Medes.
-Esse macho é o teu animal de estimação. É isso que ele é, o teu
animal de estimação. Deixa-o pôr-te as patas em cima, se queres disse
o velho engolindo o resto do seu toddy e espreitando para
dentro do copo, para ver se lá ficara algum líquido. Apetecia-lhe
outro, mas absteve-se de o pedir, para que Blanche não incorresse
na ira do marido por beber outro com ele.
-Medes! -Blanche repetiu o nome sotto voce, como se receasse que
ele lhe fugisse da memória. -Quem é esse Medes? -inquiriu, em voz
alta.
-E o lutador do Ham, um mandingo -exclamou Maxwe11. -0 Ham
não te disse? Não fala de outra coisa, pouco falta para andar com o
rapaz ao colo, envolto em algodão em rama.
Inocentemente, o velho não se apercebia de que estava a dizer algo
que não devia.


-Lutador? Eu disse-te que não podias ter um lutador. Eu disse-te
que não casava contigo, se tivesses um lutador! -gritou Blanche,
excitada.
0 sorriso de Hammond estava cheio de sarcasmo.
-Que queres que faça corri ele? Fervê-lo para fazer gordura de
sabão?
-Podes vendê-lo, penso eu.
-Pois eu penso que não.
-Eu tenho direito a falar!
-Sobre a Tense, tens direitos. Sobre o resto, não tens. Eu é que dirijo
esta plantação. Tu, se calhar, preferias que eu plantasse flores, em
vez de algodão.
-0 Ham está a guardá-lo para exibição. Nunca o leva a lutar concluiu
Maxwell.
-Hei-de o levar, hei-de o levar, se houver alguém que queira lutar
com ele.
Hammond rejeitou a reconciliação. Não tencionava tolerar qualquer
interferência feminina na economia da plantação.
Só prestava atenção, ou pelo menos tomava-as em consideração, às
indicações do pai, apresentadas sempre como sugestões e baseadas
na experiência. Mesmo a essas se sobrepunha, se necessário.
-Patrão, siô, eu pode tocá a sineta agora, por favô, siô? -perguntou
Merririon, aproveitando uma pausa da conversa. Acreditava que os
patrões morreriam de fome se a sua sineta se quebrasse.
-já é altura -disse MaxwelI, grato pela interrupção. Tentou
levantar-se, sem esperar pelo escravo, e Hammond atravessou a
sala para o ajudar.
-Tu e os teus negros! -disse Blanche, suspirando, ao sentar-se à
mesa.
-Nunca falas de mais nada?
-Negros e algodão. Que mais há para falar? -perguntou o marido,
surpreendido. -São nossos; temos de olhar por eles.



-0 meu papá não ...
-E faliu! -disse Hammond, interrompendo-lhe a frase. A rapariga
sentia-se presa numa armadilha. Aquele rapaz grave, severo,
satisfeito consigo próprio, nada romântico, que ela mal conhecia, era


o seu marido. Era urna fuga à possibilidade de vir a ficar solteirona,
que mesmo aos dezasseis anos aterrorizava Blanche. A casa era feia,
monótona, sombria, nem sequer tão boa como Crowfoot, não era o
que ela imaginara. Nada havia que a atraísse. 0 velho, que ela
achava simpático era apenas o eco do filho. Decidiu aproveitar
aquilo que pudesse.
-E os vestidos? -perguntou. -Quando vamos buscá-los?
-Arranjam-se-prometeu-lhe Hammond de novo. -Não posso ir hoje.
Talvez amanhã, ou no dia seguinte; no sábado, de certeza. Há uma
modista em Benson, não há, pai?
-Vestidos?
-0 meu papá não me comprou nenhuns, aquele dinheiro não
chegou lá -explicou Blanche.
Lembra-me para comprar pano encarnado para a Pérola Grande e
Lucy. Eu disse-lhes que o comprava -disse Ham.
-Lhes... -0 velho olhou para o filho, que acenou afirmativamente
com a cabeça. -Mandingos -disse ele, com satisfação.
Escravos de novo! A conversa voltava sempre aos negros. Quando
se levantaram da mesa, Maxwell cambaleou e permitiu que Mem o
conduzisse à sala. Blanche hesitou uns momentos e seguiu-o.
Hammond demorou-se um pouco. Blanche viu-o colocar a mão no
ombro de Meg.
-Diz à miss Ellen -ordenou Hamniond ao rapaz, em voz baixa -que
se lave bem e espere lá em cima. Diz-lhe que eu vou lá.
0 rapaz assentiu, gravemente.
-Não te esqueças. Se te esqueces, ficas com o rabo em sangue.
-Tamém quê eu, patrão, siô?
-Sim. Vou precisar de ti para me tirares as botas. Podes vir.

-Meirmon vai tê de prepará os toddy pró patrão velho e prá patroa,
inquanto eu tá lá.
-A tua patroa não precisa de mais toddies -decretou o amo. Meg
não compreendeu a severidade das suas palavras. Quando Ham
entrou na sala, Blanche perguntou, em tom de suspeita:
-Que estavas a dizer àquele negro?
-Estava a metê-lo na ordem -mentiu ele, pegando no chapéu e no
seu chicote simbólico.
Deu um beijo superficial ao pai e outro pouco mais ardoroso à
mulher.
-Ele está sempre a trabalhar? -perguntou Blanche, indo até à janela
para ver partir o marido, não sabia para onde.


-Mais ou menos -disse o pai. -Alguém tem de dirigir isto e eu já
não posso. Claro, o Ham faz mais do que é preciso. Mas já se nota, já
se nota que ele é melhor do que eu a dirigir. Uma erva daninha no
algodão ou urna borbulha num negro poem-no doido.


Em vez de mandar vir o cavalo, Hammond foi a coxear até ao
estábulo e selou Eclipse por suas próprias mãos. 0 garanhão, sem
exercício na ausência do dono, estava indócil, o que proporcionou
ao rapaz um maior estímulo, no esforço para fazer obedecer o
animal, entre os seus joelhos. Cavalgou pela álea fora até à estrada
aberta, sem qualquer propósito além de domar a sua montada.
Quando regressou e se dirigiu para o grupo que trabalhava no
campo do algodão, o cavalo suava e estava obediente de novo.
Conduziu Eclipse cuidadosamente por entre as filas de plantas,
sobre o solo macio, de modo que o cavalo não pisasse as plantas.


Enquanto atravessava o campo, observou os negros que cortavam
as ervas lenta, regular e metodicamente. Ao aproximar-se deles,
ouviu as suas vozes, mas não as palavras e, quando se aproximou,
eles ficaram em silêncio. Foi essa a única concessão à sua presença.



Deixou-se ficar montado e pôs-se a observar o trabalho, que
avançava bastante bem. Não havia qualquer chefe, nem outro
capataz além dele. Ocasionalmente, um dos trabalhadores usurpava
a autoridade, para criticar ou dar ordens aos outros, mas raramente
lhe davam importância.

Hammond passou uma vez mais, a cavalo, por entre o grupo de
trabalhadores espalhados e, depois, levou Eclipse para o estábulo.
Sem lhe tirar a sela, conduziu o cavalo para a baia. Depois avançou
a coxear para casa, entrou pela cozinha e subiu as escadas. Meg
estava sentado no último degrau, ao cimo, com os cotovelos
apoiados nos joelhos e o rosto entre as mãos, à espera. Hammond
pôs um dedo sobre os lábios, para que ele se conservasse em
silêncio.

Da sala, Maxwell ouviu os passos desiguais e o ranger dos degraus,
tirou uma conclusão mas nada disse à nora, que estava sentada na
sua frente. Nos seus pensamentos, regressou ao tempo em que os
seus próprios desejos eram insaciáveis.

Hammond parou no fundo das escadas para ir abrir e fechar a porta
da entrada, antes de penetrar na sala. Enquanto abraçava a mulher,

o pai cuspiu o tabaco, à espera do beijo rápido que sabia que o filho
lhe iria dar. Meg trouxe três toddies, e Blanche ergueu o olhar para
o esposo, para ver se ele desaprovava, antes de levantar o seu
tabuleiro. Ele não protestou.
-0 corte das ervas vai muito bem. Lento, mas não há pressa -disse
Hammond ao pai. -Aquelas Petit Guli estão a crescer bem; não
apodrecem como as de Termessee.
-Dão troncos mais pequenos -objectou o velho.
-Mas dão mais, e alargam mais, também.
-Talvez -concordou MaxwelI, que tinha muito pouco interesse em
produzir algodão.

-Não precisam de ser vigiados -disse Ham, voltando aos
trabalhadores. -Podemos ir amanhã, a Benson mandar o dinheiro
do Ás e parar com os juros, que nos estão a prejudicar.
-E comprar os meus vestidos? -interrompeu Blanche.
-Também pode ser -concordou o marido.
-Ainda não vi o teu mestiço -queixou-se o velho. -Importas-te de
mo mostrar?
0 Vulcano é que tem as chaves das grilhetas. Não pode despir as
calças até o Vulcano voltar à tardinha, É magrito, mas tem bons
ossos, há-de ver.
Blanche estremeceu.
-Aquele rapaz tem feitiço. Faz feitiços. Sentia quando ele olhava
para mim, mesmo por trás de mim.
-Não fales como os negros -troçou o marido. -Não há feitiços.
-E mesmo que os houvesse @?os negros afirmam que sim), não
atingiam os brancos -disse Maxwell, tentando salvar a crença da
rapariga e anular o seu medo. -Não quero que comecem por aqui a
fazer feitiços que agitem os negros.
A sineta de Merrinon convocou a família para o jantar.


Capitulo vigésimo sétimo

Os tipos e padrões dos tecidos existentes em Benson eram limitados,
tal como a aspiração da modista pobre, cujo pai, rico, ao morrer,
duas décadas antes, se descobrira estar arruinado. Miss Forsythe
preocupava-se mais em desculpar-se pela necessidade de ganhar o
seu magro sustento pela agulha do que com a costura propriamente
dita. Apesar das dificuldades impostas pelas circunstâncias, miss


Forsythe insistia em que a considerassem uma senhora. Apresentou
a Blanche um exemplar do Livro das Senbores do Verão do ano
anterior, que ela consultou, para escolher os três vestidos a que
Hammond a forçara a limitar-se, com a promessa de lhe trazer de
Nova Orleães, no Outono, um vestido elegante e uma capa.

Mas a compra dos tecidos e a escolha dos modelos não bastavam.
Blanche foi alegremente forçada a voltar várias vezes a Benson, para
comprar forros e botões, enfeites e acessórios para os vestidos e para
consultar a costureirinha e submeter-se às suas opiniões. Para
Blanche, foi uma festa de agradável ansiedade e antecipação. Duas
vezes por semana, Hammond era obrigado a adiar o trabalho da
plantação e levar a mulher à cidade, o que fazia sem se queixar. 0
corte lento das ervas continuava a fazer-se na sua ausência, quase
tão bem como quando ele lã estava. De facto, quando Lucrécia
Bórgia conseguia roubar algum tempo às suas tarefas e ia até aos
campos por uma ou duas horas, os negros trabalhavam mais
depressa para a delegada do patrão, que para o próprio patrão. Ele
ficava frequentemente surpreendido ao ver a quantidade de
trabalho que havia sido feito na sua ausência.

Aos sábados à tarde, deixava Blanche na casinha de miss Forsythe,
enquanto ia à taberna de Pérola para ver as lutas e encontrar-se com
os seus amigos. Deixara de levar Medes consigo, não só por causa
da presença de Blanche, mas pela inutilidade de o levar. Os outros
proprietários não queriam pôr (@s seus negros a lutar contra Medes,
e os moleques raquíticos e imperfeitos que serviam de material para
apostas eram de um género com o qual os Maxwell não gastariam
dinheiro em comida. Ao comprar Medes, Hammond ultrapassara as
marcas previstas.

Contudo, toda a gente falava de Medes, lhe perguntava pela sua
saúde pelos seus treinos, sugeriam-lhe combates para ele, mas


sempre com os escravos de outros proprietários. Hammond
abstinha-se de se gabar do seu rapaz, mas o facto de Medes ser
tantas vezes mencionado fazia inchar o seu ego; e Pérola e Redficid,
especialmente Redfleld, estavam sempre a trazer Medes para a
conversa, ao balcão. 0 orgulho da sua propriedade bastava a
Hammond.
-Agora está a procriar. Não está em condições de lutar -explicava
Hammond. -É um esforço grande para ele.
A caminho de casa Hammond escutava com pouca atenção o relato
entusiástico que a mulher lhe fazia da sua visita a miss Forsythe e os
seus prognósticos sobre a beleza dos vestidos que ela lhe estava a
fazer. Eram o seu único interesse. Casada com Hammond, Blanche
nunca teria de suportar a decadência de miss Forsythe e a sua
descida ao inverno económico. Imaginava um paralelo entre o pai
de miss Forsythe e o seu próprio pai e sentia que escapara à queda.
Na realidade, a pena que expressava pela pobreza da costureira era.
apenas satisfação por não ter de vir a suportá-la, Tremia só de
pensar nisso.

Entre as suas excursões à modista, nada havia para Blanche fazer.
Dentro da casa, tudo era feito por ela, e lá fora nada havia que lhe
interessasse. Além disso, receava os efeitos do sol sobre o seu rosto,
cuja brancura sempre se esforçara por conservar. Tendo receio, a
princípio, do mais velho dos MaxwelI, acabara por gostar dele. Era
generoso, sincero e não fazia críticas. Ela era uma branca, uma
Hammond, a mulher de Hammond. Ele não pedia mais. As suas
dores de cabeça tornaram-se mais frequentes e mais dolorosas. 0
sogro ficava indiferente perante a quantidade de toddies que ela
consumia, até a aconselhava a bebê-los. Hammond nã o
desaprovava o remédio, mas também não sabia qual a quantidade
que ela consumia. Estava fora de casa, na maior parte do tempo, a
supervisar o corte das ervas do algodão, tratando dos seus escravos,
dando ordens e conselhos nas cabanas, treinando o seu mandingo.


Maxwell contava-lhe as suas reminiscências, falava-lhe da sua
mulher, de ela ser uma Hammond, recontava-lhe a infância do filho
e o acidente que o aleijara. Após o quinto relato, Blanche deixou de
ouvir o que ele dizia, mas por falta de companhia, continuou a
sentar-se junto dele, agitando um leque já usado de folhas de
palmeira, e bebendo o seu toddy.

Ainda sentia menos interesse pelas conversas entre o marido e o
pai, sobre as colheitas e as ervas daninhas e os porcos e os escravos,
do que pela tagarelice do velho sobre o passado. Parecia-lhe que
Hammond estava obcecado pela plantação. Cada vez que ele
entrava em casa, era para relatar os pormenores dos projectos que
tinha em mão, o descuido de qualquer trabalhador, algum corte
numa mão ou algum dedo do pé decepado de qualquer criança.
Tais pormenores sobre os escravos não despertavam o mínimo
interesse em Blanche, e pouco mais interessavam ao pai, excepto na
medida em que constituíam reflexos da actividade do filho. A
preocupação do velho reportava-se unicamente ao facto de os
escravos jovens comerem com apetite e engordarem. 0 algodão
apenas servia para os conservar moderamente ocupados. Nunca
mandara construir um cabrestante ou uma prensa, mandando
sempre a colheita para Benson, para ser tratada. Parecia-lhe melhor
dedicar todo o terreno a cereais que os negros pudessem consumir
do que ao algodão para venda; preferia vender o produto vivo das
suas plantações. Mas Hammond divertia-se a produzir algodão, e o
pai não desejava interferir nos seus planos.

Blanche estava lá aborrecida e mesmo enjoada de ouvir os eternos
louvores do sogro ao filho, estivesse ele presente ou ausente. Se ao
menos Hammond fizesse qualquer coisa errada, se ao menos ele se
enganasse, se ao menos o pai o censurasse ou expressasse-certa
desaprovação na ausência do filho! 0 único defeito que o pai lhe


encontrava era o de trabalhar de mais e, da maneira por que ele o
descrevia, o defeito transformava-se numa virtude.
-Se não deixas de andar por aí sempre a trabalhar, a andar a cavalo
e a ralares-te, acabas por ficar com reumatismo antes de o rapaz ter
idade suficiente para se ocupar disto -avisava ele.
-Qual rapaz? -perguntou Ham.
-Então, o teu rapaz, o que a Blanche te vai dar! Blanche corou. Era
um aviso a Hammond. Ele negligenciara os seus deveres conjugais
que não eram totalmente agradáveis, devido à palidez da carne
branca e macia da mulher, que não era forçado a ver, mas que
imaginava sob a pesada camisa de dormir. 0 seu próprio cheiro,
embora não tão forte, irritava-o mais do que o das negras. 0 cheiro
do suor fresco dos negros, se fosse moderado, não era desagradável,
mas aquele eflúvio louro implicava corrupção.
Blanche sabia já de Ellen. Hortense, sem maldade, tinha deixado
escapar a informação, ao responder às perguntas da sua senhora
com uma candura inocente que não se destinava a ser traição. Tense
fora criada na convicção de que os escravos estavam aos dispor dos
amos, pelo que nã o via nada de mal nas relações de Hammond com
Ellen, além do facto de elas terem impedido a sua própria elevação
aos seus favores, aos quais lhe haviam ensinado a aspirar. Hortense
pouco podia revelar, mas a patroa calculou tudo o resto. Blanche
espremeu o velho Maxwell o mais subtilmente de que foi capaz,
mas as suas respostas foram sempre vagas.
-Talvez -admitiu ele. -Não sei -e não sabia. -Ham faz bem em
proceder assim, para poupar uma branca.
Blanche não desejava ser poupada, embora não ousasse dizê-lo. A
sexualidade deveria constituir motivo de repulsa para uma esposa
casta, e ela submetia-se aos abraços do marido sem os poder gozar;
com resignação, se não sob protesto. Compreendia a protecção que
uma concubina negra oferecia a uma esposa.
-Não, sinhora, num sabe nada, mêrno nada -foi tudo o que Blanche
conseguiu arrancar de Lucrécia Bórgia, que se plantou na sua frente,


de pernas bem abertas e pés solidamente fixados no chão, decidida
a não trair o seu jovem patrão.
Blanche, apesar de procurar bem, não conseguiu reunir as provas
que desejava. Sentia-se confusa. Não se teria ressentido do facto de

o marido andar com diversas fêmeas, mas saber que ele se
interessava por uma só, despertava a sua ira. Comparou a beleza de
Ellen com a sua, em detrimento da escrava; e que perversidade de
gosto poderia levar um homem a preferir urna preta a uma branca?
Para a branca, não havia tonalidades intermédias -preto ou branco.
Nem sequer acreditava que se tratasse de preferência, mas de uma
simples concessão à frigidez da branca, que não podia admitir por
não a sentir. A sua mãe, pudica corno convinha a uma
Hammond, tinha-a avisado, com muitos rodeios, de que a
fidelidade de um homem não era de conta da mulher e esta deveria
submeter-se às atenções do marido ou ao seu desinteresse com toda
a equanimidade que fosse capaz de apresentar. Mas ela achava que
o desinteresse chegara cedo demais!
Blanche não podia, por diversos motivos, apresentar a sua queixa
directamente ao marido, acusá-lo do seu interesse pela fêmea. Não
tinha provas directas; apenas sabia aquilo que Tense revelara
inocente e inadvertidamente. Ele admitiria o pecado venial, mas
diria que se destinava à sua própria protecção. E como encontraria
ela palavras para a acusação, que constituía um assunto demasiado
delicado para ser expresso por uma senhora? Uma senhora não só
não tinha paixões, como não tomava conhecimento delas nos
homens e nos seus criados. Blanche era uma senhora; bastava olhar
para a cor da sua pele.
Além disso, o que era ainda pior, a acusação levá-lo-ia a
recriminações. Hammond, na noite do casamento, descobrira que
ela não estava virgem, assunto que ela se esforçava por esquecer,
mas sabia que, apesar de nã o ter voltado a falar dele, o marido não


o esquecera. Irritá-lo, só servia para o fazer recordar-se da sua
própria culpa. Não ousava fazê-lo.
Embora Hammond não revelasse abertamente as suas relações com
Ellen, pouco se esforçava por as esconder. Mais tarde ou mais cedo
Blanche viria a saber. Era algo que podia imaginar, de que tinha a
certeza. Mas não tinham todos os homens, todos os plantadores,
pelo menos, uma fêmea favorita, ou mesmo duas? Oh, havia alguns,
de que ele sabia, que fingiam urna espécie de castidade, mas ele
duvidava da sua longa resistência. Claro, havia velhos e homens
impotentes, cujas abstenções eram forçadas. 0 seu pai, embora não
cronologicamente idoso, estava incapacitado de o fazer pelo seu
reumatismo; mas Hammond não duvidava do anterior interesse do
seu pai pelas relações com as negras. Não havia motivos para
duvidar, pois não havia negação. 0 interesse de Hammond pela sua
escrava era uma coisa natural e normal. Porque havia ele de ser
diferente?
A única consolação que Blanche tinha eram os seus bonitos
vestidos. Quanto a esses, Hammond mantivera a sua palavra. E
haveria mais, um fornecimento que não mais acabaria. Quando
Hammond, num sábado à tardinha, trouxe para casa os três
vestidos, Blanche não conseguiu cear nem permitiu a Tense que o
fizesse. Um após outro, com a ajuda de Tense, enfeitou-se com eles e
desceu a escada para os mostrar aos MaxwelI, cuja admiração era
superficial e sem grande entusiasmo. A satisfação deles não residia
nos vestidos propriamente ditos, mas no prazer que
proporcionavam à rapariga. Não sabiam que um dos factores desse
prazer era a atracção que ela pensava que os vestidos exerciam
sobre o marido. Deveria estar irresistível. Fazia o contraste entre ela
própria, com os seus vestidos elegantes, e Ellen, com os seus
vestidos baratos. Ela mostraria àquela rameira negra qual era a mais
bonita.


Ao ir para a cama nessa noite, concluiu que os vestidos tinham
triunfado, quando Hammond mandou Tense para a cozinha, para
poder ficar só com a mulher. Na realidade, o triunfo não era dos
vestidos, mas do prazer que Blanche sentira por os ter, do seu
encanto e da sua alegria e animação, que o tinham conquistado.

Depois disso, Blanche usou constantemente os seus vestidos novos,
mudando-os três vezes por dia só para se ir sentar em frente do
sogro, a beber os seus toddies. A sua alegria em breve definhou,
porém, especialmente porque não podia ir a parte alguma para os
mostrar e ninguém vinha a Falconhurst. Além disso, estavam
apertados. Cada vez mais se deixava ficar no quarto, onde podia
alargar o corpete do vestido, vestindo-se apenas para descer para as
refeições.

Mas faltava-lhe a conversa com Maxwell e os seus toddies. À
medida que o tempo aquecia, os vestidos tornavam-se mais
desconfortáveis, e Blanche mandou Dido fazer-lhe algumas batas de
algodão azul, simples invólucros para a sua figura e que, se fossem
brancas, poderiam passar por camisas de dormir. Hammond não
aprovava inteiramente que ela usasse tais roupas na presença do
pai, mas Blanche fez-lhe ver que usava roupas interiores por baixo
das batas, e sapatos e meias. Estava totalmente vestida,. mas sentia-
se confortável. Nada havia para ele protestar. Contudo, ele não
gostava das batas de algodão, não lhe agradava que a mulher se
vestisse como uma escrava. Podia aparecer alguém. Nesse caso,
disse Blanche, ela iria para o seu quarto e vestir-se-ia antes que os
visitantes a pudessem ver.

À medida que o Verão ia avançando, a rapariga ia tirando mais
roupas interiores, deixando no quarto uma peça, num dia, outro no
outro. Apesar do calor, continuava a beber os toddies quentes, por
causa das suas persistentes dores de cabeça, confiando na brisa do


seu leque para se manter fresca. Certo dia desceu sem sapatos,
queixando-se de que o calor lhe fizera inchar os pés. Hammond
olhou para os seus pés descalços, mas, em face do motivo, conteve
as suas censuras. No dia seguinte, ela apareceu com os pés
totalmente nus. Não eram nada bonitos. Na realidade estavam
inchados, com a pele pálida esticada. As articulações tinham calos
incipientes, os dedos estavam curvados pelo uso prolongado de
sapatos demasiado pequenos. 0 comprimento excessivo dos dedos
grandes dos pés, era agravado pelo aspecto das longas unhas mal
cortadas e sujas.

Blanche, descalça, com uma simples bata de algodão, o cabelo louro
por pentear, caído, as faces avermelhadas pelo calor e os olhos
turvos do uísque, pouco se assemelhava à rapariga de vestido de lã
estampado com que Hammond se casara alguns meses antes. Mas
era branca; e ele estava casado com ela.

Cada vez aproveitava com mais frequência a desculpado calor do
Verão para se ausentar do quarto da mulher. Na sua própria cama
não era forçada a usar roupa interior e, estando sozinha, Blanche
podia desabotoar a gola da sua camisa de noite.

Numa dessas noites, em fins de junho, Ellen estava deitada na cama
do seu amo. Fazia demasiado calor para se amarem, demasiado
calor até para dormir, e eles encontravam-se separados, a rapariga
apoiada sobre um cotovelo, agitando o leque sobre o corpo
reclinado do homem.

-Já chega-observou Hammond. -já me sinto fresco, agora. Estende-
te e vê se dormes. Não preciso que me abanes como se eu pudesse
derreter-me. Não sou de manteiga, ou coisa parecida.
A rapariga limitou-se a inclinar-se, para lhe beijar o ombro nu, e


continuou a abaná-lo.
-0 meu patrão tem calor e sabe que eu gosto de fazer isto.
-Não há necessidade -disse ele, espreguiçando-se regaladamente e
erguendo os braços para neles anichar a cabeça, e poder aproveitar
melhor a brisa do leque. -Isto faz-me lembrar o tempo em que eu
era pequeno; a minha mãe mandava a Lucrécia Bórgia sentar-se
junto da minha cama e abanar-me, para eu dormir, nas noites
quentes, por vezes durante toda a noite -recordou ele. -A Lucrécia
Bórgia deixava-me dormir nu, como agora estou, embora a minha
mãe quisesse que eu dormisse de camisa.
-Já têm a Lucrécia Bórgia há muito tempo.
-Antes de eu nascer; antes de o meu pai casar com a minha mãe.
Não sei onde o meu pai a arranjou; talvez ela fosse gerada aqui
mesmo em Falconhurst. já está a ficar velha, deve ter uns trinta e
cinco. Ainda procria bem, está cheia outra vez. Começa a ficar mais
gorda. já notei esta manhã.
-Ela diz que eu estou -anunciou a rapariga.
-Estás o quê?
-Cheia. Hamniond sentou na cama.
-Quando? Quando é que a Lucrécia Bórgia disse isso@
-Ontem. -Ellen falava em tom casual. -Eu não percebo nada disso.
Ela diz que me faltou um período.
-Isso não quer dizer nada. É conversa de negra. Deita-te -ordenou
Hammond, passando a mão apreciativamente pelo abdômen da
rapariga. -Os seios doem-te? Notas alguma coisa?
-Sinto comichões neles, e doem um bocadinho, não muito. E
parece-me que cresceram um bocado.
-Talvez a Lucrécia Bórgia saiba. Ela costuma perceber dessas coisas.
-Está zangado? -perguntou Ellen, em tom contrito.
-Zangado?
-Zangado comigo? Eu não pude evitar, foi o patrão que o fez.
Hammond riu silenciosamente. Passou o braço por baixo do corpo
de Ellen, puxou-a para si e beijou-a na boca.



-Aí tens como eu estou zangado -declarou ele. -Eu quero que isso
suceda.
-Mas depois já não me quer mais -e a rapariga começou a chorar. Vai
dar-me a um dos trabalhadores, mas não a um preto, não a um
preto!
Estava demasiado escuro no quarto para Ellen poder ver o sorriso
que se espalhou pelo rosto de Ham.
-Ellen, querida, eu não te dou a ninguém. Tu és minha, minha. Tu e
eu vamos ter uma data de filhos, um grupo deles, um em cada ano.
-E a Sukey e as outras?
-Era diferente. Estavam à mão. Eu não ia pagar ao velho Wilson mil
e quinhentos dólares para te ter comigo só três ou quatro meses.
Não, senhora. Tens um filho meu dentro de ti, não te venderia por
quinze mil.
-Acha que eu estou ...
-Se te faltou o período e te incha o peito, talvez a Lucrécia Bórgia
tenha razão. Pelo menos se não tem, acaba por ter. Da maneira
como nos portamos, não há-de levar muito tempo.
-Será um rapazinho?
-Acho que sim. Costumo fazer rapazes. Até agora só fiz machos.
Até hoje não nasceu nem uma rapariga nem nenhum aleijado.
-Acha que a miss Blanche vai ter um macho, quero eu dizer, um
menino?
-Se chegar a ter algum. Não tenho andado a proceder bem com ela,
está muito calor, e com aquela roupa toda... Mas tenho que o fazer.
-A Lucrécia Bórgia diz que a miss Blanche, que ela anda a vomitar
todas as manhãs e temos pés inchados; Lucrécia Bórgia acha que é
um sinal.
-Lucrécia Bórgia acha multa coisa. Sabe tudo antes de suceder.
Tenho que a impedir de se meter no que nã o lhe diz respeito.
-Não quer que a miss Blanche tenha um filho? A inflecção de Ellen
transformou a sua especulação numa pergunta. Hammond negou
rapidamente que fosse o caso.



-Claro que quero e o meu pai também. Claro que quero. Mas a
Lucrécia Bórgia que se deixe estar quieta. Que tem ela que a Blanche
vomite? Que tem ela que os pés lhe inchem? Que tem ela que a
barriga lhe aumente de tamanho, o que ainda não sucedeu? A
Lucrécia Bórgia não tem nada com isso.

0 tempo pusera-o irritável. Ellen aceitou o seu ar rabujento,
satisfeita por ser Lucrécia Bórgia e não ela o alvo da sua irritação.
Ficou em silêncio, mas continuou a agitar o leque sobre o corpo nu,
muito tempo depois de ele lhe ter voltado as costas e adormecido.
Não havia lua e o quarto estava tão escuro que ela apenas conseguia
distinguir um vago contorno do homem, para cujo corpo olhava
com adoração. Com a súbita contracção de um músculo da sua
perna rígida, Hammond mexeu-se no sono, e Ellen acariciou-lhe um
ombro, para o sossegar.

Quanto a ela própria, Ellen esperava que Lucrécia Bórgia não se
tivesse enganado, uma vez que Hammond não se importava de que
ela tivesse um filho. Nasceria antes do filho da patroa? Podia bem
nascer, calculava ela; o patrão tinha-lhe concedido os seus favores
durante meses, antes de se casar com miss Blanche. Uma onda de
violento ódio ciumento pela esposa dele invadiu a rapariga, uma
onda de paixão culpada que não podia controlar. Sabia bem que era
ela a intrusa, a açambarcadora. 0 patrão viria ter com ela por a
preferir, ou apenas para aliviar a mulher da obrigação de se lhe
submeter? Porque não gostariam as brancas de fazer amor? Onde
estaria a diferença entre brancas e pretas? Ela pensava em si própria
como preta, e gostava da sua cor; não trocaria o êxtase que sentia
com as carícias do seu amo pela casta frigidez duma esposa.
Pensava odiar mais Blanche pela sua frigidez, do que pela ocasional
ausência dela. Para que queria um homem uma mulher que apenas

o tolerava?

Seria custoso, Ellen sabia-o, mas acreditava que estaria disposta a
prescindir dos abraços de Hamniond, se ele obtivesse a mesma
satisfação no leito de Blanche. Nas noites que Hammond passava
com Blanche, Ellen agitava-se na cama, chorando lágrimas de
agonia, mas não punha em questão o direito que a mulher tinha
sobre ele, semelhante ao seu dever de o receber. Eram ciúmes,
admitia para si própria, mas não ódio. Mas agora odiava-a, agora
desejava a Blanche desastres, doenças, aborto, morte. Matá-la,
significaria afastar o seu amante branco e impediria os seus
propósitos. Se pudesse envenená-la secretamente! Não podia haver
rivalidade -a outra era branca. 0 assassínio era a única solução.

Ellen sentia-se aterrorizada corri a ideia de que Harrimond pudesse
adivinhar as suas fantasias. Dormiria profundamente? Se acordasse
agora, poderia adivinhar o que ela estava a pensar? Quanto mais
tentava abafar os maus pensamentos, mais eles se introduziam na
sua mente. Não conseguiu dormir e, quando Hammond acordou, à
luz fraca do falso amanhecer, sentiu o fresco ainda antes de se voltar
para a rapariga, que estava reclinada sobre o cotovelo, agitando
pacientemente o leque para tornar o seu sono confortável.
Ralhou-lhe por ela não ter dormido, mas não deixou de notar a
dedicação que a impelira à vigília. A mulher aceitou a sua censura
como um louvor e realmente assim era.

Capitulo vigésimo oitavo


Blanche estava sentada ao lado do Maxwell mais velho,
balouçando-se na cadeira e abanando-se com urna mão, enquanto


com a outra ia levando o seu toddy à boca, quando Hammond
chegou para o pequeno-almoço. Os dois estavam sempre juntos e
era impossível ao filho conversar a sós com o pai. Isso raramente
tinha importância, visto que eles pouco tinham a discutir em
segredo. Contudo, nesse dia Hammond estava ansioso por revelar
notícias que se destinavam apenas aos ouvidos do pai. Novamente
ao meio-dia, quando Hammond regressou dos campos de algodão,
encontrou a mulher com o pai. Demorou-se, depois do jantar, na
esperança de que ela se retirasse.

Ao fim da tarde, Hammond estivera a nadar no rio para se refrescar
do suor do dia abrasador. Depois voltara ao campo e passara a
cavalo entre os trabalhadores que estavam tão exaustos como ele
estivera antes de nadar, e mandou-os embora com o Sol ainda alto
no céu. Foi mais a sua impaciência por voltar para casa que a
consideração pelos negros que o levou a parar o trabalho antes de o
Sol se pôr.

Novamente encontrou a mulher com o pai. Deixou-se cair na sua
cadeira, mas não quis um toddy. Maxwell despejou o que estava a
beber e chamou Meirmon para o levar para fora. Hammond seguiu-

o e esperou que o pai e o escravo saíssem da latrina.
-Vai-te embora -disse ao negro. -Eu levo-o de volta. Esperou até
que o negro se afastasse o suficiente para não os poder ouvir e
revelou o seu segredo:
-A Blanche está grávida! -disse.
0 pai não revelou qualquer emoção, apenas perguntou:
-Foi ela que disse?
-Foi a Ellen que disse. -Perante o olhar de espanto do pai pela sua
fonte de informação, o filho elucidou: -Ellen diz que a Lucrécia
Bórgia lhe disse. A Blanche tem andado a vomitar.

-Julgo que a Blanche nunca o diria. E uma Harrimond, recatada.
Como a tua mãe: só soube que tu estavas para nascer dois meses
antes, e mesmo assim custou-lhe a dizer-me. Só percebi por a ver
tão gorda.
-A Ellen também -acrescentou Ham.
-A Ellen o quê?
Também está grávida. Pensa que está, pelo menos. Então está. As
negras sabem e têm liberdade para falar disso. -
Maxwell parou, a meio do caminho, e riu-se alto: -Logo duas! Logo
duas! Tu és potente como aquele mandingo. Tenho orgulho de ti,
meu filho, mesmo muito orgulho!
0 filho também se sentia orgulhoso da sua proeza. Fez um esforço
consciencioso para controlar o andar, de modo a não coxear quando

o pai recomeçou a caminhar, para regressar a casa.
-Claro -disse o velho, modificando o tom de orgulho -tens que ter
cuidado. Não quero que te excedas. Dois bastam, para um Verão.
-Tenho aspecto de me aproximar duma tísica galopante? -
Hammond olhou para baixo, para o seu próprio corpo vigoroso,
como resposta à sua pergunta. -Além disso, está a esquecer-se da
Dite -acrescentou.
-Isso foi no Inverno, passado. Vi-a há uma semana. já está a encher
bem. Quando fica ela desocupada, outra vez?
-Agosto, Setembro, penso eu.
-E uma sorte, não é, que a Blanche e a Ellen dêem à luz ao mesmo
tempo?
Hammond esperou, em silêncio, por urna elucidação.
-Podemos entregar o bebé da Ellen à Pérola Grande ou a qualquer
outra, e ela pode dar o peito ao bebé da Blanche -prosseguiu
Maxwe11. -É sempre bom ter uma fêmea com leite fresco pronta
para a criança.
0 "não" do filho foi categórico. Parou e disse:

-Se Ellen tiver um filho, fica com ele. Ela própria o amamentará.
Mesmo que a Blanche tenha de amamentar ela própria o que tiver.
A Ellen vai ...
-Então! Então! -disse o velho, tentando enternecer o filho: -Alguma
fêmea há-de ter leite. Nenhuma branca vai estragar o peito a dar de
mamar ao seu filho; tu sabes isso. Há-de se arranjar outra.
-A Ellen não! Vai precisar do leite para o filho dela.
-Estás muito interessado nessa fêmea, não estás, Ham? -Não havia
censura na voz do pai. -Penso que é por o filho dela ser teu. Está
certo. Não estou a dizer que ...
Como se aproximavam da casa, ficaram os dois em silêncio e,
quando entraram, viram Blanche retirar-se da janela, pela qual
compreenderam que ela estivera a espiá-los. Um certo embaraço
dominou o trio.
Incapaz de conter a sua curiosidade, Blanche perguntou, finalmente:
-De que estavam a falar? De alguma coisa, com certeza!
-Estava a dizer ao meu pai que temos de preparar o lote de
escravos para venda neste Outono, é tempo de começarmos a
engordá-los -respondeu Hammond brandamente.
-É verdade. Temos de começar a escolhê-los e a aprontá-los.
Blanche não compreendeu, pela maneira como Maxwell se agarrou
ao assunto, que não fora esse o tema da conversa no exterior.
-Eu também vou! Vou, não vou? Nunca estive em Nova Orleães. Eu
também vou! -declarou ela, com um entusiasmo temperado pela
dúvida.
0 velho esperou que o filho respondesse. Se ela estivesse grávida
naquela altura, no Outono a gravidez estaria tão adiantada que a
impediria de fazer a viagem, que, de qualquer maneira, era
nitidamente impraticável.
-Com negros! -protestou Hammond, chocado e surpreendido. Com
um lote de negros! A dormirmos ao ar livre e a comermos
onde se pode! Não há lugar para uma branca.



-Mas Nova Orleães! -disse ela, amuada. -Nunca estive em Nova
Orleães, nunca estive em parte nenhuma.
-Mais tarde, na Primavera, talvez lá vamos, só os dois. No Outono,
não. Eu trago-te urna bonita capa, quando lá for, uma coisa fina, de
veludo ou de seda, ou coisa parecida.
Esta promessa diminuiu um pouco o desapontamento da rapariga.
-Além disso -interpôs Maxwell -, o Hammond não vai a Nova
Orleães este ano. Há uma nova lei, que diz que não se podem
vender lá os negros que se levam de fora. Vai só a Fork-of-the-
Roads, perto de Natchez.
-Leis! São doidos. Ninguém presta atenção às leis francesas. Os
negros são nossos; podemos vendê-los onde quisermos.
Hammond não desejava ser privado da sua excursão a uma cidade
maior e mais alegre.
-Ainda não sei se eles vão impor essa nova lei na Louisiana. Se
fosse eu a levá-los, não me interessava, mas não quero que tu te
metas em sarilhos.
-Tenho de pagar um cêntimo no Mississipi pelo transporte e venda
deles -protestou Hammond.
-Bem, vale mais pagar, não é muito. Vale mais isso do que ir contra
a lei dos franceses em Nova Orleães. Os cavalheiros que quiserem
escravos sobem o rio e levam-nos para sua casa; Natchez serve
muito bem.
-Os machos pensam que vão para Nova Orleães.
-Em chegando a Fork-of-the-Roads diz-lhes que estão em Nova
OrIeães. Eles não sabem -disse Maxwell rindo. -De qualquer modo,
lá estão. Que podemos fazer?
Blanche, que escutara este diálogo em silêncio, disse:
-0 meu papá nunca vende os negros. Não acha bem separá-los.
Temos alguns que são velhos e cegos ...
-E tem que os alimentar, não tem? -interrompeu Hammond.
0 sistema de o maior Woodford ficar com os negros toda a vida
convenceu Hammond da sabedoria dos argumentos do seu pai,



quanto à venda antes de começarem a envelhecer. Tão grande
considerava a inépcia do sogro, o seu insucesso em todos os seus
negócios. Talvez o sistema dos Maxwell estivesse errado, em certas
ocasiões, mas o sistema de Woodford nunca estivera certo.
-Quando lhe apetecer, escolhemo-los e fazemos uma lista -disse ao
pai. -Vou começar a prepará-los.
-Quero falar com o doutor Redfield. Pede-lhe que passe por cá,
quando o vires em Benson -disse o pai.
-Está algum doente? -inquiriu Ham, surpreendido. Maxwell riu-se.
-Quero saber se posso contar como doutor para ir contigo levar o
lote a Natchez. Não há pressa em falar com ele.
-Não preciso de ninguém. Os negros são todos fáceis de vender e
não levo crianças.
-Fáceis de vender aqui. É melhor o doutor ir contigo, se puder
deixar a viúva, por algum tempo. Sempre é melhor levares alguém,
um branco, contigo -argumentou brandamente o velho. -Tu dás-te
bem com o Redfield? Não tens nada contra ele?
-Damo-nos bem, mas ...
-Tu é que ficas encarregado de tudo, evidentemente -especificou
Maxwell. -Fica tudo a teu cargo.
Conhecia o ciúme de Ham quando lhe tentavam usurpar
responsabilidades. 0 rapaz submetia-se de boa vontade à autoridade
do pai, mas ressentia-se da interposição de outrem entre eles.
-Bem -disse Hammond, aceitando as condições.



Capitulo vigésimo nono


No sábado seguinte, na taberna, Hammond encontrou o veterinário
e deu-lhe o recado.
-Ele quer que o doutor vá comigo a Nova Orleães, talvez só até
Natchez, vender um lote de negros. Não confia num rapaz. julga
que sou algum miúdo.
0 seu pai sabe que Nova Orleães não convém, nesta altura. Anda
por lá a febre-amarela, em grande força. Eu não me arriscava a ir e
não o deixava mandá-lo. Eu passo lá por casa -prometeu Redfield.
-Eu só vou depois de fazer a escolha. A febre-amarela acaba,
entretanto.
-Claro. Isso é diferente. Claro que vou, então. Faço tudo para os
servir, a si e ao seu pai, a qualquer dos dois -concordou Redfield. Além
disso, sempre me afasto da viúva.
-Há muito tempo. Passe por lá quando lhe der jeito. Redfield
acenou afirmativamente, mas tinha algo mais importante a dizer-
lhe.
-Ainda não falou com o Pérola, pois não? -perguntou, olhando
sub-repticiamente em volta. Agarrou Ham pelo cotovelo e levou-o
para o pórtico de entrada, por baixo do abrigo de madeira.
Hammond deixou-se conduzir, ansioso por conhecer o segredo.
-Não diga nada, mas o Pérola recebeu uma carta. Vai mostrar-lha.
Vêm cá desportistas da cidade e trazem um macho grande, deles,
que querem pôr a lutar contra o seu. Vai ter oportunidade de opor o
seu rapaz a um lutador de Nova Orleães -confidenciou Redfield.
-Como é que a notícia de eu ter o Medes chegou a Nova Orleães? ponderou
Hammond.
-Isso também eu queria saber. Não se mostre ansioso quando o
Pérola lhe contar. Tome um ar casual e díga-lhe que quer um bom
combate.


Lewis Gasaway, sem se aperceber de que a conversa era
confidencial, interrompeu-a com um convite para tomarem uma
bebida, que eles aceitaram. Enquanto prosseguiu a venda de uísque,
Pérola Reirimick não se intrometeu. juntou-se ao grupo, para tomar
urna única bebida e retirou-se para o extremo oposto do balcão para
servir alguns clientes e, quando voltou, colocou, aberta, em frente
de Hammond, sem comentários, a carta deque Redfield lhe falara.
Redfleld já a tinha visto e Gasaway leu-a por cima do ombro de
Ham.

"Amigo e senhor Remmick -dizia a epístola -; soube que um rico
cavalheiro, o senhor MaxwelI, tem um excelente lutador, perto de
Benson. Eu tenho um para lutar com o dele. Levarei o meu lutador a
Benson, dentro de pouco tempo, para se fazer um combate. Peço-lhe
que diga àquele cavalheiro que tenha o seu negro pronto quando eu
chegar. 0 meu é muito grande e forte como um touro. Primeiro vou
a Natchez. Depois vou a Benson. Seu humilde e obediente servidor.

A carta era de Nova Orleães, sem data. Estava muito bem escrita,
com uma letra facilmente legível, com excepção da assinatura que
estava tão bem desenhada e embelezada que era impossível
reconhecer qualquer letra além do "i".

Hammond leu a carta três vezes, voltou-a e olhou para o reverso em
branco, depois, quando Pérola regressou. ao seu extremo do balcão
empurrou-a para ele.

-Que nome é este? Será J. Neri? -perguntou.
-Que eu saiba, nunca vi o raio desse francês. Chama-me amigo. Não


o conheço! -disse Pérola, dobrando a carta e metendo-a no bolso.
-Vais entra na luta? -perguntou Gasaway. -Estavas à espera de
uma oportunidade.

-Depende do negro dele e daquilo que ele apostar -disse
Hammond, encolhendo os ombros. -Não ponho o meu rapaz a lutar
para ganhar um escravozinho raquítico.
A sua pretensa indiferença perante o combate proposto, era o que
Recífield desejava.
-Claro, não sei, mas penso que este francês queira lutar por
dinheiro, não só por negros, É provável que, vindo de tão grande
distância, não esteja para trazer negros para apostar.
Pérola parecia saber mais do que admitia, sobre a questão do seu
correspondente desconhecido. Apesar de Hammond fingir
indiferença, a sua ansiedade de chegar a casa para intensificar o
treino do mandingo afastou-o do seu interesse nos divertimentos
daquela tarde. Antes de começar o combate final, partiu, não sem
ter procurado primeiro o doutor Redfield, para lhe recordar a sua
promessa de passar por Falconhurst. Interessava-lhe mais a
apreciação do veterinário quanto à capacidade de Medes para lutar,
do que a conversa com o seu pai sobre a viagem a Nova Orleães ou
talvez só a Natchez.

Estava tão ansioso por iniciar a preparação de Medes que fez
Eclipse galopar durante todo o caminho e foi directamente à cabana
de Medes, antes de avisar o pai e a mulher da sua chegada.
-Vou levar-te a um combate -disse a Medes, excitadamente. -Um
cavalheiro de Nova Orleães traz cá um negro, grande como um
touro. _ Estou pronto para ele. Eu venço-o para si, patrão -declarou
Medes, em tom complacente.
-Não estás nada pronto. Tens que começar a treinar-te bem, a
correr, a levantar aqueles troncos. A Lucy tem que te olear e te
massagear bem, especialmente na zona da barriga.
Lucy concordou, com um "Sim siô, patrão. Eu massagear Medes
todos os dias, eu e Pérola Grande."
0 treino de Medes tinha sido sempre firme e completo; Haminond
assegurou-se disso, mesmo nas semanas em que lhe parecera que


seria impossível encontrar novamente um adversário para ele.
Agora, perante a possibilidade de um combate, o proprietário
estava apavorado com a ideia de que poderia ter negligenciado a
preparação do escravo, lhe poderia ter permitido que estivesse
ocioso e se tornasse balofo. Estava decidido a recuperar numa
semana de intensos esforços tudo o que o rapaz pudesse ter
perdido, ou não tivesse podido ganhar, desde a última vez em que
lutara.

Os desportistas da cidade não apostavam o seu dinheiro em
trabalhadores do campo não treinados; os seus escravos lutadores
eram animais superiores, amimados e bem alimentados e
preparados ao máximo. Hammond sentia que era uma temeridade
expor o seu negro criado na província numa luta contra um
daqueles lutadores. 0 seu nervosismo abeirava-se do pânico.
Embora lisonjeado por a reputação de Medes já ter chegado a Nova
Orleães, Ham partia do princípio de que o homem da cidade que se
propunha desafiá-lo na taberna possuiria um demónio de um
gênero que não se podia encontrar em zonas rurais. Ele, o
proprietário, seria alvo de zombaria na taberna se recusasse à luta;
e, de qualquer modo, mais valia lutar e perder do que permitir que

o enorme mandingo estagnasse por falta de uso.
Blanche, bebendo o seu toddy, fez urna careta de indiferença
quando Ham lhe falou da carta. A risada de Maxwell suavizou a
dúvida do filho.
-Compraste-o para lutar, não foi? Tem que se partir ovos para fazer
um pudim -disse ele. -Não te rales com uma queixada partida ou
um olho arrancado. Compraste-o para lutar, não foi para vista.
Se Medes perdesse o combate, Hammond não sofreria
recriminações em casa.
Redfield não perdeu tempo a ir fazer uma visita a Falconhurst.
Quando se aproximou da plantação, escarranchado no seu cavalo


castanho-escuro, encontrou Hammond montado no Eclipse,
seguindo Medes que trotava aplicadamente, com Baltasar
triunfantemente encavalitado nos ombros. Apesar de ser um sábado
de manhã, em que os escravos de Falconhurst não trabalhavam, o
mandingo tinha estado a levantar pesos, a saltar, a fazer extensões, e
contorções, e agora corria, sob o olhar inexorável do seu amo, tudo
isto durante cinco horas seguidas. A sua pouca roupa estava
encharcada e o seu rosto brilhava de suor, mas a fadiga, se sentia
alguma, não era visível. A intenção de Hammond era cansar o
lutador ao ponto de exaustação.
-Qual é a sua ideia? -perguntou jocosamente o veterinário. -
Empestar o país com suor de negro?
-Estou a afiná-lo, estou mesmo a afiná-lo.
0 médico abanou a cabeça, duvidoso.
-Vou andando -disse ele. -Vou ver o seu pai, ver o que ele quer de
mim. Continue o que está a fazer.
Se satisfizesse a dispensa de atenção de Redfield, Hammond teria
violado a hospitalidade dos Maxwe11; e Hammond puxou as
rédeas de Eclipse? fez sinal a Medes, e juntou-se ao seu convidado.
Medes continuou a trotar, atrás dos cavalos.

Depois de os brancos terem desmontado, Redfield olhou para o
mandingo, observou-o enquanto avançava pela álea e viu-o levantar
Baltasar facilmente dos ombros. Com uma curiosidade que poderia
parecer ociosa, dirigiu-se ao enorme negro, apalpou-lhe os biceps,
as coxas e os ombros, por cima das roupas empapadas em suor,
levantou a camisa do rapaz para lhe apalpar os músculos
abdominais, sem fazer qualquer comentário.
-Que tal está ele? -inquiriu Hammond ansiosamente. -Só comecei
agora a trabalhar com ele; não sei se o terei pronto para o próximo
sábado. Aquele francês devia dar-me mais tempo.


Redfield baixou-se para apanhar um pouco de terra, a fim de limpar
as mãos do suor do negro.
-0 rapaz está bem, acho eu; muito bom. Simplesmente, eu não o
trabalhava mais, se fosse a si. Está tão resistente quanto é possível
pô-lo e corre maravilhosamente. Deixe-o, descansar, até ao combate.
-Ele é um filho da mãe preguiçoso -escarneceu o proprietário,
escondendo o seu orgulho. -Não quero que ele me deixe ficar mal.
-Pode fazê-lo nadar um pouco, e continuar a fazer-lhe massagens prescreveu
o veterinário. -Come bem, penso eu.
-Come muito bem, comida de branco, e ovos crus, uma dúzia por
dia, mais ou menos.
Redfield acenou, com ar de sabedoria e em aprovação profissional, e
entraram em casa.
Hammond aceitou o conselho do veterinário para diminuir o treino
do mandingo. Fê-lo trabalhar mais levemente, levou-o a nadar
todos os dias, no rio, verificou se ele recebia as suas massagens e era
besuntado com banha de cobra, interrogou-o sobre o funcionamento
dos intestinos. Medes passou uma semana fácil.

Em face da opinião de Pérola de que o homem de Nova Orleães
deveria querer uma aposta em dinheiro, Hammond desenterrou o
panelão do ouro e retirou vinte e cinco duplas águias que era o
valor máximo que estava disposto a arriscar. Estava menos
preocupado em ganhar o dinheiro do que em ganhar o combate e
provar a capacidade do seu escravo, mas achava que quinhentos
dólares era o máximo que se podia permitir perder. Preferia apostar
negros que, embora fossem vendáveis por dinheiro, não eram ouro
propriamente dito; e tencionava levar consigo à taberna, no sábado,
Kitty e Ás, que não lhe tinham custado um dólar. Um só deles ou
ambos deveriam satisfazer o homem da cidade; ou, se ele os não
quisesse, decerto os quinhentos dólares chegariam.
Se os dias pareciam curtos a Medes, Hammond estava impaciente
com a sua lenta passagem. No sábado de manhã, com o ouro dentro


da bolsa de couro, Hammond montou Eclipse para a sua excursão a
Benson, e os três negros seguiram-no na mula cinzenta, Kit à frente,
Medes no meio, e Âs agarrado ao corpo dele, atrás de todos. Não
tinha havido mais notícias de Neri, mas Hammond confiava em que
ele estaria na taberna. Contudo, não estava lá e Pérola sentiu-se tão
desapontado por ele não ter vindo, como Hammond.
-Nem sombra dele -declarou Pérola. -Não sei para que foi o raio
daquela carta. Talvez venha na próxima semana a não ser que tenha
apanhado a febre, ele ou o rapaz. Aquela febre-amarela está muito
forte, nesta altura do Verão, em Nova Orleães.
Todos os frequentadores da taberna tinham já visto Medes, mas
voltaram a admirá-lo, dando-lhe socos no abdómen, e apalpando-
lhe as coxas e os braços. Hammond fingia não notar o seu respeito.
Reconhecia a futilidade de procurar um combate para o seu negro;
não havia nenhum presente que pudesse comparar-se-lhe. Não
queria fazê-lo combater; na realidade, preferia esperar pelo
antagonista da cidade; não queria que o rapaz ficasse mutilado ou
ferido num combate anterior.

Hammond pagou bebidas a todos, mas só esperou pelo primeiro
combate do programa da tarde. Nenhum dos lutadores se magoou.
A luta foi moderada, e as outras marcadas não prometiam grande
excitação. Hammond, desapontado, juntou os seus negros e saiu da
taberna.
Depois de Hammond mandar os três negros montar a mula, juntouse-
lhe Lewis Gasaway que colocou um braço sobre um ombro do
amigo.
-Que se passa Hammond? -perguntou Gasaway. -Estás zangado?
Mal falaste.
-Paguei-te uma bebida, não foi? Não estou zangado; estou só
desapontado; é tudo; por aquele francês não ter vindo. Não é nada
contigo.


-Pensei que fosse por causa do meu pai, por ele ter ido falar com o
teu, sobre o Estreia.
-Isso foi o teu pai; não foste tu -disse Hammond. -Não te guardo
rancor por isso.
-0 meu pai é um chato. Não ligues ao que ele fizer-implorou Lewis.
-Eu quero que sejamos amigos.
-E somos amigos; somos bons amígos -confessou Hammond,
estendendo-lhe a mão, que Lewis apertou com entusiasmo. Ambos
se riram, no seu embaraço, mas, quando Hammond partiu, eram
ainda mais amigos do que antes.
A mula não conseguia manter-se a par de Eclipse, mas Hammond
deu rédeas ao seu cavalo, confiando em que Medes levaria os outros
para casa, em segurança.
No sábado seguinte, Hammond não teve mais sorte. Voltou à
taberna, levando consigo os seus três negros; mas Neri não tinha
aparecido e Pérola não tinha notícias dele. Redfield confiava em que

o homem acabaria por aparecer um dia, mas Hammond sentia-se
desencorajado. Ficou a ver os combates, apostou e perdeu dez
dólares num deles, mas sentia-se pouco interessado. Nem mesmo o
uísque que bebeu conseguiu dar-lhe melhor disposição.
Estaria o seu mandingo condenado a estagnar, sem us40, como um
ornamento? 0 seu investimento não lhe traria lucros? Sabia que não
conseguiría combinar mais combates locais para Medes, que era tão
obviamente invencível, em comparação com qualquer outro lutador
da comunidade. Não havia interesse e dava pouca satisfação
possuir um campeão que ninguém desafiava. A caminho de casa,
Hammond foi pensando no assunto e chegou a uma conclusão.
Depois da ceia, durante a qual se conservou silencioso, abordou o
seu projecto junto do pai, enquanto bebiam os seus toddies.
-Não vale a pena -começou. -Acho que vou vendê-lo, e receber de
novo o dinheiro, pelo menos parte dele. Vou levá-lo com o lote para
venda.

-Quem? Qual é que vais vender? -perguntou o pai, distraído.
-Aquele maldito mandingo ... o Medes!
-Filho! Não vais vender o melhor macho que temos! Endoideceste
-Não nos serve de nada. Dois mil e setecentos dólares a apodrecer.
Não quero ter um lutador, afinal.
-Bem, amanhã desenterra aquele panelão e tira dois mil e
setecentos dólares para ti. Aquele mandingo é meu; eu compro-to.
Quero para procriar,
-Mas, pai, eu comprei-o com o seu dinheiro. Não é mais meu do
que seu. Não pode comprar-mo.
-E tu não o podes vender. Eu quero-o. Podes pô-lo a lutar sempre
que quiseres e tiveres possibilidade, mas não podes vendê-lo.
Havia determinação no tom do velho. Contudo, a decisão do pai
aliviou novamente a sensação de culpa que Hammond sentia pela
sua extravagância em gastar tanto dinheiro num só escravo. A partir
dali, a extravagância ficava a cargo do pai. Se Medes viesse a ficar
velho e decrépito sem tomar parte noutro combate, Hammond não
precisava de sentir-se culpado por o ter comprado.


Capitulo trigésimo

0 Verão tinha sido húmido e o algodão, embora estivesse a
amadurecer bem, estava cheio de ervas. 0 grupo das sacholas
atrasara-se e Hammond, na semana seguinte, pô-los a trabalhar com
mais força. Montado no Eclipse, seguia os trabalhadores pelos
campos fora e verificava se o espaço entre as plantas estava livre de
ervas daninhas. Havia bastantes escravos e não era necessário
obrigar nenhum deles a trabalhar demais, mas nada fariam se não


fossem forçados. Era monótono para Hammond estar montado no
cavalo a observar os negros, na sua cansativa tarefa.

Desencorajado, desistira de supervisar o treino de Medes que
prosseguiu sem qualquer método, mas o seu proprietário sentia-se
indiferente. Na quinta-feira à tarde, Hammond, farto de observar os
trabalhadores, deixou-os e foi até ao rio, levando um deles consigo
para o ajudar a descalçar e calçar as botas e segurar Eclipse
enquanto ele nadava. Mal despira as roupas e se aproximava da
margem, pronto a mergulhar, quando ouviu um grande alarido,
vindo campo.
-Patrão, siô, patrão siô, um siô branco num cavalo!
-Vem depressa, patrão, vem depressa; vem aí um siô!
-Patrão, patrão, tá aqui um branco! A maior parte do alarido era
constituído simplesmente por gritos de prazer. As frases articuladas
eram misturadas e confusas.
Hammond subiu para uma elevação, a fim de verificar por si
próprio qual a causa do alarme.

Viu um lustroso cavalo baio, com um cavaleiro vestido como um
branco, correu para as suas roupas e enfiou rapidamente as calças e
a camisa, sem a roupa interior, não querendo que um branco
estranho o visse nu. Descalço, subiu novamente a margem, para
receber o visitante que cavalgava na sua direcção.
0 homem era Sam Holden que se fartava de gritar:
-Ele veio. Ele veio, senhor MaxwelI, ele veio. Harrimond esperou
que Holden se aproximasse suficientemente para poder ouvi-lo,
pois a brisa de Verão desviava o som.
-Quem é que veio? Que me quer, Holden?
-0 homem. 0 homem do lutador de Nova Orleães. Chegou. 0 Pérola
quis que eu viesse dizer-lhe, para lá ir no sábado e levar o seu
macho grande.


Hammond ouviu a notícia sem se perturbar; tinha desistido da ideia
da luta, tinha-se consolado com os seus esforços para conseguir
uma boa colheita de algodão. Voltou à beira do rio para ir buscar o
resto das suas roupas, que atirou para cima da crina do cavalo, à
frente da sela, e montou. Enquanto avançava, por entre as filas do
algodão plantado, perguntou ao seu visitante:
-Ele tem um negro bom?
-É um diabo grande, alto e claro. Não sei se é bom para lutar. Penso
que sim, senão, não tinha vindo -disse Holden, expressando
arrastadamente a sua incerteza.
É maior que o meu? Mais alto, com maior alcance, penso eu.
Melhor? Pérola diz que o seu é o melhor; diz que o seu vai dar cabo
daquele malandro claro logo de entrada. Eu? Eu não sei!
-Agradeço que tenha cá vindo. Foi muito amável da sua parte disse
Hammond, quando chegaram a casa.
-Que vou dizer ao Pérola? Vai lá no sábado? -perguntou o
mensageiro, sem vontade de desmontar.
-Entre-convidou o proprietário. -Não se vai embora sem cear,
ainda está longe de Benson. 0 meu pai está em casa.
0 facto de Holden ser um branco sem categoria não absolvia um
cavalheiro das suas obrigações quanto a hospitalidade. Na
realidade, aumentava tais obrigações. Noblesse oblige. Holden era
branco, apesar de tudo.
-É melhor ir andando, para dizer ao Pérola que vai -disse o
homem, manifestando a sua relutância em entrar numa casa onde
suspeitava não ser bem recebido. Queria ficar, mas exigia certa
temeridade armar-se em cavalheiro.
-Seja como for, tem tempo para uma dose de uísque -insistiu
Hammond, consciente de que Holden nada mais tinha além de
tempo.
0 isco era demasiado potente e o visitante desmontou.
-Bem, se não vou incomodar muito -acedeu ele. -Não estou muito
bem vestido para visitas. Com estas roupas.


Hammond sabia que eram as únicas roupas que o homem possuía.
-Eu estou sem meias -disse ele, para pôr o convidado à vontade. Não
somos de cerimónias.
Tirou as suas roupas interiores das crinas de Eclipse, antes de
entregar o cavalo a Napoleão que aparecera para levar ambos os
cavalos para o estábulo. Meg, sorrindo de prazer pelo regresso do
patrão, abriu a porta e recebeu a roupa e as botas deste.
Holden hesitou em entrar. Esfregou as botas no chão do varandim,
para se livrar da lama.
-Não sei bem o que fazer -disse, desculpando-se antecipadamente
pela sua falta de maneiras.
-Não tem importância. Entre na mesma -insistiu o anfitrião,
levando-o para a sala. -Conhece o meu pai, não conhece?
-Conheci-o em tempos -disse Holden, timidamente. -Deve ter-se
esquecido de mim.
-Claro que não, claro que não -disse o velho, saudando-o. -Como
disse que era o seu nome?
-Holden. Sam Holden -apressou-se a informar o filho. -Veio da
taberna do Pérola para me avisar de que chegou o tal homem de
Nova Orleães com o macho dele.
-Agora me lembro. Holden. Senhor Holden, sente-se. Meg, leva o
chapéu deste senhor. É preciso dizer-te?
-E traz toddies, a menos que prefira o seu uísque sem água.
-0 Medes está mole, acho eu, não o treino há uma semana. Tenho
andado a sachar a erva-explicou Ham. -Não sei se será boa ideia
lutar no sábado. Que acha que eu mande dizer ao Pérola? perguntou,
apelando para o pai.
-Põe-o a lutar! Claro que sim! Para que é que o compraste? Não lhe
podes dar mais força.
Maxwell era mais desportísta, menos prudente que o filho.
-0 Sam diz que o macho do tal homem é maior que o Medes, mais
alto e com mais alcance.



-Gostava de ver isso -declarou o velho.
-Ver o quê?
-Esse combate. Eu sei que não posso montar. Blanche desceu Is
escadas e atravessou o ha11. Mantivera a sua palavra e, vendo
chegar o conv2ado, fora vestir-se para o receber. Estava espartilhada
dentro de um vestido formal, calçada, corri o cabelo muito bem
penteado. Apesar do seu rosto congestionado e avermelhado pelo
calor, pelos toddies que tinha bebido e pelo aperto do espartilho,
Hammond sentiu orgulho nela.
-Esta é a senhora Maxwell -disse Hammond, apresentando-a. Sam
Holden ergueu-se e fez uma vénia.
-SInto-me muito honrado, minha senhora -declarou. Procedera
com requinte. Sem saber da coragem que aquilo lhe exigira,
Hammond invejou ao homem as suas maneiras. 0 seu joelho rígido
tornava tal gesto impossível. A sua estima por Holden aumentou.
-Não compreendi o seu nome -disse Blanche.
-Holden -disseram o marido e o convidado em uníssono. -Sam
Holden.
-Oh! -disse Blanche. -Está muito calor.
-Muito, minha senhora. Meg trouxe três toddies, serviu o patrão
mais velho primeiro, depois o convidado e ficou indeciso quanto ao
terceiro. Hammond tirou-o da bandeja, ignorando Blanche. 0 rapaz,
sem saber se seria preciso outro, olhou interrogativamente para a
patroa e depois para o amo.
-As minhas meias e as botas, rapaz! Tenho que te dizer tudo? Estás
a ficar preguiçoso! -gritou Hammond, para fugir à questão do
toddy.
Meg trouxe as botas e ajoelhou-se aos pés do patrão. Blanche,
fingindo-se embaraçada por ver a toilette do marido, ergueu-se e,
pedindo desculpa, saiu da sala. 0 hábito e a parte do toddy já bebida
tornaram mais fácil a vénia galante que o convidado executou à sua
saída, através da casa de jantar. 0 marido compreendeu que ela fora


à cozinha beber um toddy, o que não podia fazer na presença do
estranho.
Por muito que Holden tivesse apreciado a recepção que lhe havia
sido feita por pessoas superiores a ele, e por muito que tivesse
gostado de ficar para a ceia, declinou o convite. 0 motivo real era o
receio que sentia pela sua falta de maneiras. Não se sentia seguro de
si numa casa tão fina. Mas o motivo que apresentou foi:
-0 Pérola está à espera para fechar. Quer saber se há combate no
próximo sábado.
-Acho que vou até lá, se conseguir preparar o meu rapaz -disse
Hammond, prudentemente.
-Nós vamos -declarou o pai. -Diga ao Reminick que vamos lá.
0 filho notou a primeira pessoa do plural, mas concluiu que era
apenas retórica.
Contudo, depois de Holden ter partido e de Maxwell se encontrar
de novo sentado em frente de mais um toddy, este anunciou:
-Eu também vou! 0 reumatismo não me vai impedir! Vou de carro.
-Acha que pode? Não será demais para si? -perguntou Hammond,
com prudência.
-Oli, eu não vou fazer nada, filho, É o teu negro e a tua luta. Vou só
observar -disse ele, negando a sua intenção de interferir nos
assuntos do filho -, mas vou. 0 reumatismo está melhor. Quase
podia montar, se me ajudassem.
-De carro, se é que tem de ir -disse Hammond.
-Eu vou, já disse.
0 velho exprimia a sua determinação. Fora bom que Holden não
tivesse ficado, porque Hammond foi encontrar Blanche na cozinha,
embriagada e estatelada num banco baixo, com o corpete
desapertado, e descalça. Lucrécia Bórgia andava à volta dela,
obedecendo às suas ordens para preparar mais toddies e
implorando à ama que não os bebesse.
-Por favô, patroa, sinhora; já chega. Vai ficá doente, e o patrão fica
zangado -argumentava ela.



Harrimond ficou furioso.
-Porque lhos deste? -perguntou à cozinheira.
-Ela diz pra eu arranjá eles -foi a única desculpa de Lucrécia Bórgia.
-Ela quê eles. Eu diz a ela que não.
-Ele não me toca, mal teve relações comigo desde que nos casámos.
Diz que não gosta de mim -choramingou Blanche. -Só meu irmão,


o meu irmão Charles e ele está morto. 0 meu pobre irmão morto. Ele
dava-me prazer.
Hammond agarrou a rapariga por um braço e pô-la de pé,
cambaleante.
-Cala-te -dísse-lhe. -Não sabes o que dizes. Levou-a através do
corredor para dentro de casa e fê-la subir as escadas. Lucrécia
Bórgia seguiu-os, desejando ajudar o patrão.
-Não me importo. Tu também não. Fazes amor todas as noites com
aquela negra Ellen. Julgas que eu não sei. Gostava que o meu irmão
aqui estivesse -gritou Blanche, com voz pastosa.
Hammond, aguentando-a com a mão direita, esbofeteou-a
violentamente com a esquerda. Estava aterrorizado pela ideia de
que o pai a ouvisse. Mandou Lucrécia Bórgia de volta para a
cozinha. Blanche continuou a soluçar mas parou de falar. Fez todo o
possível por subir as escadas mas caiu contra o corrimão, de tal
modo que Hammond foi forçado a levá-la quase ao colo.
-Hammond, estou doente -disse ela, no cimo das escadas. -Não sei

o que tenho.
-Pois eu sei que estás bebeda. Não tens vergonha> -censurou-a ele.
Quem me dera nunca te ter visto.
A saliva escorria-lhe da boca e, antes de chegar ao quarto, parou,
baixou a cabeça e esvaziou o conteúdo do estômago, que se
espalhou pela parte da frente do vestido e sujou a carpeta,
salpicando as botas de Hammond. 0 marido arrastou-a, sempre a
vomitar, através do hall, obrigando-a a caminhar, descalça, sobre o
vómito quente. Abriu a porta e atirou-a para cima da cama.

-Trata da tua patroa e limpa aquele hall -disse severamente a
Tense, corno se a culpa fosse dela.
A rapariga desatou a chorar, crendo que o patrão estava
descontente com ela. Hammond atirou com a porta e atravessou
cuidadosamente o hall escuro.
-A Blanche está doente -comunicou ao pai, sabendo que não podia
esconder o seu estado. -Não quero que ela beba mais toddies. Não
lhe dê mais a partir de hoje.
-Só um bocadinho para as dores de cabeça não lhe fazia mal.
-Dores de cabeça! Merda! Deixe-a ter dores de cabeça. Ela está
bêbeda, a cair!
-Espero que não perca a criança -observou o velho.
-Eu espero que sim, se é que ela vai ter alguma. Não quero uma
geração como ela.
Na sua fúria, o jovem saiu da sala, a coxear. 0 pai ouviu a porta da
entrada abrir-se e fechar-se, e, espiando pela janela, viu o filho parar
no extremo do varandim, suspirar, e desaparecer em direcção à
cabana dos mandingos.
A meio da manhã de sexta-feira, Blanche desceu, vestindo a sua
bata. Não se referiu ao seu deboche, nem pediu um toddy, pois já
sabia que Hammond avisara os criados para não lho darem.
Maxwell, contudo, viu que os olhos da rapariga seguiam o seu copo
enquanto o levava à boca, e, com pena dela, estendeu-lho. Ela
agarrou no copo e, avidamente, bebeu o líquido quente e doce.
-Não vás dizer ao Ham que eu to dei -avisou o sogro.
-Não, senhor; não lhe digo nada -prometeu ela. -Está calor, não
está?
Maxwell chamou Meg e ordenou-lhe que voltasse a servi-lo,
enquanto a rapariga se abanava.
Perto do meio-dia Hammond entrou, vindo dos campos de algodão
Beijou o pai e a mulher corri a mesma falta de ardor. De resto,
ignorou a mulher. Recusou o toddy que Meg lhe trouxera, sem lho
pedir e ordenou ao rapaz que o levasse de novo para a cozinha.


-Dói-me a cabeça, dói-me horrivelmente -foi a única sugestão que
Blanche deu do seu desejo de tomar uma bebida.
Hammond não lhe respondeu.
-Aquele Medes não está a fazer nada. Torna-se mole; passa o tempo
a dormir -disse ele ao pai.
-Deixa-o dormir e descansar -aconselhou o velho.
-Resmunga com a Lucy, quando ela o está a esfregar, nem se volta,
para ela lhe esfregar as costas. Não bebe os ovos crus como deve ser,
embora eu o obrigasse a beber uma dose extra.
0 pai acenou afirmativamente com a cabeça. A medida que se
aproximava a hora do combate, as dúvidas de Ham aumentavam.
Perguntava a si próprio se o mandingo seria um adversário
adequado para o negro da cidade; duvidava da sua própria
capacidade para enfrentar o proprietário branco do negro da cidade
e para negociar com ele. Que métodos esotéricos para treinar o seu
lutador teria utilizado o outro? Que manhas, que tergiversações
empregaria o estrangeiro contra ele, para combinar o combate?


Ao pequeno-almoço da manhã seguinte, Hammond mandou
Menuion à cozinha buscar Lucrécia Bórgia.
-Tu tomas conta da miss Blanche -disse-lhe -enquanto eu estiver
fora, tu e a Tense. Torna conta dela e dá-lhe tudo o que ela quiser,
excepto uísque. Nota bem, excepto uísque.
-Excepto uísque -repetiu Lucrécia Bórgia.
-Não sei porque é que não me levas -queixou-se Blanche.
-A ver uma luta de negros numa taberna? -perguntou o marido,
indignado com a sugestão.
-Podia ir visitar a miss Forsythe -choramingou Blanche.
-Não há espaço no carro.
-Acho que bem podia ir eu, em vez daquele negro enorme. Gostas
mais dele que de mim.
-É o meu lutador, não compreendes? Não pode haver combate sem
ele



-explicou Hammond, desgostado.
-Negros, negros, só negros! Lutadores! -exclamou Blanche, e
depois baixou de tom. -Dói-me horrivelmente a cabeça. Não posso
beber uísque? Só um, só um toddy? -disse, tentando convencê-lo.
-Oh; um só não lhe faz mal -interrompeu Maxwell.
-Bem, traz um toddy à tua patroa, depois de ela ter comido -acedeu
Hammond.
Tal era o entusiasmo de Maxwell pela inesperada excursão, que
caminhou, com segurança e sem ajuda, esquecendo-se da sua
enfermidade. Teve certa dificuldade em subir, com a ajuda de
Meirmon, para o assento da frente do carro ; mas, uma vez
instalado, estendeu as pernas e pôs-se em posição confortável.
Medes ia atrás, apertado entre Estrela e Kitty. Hammond retirou a
sua bolsa da algibeira, verificou se trazia o ouro, e, metendo-a de
novo na algibeira, pegou nas rédeas.
Olhou para trás e ordenou a Kit:
-Chega-te para o lado, rapaz, e senta-te direito. Deixa-te de te
encostar ao Medes, ele precisa de forças.
Quando o grupo partiu, Blanche ficou descalça, no varandim, com o
copo na mão, ladeada por Lucrécia Bórgia e Tense. Meg e Alph
ficaram, aos saltos, no meio da passagem, acenando para os patrões
que nem os viam. Pólo, logo que largou as rédeas das éguas,
arrastou-se para o estábulo, para dormir até à hora do jantar.
-Tem a certeza de que não vai cansar-se? -disse Hammond,
expressando a sua preocupação pelo conforto do pai, antes de o
veículo atingir a estrada principal.
-Quem diz que eu estou cansado? Quem diz que me sinto mal? perguntou
o reumático. -É melhor que estar a balouçar-me, em
casa, a engolir uísque, sozinho, à espera ...
0 sol de Verão que penetrava no carro não o incomodava. Tinham-
se verificado pequenas alterações na paisagem desde a última vez
que ele passara por aquela estrada. Observou quanto crescera uma
determina árvore desde que ele a vira, reparou noutra que caíra,


álcas que haviam começado a ser cultivadas, ravinas inundadas,
uma cabana construída.


Antes de chegarem a Benson, Hammond parou à sombra e tirou do
fundo do carro um cesto com comida que Lucrécia Bórgia preparara
para que os patrões não tivessem de comer na taberna. Continha
galinha frita ovos cozidos, biscoitos de manteiga, tão frios que não
emanava deles o cheiro do bicarbonato. Não se esquecera de um
recipiente com ovos crus para Medes.


Os brancos comeram quanto lhes apeteceu, e o mais velho parava
ocasionalmente para entregar a cada um dos negros do assento de
trás um pedaço de galinha ou um biscoito. Quando todos acabaram,
Hammond passou o cesto aos rapazes para que comessem também.
Medes protestou suavemente quanto à ideia de beber os ovos crus
depois da outra comida, mas Hammond ordenou-lhe firmemente
que bebesse.
-Gostava de saber que tamanho terá o outro. 0 Holden diz que ele é
maior que o nosso -Hammond começava a ficar impaciente.
-0 Holden é um branco ordinário. Não sabe nada -disse o pai,
procurando acalmá-lo.
-Sempre queria saber se o homem de Nova Orleães trará um bom
rapaz para apostar -continuou Hammond. -Não queria apostar
todo este ouro.
-Pensas ganhar, não pensas? Então? É o mesmo, ouro ou negros.
Hammond desistiu, ou, pelo menos, não continuou a expressar em
voz alta a ansiedade que de certo sentia.
Apesar de chegarem cedo à taberna, era evidente que as coisas
tinham já começado a agitar-se. Havia meia dúzia de cavalos presos
à cerca e, da porta aberta, vinha um murmúrio de vozes.


Hammond estacionou a parelha à sombra de um grande bordo do
outro lado da rua, em frente da taberna, ajudou o pai a descer e



disse aos escravos que ficassem onde estavam. 0 filho ajudou o pai a
atravessar a rua, amparou-o para subir o pórtico, e conduziu-o até à
taberna. A conversa cessou, por deferência para com um
personagem tão importante. Redfield foi o primeiro a vir saudar o
seu amigo.

-Teve de vir. -riu Redfield. -Os rapazes com a idade do Ham,
apostam muito forte. Não confio, preciso segurá-los. Que tal vai o
reumatismo?
-0 doutor sabe que o Hammond é de confiança. Eu não me meto
neste combate. Apeteceu-me vir vê-lo, mas só como espectador. 0
Hamniond pode apostar todos os negros e todo o dinheiro de
Falconhurst, se quiser. Maxwell sublinhou o seu desinteresse, para
que a sua presença não prejudicasse o prestígio do filho na taberna.
-Eu estava a brincar -disse Redfield, reparando o seu erro. -0 Ham
não precisa que lhe mudem as fraldas.
Pérola apressou-se a surgir de trás do balcão e a arrastar uma
cadeira de verga com braços para o seu importante cliente, e
segurou-lhe no braço para o fazer sentar.
-Não vale a pena, não vale a pena -disse Maxweli,
simultaneamente repelindo e aceitando a atenção, satisfeito com a
recepção que lhe faziam. Uísque
para todos, o meu com água quente e um pouco de açúcar.
Tu pagas filho.
-Tem de esperar, senhor, enquanto aqueço a água. Maxwell piscou
os olhos, esforçando-se por se adaptar à escuridão do interior, após

o brilho do dia lá fora. Olhou para uma figura apoiada ao balcão e
perguntou:
-Aquele não é o senhor Brownlee?
0 outro, inseguro da recepção que teria, avançou e estendeu-lhe a
mão.
-Olha quem ele é, o senhor MaxwelI, muito bem! Muito bem! Penso
muitas vezes na minha visita à sua plantação, como se chama ela,

Falconhurst?, e na sua boa comida e bons escravos, especialmente
aqueles dois gêmeos. Gostava muito de lhos comprar. Sei onde
posso vendê-los, conheço uma pessoa que os queria, só para
estimação, apenas para estimação. Pago bem.
Maxwell abanou a cabeça e mudou de assunto.
-Que tal se deu com aqueles que me levou?
-Aqueles dois machos que não eram perfeitos? Não perdi nada admitiu
Brownlee, reconhecendo assim que os tinha vendido bem.
-Que tal vão os negros em geral? -perguntou Maxwe11.
-Estão caros, continuam caros. Não posso comprá-los.
-Pensei que talvez aquela lei da Louisiana os fizesse baixar.
Brownlee fungou.
-Ninguém presta atenção àquela estúpida lei. Claro, não podemos
vendê-los com pregão público em Nova Orleães, a menos que se
prove que estiveram durante um ano na cidade; mas os negros
sabem de onde vêm e ninguém se importa. Pérola trouxe o toddy de
Maxwell e esperou que ele o provasse.
Está bastante doce, senhor? -perguntou, preocupado e solícito. É o
melhor que tenho bebido -disse MaxwelI, saboreando a bebida.
0 grupo reuniu-se em volta do balcão para receber as bebidas pagas
por Maxwell.
-Será seu o rapaz que vai lutar com o nosso, senhor Brownlee? perguntou
MaxwelI, cheio de suspeitas.
-Quem me dera que fosse -disse o negreiro, erguendo a bebida em
saudação ao ofertante e engolindo-a. -Mandava passear tudo o
resto. Vale uma fortuna, pouco menos.
-Onde está ele? -perguntou Hammond a Pérola. -Onde está o
proprietário?
-Está a aprontar o rapaz, a massageá-lo. já vem -esquivou-se
Pérola. Quanto menos pressa houvesse, mais uísque se consumia.
-Claro, eu conheço o senhor Neri, vim com ele desde Natchez admitiu
Brownlee.
-Falou-lhe do meu lutador, suponho eu. Como podia ele saber?



-0 senhor não tinha qualquer lutador quando eu lá estive.
Comprou-o depois. Eu nunca o vi -protestou Brownlee, negando
qualquer interferência no combate.
A sala enchia-se. Alcorn trouxe o filho para Maxwell o ver.
-Este é o senhor de que te falei-explicou ele ao rapaz-, que tem
todos aqueles belos negros na sua plantação. Se tiveres cuidado,
trabalhares bastante e poupares o teu dinheiro, podes vir a ser como
ele. Não era bonito?
-Mas tem cuidado para não apanhares reumatismo -avisou
MaxwelI, lisonjeado por ser tomado como um exemplo para a
juventude e sem saber se devia negar a sua justeza.
0 gordo filho de Alcorn olhou-o de alto a baixo, sem expressão,
aceitando a avaliação do pai, mas sem saber bem como poderia
emular o grande homem e duvidando do motivo porque havia de
fazê-lo.
Lewis Gasaway andava por ali, à procura de Hammond. Viu o
Maxwell mais velho e parou para lhe apresentar os seus respeitos.
-Vejo que trouxe o Estrela. Está com bom aspecto. Vai apostá-lo?
perguntou. -Espero que não se aborrecesse com o que meu pai lhe
disse, senhor Maxwel]. Eu fiquei muito aborrecido por ele ir para
diante com aquilo.
-Eu conheço o seu pai.
-Não queria que o Hammond se zangasse comigo.
-Não se rale, Lewis. 0 Hammond gosta muito de si. Ele não se
zangou. Antes de Lewis se poder dirigir para o local onde se
encontrava Hammond, junto do balcão, abriu-se a porta lateral que
dava para os quartos da taberna e apareceu um homem moreno
atarracado e musculoso. Hammond percebeu quem era antes de
Pérola anunciar.
-Aqui está o senhor Neri!
-Ele veio? Aquele senhor Maxwell? -perguntou logo o italiano.
-Ele aqui está -indicou Pérola. Neri foi directo.
-Trouxe o rapaz? -perguntou a Hammond. -Quer fazer o combate?



-Ainda não vi o seu -disse Ham, recusando-se a comprometer-se.
-0 senhor também não viu o Medes -disse MaxwelI, impaciente, da
sua cadeira. -Não estás a escolher uma prostituta. Não se pode
dizer, só por olhar para ele, se sabe lutar. Ponham-nos a lutar, e logo
se vê quem ganha.
0 pai não queria que a prudência do filho o privasse do espectáculo
que o fizera vir de tão longe.
-0 senhor Maxwell é mais desportista que o Hammond -observou o
jovem Gasaway.
Maxwell ressentiu-se da comparação.
-0 Hammond é desportista, desportista como o velho Theophilus afirmou
com confiança. -Vai fazer o combate. Não vai pedir para
ver o outro, se aquele cavalheiro não quiser ver o dele.
-De qualquer modo tenho que ver o negro que ele aposta estipulou
Hammond, com estas palavras, demonstrou estar
disposto a fazer o combate sem examinar o adversário.
-Qual negro para apostar? Eu não faço combates por negros. Eu
luto por dinheiro, nada mais -declarou Neri, com ar de desprezo.
-Eu disse-lhe, senhor Maxwell, que o senhor Neri não devia apostar
negros -recordou Pérola.
Hammond olhou para o pai, que não se perturbou e perguntou:
-Quanto? Neri tirou do bolso um maço de notas e colocou-as sobre

o balcão.
-Estão aí cinco mil, tudo o que tenho. Absolutamente tudo. 0 senhor
Reminick anota as apostas, dirige o combate e decide.
Da multidão de espectadores saiu um suspiro audível, um dos
homens soltou um assobio de espanto. Alcorn elevou o seu gordo
filho à altura do balcão, para ele poder ver tanto dinheiro.
A proposta desorientou Hammond. Tirou a sua bolsa e sacudiu-a
sobre o balcão.
-Estão aqui quinhentos. Não arrisco mais. É tudo o que trago. Neri
agarrou no seu maço de notas, dobrou-o com desprezo e voltou a
metê-lo no bolso. Começou a afastar-se.

-Espere! -disse Redfield, fazendo Neri voltar-se. -Eu aposto
duzentos no macho do Ham. Não tenho aqui dinheiro, mas o Pérola
sabe que sou de confiança.
Lewis, Gasaway avançou e colocou cinquenta dólares ao lado da
pilha de ouro de Hammond.
-Eu apoio o negro do Ham -declarou.
-Eu não arrisco o meu Topázio, por meia dúzia de cobres. Não
tenho receio de que não ganhe, mas pode ficar ferido. Não o ia
estragar por setecentos e cinquenta, de qualquer modo. Dois mil e
quinhentos, é o mínimo.
-Cobre! Cobre o valor! -disse Maxwell a Hammond.
-Não trago mais de quinhentos. Não aposto mais, só se for um
negro. A prudência de Hammond foi superior à sua humilhação.
-Vai ao banqueiro Meyer. Ele que te dê dois mil até segunda-feira insistiu
Maxwe11. -Eu assino. Não leva mais do que um minuto, ou
meia hora.
-Quando tivermos que pedir dinheiro para apostar, deixo de lutar.
Não temos dívidas e não vou ficar a dever -afirmou o filho.
-Bem -disse o velho, esforçando-se por se levantar. -Se não vais
pô-lo a lutar, acho melhor levarmos o mandingo para casa e colocálo
por cima da lareira para exposição. já empalhou algum negro,
doutor Redfield? Acha que pode dar-lhe um ar natural? 0
Hammond deve querer empalhar o seu mandingo. É dele. Eu não
digo nada.
-Ainda tem aqueles dois gêmeos, senhor Maxwell? -perguntou
Brownlee, destacando-se da multidão. -Continuam a ser perfeitos,
não estão hipotecados?
-já ouviu o meu filho dizer que não temos dívidas.
-Dou ao senhor Neri dois mil pelos dois se ele os ganhar. juntam-se
os quinhentos de Hammond contra os dois mil e quinhentos do
Neri propôs o negreiro. -Sabe que aqueles enfezados não valem
tanto, mas eu dou-lhe isso, dois mil. Tenho um doido em Nova
Orleães que quer negros especiais. Só para estimação, nada mais.


Não precisa de preocupar-se com o destino deles. Vivem, o melhor
que é possível.
Maxwell voltou a sentar-se e mandou servir outra rodada.
-Como sabe, pai, prometemos à Lucrécia Bórgia -interpôs
Hammond. -Não os podemos vender sem ela dizer.
-Não vamos vendê-los, só apostá-los -raciocinou MaxwelI, para
expor a distinção de situações.
-Promessas feitas a uma negra! -troçou Brownlee. -Ninguém
cumpre uma coisa dessas!
A oferta era atraente. Mil dólares por cada um dos garotos. Eram
mais valiosos em conjunto do que separadamente, era certo, eram
negros de primeira, bem feitos de corpo, espertos e responsáveis.
Por outro lado, havia a hipótese, uma hipótese remota, de não
virem a transformar-se em homens grandes e musculosos. Maxwell
recordava-se de que, antes da guerra com a Inglaterra, os irmão La
Fitte tinham contrabandeado negros em Nova Orleães a peso. 0
peso também tinha valor e os gêmeos nunca seriam muito grandes.
Mesmo em criados para casa, o tamanho e a musculatura tinham o
seu valor.
A barriga de Kitty ou mesmo de Tigre serviam tão bem como a de
Alph para receber o reumatismo de Maxwe11.
Maxwell bebeu um golo de toddy que Pérola lhe trouxera.
-A decisão é do Ham. Os gêmeos são dele, também. Se fosse eu,
aceitava, senhor Brownlee. Mas não sou eu a decidir.
-0 seu vai ganhar, de qualquer modo, Hammond -argumentou
Pérola. Não há perigo.
-Mas eles não estão aqui. Não posso apostá-los -disse Hammond.
-Eu passo por lá amanhã para os ir buscar, se Neri os ganhar.
Confio em si. Aposto os meus dois mil, juntamente com os seus
quinhentos, contra os dois mil e quinhentos do senhor Neri. Se ele
ganhar, fica com o dinheiro todo e eu fico corri os dois escravos.
Hammond, relutantemente, contra a sua própria opinião e com o
coração tomado pelo medo, concordou com a aposta. Neri não


compreendeu o acordo ou fingiu não o compreender. Foi preciso
explicar-lhe duas vezes.
-Está tudo bem -acrescentou ele -, desde que eu receba o dinheiro.
Entreguem o dinheiro real ao senhor Rerrimick. Mas não me
responsabilizo por que esses Maxwell lhe entreguem os negros se
perderem. julgava que eles eram ricos, se não teria vindo. Se não
podem pagar, ainda estamos a tempo.

Hammond esvaziou de novo a sua bolsa sobre o balcão. Brownlee
contou dois mil dólares e Neri igualou a soma das duas verbas.
Pérola juntou-se-lhes avidamente, embrulhou o ouro nas notas e
colocou tudo no bolso. Neri pagou uma rodada a todos, ergueu o
copo para Hammond e, mal tocando no uísque, pô-lo de lado.
-Guardamos o grande combate para o fim -anunciou Pérola. -Os
outros cavalheiros não trouxeram os seus lutadores?
-Com excepção do senhor Gore, mais ninguém trouxe -disse
Holden ao empresário. -0 negro do Gore não pode lutar sozinho.
-Pensei que com o combate entre o negro do Ham e o outro não
haveria interesse em mais combates -disse Alcorn
apologeticamente. -Podia ter trazido um.
-Também eu -murmuraram uns para os outros, diversos homens,
alguns dos quais nem sequer tinham escravos.
-Para dizer a verdade, corno meu velho a espiar-me, não consigo
trazer nenhum. Bem tentei-confessou Lewis Gasaway, rindo-se,
embaraçado. -Não quer que eu entre em lutas, a menos que ganhe.
-Bom, tragamos vossos dois lutadores -consentiu Pérola. -Vamos lá
vê-los.
Tinha atrasado o combate o mais possível, mas agora a multidão
estava a ficar impaciente e os menos ardentes eram susceptíveis de
partir. Não se estavam a vender bebidas.
Redfield seguiu Harrimond ao outro lado da estrada, para ir buscar
Medes, enquanto Neri desaparecia pela porta lateral para trazer o
seu lutador. Maxwell conservou-se sentado. Gasaway, Gore, Ky1e e


alguns outros foram até ao pórtico, mas não se atreveram a sair para

o sol escaldante. A maior parte dos homens começou a dispor-se
junto do balcão, para ver aparecer o novo lutador. A divisão da
multidão era um indicativo de partidarismo, embora alguns
homens reservassem a sua decisão até
verem os lutadores, e outros, que não tinham intenção de apostar,
apenas estivessem interessados no combate em si, sentindo-se
indiferentes perante qual seria o vencedor.
Medes estava a dormir na parte de trás do carro, de boca aberta, um
braço sobre o ombro de Estrela que se aninhava contra ele, também
adormecido. Kit estava pacientemente sentado, observando o que
conseguia ver do que se passava na taberna. 0 sol mudara de
posição e o carro já não estava à sombra, embora os flancos dos
cavalos estivessem. Hammond estendeu o braço por cima de Kit,
agarrou numa perna de Medes e abanou-a para o acordar.
-Anda! Desce daí. Vai começar -, disse o proprietário sem lhe largar
a perna.
0 quê, patrão, siô? -perguntou o escravo indiferente. Tu só pensas
em dormir -censurou Hammond. -Não pensas em lutar. Não
pensas em nada! Acho que vamos ser vencidos. 0 outro é um
gigante, toda a gente diz!
0 facto de ninguém ter dito tal coisa, não alterava o conceito que
Hammond tinha tido do adversário de Medes, devia ser um dragão
a lançar chamas pela boca. À medida que a hora do combate se
aproximava, o lutador de Neri tornava-se mais formidável para a
imaginação de Hammond.
-Continuo a apostar os meus duzentos dólares, se encontrar
alguém. -A confiança ou a lealdade de Redfield eram inabaláveis. Ele
vai portar-se bem. Não esteja tão nervoso.
0 proprietário e o veterinário puseram-se um de cada lado do
enorme negro e atravessaram com ele a rua. 0 grupo que estava no
pórtico abriu caminho para permitir a entrada dos três e seguiu-os.

Se Hammond ouviu o pedido de Kit: "Patrão, siô, por favô, eu pode
ir tamém?" não lhe respondeu.
A multidão deixou um espaço em aberto em frente da cadeira de
Maxwell, onde Hammond parou. Os homens juntavam-se para
verem o lutador, por cima dos ombros dos outros, e este, consciente
da observação e ainda não totalmente acordado, começou a flectir
nervosamente os músculos e a mudar de posição.
-Está quieto. Não és um garanhão -ordenou o velho. -Despe-te e
deixa as pessoas verem-te.
Medes olhou para Hammond à espera da confirmação da ordem e,
tendo recebido um aceno de cabeça, começou a despir as duas peças
de roupa, que atirou para o chão, aos pés de Maxwe11. Ficou nu,
enorme, em frente da multidão, incapaz de se impedir de flectir os
músculos. Tentou controlar-se, no entanto.
-Que tal te sentes? -perguntou-lhe Hammond solícito.
-Não vês? Está óptimo. Acalma-te, filho -disse o velho. Um
murmúrio de discussão perpassava entre os observadores.
-Posso tocar-lhe, papá? -perguntou o filho de Alcorn, na primeira
fila.
-Acho que podes -concordou o pai. -Aquele cavalheiro não se
importa. Quando cresceres terás que ser um bom juiz do valor dos
negros.
Dois ou três adultos estenderam os braços para tocar no negro, com
admiração. Alonzo Ky1e comentou, um pouco ociosamente para
Hammond:
-Parece-me um pouco gordo, não acha? Só um poucochinho.
Redfield acorreu imediatamente em sua defesa.
-Não tem gordura nenhuma, nem um bocado. É todo ele carne. É
mesmo de compleição grande.
Hammond resmungou, ou por gratidão para com o doutor, ou
porque duvidava de que a acusação não fosse verdadeira, nem ele
próprio sabia.


A porta lateral abriu-se e Neri apareceu, seguido do seu gladiador,
nu e brilhante, e a multidão desviou a sua atenção, deixando Medes
só, em frente da cadeira de Maxwe11. Mesmo Hammond, ansioso
por apreciar o adversário, acompanhou os outros. MaxwelI, que se
sentiu abandonado, estendeu um braço para Medes para que o
ajudasse a levantar-se da cadeira, e o negro nu amparou-o enquanto
ele se dirigia para a multidão que rodeava Neri e o seu homem.
MaxwelI, uma vez que o combate já estava decidido, sentia menos
curiosidade do que o filho em relação ao outro lutador; era apenas o
desejo de não ficar isolado que o levava a avançar para o círculo
dentro do qual se encontravam Neri e Topámo, impacientes com o
atraso. Medes, notando que o seu patrão mais velho não conseguia
ver Topázio por cima da multidão que estava à sua frente, inclinou-
se e levantou-o até ao ombro. Maxweli, ressentindo-se da
implicação de que não era suficiente alto para ver por cima da
multidão, deu um pontapé ao rapaz com o tacão da bota e exigiu-
lhe que o pusesse no chão.

Mas tinha podido observar bem Topázio, um mulato esbelto,
possivelmente com um quarto de sangue branco, cuja altura
Maxwell avaliou em vinte palmos. De facto, deviam-lhe faltar umas
boas duas polegadas para tal, mas era alto, obviamente mais alto do
que Medes. A impressão total que Maxwell colheu do negro era a
de comprimento, comprimento das pernas, comprimento dos
braços, comprimento do corpo, comprimento do pescoço,
comprimento da cabeça, comprimento de todo ele, comprimento e
esbelteza, fibrosidade. Os músculos estavam agrupados e visíveis
individualmente, como se fossem articulações, Maxwell não
conseguira avaliar a capacidade do enorme tórax, que lhe pareceu
do gênero de peito de pombo. Os ombros longos e inclinados
pareciam mais largos do que eram pelo contraste com a estreiteza
da parte de baixo do corpo, que formava uma cintura pequena e
flexível e ancas estreitas. A formação das costelas sobressaía, o que


levou Maxwell a pensar, ou pelo menos a esperar, que o negro
estivesse mal alimento, apesar de raciocinar que nenhum
proprietário arriscaria o seu dinheiro num negro a morrer de fome.


Topázio já não era um jovem, tinha trinta ou possivelmente trinta e
cinco anos de idade, talvez já tivesse passado as suas premícias
como lutador, mas estava amadurecido e experimentado em todos
os truques e estratégias da vocação a que o haviam forçado. Os
cabelos do peito, cortados, cobriam mas não escondiam um
crucifixo tatuado, suspenso de uma corrente também tatuada, em
volta do pescoço. Não era permitido, pelas regras da luta, usar um
crucifixo ou uma medalha religiosa, mas Neri confiava na tatuagem
corno protecção. A protecção que ela oferecia não era apenas divina,
mas também mundana, visto que nenhum antagonista atingiria
aquele símbolo. Aplicar um golpe sobre a tatuagem atrairia a
derrota, não só às mãos de Topázio, mas também às de Deus.


Era fácil ver que os dois incisivos do lado direito do seu maxilar
superior estavam quebrados ou arrancados, enquanto os outros
dentes visíveis estavam estragados e manchados. Contudo, o mais
repelente naquela feia criatura era a ausência de orelbas.


Os modos abruptos de Neri e a sua conversa lacónica
desencorajavam as perguntas, mas Holden, inclinando-se sobre o
ombro de Asa Gore, aventurou-se a perguntar:
-Que sucedeu às orelhas dele? Nunca as teve? Neri pareceu ficar na
defensiva e respondeu:
-Rasgaram -lhe uma numa luta, há muito tempo; e, ao cortar-lha,
achei melhor tirar-lhe também a outra. Não foi, Topázio? Evitou que
lha arrancassem também.
Topázio inclinou a cabeça para ouvir o amo.



-Sim, siô, evitou qu'arrancassem ela -concordou. -Num tem nada
pra rasgá -acrescentou, com uma risada por entre o vazio da sua
dentadura.
-No entanto, as queimaduras não fui eu quem lhas fez. já as tinhas
quando o comprei -disse Neri, auto-absolvendo-se de mutilações
desnecessárias no seu escravo.
-Sim, siô -elucidou Topázio, apalpando atrás. -0 patrão Henry
queimou o meu rabo por eu não querê lutá; foi já faz muito tempo
quando eu num tinha pó. Tinha medo, nessa altura. Agora já num
tem. Patrão, dá o pó agora.
Era uma sugestão, uma súplica, e Neri satisfê-lo. Tirou um
frasquinho do bolso e despejou na mão de Topázio um pequeno
cone de pó branco que o negro levou ao nariz e aspirou
profundamente. Limpou os resíduos na coxa, deixando uma marca
mais clara na pele.
-0 que é essa coisa com que ele está lambusado? -perguntou Lewis
Gasaway, notando que o pó ficara imediatamente humedecido.
-Não é nada, é só gordura -replicou Neri, brandamente. -Aqui não
costumam besuntá-los com gordura antes dos combates? Ficam
escorregadios e os golpes deslizam. Impede o outro de se agarrar.
Hammond olhou para Medes, cuja banha de cobra poderia ter
servido para o mesmo fim.
-Ponham-nos ao lado um do outro -sugeriu Pérola -, para estes
senhores poderem ver em qual querem apostar.
Hammond avançou, a coxear, agarrou Medes pelo braço e levou-o
para o centro da multidão, para que se tornasse possível a
comparação. Topáz10 estava esteticamente em desvantagem em
relação à jovem simetria negra de Medes, embora fosse mais alto do
que ele. A opinião geral era de que os escravos estavam bem
emparelhados.
-0 tempo está a correr, meus senhores -anunciou Pérola. -Não
querem apostar?


Redfleld, Gasaway e alguns outros fizeram as suas apostas no
mandingo, que Neri cobriu imediatamente, olhando em volta à
procura de novas vítimas. Alcorn apresentou dez dólares, mas Neri
recusou-se a aceitá-los, com desprezo, Alcorn começou à procura de
quem quisesse aceitá-los. Como Neri se recusasse a cobrir a sua
aposta sobre Medes e os outros homens ignorassem a sua oferta,
acabou por dividir os seus dez dólares em duas moedas de cinco,
apostando metade no escravo de Neri e a outra metade no dos
Maxwell; assim estava seguro de ganhar. Também propôs uma
aposta contra a moeda de cinco cêntimos que o filho guardava como
um tesouro dentro do bolso das calças, dando a escolher ao rapaz
qual dos adversários preferia. 0 garoto tirou a sua moeda do bolso,
disposto a fazer a aposta, mas insistiu em que esta fosse entregue a
Pérola, que estava demasiado ocupado para ligar a tal
insignificância. Alcorn finalmente satisfez o seu rebento pegando na
sua própria moeda de cobre e dando-a ao rapaz para a entregar.
-Não sei em qual vou apostar -ponderou o seu descendente. -Em
qual vai apostar, pai? Eu quero apostar naquele que vai ganhar.
-Isso ninguém pode saber, rapaz -explicou o pai. -Se alguém
soubesse isso, não valia a pena os negros lutarem. Tens que escolher
e arriscar-te.
Por toda a casa ecoava um ribombar de conversas, reclamações e
contra-reclamações, opiniões e refutações, argumentos e contra-
argumentos. Ninguém ouvia o que os outros diziam. Todos os
brancos, com excepção do filho de Alcorn e de Neri, tinham estado
a beber; alguns deles já tinham bebido de mais, já se tinha esboçado
mais de uma luta entre os espectadores, que Reminick, saindo de
trás do balcão, facilmente acalmara. Pérola mantinha a ordem na
sua taberna e todos sabiam disso. Além disso, ninguém se queria
arriscar a ser expulso, pois não poderia ver o combate.
Reminick demorou as coisas tanto quanto podia. Só havia um jogo
no programada tarde e todos os clientes se iriam embora logo que
ele acabasse. Os homens tinham feito as suas apostas; a venda de


uísque parara; o círculo em volta dos lutadores dissolvera-se; e os
grupos de três e quatro pessoas que falavam e especulavam sobre o
combate começavam a ficar impacientes.
-Vamos começar. Os cavalheiros podem ir andando para o pátio.
Vamos começar -proclamou Pérola; e, lembrando-se, avisou
Holden: -Traz a cadeira do senhor MaxwelI, Sam, e coloca-a à
sombra, em sítio onde ele veja bem.
-Não há sombra, a não ser ao pé da vedação -respondeu Holden,
pegando na cadeira.
A multidão encaminhou-se para a porta das traseiras, rapidamente
mas em ordem. Toda a gente queria um lugar melhor, mas não
lutavam por ele. Holden escolheu o local mais liso que conseguiu
encontrar para colocar a cadeira de MaxwelI, de costas para
ocidente, para que o sol não desse nos olhos do seu ocupante. Lewis
Gasaway ficou cortesmente para trás, a fim de conduzir o inválido
ao lugar de honra para ele reservado. Os espectadores tomaram
lugar em volta de uma álca circular demarcada pela cadeira de
Maxwell, de um lado, e pelo filho de Alcorn, acocorado como uma
rã, do outro.

Brownlee, que se mantivera discretamente afastado de Neri,
colocou-se, no entanto, por trás dele, para lhe prestar toda a ajuda
de que pudesse necessitar; e Redfield, abertamente partidário,
apressou-se a secundar Hammond. A ajuda deles não era
necessária. Holden encheu o púcaro de lata que reservava para os
negros e colocou-o sobre o balcão, mas nenhum dos proprietários o
empregou. Topázio estendeu o braço para Neri, abrindo e fechando
a mão nervosamente. 0 proprietário, reconhecendo o significado do
gesto, extraiu o frasquinho do bolso e despejou um conezinho de pó
sobre a mão aberta do escravo. Com habilidade e segurança,
Topázio ergueu a mão e o pó desapareceu, numa única inspiração.
-Há mais no frasco. Está meio cheio. Se ganharmos... -prometeu o
patrão.


-Eu vai ganhá -afirmou o negro.
-Claro que vais -disse Neri, dando uma palmada no ombro do
negro, com segurança e afecto.
Redfleld deu uma cotovelada a Hammond.
-Eu sei o que ele está a dar-lhe -confidenciou, com conhecimento
de causa. -Dá-lhe forças enquanto dura, mas não dura muito
tempo. Está a contar ganhar depressa. Diga ao seu rapaz que lute
lentamente, que o canse.
-Este negro não consegue ganhar, de qualquer maneira -admitiu
Hammond. -Não tem treino, não consegue. Fui parvo. Aquele
Topázio está bem preparado.
-Nós vamos ganhar -afirmou Redfield, com uma demonstração de
confiança que não sentia. Voltou-se para Holden, que estava por
trás do balcão. -Dê um uísque ao senhor Maxwell. Está a precisar
de um.
Pérola apareceu à porta, impaciente com o atraso. Neri e o seu
lutador estavam à espera no ringue, já prontos.
-Vamos -disse Hammond. Dirigiu-se, a coxear, para a porta aberta,
seguido pelo enorme mandingo, na sua bárbara nudez de bronze,
com Redfield atrás. A multidão abriu-se, para lhes dar lugar no
ringue, e Redfield dirigiu-se até à cadeira de Maxwell e acocorou-se
ao lado dele.
Pérola caminhou até ao centro da álca e ergueu a mão,
superfluamente, para que se fizesse um silêncio que já se havia
estabelecido entre os espectadores que torravam ao sol.
-Finalmente estamos prontos. Vamos começar. Não sei por que foi
todo este raio deste atraso -disse, protestando contra o compasso de
espera.
-Todos estão ao corrente deste acontecimento. Sabem que o
combate é entre o senhor Nerí que veio directamente de Nova
Orleães, corri o seu negro, e o senhor Ham Maxwell de Falconhurst,
com o seu negro que todos j.a aqui viram lutar antes. 0 rapaz do
senhor Neri chama-se Topázio, ou coisa parecida.


-Está certo, Topázio -disse Neri, acenando afirmativamente com a
cabeça.
-0 do senhor Maxwell chama-se Medes. São os maiores negros, e os
melhores, que já honraram esta arena. 0 senhor Neri e o senhor
Hammond apostaram muito neles, em dinheiro e em negros.
Ambos os machos foram bem treinados, ao que parece. Vamos ver
qualquer coisa de especial, qualquer coisa como em Benson nunca
se viu, até agora, algo como só se faz em Nova Orleães. -E
terminou, como sempre, dizendo: -Comecem a LUTAR -e baixou o
braço.

Neri avisou Topázio de que não se esquecesse de se benzer e ele
próprio fez o sinal da cruz sobre a testa.

Os proprietários colocaram simultaneamente as mãos sobre os
ombros dos lutadores e impeliram-nos para a frente, para o meio da
arena. Topáz10 avançou, com um jogo de pés para demonstrar a sua
ansiedade de lutar, e os seus olhos porcinos fixaram os
espectadores, para colher a sua apreciação. Se Medes estava
igualmente interessado, não o mostrou. Caminhou, impassível, até
ao centro da arena, plantou os pés numa base só lida e ergueu os
braços, para se defender. Mas a sua defesa era fútil. Topázio
começou a dançar à volta dele, atingindo-o com os seus longos
braços, quase à vontade, e forçando-o a mudar desajeitadamente de
lugar. Uma dúzia de socos poderosos atingiu os locais exactos a que
se destinava, enquanto urna dezena de outros menos potentes era
desviada do alvo pretendido. Um punho poderoso atingiu, com
forte impacto, a área por baixo do olho de Medes, que começou a
inchar, outro cortou-lhe o grosso lábio superior, que sangrou
profusamente, e um outro ainda atingiu-o na região mesmo por
baixo do coração.


Topázio era um boxeur hábil e preciso. Continuou a divertir-se,
antes que Medes se apercebesse bem do que se passava, aplicando
sempre os socos nos pontos que desejava atingir. Medes aparava os
golpes o melhor que podia, mas de cada vez que aparava uma finta
da direita de Topázio, este atacava-o com a esquerda e atingia o
alvo. Medes parecia incapaz de contra atacar, incapaz de aparar os
golpes, incapaz de se mexer. Aceitava o castigo, impassível.

Não era um combate, era um simples flagelamento. Os espectadores
começaram a zombar.

Topázio parou de dançar. Estava a gastar a sua energia para se
defender de um inimigo que não o atacava, a gastar a sua
habilidade com um adversário impotente. Medes, no entanto,
absorvia os golpes como um saco de areia. Ficava simplesmente
parado, recebendo os golpes do outro. Imperturbável, como um boi
num sacrifício.

Topázio recuou para respirar fundo. Sentia-se fatigado. Mas voltou
à carniça com uma nova fúria. Mais um soco e outro ainda. Mas
estes não faziam qualquer efeito sobre o bloco de granito que era o
seu imóvel adversário. Começou a insultar Medes, a maldizê-lo, a
rebaixã-lo -com cada murro, um insulto, reflexões sobre os seus
antepassados, a sua origem, a sua vida, a sua natureza, as suas
práticas e a sua progenitura até ao fim dos tempos. Um escravo não
tinha honra para defender, mesmo que Medes tivesse
compreendido o opróbrio que o adversário lançava sobre ele. Para
Medes, mesmo as palavras em inglês eram vagas e sem significado,
e o inglês é deficiente em ofensas. A língua inglesa é demasiado
escrupulosa. Mas Topázio falava numa linguagem que era um
misto de crioulo francês e italiano deturpado, com os quais se
abastecera de um vocabulário pícrico. Apenas conhecia metade do
significado das suas invectivas, mas sabia que eram porcas,


imundas e injuriosas. As palavras que jorravam da boca desdentada
de Topázio caíam, inofensivas e incompreendidas, sobre o seu alvo.
Não conseguiam irritar Medes.

Mas ele já apanhara socos suficientes. Avançou, não fazendo
qualquer esforço para se proteger. Equilibrou-se, fechou o punho e
desferiu um potente soco no esterno do adversário, atingindo-o
mesmo sobre o crucifixo. Neri abriu a boca de espanto perante a
temeridade de Medes; aguardou a ira divina. Topázio recuou dois
passos a cambalear. Medes aplicou-lhe outro murro no mesmo
local. Topázio cambaleou de novo, escorregou numa pedra e caiu de
costas. Medes mergulhou e caiu por cima dele, prendendo-lhe os
ombros ao chão. Topázio conseguiu libertar os braços, que se
encontravam presos entre ambos, abraçou a cintura de Medes e,
com as compridas unhas dos seus longos dedos, rasgou a pele das
costas de Medes. Oito fios de sangue correram por entre o suor.
Topázio voltou a arranhar as costas de Medes, destruindo o
desenho inicial. Apareceu mais sangue que escorreu pelas costas do
negro.

Medes tentou desenlaçar as pernas das do adversário, mas Topámo
era demasiado ágil. Conseguiu aplicar curtos punches no rosto de
Topámo, mas faltava-lhe balanço para o braço. Estendeu a mão para
arrancar o olho de Topázio, mas o esperto mestiço retorceu-se no
chão, atirou o corpo de Medes para o lado, e pôs-se de pé de um
salto. As suas costas também estavam arranhadas pelas pedrinhas
do chão e o seu suor misturava-se com terra. Não corria sangue das
suas arranhadelas, embora Topázio sentisse o seu ardor. Quando
Medes tentou levantar-se, um rápido murro de Topázio obrigou-o a
sentar-se, mas, estendendo os braços, agarrou-se ao joelho de
Topázio e fê-lo cair, com a cabeça no seu colo. Topázio descobriu os
dentes partidos, para morder os órgãos genitais de Medes, mas,
com uma reviravolta, este impediu-o de o fazer, libertou as pernas


do corpo de Topámo e pôs-se de pé. Topámo, mais ágil, também já
estava de pé. Recomeçou a dançar, a disferir socos cáusticos,
pungentes, de surpresa, na cabeça e na cara de Medes. Medes
sentia-os, escondia a cabeça para os evitar, mas havia pouca força
no seu impacto. Incomodavam-no e faziam-lhe doer, mas não o
abalavam nem o faziam oscilar. Tinha o rosto ferido e inchado, o
olho esquerdo quase fechado, o sobrolho cortado e a sangrar, mas
no seu olho direito havia um olhar de confiança e desprezo. Topázio
já não dançava, as suas pernas e os seus pés haviam perdido a
elasticidade. Os seus punhos continuavam a voar, mas os seus
braços estavam cansados. Perdera a insolência e o seu rosto estava
sombrio, sem sangue, a sua pele clara estava pálida. Também as
suas invectivas haviam cessado. Caíra no silêncio.

Maxwell reclinou-se na sua cadeira, rindo-se silenciosamente com o
espectáculo. 0 facto de o seu negro estar a ser batido, prejudicava
mas não destruia o seu prazer em ver o combate. Admirava a
habilidade de Topázio, a certeza e a precisão dos seus golpes, a
agilidade com que aparava o pesado murro que ocasionalmente
Medes lançava na sua direcção. Um negro treinado na província
não podia esperar competir com um treinado na cidade -um
labrego desajeitado contra um perito treinado. Maxwell admirava o
vencedor. Não lhe negava superioridade só porque não era o seu
proprietário. Podia rir-se, mesmo derrotado.
-Os meus duzentos ainda não estão perdidos -murmurou Redfield,
sobre o ombro de Maxwell.
-Bem pode dizer-lhes adeus -disse MaxwelI, erguendo o olhar para

o amigo.
Medes encontrou uma abertura e disferiu um murro na longa
queixada de Topázio que o fez recuar e cambalear. A mão de
Topázio subiu até à cara para apalpar o equimose e para averiguar
se a mandíbula estaria partida. Houve um longo suspiro dos

espectadores, que se voltaram uns para os outros, fazendo
comentários inseguros.
-Ainda não está acabado. Penso que isto esteja quase no fim.
-Jesus!
-Aquele negro do Hammond Maxwell é muito poderoso, quando
consegue lá chegar.
-0 mal é que o outro nunca está quieto. Alonzo Ky1e esfregou o seu
próprio queixo, tão vívida fora a sugestão do murro de Medes.
Hammond Maxwell começou a avançar em direcção a Brownlee.
Estava consternado, lívido, perante a ideia da derrota e da perda
dos gêmeos.
-Senhor Brownlee -murmurou ele. -Eu dou-lhe os dois mil dólares
pelos rapazes. Eles não valem isso, mas o meu pai não sequer
separar deles.
Brownlee abanou a cabeça.
-Dois mil e quinhentos. já lhe deixa um lucro de quinhentos dólares
para si.
-Eles são especiais. Eu vou vendê-los por cinco mil. Levo-os para
Nova Orleães. Está um francês à espera deles.
A luta parecia decidida, mas prosseguiu. Os espectadores perdiam


o interesse. Um grupo de três homens voltou à taberna para beber,
chamando Holden, que estava junto da arena, para os servir.
Ninguém estava a prestar grande atenção ao combate, que já durava
havia perto de uma hora.
Os negros lutavam corpo a corpo, cambalearam, caíram, e
rebolaram-se no chão. Medes ajoelhou-se sobre os órgãos genitais
de Topázio, carregando dolorosamente com os joelhos. Puseram-se
novamente de pé e Topázio ia disferindo golpes leves que Medes
aparava o melhor que podia. Medes derrubou de novo Topázio,
caiu sobre ele e foi de novo repelido. Mais uma vez se levantaram e
trocaram murros e cambalearam. 0 peso de Medes caiu sobre os
ombros do outro, enquanto Topázio o socava nos rins. Os efeitos do
pó que Topázio aspirara tinham-se desvanecido e era evidente que

ambos começavam a ficar cansados. A vitória de Topázio estava
prevista por todos, mas Medes teria que lutar até já não se poder
mover ou até o seu dono o retirar da arena. A luta prosseguiu, lenta,
laboriosa. Os homens rolaram pelo chão, cada um deles tentando
tirar o outro de cima de si, depois levantaram-se e cada um deles
tentou aparar os golpes do outro. Novamente caíram no chão.
Rolaram inúmeras vezes e socaram-se, até atingirem o extremo do
círculo onde o filho de Alcorn estava acocorado, o que o obrigou a
recuar, para não ser atingido por eles. Alcorn, no seu ressentimento,
deu-lhes pontapés, atingindo Medes nas costelas. Os lutadores
esforçaram-se por se levantar, lenta e laboriosamente. Ambos
respiraram fundo; estavam ofegantes, suados e cobertos de sangue.
Uma dúzia è< vezes mais se ergueram e trocaram socos e caíram e
rolaram pela arena. A vitória era conclusiva, mas não estava
concluída.

Medes caiu desajeitadamente de joelhos e Topázio conseguiu pôr-se
de pé, mas só momentaneamente, porque Medes se arremessou
para a frente e o lançou ao chão. Voltaram a rolar no chão, na
direcção da cadeira de MaxwelI, que ele desviou um pouco para
sair do caminho deles. Topázio estava por cima. Medes meio caído.
Pararam assim, por uns momentos, ofegantes. Ficaram deitados um
sobre o outro, tal a exaustação. 0 sangue das costas de Medes
misturara-se com a terra e secara, mas continuava a escorrer dos
cortes e equimoses do seu rosto, misturando-se com o suor, antes de
cair sobre o corpo ou para o chão. Cansados, demasiado cansados
para lutar, deixaram-se ficar um sobre o outro, com os braços de
Medes apertando fortemente a cintura de Topázio. Não se moviam,
com excepção de uma ocasional tremura de energia, que perpassava
os músculos de Topámo. A cabeça deste apoiava-se na de Medes, e
parecia que estava a sufocar Medes contra o seu ombro. 0 fim
aproximava-se. Até os espectadores estavam exaustos com o calor e
a tensão da luta. 0 Sol, porém, cada vez


estava mais alto no céu.
Não valia a pena prolongar aquela quietude. Topázio ganhara, era
inegável. Pérola entrou na arena para o afastar, com um pontapé, do
seu adversário, e conceder-lhe a vitória. Quando se encaminhava
para eles, ouviu-se um grito gorgolejante de um dos negros e houve
urna convulsão dos ombros de Topázio que lhe percorreu as costas
e o corpo todo. As suas pernas torceram-se e contorceram-se.
Perante a promessa de mais acção, Pérola saiu da arena e ficou à
espera. A convulsão parou, mas os negros continuaram abraçados.

Passaram-se segundos, um minuto, e eles continuavam quietos.
Pérola entrou de novo no ringue. Redfield olhou para o chão e viu
sangue, uma poça de sangue que cobria o chão junto do ombro de
Medes, antes de ser absorvida pela poeira. A poça alargava. 0 corpo
de Topázio> retorceu-se de novo, e a sua perna deu um estranho
esticão. Pérola chegou junto do local onde os dois lutadores jaziam e
estendeu um braço para retirar Topázio de cima da sua vítima.
Topázio estava mole e inerte. Pérola voltou-o. Corria sangue do seu
pescoço e dos seus ombros. Pérola compreendeu então que Topámo
estava morto.
Liberto do seu peso, Medes moveu-se para se erguer, mas caiu de
novo sobre a poeira. Conseguiu mover uma perna e flectir o joelho.
A sua boca e os seus dentes estavam manchados do sangue que lhe
corria pelo rosto. Tinha aberto caminho, à dentado, no pescoço de
Topázio e cortara-lhe a veia jugular. No chão, onde Medes o
cuspira, encontrava-se um pedaço de carne ensanguentada. Pérola
afastou Topázio para o lado, com o pé, e ajudou Medes a levantar-se
e a sentar-se, mas ele caiu de novo, de costas no chão.

Hammond precipitou-se para a frente, espantado com a sua vitória.
Pérola ergueu a mão para anunciar a sua decisão e para dizer à
multidão que haveria mais combates no sábado seguinte, mas
ninguém o escutou. Alguns homens reuniram-se em volta do


cadáver de Topázio. Outros, em maior número, avançaram para o
bar. A excitação terminara. Holden trouxe um balde de água e
despejou-o sobre Medes. A água refrescou-o e ele sentou-se, mas
não conseguia levantar-se. A água, misturada com o sangue e o
suor, escorria pelo seu rosto maltratado.

Neri aproximou-se e inclinou-se sobre Topázio, para ver o que o
matara. Satisfeito, encolheu os ombros e deu um pontapé de
desprezo, com a ponta da bota, no corpo inerte.

Hammond eRedfield, um de cada lado de Medes, ajudaram-no
apôr-se de pé, ainda inseguro. Levaram-no até à taberna onde
estavam as suas roupas. Ele deixou-se cair no chão, onde Hammond
se esforçou por lhe enfiar as calças, e Redfield foi até ao balcão
requisitar um púcaro de uísque para o negro.

Hammond pegou no púcaro e levou-o à boca de Medes. -Bebe isto,
ordenou-lhe. -Onde te doi?
-Estou cansado, estou só cansado -disse Medes, tentando sorrir,
mas não conseguindo mais do que distorcer o rosto inchado.
-Ganhámos. Ganhámos o combate. Matámos o negro -disse-lhe
Hammond que não estava certo de que Medes se tivesse apercebido
do facto.
-Sim, siô, patrão, siô -disse Medes, tomando nota da informação. Leve-
me para casa, por favor, siô. Quero a velha Lucy.
Hammond ajudou-o de novo a levantar-se e, com a ajuda de
Redfield, ampararam-no lentamente, atravessando a estrada até ao
carro. Empurrando-o para o assento de trás, Hammond ordenou a
Estrela e Kit que passassem para o da frente e estivessem quietos,
para não incomodar Medes. 0 gigante, exausto, caiu obliquamente
sobre as almofadas do assento e fechou os olhos.
Algumas pessoas desgarradas deixavam a taberna. Voltando ao
outro lado da estrada, Hammond encontrou Alonzo Ky1e e Asa


Gore que saíam. Pararam para dar umas palmadas no ombro de
Hammond, felicitando-o pelo seu triunfo, mas recusaram-se a voltar
atrás com ele para beber um copo e festejar. Gasaway ajudara
Maxwell a regressar à taberna e Holden transportara a cadeira em
que Maxwell se encontrava de novo sentado, a beber um toddy.
Pérola pagou as apostas e cada um dos vencedores pagou uma
rodada a todos. Hammond recolheu os seus três mil dólares,
contou-as cuidadosamente, dobrou as notas, e meteu tudo, papel e
ouro, dentro do seu saquinho de couro. Brownlee retirou os dois mil
dólares que depositara para a compra dos gémeos, não tendo
perdido nem ganho, mas sentindo-se desapontado por não ter
podido obter os mulatinhos gémeos. Saiu da taberna
apressadamente. Neri já tinha partido. Alcorn e o seu filho ficaram,
e o pai deu ao filho um golo de uísque do seu copo de cada rodada
paga e permitiu-lhe que ficasse com a moeda de cobre, apesar de nã

o lhe pertencer. Aquilo era uma festa.
-Eu sempre disse que o seu negro ia ganhar, senhor Maxwell. Eu
sabia. Ganhei cinco dólares nele -gabou-se Alcorn, nada dizendo
dos cinco que tinha perdido.
-Foi quase. Foi por pouco -disse MaxwelI, suspirando de satisfação.
-Foi mau, no entanto, foi mau o mandingo matar o outro. Estava a
ficar velho, cansado. já não prestava para muito mais.
-0 nosso também não, ao que parece -disse Hammond. -Está
estafado.
-Talvez ainda tenha que o empalhar para o pôr por cima da lareira,
doutor Redfield. Salvou-se e agora morre.
-Não está muito ferido, só abatido -disse o veterinário. -Não há
ossos partidos, nem órgãos afectados. No próximo sábado já está
bom para lutar outra vez.
-Não vale a pena -disse Lewls. -Não consegue encontrar ninguém
que queira lutar com ele. Acho que nunca mais vai haver ninguém.
-Sabe, pensei que o seu preto estivesse morto -disse Pérola,
voltando ao assunto, inclinado sobre o balcão -, até ver o outro a dar

pontapés como um galo pendurado pelo pescoço. Nessa altura é
que percebi. Como teria ele conseguido mordê-lo no pescoço
daquela maneira?
-Que vão fazer dele, enterrá-lo? -perguntou Gasaway.
-Acho que tenho de o fazer, se o senhor Neri não o fizer -disse
Pérola, encolhendo os ombros. -Não tarda a cheirar mal, com este
calor.
Contudo, Pérola não se sentia perturbado com a tarefa. 0 dia tinha
sido proveitoso.
Maxwell ergueu-se da sua cadeira.
-Bem, Ham -disse, a expressar o seu desejo de partir.
0 assunto do combate estava esgotado já, embora os seus
pormenores viessem a ser recordados em muitas semanas futuras.
Todo o grupo escoltou os Maxwell ao outro lado da rua. Medes
continuava estendido, indolentemente, sobre o assento traseiro do
carro e Hammond colocou os dois rapazitos no chão, ao seus pés,
acocorados.
-Como vais tu, Estrela? Lembras-te de mim? -inquiriu Lewis
Gasaway, agarrando num tornozelo do rapaz.
-Sim, siô, patrão, siô, patrão Lewis. -Estrela sorriu, voltando os
lábios para fora e mostrando os molares. -Eu agora é nêgo do
patrão Ham Maxwell. Nós farta-se de comê. Eu vai apanhá algodão,
quando ele rebentá.
-Este rapazito é muito esperto -comentou Redfield. -Não o quer
vender, pois não?
Hammond abanou a cabeça.
-Só depois de crescer um bocado. A cozinheira está a domesticá-lo,
para ser criado de casa.
-Faça nadar aquele brutamontes amanhã -sugeriu Redfield , para
lhe tirar a rigidez.
-Salga-o, salga-o, em salmoura quente. Baixa a febre e faz
desaparecer o inchaço -prescreveu MaxwelI, mais drástico,
trepando para o assento, com as mãos de Gasaway a ampará-lo.



Pérola avançou para apertar a mão de Maxwell e agradecer-lhe por
ter vindo. Maxwell não era muito velho, mas a sua enfermidade e a
sua fortuna tinham-no tornado venerável. A sua presença dera
prestígio à taberna e ao desporto que ela tinha para apresentar.
Pérola bem podia estar-lhe grato.
-Voltem todos outra vez; venha mais vezes, senhor Maxwe11. Há
mais combates, no sábado,
Hammond pouco disse, ao despedir-se. Sentia-se cansado,
insuportavelmente cansado; parecia-lhe que estava tão cansado
como Medes, ao trepar para o assento e pegar nas rédeas. Até as
éguas se sentiam cansadas de esperar ao calor e de afastar as
moscas, mas voltaram-se com vontade em direcção a Falconhurst e
à comida da noite.

Capitulo trigésimo primeiro


Maxwell massageou as articulações inchadas de uma mão corri a
palma da outra. Também ele se sentia cansado e esfomeado e
satisfeito com o seu dia. 0 Sol escondia-se por trás de um grupo de
cúmulos rosados e começava a sentir-se uma brisa. Maxwell
perscrutou o rosto do filho. Que belo ele era, aos olhos do pai.
Como se sentia orgulhoso, ao lado dequele melhoramento da sua
própria carne, misturada com sangue Hammond. Que figura ele
fazia, ali sentado. Quanto ao defeito do rapaz, o seu joelho rígido,
assumia toda a culpa. Aquele pónei castrado!

Hammond tinha singularmente pouco para dizer, poucos
comentários a fazer sobre o triunfo de Medes. 0 pai sentia-se
satisfeito de estar ali sentado ao lado de um filho tão exemplar,


revivendo nele ambições há muito frustradas. 0 silêncio de
Hammond era provocado por uma espécie de náusea, uma
fraqueza, um langor de modo algum agradável, uma crescente
tremura das mãos que seguravam as rédeas. Talvez tivesse bebido
de mais na taberna. Aquilo passaria. Apenas podia comparar aquela
sensação com a que experimentara ao castigar Merririon.


Mas não passava. Ia aumentando. 0 pai não notou a palidez do seu
rosto. Apesar do calor húmido do fim da tarde, sentiu uma espécie
de arrepio momentâneo que lhe percorria o corpo. As éguas não
precisavam de ser guiadas; trotavam para casa em passo vivo.
Medes resmungava no seu sono, Kit ajeitou-se melhor, encostado à
porta, de modo a poder pendurar as pernas para fora. Maxwell
olhou para trás e avisou-o de que tivesse cuidado para não meter os
pés entre os raios da roda.


Hammond sentia-se prestes a desmaiar, mas não chegou a perder os
sentidos e recobrou a consciência. As suas mãos tremiam e colocou-
as sobre os joelhos, esforçando-se por controlar a tremura. Apetecia-
lhe vomitar, mas sabia que não poderia fazê-lo.


Sentia-se bem ao partir da taberna -melhor do que habitualmente,
hilariante com a vitória, exuberante com os lucros do dia dentro do
seu bolso. Só quando já estava longe de Benson é que compreendera
que havia algo errado, e só depois de passar pelo bosque de Amory
é que começara a ficar doente. Só duas milhas depois passou a rédea
da mão direita para a esquerda e murmurou,
-Tem que segurar nas rédeas.
-0 quê? -perguntou Maxwe11.
-As rédeas. Não posso conduzir mais.
-Mas, filho, tu estás doente! Estás branco. Tremes como um velho



declarou Maxweli, assustado e horrorizado, enquanto pegava nas
rédeas, enrolando-as, para maior segurança, à volta das mãos
aleijadas.
-Eu já fico bom. Dentro de um minuto já posso pegar nas rédeas,
logo que possa, pego-lhes. Não magoe as mãos. Acha que pode
aguentar?
-Elas vão sozinhas. Não é preciso conduzi-Ias, é só segurar as
rédeas -assegurou o velho, por entre os dentes cerrados. Conseguimos
chegar a casa; não estamos longe. Que achas tu que
tens?
-Não sei, sinto-me ir abaixo -disse o rapaz, com voz fraca. -Vou já
ficar bom.
Encostou-se ao assento e respirou profundamente.
-0 dia foi forte demais para ti, Ralaste-te muito por causa do
mandingo. Não ficou mutilado. Dentro de um ou dois dias fica
bom.
Hammond negou a sua ansiedade em relação a Medes.
-Só preferia não ter arriscado o Meg e o Alph -acrescentou.
-Não há perigo. já passou tudo -disse MaxwelI, tentando acalmar a
ansiedade de Hammond. -Ficámos com eles. Não vamos vendê-los
-prometeu inutilmente.
Hammond sentiu um arrepio percorrer-lhe a coluna, mas
endireitou-se.
-Eu levo os cavalos, agora-ofereceu-se. -Acho que já posso
conduzir.
-Não vale a pena. Eu vou bem, estou muito bem. As mãos não me
doem -mentiu MaxwelI, recaindo no silêncio.

Adiante deles, viu uma mulher, vestindo uma bata de algodão, que
desaparecia entre uns arbustos, ao lado da estrada. 0 local ficava
longe de qualquer habitação e Maxwell pensou vagamente no que
poderia ela fazer ali. Não falou do assunto a Hammond, que tinha


os olhos fechados, embora o pai tivesse a certeza de que ele não
estava a dormir.

Esquecera-se da mulher, quando se aproximou do local onde a vira
desaparecer. Abruptamente, uma pessoa vestindo urna bata de
algodão saltou da berma da estrada e agarrou as rédeas dos cavalos,
forçando-os a parar. A pessoa em questão estava mascarada, com
um lenço vermelho que lhe cobria a parte de baixo do rosto. Outro
homem, vestindo também uma bata de mulher, aproximou-se do
carro, com uma arma apontada.
-Mãos ao alto! -ordenou o segundo homem. -Larguem as rédeas e
levantem as mãos. Queremos o vosso dinheiro, Não queremos
matar ninguém.
0 homem que segurava as rédeas nada disse. Os Maxwell estavam
desarmados e incapazes de resistir. Desorientado pela aparição
súbita daquele perigo inesperado, o velho largou as rédeas e ergueu
os braços.
-Não lutes com eles. Faz o que eles quiserem -pediu ao filho. -Eles
só querem o dinheiro.
Não havia qualquer alternativa para Hammond, com o cano da
espingarda do salteador encostado às costelas. Também ele, não
compreendendo bem o que se passava, levantou lentamente os
braços.
Medes mexeu-se e fez menção de se levantar, mas o patrão mais
velho voltou a cabeça e ordenou-lhe:
-Não faças nada. Deixa-te estar quieto.
-Onde está a sua bolsa? -perguntou o ladrão. Hammond baixou a
mão direita para a retirar e o salteador avisou-o:
-Mãos para cima! Diga-me onde-está. Eu tiro-a.
-No meu bolso -informou Hammond, com relutância, em voz
fraca.
0 ladrão apalpou-o, localizou a bolsa e retirou-a. Segurando-a à sua
frente, recuou para a zona arborizada à beira da estrada.


-Larga os cavalos e deixa-os partir -gritou ao companheiro.
-Devíamos cortar os arreios, soltar os cavalos e deixá-los ir a pé
respondeu o outro.
-Deixa-os ir no carro. Um deles é velho -disse o homem da
espingarda. -Vamos.
Desapareceu entre os arbustos. 0 sócio soltou os cavalos e seguiu-o.
0 roubo tinha sido um episódio quase natural, inteiramente despido
de melodrama. Os salteadores tinham aparecido, feito as suas
exigências, tinham-se apoderado do dinheiro e tinham partido, tão
rapidamente como haviam surgido. Seria tão fútil persegui-los
como resistir-lhes.
-Volte para trás. Volte para trás. Vamos pedir ajuda -pediu
Hammond.
-julgas que eles vão para a taberna gastar o dinheiro? -perguntou
Maxwell calmamente. -Nesta altura, já vã o a caminho de Nova
Orleães.
-Neri? -sugeriu Hammond. Maxwell acenou afirmativamente,
enquanto voltava a ajustar as rédeas em volta das mãos.
-E o outro, o que segurou os cavalos, era o Brownlee ou eu me
engano muito. Estavam de sociedade desde o princípio -disse,
dando sinal de partida às éguas.
-Podiam ter levado os negros e os cavalos. Nós não podíamos fazer
nada.
-Não queriam ficar com eles nas mãos. Era caso para enforcamento.
-0 velho parou e depois riu-se. -Estavam tão cómicos, com aqueles
vestidos e os lenços nas cabeça. Calculo que eles pensavam que nós
não os reconhecíamos.
-Todo aquele dinheiro! -lamentou-se Hammond.
-Quinhentos dólares, não foi?
-Três mil.
-Mas só perdemos quinhentos. Os outros tínhamos-lhes nós ganho.
Só o recuperaram. Não perdemos mais do que o valor de um negro
meio desenvolvido, mais ou menos. Não é mau de todo.



-Não é justo -disse Hammond.
-Combates de negros! Era de esperar isto, era de esperar tudo.
Maxwell não condenava o desporto em si. Apenas mencionava os
riscos. -Não contes a ninguém que fomos roubados, excepto, talvez,
ao doutor Redfield. Ninguém precisa de saber. Nert e Brownlee não
vão contar. Não deixemos de comer por isso.
-E ficámos com os gêmeos -acrescentou Hammond, como
consolação.


0 encontro tinha-lhe revigorado as forças. A fraqueza, de que se
esquecera, voltava agora a assaltá-lo. Um suor viscoso inundava-lhe


o corpo e sentia arrepios que sucessivamente lhe perpassavam pela
coluna. Apertou as mãos sobre os joelhos, para as impedir de tremer
e cerrou os dentes, para não baterem. Fez um esforço fútil para
esquecer a perda sofrida. Pelo menos para a comparar com a perda
do adversário que ficara sem o seu lutador. No fundo, o seu negro
fora o vencedor, e ele ainda o conservava, estava ainda vivo, apenas
moderadamente ferido. 0 melhor de tudo era ter conservado os
gêmeos, Assim se esforçava por pensar.
Maxwell deixou as éguas à vontade e pouca orientação era precisa,
mas o esforço exigido aos seus braços flácidos torturava-o, mesmo
assim. Esforçava-se por esconder o seu desconforto de Hammond, e
conseguiu-o; de qualquer modo, o filho estava demasiado doente
para conduzir e o pai tinha de o levar para casa. 0 carro rolou, no
dia que ia escurecendo, dentro de um silêncio apenas quebrado, de
vez em quando, por um deles, perguntando ao outro como se
sentia.
-Consegui fazer-nos chegar cá -observou MaxwelI, quando
aparelha voltou à estrada que levava a Falconhurst.
Napoleão avançou para segurar os cavalos. Estrela e Kit saltaram do
carro sem os mandarem. Lucrécia Bórgia apareceu no varandim.


-Onde está o Merrimon? -perguntou o patrão.
-Ele vem já, patrão, siô.
-Díz-lhe que venha depressa. 0 Hammond está doente. Lucrécía
Bórgia avançou impetuosamente, cheia de solicitude. Merrinon
apareceu para ajudar o patrão a descer do carro e foi injuriado pelas
suas dores.
-Vai ao outro lado, maldito preguiçoso! Ajuda o teu patrão m ais
novo. Levanta-o com cuidado. Ele está doente.
Lucrécía Bórgia não pediu instruções. Levou Hammond para casa, o
mais depressa que ele conseguiu andar. Embora assustada pela
situação do seu jovem patrão, gozava a oportunidade de o poder
dominar que a sua fraqueza lhe proporcionava. Ele voltava a ser um
rapazinho frágil e amimado, que ela podia simultaneamente
dominar e servir, comandar enquanto o enchia de mimos.
Hammond deixou-se levar relutantemente para o quarto, escada
acima. Caiu sobre a cama e submeteu-se a que o despissem.
Maxwell e Merrinon seguiam-no e Ellen surgiu, em pânico. Todos,
na sua ansiedade de serem úteis, ficavam no caminho uns dos
outros. Meg e Lucrécia Bórgia disputavam a prorrogativa de despir

o patrão. Lucrécia Bórgia interrompeu a operação para bater na cara
e nas orelhas do filho, o que não o impediu de continuar a sua
tarefa. Em breve o patrão se encontrava nu e estendido sobre o
colchão, de penas, e cobriram-no então com as cobertas, até ao
pescoço. A tarde estava ainda quente, mas Hammond tremia entre o
conforto que o envolvia.
Só quando lá estava na cama se lembrou de perguntar:
-Onde está Blanche? Onde está a tua senhora?
-Tá cansada. Foi prá cama cedo -disfarçou Lucrécia Bórgia.
-Está outra vez bêbeda? -inquiriu ele; e, sem esperar pela resposta,
acrescentou: -Disse-te que não lhe desses nada.
-Sim, siô, patrão, eu sabe -admitiu Lucrécia Bórgia. -Mas ela foi
buscá ela mêrna. Eu não pode evitá qu'uma mulhé branca faz o que
ela quê fazê. Não siô.

Os costumes eram rígidos quanto a isso. Hammond não respondeu.
Maxwell saíra do quarto, mas voltou com um copo.
-Bebe isto -ordenou. -Não te faz mal nenhum. É só um pouco de
láudano com água. Bebe tudo.
Hammond engoliu o conteúdo do copo.
-Penso que deve dar um pouco disto também ao Medes. É do que
ele precisa para tirar as dores, e para o fazer dormir. Láudamo; dê-
lhe uma boa dose.
0 pai prometeu.
-Canja de galinha, é disso que o patrão tá a precisá -observou a
cozinheira. -Vou matá uma e cozê ela; leva só um minuto. Num
pode comê uma ceia forte, siô.
Saiu e desceu as escadas, seguida por Maxwell e Memnon, que
deixaram o doente a cargo de Ellen e Meg.


Não se poderiam encontrar enfermeiros mais dedicados, embora
nada pudessem fazer. Hammond voltou-se e aconchegou-se dentro
da cama. Estendeu a mão para fora e puxou Meg para junto da
cama, apoiando-a sobre a coxa do rapazito. Seguro da sua posse,
fechou os olhos. Meg não podia fugir-lhe, e nem sequer se mexia,
para não incomodar o patrão. Estava feliz com a distinção que a
mão do patrão sobre ele lhe conferia, e sorria do seu triunfo sobre
Ellen, por ter sido escolhido. Não sabia como escapara por pouco de
ser vendido, nem sabia que a doença do seu patrão resultava apenas
do desfalecimento que agora sentia em conseqüência do risco
corrido de perder os gêmeos de Lucrécia Bórgia. Meg ter-se-ia
moderado se soubesse com que equanimidade Hammond arriscara
a sua carcaça num combate. Deixou-se ficar junto à cairia, receando
mover-se.


Lucrécia Bórgia trouxe a tigela de canja fumegante, conforme
prometera, mas o doente estava já a dormir e ela levou-o de novo
para a cozinha, a fim de a manter quente até ele acordar. Hammond



moveu-se, no seu sono, retirando a mão de cima do rapaz que caiu
para o chão, devido à fadiga da imobilidade. Um mosquito zumbiu
ameaçadoramente através do quarto. Ellen seguiu-o com os
ouvidos, mas não conseguiu vê-lo. Finalmente pegou num leque e,
abanando-o com delicado cuidado, protegeu o rosto do doente do
seu ataque.

Notou que o rosto dele estava congestionado. 0 seu cabelo estava
húmido de suor e colava-se-lhe à testa, e minúsculas gotas de suor
brilhavam nas suas frontes. 0 pai, como que levado por um impulso
difícil de combater, entrava periodicamente no quarto, olhava para
a cama, e retirava-se numa baldada frustração do seu desejo de
ajudar. 0 pior de tudo era não haver coisa alguma que pudesse
fazer. Ellen não achava divertidos os esforços do velho para andar
nos bicos dos pés, mas preferia que ele não viesse, pois as escadas
rangiam sob os seus passos. 0 velho tinha deixado a ceia, incapaz de
comer, mas não encontrava dificuldade em engolir os toddies que
Memnon lhe preparava entre as suas visitas ao quarto de
Hammond. 0 luar ia avançando lentamente pelo chão da sala.
Maxwell não queria velas. Nem Lucrécia Bórgia nem Memnon o
conseguiram convencer a ir para a cama, embora interrompesse a
sua vigília passando de vez em quando pelo sono, com a cabeça
encostada à cadeira de balanço.

Toda a casa se conservou em movimento durante a noite, embora,
uma vez que estava deitado e acalmado pelo láudano, Hammond
não exigisse qualquer cuidado. De manhã, abriu os olhos, ainda
sonolento, e provou a canja que Lucrécia Bórgia tinha conservado
quente toda a noite. Não sentia fome e não conseguiu comer mais
do que três colheradas, mas Lucrécia Bórgia sentiu-se
recompensada por ter feito a canja. A sua febre baixara, mas ainda
não tinha desaparecido por completo. Tirou as pernas para fora das
cobertas e sentou-se na cama, de lado, deixando-se cair para trás e


gozando o prazer do fresco sobre a sua carne febril. Finalmente,
decidiu levantar-se e apesar dos esforços de Ellen, pediu a Meg que

o vestisse.
-Não devia levantar-se, patrão. Está doente. Vou chamar o patrão
velho -ameaçou Ellen.
-Fica quieta. Nenhuma fêmea manda em mim. Tenho que cuidar
daquele rapaz, está decerto com dores.
-Medes? Ele pode vir aqui -argumentou a rapariga.
-Com aquele mau cheiro? Com a banha de cobra e tudo? -disse ele,
afastando a ideia.
Embora ainda fraco, ao pôr-se de pé sentiu-se melhor do que
previra. Venceu as tonturas que o assaltaram no cimo das escadas e
começou a descê-las resolutamente, um degrau de cada vez, com
Meg à sua esquerda para o ajudar e amparar. Ao fundo das escadas,
firmou-se, abriu a porta e saiu para o ar livre. Quando passou da
sombra fresca para o sol que já estava a aquecer, voltou a
estremecer.
-Volta para trás -disse rispidamente ao escravozito que o seguia. Raios
te partam! Tens de me acompanhar em cada passo que eu
dou? Parece-te que te pertenço, em vez de tu me pertenceres a mim!
Se não me deixas em paz, dou-te uma sova, mas uma sova das boas.
Há muito tempo que andas a precisar. Agora vai-te embora!
Desaparece.
Esta tirada constituía um esforço para negar aquilo que o pusera
doente, e em relação ao que se sentia culpado. Recusava-se a
acreditar que o medo de perder os gêmeos lhe pudesse ter causado
a febre que o deitara abaixo. Por causa de dois negrinhos inúteis!
0 negro revirou os olhos para o amo e depois olhou para o chão.
Voltou-se e dirigiu-se tristemente para casa, olhando de vez em
quando para trás, por cima do ombro. Meg sentira-se secretamente
satisfeito por Hammond estar doente, pois isso dava-lhe um
pretexto para estar com ele, para o ajudar. Só o prazer de estar com
ele!

Hammond atravessou a clareira a coxear e entrou na cabana dos
mandingos. Medes estava sobre a cama, recostado, e Lucy ia-lhe
dando o pequeno-almoço, pedaço a pedaço, com os dedos. Os seus
olhos eram simples fendas entre as pálpebras inchadas, de um
verde-azulado. As faces formavam altos, os seus lábios grossos
estavam voltados para fora, devido ao inchaço, e o nariz espalhava-
se amorfamente pelo rosto. Incapaz de mastigar sem dores, ia
engolindo os pedaços de carne de porco inteiros que Lucy lhe metia
lentamente na boca.
-Ele tá cómico -riu Pérola Grande. -Aquele nêgo tá memo cómico.
-Cala a boca, Pérola Grande-censurou a mãe. -Senão te cala, ponho
tu mais cómica que ele tá. Num vê qu'ele tá com dores? Não tem
cabeça pra pensá?
Na sua indignação, a mãe voltou-se também para Baltasar, que
estava a comer o pequeno-almoço, e ordenou-lhe:
-Pega nesse osso que tu rã a roê e vai-te imbora, ouviu? Num vê
que patrão chigou? Tu tá no caminho dele. Num pode sê bem
educado? Sai daí. Sempre a comê a comida do patrão, sempre a
comê, e fica prái parado de joelho, ou c'c, rabo no chão! Os bicho
comia mais depressa do que tu. Qualqué dia o patrão castiga tu por
comê tanto. Num castiga, patrão?

Lucy estava de costas para o rapaz e nem notou que ele já tinha
desaparecido, de osso na mão, antes de ela acabar o seu nervoso
discurso, que, de qualquer modo, se destinava mais a impressionar

o patrão do que a censurar o escravo, Hammond não deu
importância à discussão familiar.
Encamínhou-se para a cama e olhou para o rosto de Medes,
perguntando-lhe:
-Como estás tu, rapaz? Como te sentes? Doi muito?
-Não, siô, patrão, siô. Estou bem, vou ficar bem. Sinto-me mais ou
menos bem, siô, por favor, siô -respondeu o escravo

dolorosamente, com voz pastosa e com uma careta que pretendia
ser um sorriso.
-Ele tá quase morto -disse Lucy. -Ele num vai tê que lutá mais,
pois não, patrão? 0 Medes tá quase arruinado.
-Para que julgas tu que eu o comprei, só para te dar prazer a ti e à
Pérola Grande? Os outros rapazes também serviam para vocês.
Quando ele estiver bom outra vez, há-de voltar a lutar, se eu
mandar. 0 Medes quer lutar, não queres?
As fendas dos olhos voltaram-se para cima, nos extremos
superiores, com um sorriso implícito, enquanto o rapaz movia o
queixo, tentando acenar afirmativamente.
-Ele matou o outro. já te contou? -disse Hammond, para louvar
Medes, que sorriu abertamente, apesar das dores.
Lucy respondeu com um "An! An!" Hammond inclinou-se sobre a
cama e tocou com o indicador na carne tenra das pálpebras,
levantando-as para examinar os olhos. Apalpou as faces inchadas e
os lábios, abriu-lhe a boca para examinar os dentes. Nenhum
faltava, nem havia dentes partidos. Agarrou no nariz do negro e
tentou em vão endireitá-lo.
-Isto doeu-te? -perguntou.
0 grunhido de resposta de Medes, nem afirmativo nem negativo,
revelava a sua relutância em admitir a dor.
Quando Hammond afastou a coberta para examinar o corpo de
Medes, o horrível cheiro da banha de cobra empestou o quarto. 0
tronco do negro estava inchado em certos pontos e Medes encolheu-
se, quando Hammond lhe tocou. Deitado de bruços, o mandingo
gritou, com dores que não conseguiu disfarçar, quando Hamniond
lhe carregou nas costas, explorando-as. Mas o pior de tudo foi o
joelho, que Hammond tentou flectir.
-Por favor, siô -suplicou Medes, enquanto o patrão lhe manipulava
a articulação, o que apenas levou este a dobrá-la e a torcê-la ainda
mais.


A testa negra de Medes cobriu-se de suor, enquanto suportava
aquela tortura.
-É melhor chamar o Redfield -opinou Hammond em voz alta. -Ele
queima-te o joelho e depois já podes dobrá-lo.
-Por favor, não, não, por favor, siô, patrão, aquele branco não. Ele
vai fazer-me doer, doer muito. Eu fico bom patrão. Eu posso dobrar

o joelho já quase. Faça qualquer coisa, tudo o que quiser, mas ele
não.
-Não queres ficar com o joelho rígido, pois não, como eu tenho? Era
o pior destino que Hammond poderia sugerir para alguém. Com
aquele pau vermelho, é num instante; 0 doutor Redfield trata
de ti.
Medes sentou-se na cama, a chorar.
-Não, não, não -gritou ele. -Por favor, patrão, siô, não o deixe
queimar-me.
Agarrou Hammond pelos ombros e enterrou o rosto no seu casaco,
com lágrimas de terror a correrem-lhe pela cara.
As narinas do branco já estavam adaptadas naquele momento ao
fedor da banha de cobra, e Hammond continuou sentado na cama,
com o enorme torso do negro entre os braços, ternamente. Assim
continuava quando uma sombra na porta impediu a entrada da luz
na cabana e o fez levantar os olhos. Viu o doutor Redfield, escoltado
pelo mais velho dos Maxwe11.
-Olha que sorte! -disse Hammond, saudando o veterinário. -Ia
agora mesmo mandar chamá-lo.
-Ele está mal? -perguntou o pai. -Não te preocupes; para se fazer
uma omelete é preciso partir ovos.
Medes voltou a estender-se na cama; e, quando Redfield viu o seu
rosto maltratado, desatou a rir.
-Penso que já não o deve voltar a mostrar a ninguém. Está capaz de
assustar uma porca e fazê-la abortar os seus leitõezinhos! Vamos lá
a ver isso Apalpou e carregou nas zonas inchadas e voltou-se para
os proprietários-.

-Por enquanto não há nada a criar, que eu veja. Não é preciso cortálo
para extrair pús. Há-de diminuir o inchaço e endireitar-se tudo,
com o tempo. Talvez o nariz fique deformado, mas ele não luta,
nem fornica, nem colhe algodão com o nariz.
-Veja a junta do joelho, doutor. É isso que me está a preocupar interrompeu
Hammond impacientemente. -Acha que pode queimála,
para a tratar?
0 médico fez deslizar a mão pelo corpo do negro, parando, a certa
altura, para apalpar as costelas e carregar no ventre, marcado por
equimoses. Acenou com satisfação, afirmando que as contusões não
eram profundas. Apalpou os órgãos genitais.
-Este filho da mãe é mesmo forte. Nada estragado. Está tão bom
como novo.
-0 joelho -insistiu Hammond. Redfield levantou o joelho direito
primeiro e Hammond apressou-se a informar que o mal era na
outra perna. Medes gemeu quando o veterinário agarrou na perna,
não de dor, mas de medo, imginando já o ferro a queimá-lo. 0
médico flectiu a articulação e torceu a parte de baixo da perna.
Apalpou, apertou, carregou. Voltou Medes de bruços e dobrou o
joelho para trás até o calcanhar tocar na nádega. 0 negro contorceu-
se e suou, mas não gritou. Quando lhe disseram para dobrar o
joelho sem ajuda, Medes tentou fazê-lo, mas apenas conseguiu
mover a perna muito ligeiramente. 0 médico voltou a dobrá-la para
trás e para o lado.
-Claro, posso queimá-lo, se o desejar -foi o seu veredicto, e
doendo-se. -Apressa um bocado a coisa, mas acho que não é
necessário. É apenas uma distensão. Se ele se esforçar, acaba por
desaparecer, se a fêmea grande for massageando -disse, fazendo
um aceno de cabeça para Lucy.

Hammond voltou-se para Lucy, para lhe dar umas instruções finais
sobre a manipulação do joelho de Medes, eRedfield interrompeu,
avisando:


-Fá-lo mexer, fá-lo mexer-se bem. A dor não importa. Faz de conta
que não és a fêmea dele.

Com excepção da canja de Lucrécia Bórgia que tomara ainda na
cama, Hammond não comera o pequeno-almoço. Na sua
preocupação quanto a Medes, esquecera-se dele. A sua febre
desaparecera, mas sentia uma certa lassidão enquanto os três se
dirigiam para casa. Viu Tigre a brincar com outras crianças em
frente da cabana de Sukey e parou para lhe pegar.
-É o primeiro que o Ham fez -explicou o pai com orgulho.
-Um rapazinho muito esperto -disse Redfield -, mas não é um
mandingo.
-Não queria que ele fosse um mandingo -disse Ham, restringindo a
hipótese. -Quero fazer dele negro de casa.
Beijou o garoto, que se contorcia, e pô-lo no chão. Blanche, para
evitar as censuras do marido pela bebedeira da véspera, conservou-
se no quarto. Desculpou-se, para si própria, com a ideia de que o dia
estava quente, não lhe apetecia meter-se em roupas apertadas para
receber Redfield, e com a sua gravidez, que, segundo pensava,
começava a tornar-se evidente. Ressentiu-se, porém, de que o
marido não viesse ao seu quarto, alegrando-se, ao mesmo tempo,
por ele não a repreeender por se ter embriagado na véspera. Na
realidade, ele não ignorara o seu procedimento, mas preferia
mostrar-lhe desprezo.

Os toddies que Meg já tinha prontos para os homens mal entraram
em casa, alegraram-nos e renovaram a sensação de força do mais
jovem. Engoliu dois, que Meg preparara com grande dose de
uísque. A língua soltou-se-lhe e contou o roubo a Redfield.
0 doutor enfureceu-se.
-Vamos já atrás deles! -propôs. -Apanhamo-los e matamo-los!
-Calma, doutor -disse o Maxwell mais velho. já devem estar em
Natchez, nesta altura, e, de qualquer modo, não temos a certeza de


que são eles. Não quero que o Hammond leve um tiro, por causa de
uns dólares.
-Pelo menos ficámos com os gêmeos -consolou-se Hammond.
-E ainda podemos comer -disse Maxweli, levantando-se, ao apelo
da sineta para jantar, que Memnon brandia.
-Se vamos levar os tais negros a Nova Orleães no Outono, é melhor
começarmos a aperfeiçoá-los -aconselhou Redfield, após o jantar,
enquanto saíam da casa de jantar. Nada se dissera ainda acerca da
excursão, que ele considerava corno uma fuga à vida doméstica e
como uma ocasião para satisfazer nem sabia que desejos.
-Ainda não os separámos -declarou Hammond.
-São todos gordos, todos gordos de mais -suspirou o velho,
deixando-se cair na cadeira. -Precisam de umas duas semanas a
comer comida de brancos e de um pouco de exercício.
-Se quer que as fêmeas já mostrem qualquer coisa em Outubro, é
melhor arranjar-lhes machos já. Os compradores não acreditam só
na palavra do vendedor de que a fêmea está cheia -insistiu
Redfield, ansiando pela viagem.
-Se o doutor tiver tempo, vamos já hoje decidir, separar o grupo propôs
Hammond.
-As fêmeas já eu sei quaís vão ser, Fanny, Mórida e Sheba, e talvez
a Estrelita.
Hammond encolhia-se ao ouvir cada um dos nomes que o pai
mencionava.
-A Sheba também? É ainda tão nova.
-Se queremos fazer aquele grupo... -avisou Redfield. Maxwell
ergueu-se rigidamente da cadeira. Hammond procurou um caderno
de papel amarelado, de que arrancou algumas folhas do fundo. Não
conseguindo encontrar um lápis, aceitou o empréstimo de uma
ponta de lápis, que Redfield extraíra do bolso.

Para começar, Hammond escreveu os nomes das mulheres que o
pai escolhera para venda. "Fanny, Mórida, Sheba, Estrelíta." E


acrescentou: "Pólo, Vulcano", sobre os quais já decidira, e que não
exigiam observação. Redfield ia lendo por cima do seu ombro e
perguntou:
-E aquele rapaz com três tomates? Tenho a certeza que vale mais
agora do que mais tarde.
-Esse também -disse Hammond, e escreveu: "Trides" no fundo da
folha, deixando espaço para outros nomes por cima. -Fico satisfeito
por me livrar daquela cenoura às pintas.
-Uma satisfação que vale mil a mil e quinhentos dólares -disse
Redfield.
Os três homens começaram a passear pelo estábulo, levando Meg
com eles para descobrir e convocar os escravos à medida que eram
necessários. Hammond disse à meia dúzia de garotos que jogavam
à amarelinha em frente da porta que se fossem embora e puxou um
banco para o pai. Um a um, mandou Meg trazer os rapazes mais
velhos e, quando chegavam, mandava-os despir, para serem
examinados. 0 médico observava-os, para ver se tinham qualquer
ferida ou sinais de imperfeição, criticou um por estar magro e
recomendou tratamento contra as lombrigas, mas, na maior parte,
achou-os até demasiado gordos, ao ponto de estarem flácidos. Para
esses prescreveu trabalho mais duro.

Quatro rapazes que tinha ficado decidido vender foram rejeitados
por imaturos e concluiu-se que ficariam mais um ano.
-Ainda podem crescer mais -pronunciou-se o Maxwell mais velho,
de cuja opinião dependia a escolha final. -Para o ano que vem,
vamos ter um bom lote. Acho que alimentar mais quatro durante
um ano não nos vai arruinar.

Havia dezasseís rapazes na lista de venda e quatro mulheres ainda
para decidir. 0 veterinário gostara de fazer a sua inspecção e da
importância que os proprietários haviam dado à sua opinião. Não
aceitou qualquer compensação por aquela tarefa que considerou


preliminar da sua viagem a Nova Orleães. A febre de Hammond
desaparecera e já não sentia qualquer fraqueza. Perante a
necessidade de dirigir a plantação, esquecera o risco que havia
corrido de perder os gêmeos.

0 grupo regressou a casa e bebeu duas rodadas de toddies antes de
Redfield decidir que tinha de voltar para junto da viúva. Resistiu à
insistência de Maxwell para ficar para a ceia. Montado no seu
cavalo castanho, reiterou a sua disposição de assinar os certificados
de carácter, para os escravos a vender, conforme exigiam as leis da
Louisiana.
-Lembre-se de que conheço cada um deles como se fosse meu. Vi-os
crescer e posso jurar que são perfeitos e não têm vícios. Faça os
certificados para o banqueiro Meyer os assinar. Eu assino com ele.
Essa é a melhor parte de ter a viúva, sou livre, agora.
Depois de Redfleld ter partido, Maxwell comentou, divertido:
-0 doutor julga que é rico! Que o nome dele no papel vale tanto
como o do Meyer!
-Bem, ele conhece os negros, de qualquer modo, apalpou-os -disse
Hammond.
-Conhece-os uma gaita! -troçou o pai. -0 Meyer não faz perguntas.
Ele assina.

Capitulo trigésimo segundo

Na segunda-feira voltou-se à rotina de sachar as ervas do algodão.
Aqui e além, embora ainda fosse cedo, uma ou outra planta
apresentava um casulo em abertura; pouco devia faltar para
começar a colheita. 0 grupo do algodão estava privado de alguns


sacholadores, por os rapazes mais velhos terem ido cortar árvores,
mas as plantas do algodão estavam agora tão grandes que não havia

o perigo de as ervas as asfixiarem. Havia áreas enfezadas e
definhadas, onde o solo era estéril, mas Hammond sentia-se
satisfeito com a colheita em perspectiva. As fileiras de plantas
estavam bastante limpas e agora bastava conservá-las assim, o que
as mulheres e os adolescentes podiam facilmente fazer.
Na quarta-feira, o inchaço da cara de Medes e as suas equimoses
tinham melhorado, de modo que as suas feições já estavam
reconhecíveis. Recuperara coragem, também. E, o que era ainda
melhor, o seu joelho estava tão bem que conseguia andar sem
coxear, embora ainda tivesse dores. Hammond deu instruções a
Lucy para continuar a aplicar as massagens e as manipulações da
perna.
-Medes chora e pede pra eu num faze mais -queixou-se Lucy.
Quando eu torce ele, ele chora mais.
-Não te rales. Eu disse-te para torceres; dobra-a e torce-a, com
força. E não ligues à choraminguice dele.
-Ele num chora, num chora já vai pra três dias -disse Pérola
Grande. -Eu disse a ele qu'ía contá pró patrão. Ele num quê óleo de
castó.
0 negro era demasiado precioso para ser arriscado em trabalho
produtivo e, para além do seu uso ocasional como reprodutor, era
totalmente improfiquo. Hammond troçaria se se classificasse Medes
como um negro " especial", mas, na realidade, não servia para outro
fim que não fosse a apreciação dos conhecedores. 0 negro não levara
muito tempo a compreender isso e transformara-se numa criança
mimada, o pavão de Falconhurst. Desdenhando dos escravos menos
importantes, era tão arrogante para eles como exigente para corri
Lucy e Pérola Grande. Os seus favores eram uma concessão e as
mulheres a quem os concedia deviam ficar-lhe gratas -e
efectivamente ficavam-no. Era tão abjectamente humilde perante os


seus proprietários brancos quanto exigia que os seus companheiros
de escravidão fossem perante ele, e submetia-se de bom grado ao
mais rigoroso regime de exercício e dieta que a imaginação de
Hammond inventasse para ele.
Se julgava que estava a ser negligenciado, aparecia no caminho do
patrão e dizia-lhe:
-Doem-me as costas, patrão, siô. A miss Lucrécia Bórgia não tem
qualquer coisa com que a Lucy possa esfregar-me? -Ou: -Patrão,
siô, as minhas pernas estão a ficar balofas e gordas. 0 siô pode ver se
há alguma coisa que eu possa fazer? -Certa vez abordou
Hammond, dizendo-lhe: -Aquela Mina que o patrão me deu na
noite passada, patrão, siô, tenho a impressão que não ficou tudo
pronto. Por favor, siô, posso ficar com ela esta noite outra vez?

Acusava-se sempre a si próprio e o seu pedido de atenção era feito
tendo em vista os interesses do patrão. Hammond não podia deixar
de se interessar por uma dor nas costas ou uma perna balofa,
mesmo que fossem imaginárias; e era tão agradável para Mina
como para Medes que ela passasse mais uma noite com ele.
Hammond raramente estava demasiado ocupado para não dar
atenção aos pedidos que Medes lhe fazia.

Aquela praga para os plantadores de algodão que uma época de
colheitas carregada de chuva representa, caiu sobre o Alabama. 0
vento e a chuva, ou apenas a chuva, abateram-se sobre as plantas
em flor e estas murchavam ou apodreciam antes de poderem ser
colhidas. Os Maxwell puseram todo o seu contingente, adultos e
crianças, ao trabalho, naqueles raros dias suficientemente secos para
permitir a colheita, mas os apanhadores procederam tão
indiscriminadamente que grande parte da fibra sã foi contaminada
pelo contacto com os casulos empapados, também metidos nos
sacos. Hammond avisava os trabalhadores todas as manhãs para
que não colhessem algodão molhado, mas ele enchia os sacos em


quantidade tão grande como o seco. Mandou as mulheres aos carros
para separar todo o algodão molhado que conseguissem encontrar
antes de a colheita ser transportada para Benson para descaroçar.
Era um trabalho inútil, pois todo ele estava húmido, se não antes de
ser colhido, pelo menos depois de os sacos de juta terem sido
arrastados pela lama e pelas poças de água do campo.

Quando pararia a chuva? A colheita crescera e amadurecera bem,
melhor do que Hammond previra, ao plantar o algodão, e
demonstrara a boa qualidade da variedade Petit Guli, que era nova
em Falconhurst. Mas a Petit Guli tinha uma longa estação de
colheita; os casulos de uma planta rebentavam durante semanas,
um de cada vez. E o aguaceiro da tarde ou a chuva que caía durante
a noite davam cabo deles à medida que iam rebentando.

Hammond, no seu descoroçoamento, andava irritável, não dando
importância às dores imaginárias de Medes, ameaçando os gérneos,
esbofeteando Tigre quando o garoto pediu para ser incluído num
grupo de trabalho. Arrependido, porém, agachou-se e tornou a
criança nos braços, beijando-lhe a face ainda lívida da marca dos
seus dedos e dando a Tigre um saco de algodão, como ele pedia.

Se ele ficou desapontado com o insucesso da colheita, Lucrécia
Bórgia ficou desolada. Foi para o varandim, vendo a chuva cair e
abanando a cabeça, com as mãos cruzadas a aguentar o ventre
distendido. Apesar de toda a cupépsia que a gravidez lhe concedia,
não podia suportar com complacência as infelicidades que
afectavam a família. Em especial, a sua disposição reflectia a do seu
patrão mais novo.
0 Maxwell mais velho, pelo contrário, sentia uma espécie de
perversa alegria pelo insucessos do filho, a mesma satisfação que
sentira quando o castelo de cubos que Ham construia em pequeno,
ruíra, obrigando-o a aprender a construir outros com maior


segurança, por tentativa e erro. Para MaxwelI, o insucesso de uma
colheita era apenas uma lição sobre a inutilidade de a plantar.
-Ele vai aprender -disse a Blanche, enquanto bebiam o seus
toddies. -o que eu tenho andado a dizer-lhe. Não se pode fazer
algodão duma terra cansada. Só serve para manter os negros
ocupados. A plantação é de negros, é preciso é criar negros, fazer
disto um rancho de criação de negros. Nunca mais aprende, ao que
parece Falconhurst não é, de maneira nenhuma, urna plantação de
algodão. Claro, eu sei -prosseguia, acenando com a cabeça, -que
cultivar algodão é elegante. Se se quiser ser um cavalheiro, é preciso
ter um campozito de algodão. Todos os Hammond os tinham, e
todos faliram.

Não havia rancor nem ironia na sua voz. A criança de Lucrécia
Bórgia recusou-se a esperar mais tempo pelo fim da colheita, por
muito que a sua chegada viesse alterar a sensação que a mãe tinha
de supervisar a actividade, além de executar as suas obrigações.
Deitada na sua esteira na cozinha, pouco depois da meia-noite, no
princípio de Outubro, a mulher sentiu-se assaltada por uma
impressão de desconforto que reconheceu como os preliminares do
parto. Pôs-se de pé e chamou Meninori para ajudar. Seguiram-se
dores ritmadas e os intervalos entre elas foram diminuindo.
Lucrécia Bórgia comprimia-se e distendia-se. Finalmente, deixou-se
cair para trás, exausta e compreendeu que tudo acabara. Mertirion
pegou na criança, que verificou ser uma menina, e cortou o cordão.
Quando os Maxwell estavam sentados para tomar o pequeno-
almoço, Meg entrou, a correr impetuosamente, vindo da cozinha
com o leque de penas de pavão na mão, e anunciou:
-Patrão, por favô, siô, patrão, 'nha mãe teve um bebé pró patrão.
Vem vê, por favô, siô, vem vê.
Colocou mesmo a mão no braço do patrão e tentou puxar-lhe a
cadeira para trás.


-Não vale a pena -disse Hammond. -Vamos vê-lo depois de
comer. Ela está bem? 0 que é que ela teve? Só um?
Memnon entrou com uma travessa de presunto e ovos.
-Arranjei um bebé bem bonito pró patrão, siô -disse, reclamando
crédito. -Eu e Lucrécia Bórgia.
-Como sabes que é teu? Ela também dormiu com o Pólo, não foi? Se
calhar é dele! -disse MaxwelI, entre dentadas. -Se fossem gêmeos,
acreditava que tivesses sido tu.
-Que sexo tem? -quis saber Hammond.
-uma fêmea, patrão, siô -admitiu Mem, com relutância.
-Bem, de qualquer modo é melhor ires vê-Ia, Ham, e dares à mãe
um dólar, logo que tenhas tempo, depois do pequeno-almoço.
-Vá lá o pai. Está sol e temos tempo seco, tenho de ir vigiar os
apanhadores.
-Sabes que ela preferia que fosses lá tu, filho; o teu dólar brilha
mais. Além disso, no meu tempo, vi tantos que todos eles me
parecem cães-d'água a contorcer-se. Vê se é perfeita, braços, pernas,
tudo; e diz qualquer coisa agradável à Lucrécia Bórgia. Não há
pressa para ela começar a cozinhar; diz-lhe que se deixe estar
deitada, dois, três dias, os que ela quiser.


0 tempo tinha mudado. Seguiram-se dias de um belo sol,
obscurecidos apenas pela névoa azulada de Outubro. Os casulos
retardados atingiram a maturidade e rebentaram até o campo, a
curta distância, parecer coberto de neve. Não só a colheita foi
copiosa, como também foi fácil de fazer, porque cada planta tinha
muitos casulos. E, o que era mais importante, o algodão estava seco.
Afinal, a colheita não fora um fracasso. Hammond louvava
ardentemente a Petit Guli.


Os escravos escolhidos para venda estavam a reagir bem ao
aumento das rações e às tarefas intensivas. De todos eles, com
excepção de Atrides e As, desaparecera a gordura supérflua,



substituída por tendões vigorosos e duros. Mesmo Atrides
arredondara um pouco e perdera parte da sua falta de graça,
parecia menos um boneco desarticulado. 0 seu rosto continuava
coberto de sardas, os olhos cinzentos continuavam a parecer prestes
a escorrer, a sua carapinha continuava a ter um tom alaranjado. Os
fiancos magros de Ás recusavam-se a engordar e os seus olhos
pretos continuavam cheios de reprovação.

Hammond acrescentou ovos crus à dieta dos rapazes e colocou uns
frascos de banha de cobra no parapeito empoeirado da janela da
casa das reuniões, dando a cada um dos escolhidos instruções para
untar outro e deixar-se untar todas as noites, antes de se deitarem. 0
cheiro da panacéia era tão mau, que ninguém duvidava da sua
eficácia. Nem o frio das noites de Outubro sobre a nudez dos
rapazes, nem a fadiga após o trabalho do dia impediram o seu uso,
porque a massagem os mandava quentes para a cama e lhes tirava
as dores dos músculos exaustos.
-Eu vai procurá um siô branco, grande e gordo que queira comprá
eu. Vai mostrá a ele qu'eu é forte, que eu trabalha bem para ele planeava
Alaúde, deitado de bruços, enquanto Açafrão lhe
esfregava um ombro com banha de cobra. -Um siô gordo dá muito
pra comê, toda a gente sabe isso.
-Os homem gordo come tudo eles mêrno. Num deixa nada prós
criado
-contrariou Frenesim.
-Eu? -perguntou Atrides sem ser interrogado. -Eu vai arranjá um
branco rico que precisa de um criado. Eu serve ele bem, prepara
uísque pra ele e tudo.
Nenhum deles se interessava pelos planos dos outros. Hammond
olhava corri satisfação para os seus corpos fortes ou em vias de
fortalecimento, e contava-lhes coisas sobre Nova Orleães que
despertavam os seus desejos. Quase acreditava nas suas próprias
invenções. No seu próprio interesse, imaginava vendas fáceis por


altos preços, decidia não vender os seus rapazes se não a
cavalheiros, a patrões que os tratassem bem. Era um belo lote, no
seu ponto máximo de desenvolvimento, com a juventude nas
feições, o vigor da maturidade nos músculos. Maduros. 0 pai
ensinara-o a escolher o momento exacto em que um escravo era
susceptível de dar mais dinheiro. Em comparação com Medes, no
entanto, os membros do lote para vender pareciam uns magrizelas.
Vendo-o treinar-se, fazer flexões, acocorar-se, saltar, levantar pesos,
Hammond sentiu que nada sacrificava, vendendo os outros rapazes.
0 mandingo, só por si, podia encher de novo a plantação. Merrinon
estava de reserva, mas era um grande incómodo cortar a anilha que
lhe havia sido colocada e ter de voltar a soldá-la.

Cerca de duas semanas após o nascimento da filha de Lucrécia
Bórgia, Dite entrou em parto. Foi imediatamente metida na cama, e
Ellen tomou conta dela. A criança era filha de Hammond e não se
deviam correr riscos com parteiras amadoras. Vulcano, que
conhecia a região, foi, montado numa mula, buscar a viúva Jolison
(Redfield continuava a referir-se à mulher corno " a viúva" e ela
continuava a ser a viúva Jolison no espírito dos Maxwe11).

A senhora chegou, guiando a mesma grande égua cinzenta, de
patas pesadas, aparelhada ao mesmo carro em que sempre tinha ido
fazer os seus trabalhos profissionais desde os tempos em que era
ainda casada com o seu primeiro marido, urna espécie de caleche
em precárias circunstâncias, com a capota puxada para baixo (nunca
ninguém a vira subida), inclinada devido ao peso da sua ocupante,
do lado esquerdo. As rodas da frente, apenas com uns vagos restos
de tinta nos raios, convergiam na parte superior; as de trás
divergiam. Desceu do carro com uma barulhenta alacridade que
reflectia a urgência da sua tarefa, alisou a volumosa saia de
bombazina, exactamente do mesmo tom verde, do pêlo ainda
existente no tapete que cobria o fundo do carro, agarrou em três


sacos de musselina sujos que continham as suas ervas, e dirigiu-se
para a casa, com as verrugas da cara a sublinhar o tique com que as
suas feições, a intervalos de dez segundos, registavam a sua
determinação e a sua pressa em acorrer à chamada dos seus deveres
profissionais. A maior parte dos escravos encontrava-se nos campos
de algodão, mas a viúva nem reparou que ninguém viesse tomar
conta do carro. A égua estava demasiado gorda e preguiçosa para se
mexer sem que a forçassem, e, além disso, sabia que o marido,
montado no seu cavalo castanho, vinha cerca de um minuto atrás
dela.
Medes, embora não fosse moço de estrebaria, viu o carro
abandonado e dignou-se pegar nas rédeas da égua e conduzi-Ia ao
estábulo. Viu também que Redfield se aproximava e chamou Pérola
Grande, para tomar conta do segundo cavalo.
0 médico desmontou e entregou as rédeas à fêmea, que as agarrou
temerosamente. Notando-lhe o medo Medes trocou de cavalo com
ela.
-Toma -sugeriu ele -, fica tu com este. É mais manso. Não dá coices.
Incapaz de se abster de uma observação profissional, Redfield
saudou a rapariga, aprovadoramente:
-Pela maneira como a tua barriga já está nesta altura, vais ter um
autêntico gigante.
Pérola Grande ficou lisonjeada com o cumprimento e mostrou os
dentes num sorriso.
Memnon abriu a porta e Redfield compreendeu que encontraria
Maxwell na sala. Blanche, descalça, com a gravidez já bem evidente,
estava junto do sogro, mas saiu apressadamente pela casa de jantar,
como copo do toddy na mão, quando o convidado entrou no hall.
-Onde está a viúva? -perguntou Redfield.
-Não sei. Penso que, se já chegou, foi para cima. É para a Dite, a
fêmea do Ham; isto é, a que ele tinha antes -explicou Maxwe11.
-E ele quer o melhor para ela. A viúva é muito boa, ela põe o miúdo
cá fora.


Maxwell chamava Meg para preparar urna bebida para o visitante,
quando Redfield desatou a rir.
-A viúva insistiu em que eu viesse acompanhá-la -disse,
explicando a sua presença, e batendo com a mão na coxa magra.
Não havia necessidade alguma de explicar a sua presença, visto que
era sempre bem-vindo a Falconhurst, e a olhadela de Maxwell
demonstrava que não compreendia a sua hilariedade.
-Ela estava com receio de vir, tinha medo de si -esclareceu o
médico, limpando as lágrimas que o riso provocara. -Diz que não
vai sozinha a casa de um malandro qualquer que viva sem mulher. Voltou
a estremecer, todo sacudido por um riso de troça. -Eu disse-
lhe que as verrugas lhe bastavam para a proteger de ser violentada.
-Receio bem que, no estado em que estou, não pudesse servir uma
senhora, hoje em dia -disse Maxwell secamente. -Além disso, está
cá a mulher do Ham; chega para a proteger.
-Penso que a víúva receia que a mulher do Ham possa estar ...
indisposta.
Maxwell não tinha a certeza se ele se referia à gravidez de Blanche
ou à sua embriaguez. Sabia que Redfield não era mal intencionado.
Hammond entrou e sentou-se, mandando embora Meg com a
bebida que trouxera para ele. Claramente ansioso, os seus ouvidos
estavam mais aguçados para os sons que vinham de cima, que para
a conversa dos velhos.
-Dizem que a febre está a grassar com força em Nova Orleães disse
Redfield, para fazer conversa. -Disse-me na taberna um
cavalheiro que veio de lá.
Maxwell recusou a alarmar-se. ~ Todos os Verões -disse ele,
acenando com a cabeça. -Todos os Verões é o mesmo. É por isso
que não gostava que o Hammond lá fosse este Verão, por causa da
febre-amarela e para esperar até à venda do algodão, quando toda a
gente tem dinheiro.
-já devia estar melhor, nesta altura do ano -aventurou-se
Hammond a dizer. -Não há perigo, agora, em Outubro.


-Não deverá haver perigo, na altura em que estiver pronto para lá
ir. 0 tempo frio limpa a febre.


Um ranger das escadas, seguido pelo silvar da bombazina, fez
Hammond levantar-se. Abriu a porta quando a parteira chegava ao
bali, segurando nos braços um bebé envolto num xaile.
-Não houve problemas, absolutamente nenhuns -declarou ela. -Eu
nem era necessária. Qualquer pessoa podia ter feito o mesmo.
-Que sexo? -disse Hammond, puxando o xaile.
-Não tive tempo para ver. De qualquer modo, parece-me que é
macho -disse a mulher, abrindo a cobertura.
-Se é teu, é rapaz -disse o orgulhoso avô. -Nunca tens outra coisa.
Penso que não tens raparigas dentro de ti.
Retirando o xaile, Hammond ficou horrorizado. 0 bebé vermelho
que dava pontapés e chorava, estava coberto com urna penugem
dourada.
-Mestiço -arquejou Ham.
-Mestiço? -ecoou o pai, levantando-se para ver a criança. -
Desordeiros, todos eles. Se nascem brancos, arranjam problemas.
No entanto, decerto queres ficar com ele.
O velho não propôs qualquer outra alternativa.
O bebé deixou de chorar e dirigiu o olhar desfocado para Redfield,
que observou:
-Olhos dos MaxwelI, mesmo os olhos do Warren Maxweli, azuis
corno flores de lobélia.
-Talvez seja melhor eu dizer que é meu. Evita problemas -e Warren
Maxwell abafou o riso, enquanto fazia um gesto vago, apontando
na direcção onde se supunha que Blanche estaria.
-Ela não se importa com este -suspirou Hammond, relutante em
ser roubado do crédito da paternidade. -Além disso, foi antes de ela
vir, antes de nos casarmos.
-É meu -insistiu o velho. -Lembra-te de que é meu, o último que
eu fiz. E vamos chamar-lhe "Doutor", em honra do doutor Redfield.



Chamou Meg para preparar novos toddies para festejarem o
baptismo de Doutor, mas a viúva confessando-se abstêmia, voltou a
envolver a criança no xaile e levou-a para cima, para junto da mãe.

Capitulo trigésimo terceiro

Enquanto Lucrécia Bórgia, por sua própria vontade, já estava a pé, a
cozinhar e a dirigir a plantação, dois dias depois do parto, Dite ficou
dez dias de cama, tendo como enfermeira solícita, mesmo carinhosa,
a sua sucessora no leito do patrão. Ellen não se esquecia de que, em
breve, ela própria necessitaria de tais cuidados. Dite sentia-se
indiferente em relação ao bebé, exceptuando o facto de ele
representar urna elevação da sua posição, mas Ellen amava-o por si
próprio, por ser um bebé de olhos azuis, branco, um filho de
Hammond.

Fazia calor e o ar estava parado, no fim da tarde. Não havia brisa e
nada se movia. Maxwell estava sentado, a dormir, numa grande
cadeira, à sombra, no varandim, com Alph adormecido ao sol, a
seus pés. Tinham estado ambos a beber toddies do mesmo copo. 0
branco divertia-se em embebedar o negrinho, dando-lhe
frequentemente a beber alguns golos do seu próprio copo. 0 copo
tinha-se voltado e entornado no chão, ao lado da cadeira e o local
estava cheio de moscas, atraídas pelo açúcar.

Hammond estava no campo, a supervisar a respiga do algodão,
talvez a colheita final, ou então o grupo que cortava os toros, cujos
machados se podiam ouvir à distância, se se apurasse o ouvido. A


cabeça de Maxwell descaiu sobre o ombro direito e tombou para a
frente, e o seu rosto contorceu-se. Sonhava. Alph, reclinado,
ressonava ligeiramente.


0 ruído de um galope foi absorvido pelo restolhar das folhas secas,
na álea; o galope revelava uma pressa pouco habitual em
Falconhurst. Fez mesmo sair Lucrécia Bórgia da cozinha, para tentar
perceber o que poderia ser tão urgente.
-É cólera, é cólera! -proclamou, aos gritos, o doutor Redfield,
saltando do cavalo.
Maxwell ergueu a cabeça e abriu os olhos, cego pela luz do sol.
Vendo quem chegava, murmurou hospitaleiramente, embora sem
grande entusiasmo:
-Entre! Entre! -e depois gritou: -Mem, outra cadeira! Meg, prepara
toddies! Alguém para tomar conta do cavalo do doutor Redfield!
Onde estão aqueles negros? Debaixo dos nossos pés, quando não
são precisos.
Deu um pontapé a Alph, com a bota, para o acordar, e o rapaz foi
tomar conta do cavalo. Lucrécia Bórgia trouxe outra cadeira.
Redfield, com um olhar assustado, repetiu, num murmúrio
confidencial o que antes afirmara aos gritos:
-É cólera! É cólera, digo-lhe eu! Não é nada febre-amarela, nada
disso, é cólera!
-De que está a falar, doutor Redfield? Quem é que a apanhou? Não
ouvi dizer nada, por aí.
Maxwell pretendia descobrir o significado daquela incoerência.
-Na taberna! Venho agora da taberna, o mais depressa que o velho
Skelter conseguiu trazer-me.
-Quem é que a apanhou? 0 Pérola?
-Não! Ninguém daqui a apanhou, por enquanto! Não compreende?
Em Nova Orleães, há cólera em Nova Orleães! Passaram por aqui
dois homens, a fugir dela.



-Oh, só isso? Penso que aquela cidade nunca está limpa de cólera,
ou de qualquer outra coisa. Beba o seu toddy.
-Mas está em grande força, está a apanhar a cidade toda. Toda a
gente está a morrer ou a fugir de lá, para as suas plantações, ou a
subir o rio, indo para onde podem. Num dia está-se bem, no dia
seguinte morre-se.
-Assim tanto? Por toda a parte? -Maxwell recusava-se a mostrar-se
alarmado. -0 Comércio não dizia nada.
-0 Comércio não ia dizer isso, mas é verdade. Não pode deixar o
Ham lá ir! Eu não vou, nem dou um passo naquela direcção. Não
me meto nisso.
-Nem o Hammond, se é tão mau como diz. Sabe bem que não vou
mandar negros de mil dólares cada, para não falar no Hammond,
para um lugar infestado pela peste.
-já calculava. -Redfield respirou mais tranquilo, embora não tivesse
calculado coisa alguma. -Detesto não fazer essa viagem, mas ...
Hammond deu a volta à casa, cumprimentou o visitante e sentou-se
num degrau do varandím. Meg trouxe-lhe uma cadeira, mas ele
disse ao rapaz:
-Não vale a pena -e continuou sentado no chão. Olhou
interrogativamente para os rostos dos dois velhos e o pai deu-lhe as
notícias que o médico trouxera.
-Não é nada, Não me assusto -afirmou ele. -Depois de colhido o
algodão e preparados os negros, vou até lá .
-Não vais, com a cólera na cidade -argumentou o pai, num tom
adulador, como se falasse a uma criança pequena. -Não digo que
não passe, mas por agora ...
-Não tenho medo -disse Hammond, em tom pouco convincente.
-Pois eu tenho -confessou Redfield. -Se for, vai sozinho.
-Tu podes não estar assustado, não -acedeu Maxwe11. -Mas pensa
nos negros. Os barracões não estão limpos. Além disso toda a gente
diz que não se vendem. Não dão nada.


-Talvez devesse tentar Natchez -sugeriu Redfield. -A cólera não
subiu o rio.
-Talvez -concordou Maxwe11. -Talvez Nova Orleães. Depende do
que disser o Comércio. Natchez é um bom mercado.. em Forks-ofthe-
Road.
Nada ficou resolvido. 0 desapontamento de Hammond perturbou o
pai. A cólera em Nova Orleães talvez nã o estivesse tão generalizada
como dizia o boato que corria na taberna de Pérola e que induzira o
médico a exagerar.
Mas o número seguinte de o Comércio confirmou o pânico; a
epidemia já não podia ser escondida. As pessoas que tinham para
onde ir, estavam a partir. Os negócios estagnavam. Os factos que
haviam sido escondidos até então, como já não podiam ser
conservados secretos, eram aumentados cinco vezes e alardeados.
Se o jornal não servia para reprimir o pânico, pelo menos tornara-o
sensacional. Proclamava untuosamente que o pessoal de o
Comércio se conservaria no seu posto para servir o público, mesmo
que adoecesse ou viesse a morrer.
Era inimaginável que Hammond fosse a Nova Orleães em tal altura.
Seria não só arriscado como inútil.
Redfield voltou, gabando-se de que a verdade tinha confirmado o
seu boato. Após um estudo das respectivas vantagens quanto à
venda dos escravos, escolheram Natchez, de preferência a Mobile.
Era mais fácil encontrar em Natchez os compradores da Luisiana e
os imigrantes para o Texas, visto que o seu mercado fora sempre
activo, mesmo quando Nova Orleães florescia. A cana era muito
mais lucrativa do que o algodão, mesmo antes de o solo do
Alabama estar esgotado. Deveria haver mais compradores junto do
rio que no golfo. Por qualquer motivo, a cólera parecia menos
provável ali. Contra Natchez havia a fácil descida pelo Tombigbee e
a favor de Mobile uma jornada fácil por terra, mas não tão
movimentada como a travessia do Mississípi, onde a riqueza do
solo se reflectia no luxo das plantações e dos seus possuidores.


Natchez seria pois, e a partida teria lugar de segunda-feira a uma
semana, ao nascer do Sol. Seria, concluiu Hammond depois de
consultar o almanaque, o décimo quinto dia de Novembro, a meio
do mês, bastante antes do Natal mas suficientemente tarde para que
as colheitas já estivessem vendidas e o dinheiro ainda por gastar.
-Duvido que consigas obter tanto como julgas, mas aceita o que
vier. Aceita o que puderes arranjar, aproveita o que aparecer, filho,
e não te lamentes. Não me tragas nenhum daqueles negros de volta.
Se os levas para os vender, vende-os. Talvez seja preciso pregão
público para os vender, mas era melhor a particulares. Assim sabes
quem fica com eles e como os vão tratar -aconselhou Maxwell ao
seu filho.
-Arrnfield e Franklin têm um barracão em Forks, muito limpo e em
boa ordem. É o melhor local se conseguires pô-los lá: toda a gente
sabe onde fica e quem quer pessoal, vai lá logo -disse,
prosseguindo nos seus conselhos, enquanto Hammond lhe prestava
estrita atenção. -Claro que se o A. e F. estiver cheio, com alguma
nova remessa de negros, ou negros que não se vendem, ou qualquer
outra coisa, terás que procurar outro local. 0 doutor é bastante
esperto. Se tiveres problemas ele ajuda-te. Mas segue a tua opinião,
não a dele. Se houver divergências entre o que tu pensas e o que ele
pensa, faz o que tu preferires; quero que aprendas. Mas quando
tiveres dúvidas, pergunta ao doutor.
Hammond bebia as instruções do pai e decidiu lembrar-se delas. De
qualquer modo, deixavam-lhe pulso livre.
-Não há muitos rapazes de dezanove anos que vão levar um grupo
de negros ao mercado.
-Se eu não os levasse, não sei como é que eles lá haviam de chegar replicou
Hammond, ofendido pela ênfase dada à sua idade.
-Tens razão -reconheceu o velho -e sinto orgulho de que tu sejas
capaz, sinto orgulho de te ter. Não sei o que faria.
Nos dias que antecederam a partida de Hammond, este teve que
ouvir uma vez e outra os conselhos do pai. Não se ressentia da


necessidade de este lhos dar, porque tinha confiança na sagacidade
do pai e, além disso, as instruções eram suficientemente vagas para
lhe deixar pulso livre para f azer o que achasse melhor. Embora
Maxwell tentasse prever o que poderia resultar da expedição e
determinar um plano para enfrentar cada possível contingência,
tornava-se impossível imaginar cada acontecimento. Hammond
seria forçado a improvisar as suas decisões à medida que as coisas
se fossem passando. Aceitando a responsabilidade e sabendo que
podia fazer o que lhe apetecesse, não lhe custava escutar a tagarelice
do pai.
-Não me levas contigo? -Blanche atacou o assunto, uma noite,
depois da ceia, após a saída de Maxwell para a casa de jantar. Disseste
que me levavas a Nova Orleães; quando chegasse o Outono
e a colheita tivesse terminado.
-Não vou a Nova Orleães. Por causa da cólera. Tu sabes isso. Não
vou lá. E, além disso, olha para ti. Não estás em condições para lá ir.
Não estás absolutamente nada em condições. Como é que eu podia
saber quando é que tu ficavas grávida, quando disse que ias?
Nenhuma branca gosta que a vejam nesse estado. Tens que ficar em
casa até o rapaz nascer-Para mitigar o desapontamento da rapariga,
Hammond acrescentou: -Se ficares e te portares bem, trago-te
qualquer coisa quando voltar, uma capa bonita, ou qualquer outra
coisa.
-Nunca vou a parte nenhuma, não posso usá-la -retorquiu ela.
-Bem, qualquer coisa, qualquer coisa bonita, e também qualquer
coisa para o rapaz, quando ele chegar.
-Se calhar vais levar aquela Ellen contigo! É por isso que não queres
levar-me.
Hammond fungou, fingindo-se divertido.
-A barriga da Ellen está tão grande como a tua, ou quase. A Ellen
sabe que não pode ir. Nenhuma das duas me serve para nada, da
maneira como estão.


-Então estás a pensar em divertir-te com todas aquelas brancas de
que Natchez está cheia, como toda a gente diz, com todas aquelas
prostitutas brancas. É isso que vais fazer?
-Vou vender negros, vou à viagem de negócios, e tu sabes isso
muito bem -disse Hammond com indignação. -Além disso, não
gosto de me divertir com brancas. As brancas metem-me nojo.
Efectivamente o rapaz não se recordou de que a mulher era loura,
ao falar, embora a sua declaração fosse uma verdade genérica.
Blanche sabia que o marido se sentia repelido pela brancura da sua
pele, embora ele nunca lho tivesse dito. Ele pensava ser a cor da
pele e o odor dos corpos brancos aquilo que o desgostava, quando,
de facto, o que sentia era uma necessidade de possuir, de comandar,
de dar ordens ao seu objecto sexual, de um modo que não podia
fazer com urna mulher branca e livre. Uma mulher branca poderia
negar-se ou contemporizar com as suas exigências. Era um medo de
ser rejeitado. A sua escolha, no fundo, não se fazia entre brancas e
pretas (ou mestiças), mas sim entre mulheres livres e mulheres de
sua propriedade.
A compaixão levou Hammond a sugerir toddies para Blanche e
para si próprio, quando entraram na sala onde o Maxwell mais
velho já estava a beber. Sabia bem que nada era mais susceptível de
acalmar o desapontamento da mulher e minorar o seu
ressentimento quanto à sua preferência pelas peles escuras.
Nessa mesma noite. Meg, lutando para retirar as botas do patrão,
abordou o assunto:
-Mais ou mêno quando é que a gente vamos, patrão, siô.
-Quando é que vamos onde?
-Quando vamos àquele lugá, o patrão sabe, siô, pra vendê aqueles
nêgo? -Meg encolheu os ombros, reconhecendo a sua ignorância. Eu
num sabe onde é.
-Tu julgas que vais comigo? -perguntou o patrão, com um riso
baixo.
-Pois bem, não vais.


-Eu é o teu nêgo -amuou Meg.
-Eu sei que tu és o meu negro. E se eu te levo, passas a ser o negro
doutra pessoa qualquer; vendo-te com os outros em Natchez.
0 rapaz compreendeu que o branco estava a brincar, mas o seu
sorriso sem brilho, em resposta, acusava medo. Sabia que não
estava à venda; mas os caprichos do patrão eram imprevisíveis.
-Quem vai tirá tuas bota pra ti, patrão, siô?
-Tenho dezasseis negros para me tirarem as botas. Não preciso de
ti. Ficas aqui em casa a preparar os toddies para o teu patrão. É só
isso que tu fazes. Toda a gente quer ir.
Para provar que não havia maldade na sua recusa, Hammond deu
um beliscão no músculo macio da coxa do rapaz, até ele grunhir de
dor.
0 domingo antes da partida foi dedicado a visitas e a despedidas
entre os escravos. Estas não eram dolorosas. Em Faconhurst as
lealdades familiares não eram encorajadas e mal existiam. Os
escravos nascidos na plantação conheciam as suas mães, mas, na
sua maior parte, eram separados delas antes da puberdade e os
laços desfaziam-se. A maioria deles nunca conhecera o pai que, de
qualquer modo, já tinha sido vendido ou esquecido antes de os
filhos terem idade suficiente para se preocuparem com ele.

Os afectos entre pais e filhos, onde existem, são inventados pela
cultura, e não existem mais motivos para um filho acarinhar a mãe
ou a mãe acarínhar o filho, depois de ela ter deixado de o
amamentar, do que para o afecto de qualquer deles por outras
pessoas com as quais não tenham qualquer parentesco. Entre os
escravos era desconhecido o orgulho de família, a menos que eles
soubessem ser bastardos de brancos. Os MaxwelI, tendo-se
apercebido desse fenômeno, desatavam deliberadamente os laços
consanguíneos, simplificando assim a efectivação de vendas.

0 lote para venda tinha sido alimentado e obrigado a exercitar-se,


massageado e preparado, não só para os levar a uma condição física
que permitisse pedir por eles um bom preço no mercado, mas
também, embora acidentalmente, para lhes produzir uma rósea
euforia que, aliada à sua juventude, lhes permitia enfrentar a sua
sorte com entusiasmo. Deixavam Falconhurst sem pena. Não por
terem sido maltratados ou pensarem que o tinham sido; não
conheciam outro gênero de tratamento para além daquele que lhes
tinha sido dado, e nada tinham que lhes permitisse fazer
comparações. Tinham sido adequadamente alimentados, protegidos
sob um tecto que não deixava que a chuva lhes caísse por cima,
trabalhavam pouco e, com excepção de castigos ligeiros por
pecadilhos infantis, nunca tinham sido chicoteados. Que melhor
tratamento podia um escravo desejar?

Para os MaxwelI, eles eram gado, um gado valioso e irresponsável,
gado criado e engordado para venda. Era tão desvantajoso tratar
mal um negro, como um porco ou um cavalo. Os proprietários
sentiam orgulho na criação, nos cuidados e confortos
proporcionados aos seus escravos. Não era o desejo de escapar de
Falconhurst ou dos seus amos que motivava o ardor com que os
escravos encaravam a partida; era antes a noção, embora vaga, de
que existia outro mundo, com outra gente, outras caras, outros
cenários e actividades, longe da plantação, e a juventude desejava a
experiência, a aventura.
Era menos de prever a pena por aqueles que partiam do que por
aqueles que ficavam, cuja única consolação era a de que seriam
incluídos num lote subseqüente. Atribuíam um encanto invejável
àqueles que Iam ser vendidos.
Estrelita estava grávida, mas menos obviamente do que as outras
mulheres que iam ser vendidas. Apenas o mestiço se conservava
afastado das despedidas. Não havia ninguém de quem ele desejasse
despedir-se. Ás sentia-se satisfeito por escapar à vigilância de
Vulcano, sob cujos cuidados ficara e que exercera a sua autoridade


com maior rigor do que Hammond desejaria. Prestes a serem
separados da casa da sua juventude, para serem enviados para um
local que desconheciam e para caírem não sabiam em que mãos, não
havia quaisquer lamentos entre os escravos.

Capitulo trigésimo quarto

A estrelada manhã mal tinha desaparecido quando Hammond,
ouvindo um galope de um cavalo, mandou Meg abrir a porta a
Redfield, tratar do seu cavalo e preparar um toddy para ele.

Ellen ajudou Hammond a vestir o seu casaco cor de ameixa para
fazer a viagem e a enfiar as botas. Lucrécía Bórgia estava a pé, a
preparar o pequeno-almoço e o pai veio ao encontro de Hanimond,
no hall, ao princípio das escadas. Blanche manteve-se na cama e o
marido não a incomodou. Ela ouvia o movimento na casa toda, mas
manteve-se indiferente a ele.

Os negros que iam ser vendidos tinham-se levantado e reuniam-se
em frente da casa, em conjunto com outros que se tinham erguido
para ver o espectáculo da partida. A lança do carro tinha sido
retirada e os varais substituídos, e entre eles tinha sido atada uma
decrépita mula negra com uma mancha branca na testa. Flórida e
Sheba já estavam no assento traseiro, chamando Fanny e Estrelita
para que se apressassem, a fim de não ficarem para trás. Hammond
tinha nomeado Estrelita para dirigir a mula. Lucrécia Bórgia tinha


preparado grandes quantidades de pão para a viagem e colocara-os
dentro do carro, aos pés das mulheres.
Hammond consumiu um vigoroso pequeno-almoço, Redfield um
mais leve, pois era o segundo, e Maxwell não conseguiu comer
nada. Continuava a fazer jorrar conselhos e avisos, todos eles já
repetidos uma dúzia de vezes antes.
Vulcano segurava os cavalos dos senhores e os três mandingos
observavam a cena, Junto da sua cabana. 0 Dr. Redfield apertou a
mão do amigo e trepou para o lombo de Skalter.
No varandim, Hammond beijou Lucrécia Bórgia, voltou-se para
beijar Ellen, finalmente alcançou e beijou o pai, vendo lágrimas nos
seus olhos. Montou a cavalo e dirigiu-se ao grupo de negros, dandolhes
ordens e tentando separar os que seguiam dos que ficavam.
Alinhou os escravos dois a dois, com Pólo e Vulcano à frente,
Atrides e Ás atrás. 0 carro seguiria os dois homens. Pólo saiu da
fileira para beijar Lucrécia Bórgia, com evidente desagrado de
Meninon.
-já não vais ter mais disso, rapaz, pois não -disse Redfield,
retoricamente, rindo-se.
-Eu vai arranjá um patrão bom com muitas fêmeas, patrão, siô respondeu
Pólo, sem se perturbar, voltando para o seu lugar.
-Vamo-nos embora -gritou Hammond e a coluna começou a
mover-se descompassadamente pela área fora, enquanto Maxwell e
os escravos da casa acenavam do varandim, e os mandingos da sua
cabana, e os escravos que ficavam brincavam entre si. Redfield fazia
estalar o seu chicote nos calcanhares dos que partiam.
-Nunca ouvi falar em levar um lote para venda sem grilhetas gritou
Redfield do outro lado da coluna para Hammond, que
cavalgava à direita. Se algum foge, vai arrepender-se de não os ter
agrilhoado.
-Nenhum destes negros vai fugir -gritou Hammond, do seu lado. Todos
eles querem ser vendidos, não querem, rapazes?


Dos homens veio um coro de afirmativas. Um sol frio e enevoado
espreitava no horizonte. Hammond deixou-se ficar para trás, para o
fundo da coluna, e uma das mulheres, rindo, de dentro do carro,
gritou-lhe:
-Nós gostava de ser vendida só pra um patrão! Acha, patrão, siô?
-Acho; vou tentar arranjar só um patrão para todas -respondeu
Hammond, despreocupadamente.
0 grupo chegou a Benson antes do meio-dia, jantou na taberna, e aí
planearam chegar a Shobuta antes do anoitecer, mas não o
conseguiram. Pouca diferença fazia. Cearam pão, ataram os cavalos
e a mula em local de pasto e entenderam-se ao abrigo de um grupo
de pinheiros, para dormir, cobrindo-se os brancos com as mantas da
sela.
Dormiam a espaço, mas, quando amanheceu, tinham adormecido
profundamente. 0 Sol já brilhava quando Hammond acordou
RecIfield. Estava decidido irem até Shobuta antes do pequeno-
almoço.
Na confusão da partida, Hammond deu por falta do mestiço.
-Onde está o Ás? Raios o partam! -gritou. -Onde pensam que ele
esteja?
-Eu bem lhe disse ontem que era melhor agrilhoá-los -disse
Redfield, rindo. -Não estou a dizer que ele tenha fugido, mas ...
-Ás dizia qu'ele ia, patrão, siô -disse Atrides.
-Ia quê?
-Fugi -explicou Atrides.
-Ele não fugiu -Hammond estava confiante. -Está por aí, no
bosque, é o mais provável. Está a atrasar-nos.
Ás não voltou. Procuraram por todo o pinhal. Hammond sentia-se
desolado.
-Arranco-lhe apele, se voltara ver aquela pele branca. Raios o
partam!
0 pai bem disse para nunca confiar num mestiço.



-Talvez o pudéssemos seguir a cavalo -sugeriu Redfield.
-Talvez. Mas em que direcção? -contrapôs Hammond. -Temos de
levar estes negros ao mercado. Não podemos perder tempo para um
lado e para o outro.
Nada fizeram porque nada havia que pudesse ser feito. Ás
escapara-se. Retomaram a lenta marcha e atingiram Shobuta pouco
antes das nove horas. 0 Arauto Semanal de Shobuta saía às sextas-
feiras e Hammond deixou o seu lote na pensão de Shobuta,
enquanto ia à tipografia mandar pôr um anúncio relativo à fuga de
Ás. 0 editor redigiu-lho do seguinte modo:

NEGRO EM FUGA!!!

Um negro mestiço, quase branco? com cerca de dezasseis anos,
sem marcas, fugiu na sexta-feira de um lote de negros, perto de
Shobuta. Desarmado mas perigoso. Provavelmente segue em
direcção à sua casa anterior no Alabama Oriental. 0 proprietário
recompensa a quem lho entregar, $ 100 vivo. $50 morto. Vende-se
barato, se for apanhado em fuga. Respostas ao escritório do Arauto
ou ao anunciante, H. MaxwelI, Plantação Falconhurst, Benson,
Alabama.

0 anunciante também concordou em que se escrevesse uma
descrição da fuga nas colunas para os leitores. Era a ocorrência mais
digna de nota da comunidade, ao longo de muitos meses, apenas
ultrapassada pelo interesse da epidemia de cólera em Nova Orleães.
Hammond pagou quatro inserções do anúncio, voltou para o hotel
e, com o seu lote de negros, pôs-se de novo a caminho.
-Acha que em Natchez, quando virem aquela notícia, vão pensar
que os negros de Falconhurst gostam de fugir? Que ninguém vai
querer comprá-los? -perguntou Hammond, quando a ideia lhe
ocorreu.


-Ninguém em Natchez lê o jornal de Shobuta -tranquilizou-o
Redfield. -Além disso eu vim consigo; eu posso dizer-lhes. Mas é
melhor rasgar aquele certificado que eu e o banqueiro Meyer
passámos sobre o mestiço.
Hammond parou, abriu o saco da sela, e retirou o certificado.
-Só me preocupa o que vou dizer ao meu pai -suspirou Hammond.
-Deixar fugir um negro, que vale uns setecentos e cinquenta a
oitocentos dólares.
-0 velhote também não os queria acorrentados -reflectiu Redfleld
em voz alta. -0 seu pai e o senhor, também, são muito confiantes
quanto aos negros.
0 passo era lento, com os machos a pé, as mulheres dentro do carro
puxado pela mula decrépita. Hammond permitia aos rapazes que
parassem quando estavam cansados, pois não os queria estafados à
chegada a Natchez. Redfleld ficava impaciente com estes atrasos.

Em Falconhurst, o proprietário, após a partida do seu filho, ocupou-
se, durante uma hora, numa orgia de ordens, mas sucumbiu aos
toddies pouco tempo depois e deixou a direcção da plantação a
Lucrécia Bórgia. Pouco havia a fazer além de verificar se os negros
eram alimentados, o que era tarefa de Lucrécia Bórgia, mesmo
quando Hammond estava em casa. 0 algodão tinha sido colhido e
havia pouca coisa, naquela época, para os escravos fazerem.

Blanche desceu e sentou-se ao lado do sogro. Este não restringiu os
seus toddies. Além disso, ela sentia-se mais feliz com o marido
longe, porque sabia que ele não estava com Ellen. Agora tinha
menos ciúmes das outras escravas e não tinha nenhuns de Tense.
Ressentia-se da deformação da sua figura por causa da gravidez, e
sabia que Ellen estava tão grossa como ela, mas não acreditava que
a gravidez impedisse Hammond das suas atenções para corri a
negra.


Pouco havia para Maxwell e Blanche conversarem de que não
tivessem já falado uma centena de vezes. Maxwell falou urna vez
mais das virtudes da sua esposa morta e do filho que ela deixara,
assuntos esses que desagradavam a Blanche por lhe parecer que ele
implicava as suas faltas ao louvar os outros. Não era essa a intenção
dele, porém. Gostava mais de o ouvir dissertar sobre a economia da
plantação e dos escravos, embora tais assuntos não lhe
interessassem em absoluto pois sabia que neles não havia qualquer
crítica a seu respeito. Podia estender-se na sua cadeira e deixar
vaguear os pensamentos, até Maxwell se ter fartado de falar e
adormecer. Meg estava sempre ao pé, com um novo toddy, quando

o seu copo se esvaziava.
Na terça-feira Blanche acordou cedo e não conseguiu voltar a
adormecer. Ficou estendida, a pensar na viagem de Hammond e
como gostaria de ter ido com ele. Levantou-se, vestiu a sua bata, e
foi ter com o sogro. 0 dia estava mais quente que os anteriores;
quanto ao resto, tudo igual, a mesma conversa, os mesmos toddies,
o mesmo fardo crescente dentro do seu corpo, o mesmo jantar, o
mesmo tédio. Depois do jantar, mais toddies, até que Maxwell
decidiu ir sentar-se no varandim, com os pés ao sol, deixando-a em
casa.

Sabia que estava um pouco embriagada. Os seus passos eram pouco
seguros quando atravessou a sala e foi até ao ha11, subindo as
escadas. Lançou-se para cima da cama, enjoada. Sentia o estômago
às voltas. Compreendendo que não podia aguentar o seu conteúdo,
ergueu-se sobre um cotovelo e vomitou o jantar e os toddies que
bebera sobre a carpeta ao lado da cama. Tense apareceu para lhe
segurar na cabeça e para a confortar. Blanche sentiu-se melhor e
deixou-se cair de novo, na cama, e Tense limpou, o melhor que
podia, o vómito do chão e da colcha, que tinha ficado salpicada.


De súbito Blanche ergueu-se cambaleante.
-Traz-me aqui aquela puta clara, aquela porca da Ellen -disse a
Tense.
-Traz-ma cá. Eu sei bem o que lhe vou fazer. Traz-ma cá.
Tense hesitou.
-Vai buscá-la! Vou chicoteá-la, vou arrancar-lhe a cria de
Hammond. Vai buscá-la!


Tense não tinha outra alternativa, além de obedecer à sua patroa, e
desceu as escadas. Blanche remexeu uma gaveta da sua cómoda, e
tirou um longo chicote, colocando-se junto da janela, a tentar fazê-lo
estalar. Mesmo que estivesse sóbria, não teria conseguido fazer
saltar o chicote, que era demasiado grande para ela e para o espaço
em que o podia usar, Estava tão ocupada nos seus esforços para
manejar o chicote que o tempo não lhe pareceu muito longo até
Tense voltar com Ellen, que não estava nada alarmada, apenas
curiosa.
-Despe-te minha puta, despe-te toda -disse Blanche mal a rapariga
chegou. -Arranca-lhe o vestido Tense, a roupa toda. Vou chicotear
essa barriga enorme, até te arrancar essa cria de dentro de ti, vou
golpear-te toda, vais ficar tão feia que nenhum branco voltará a
olhar para ti e muito menos a ter prazer contigo.


Foi um grande discurso para Blanche. Ellen ficou a olhá-la, de olhos
muito abertos, aterrorizada, sem nada fazer para satisfazer as suas
ordens, mas sem resistir aos esforços de Tense para lhe tirar as
roupas. Blanche brandiu c@ chicote que caiu sobre Tense, que se
esforçava por despir Ellen, e que escapou inteiramente ao golpe
inútil. Ellen não fez qualquer movimento para se escapar. Não
chorou, enfrentou a branca, de olhos secos e firmes. Não ocorreu
sequer a Ellen resistir à mulher do seu dono; ela pertencia a
Hammond e Blanche tinha o direito de a utilizar como quisesse.



Tense despiu Ellen, que ficou nua em frente da patroa, com a sua
gravidez bem evidente. Os golpes do chicote que Blanche tentava
aplicar em Ellen perdiam a sua força antes de a atingirem, em
virtude da incapacidade da mulher branca de se servir dele. Como
saber se o golpe seguinte lhe cortaria a carne? Quem poderia saber a
que outra vingança recorreria a mulher embriagada se o chicote não
fizesse o efeito desejado?

Blanche pronunciou uma invectida em voz baixa, enquanto
manejava o chicote. Estava lívida de raiva, mas persistia lenta e
deliberadamente nos seus esforços de bêbeda, para fazer uso do
chicote. Enfurecia-a que os seus golpes não produzissem efeito. A
abiacção escorria da sua boca, em palavras que nunca empregara,
termos cujo sentido desconhecia, mas que sabia serem depravados,
tal como ela desejava que fossem.

Ellen não compreendia as palavras de Blanche, mas sentia a sua
baixeza. Enfrentava a branca, com o rosto sem sangue. Os golpes
sem força continuavam a atingi-Ia. Ellen, já sem medo das
chicotadas, sentia-se ferida pelos insultos a que não podia
responder. Finalmente não conseguiu aguentar mais. Começou a
gritar. Não sabia para quê ou porque gritava. 0 seu grito rasgava o
ar e morria, e voltava a renovar-se. Finalmente, sentiu-se exausta e
caiu no chão, a chorar.
Lucrécia Bórgia ouviu o primeiro dos gritos de Ellen sem se
preocupar. Quando este se renovou, uma vez e outra ainda, largou

o presunto que estava a preparar para cozer e foi ver donde vinha
aquele grito de agonia. Verificou que vinha do quarto de Blanche,
mas já tinha parado quando Lucrécia Bórgia abriu a porta, de
rompante.
Blanche, apanhada em flagrante, largou o chicote e atirou-se sobre a
cama, onde ficou, de cara para baixo, agitando os calcanhares no ar.


Lucrécia Bórgia parou junto da porta e observou a cena,
pressentindo o que se passara. Colocou as mãos na cintura. Não
ousava revelar a indignação que sentia.
-Vai chamá o patrão velho -ordenou a Tense. -Diz a ele pra vir.
Ajuda ele a subir as escada. Traz ele cá.
-Não, não, não -gritou Blanche da cama. -Ele não, ele não. Não
vês que ela está nua? Não é decente ele vir.
Lucrécia Bórgia ficou em silêncio.
-Vai-disse de novo a Tense. -Traz ele o mais depressa que ele
possa.


No tempo interminável que decorreu até Maxwell chegar, ninguém
se mexeu, com excepcção de Lucrécia Bórgia que se inclinou e
colocou sobre Ellen o vestido que podia servir para cobrir uma
parte da sua nudez, a que Ellen, após as suas escoriações, ficaria
indiferente. Nem o homem tão pouco, quando entrou, se preocupou
com isso.
Observou o quarto, viu o chicote, atirado descuidadamente para o
chão, a rapariga a chorar no chão, Blanche sobre a cama, e
reconstituiu no seu espírito estupefacto o que, tinha ocorrido.
-Leva-a, leva-a lá para baixo -ordenou a Lucrécia Bórgia, apontando
Ellen. Quando elas saíram, dirigiu-se ao leito e inclinou-se sobre ela.
-Que significa isto? -perguntou a Blanche. Ela não respondeu,
apenas emitiu um soluço, e ele repetiu a pergunta, acrescentando,
reprovadoramente, como se falasse a uma criança:
-Isto não é bonito, não é de senhora. Agora levanta-te, vai para
baixo e bebe um toddy.
Era a única recriminação que podia fazer a uma branca. Sabia que
nada podia acrescentar ao mal que a rapariga desejava a si própria,
à vergonha que sentia.
Escondendo o rosto na almofada, Wanche desatou a soluçar.
-Vá-se embora, vá-se embora, vá-se embora! -implorou. Já estava
sóbria.



Maxwell sabia que o incidente não se repetiria. Saiu, desceu a
escada e mandou vir um toddy. Balançando-se na sua cadeira,
sentiu-se assaltar pela dúvida quanto ao que Hammond diria sobre

o que sucedera. Talvez, se Ellen pudesse ser silenciada, ele nunca
soubesse daquilo.
Bebeu o seu toddy e esperou por outro. Tinha as costas voltadas
para a casa de jantar e, quando a porta se abriu, calculou que fosse
Meg. Era Lucrécia Bórgia.
-Patrão, siô -disse ela, com os lábios secos de terror. -Patrão, siô repetiu,
sem conseguir continuar.
-Que tens tu, Lucrécia Bórgia? -perguntou ele, irritável.
-Ela perdeu ele, siô, patrão. Ela perdeu ele.
-Quem é que perdeu o quê? Onde está o rapaz com o meu toddy?
-Ellen, siô, abortou, perdeu o bebé que trazia.
-Que dizes tu? -perguntou ele, sem querer acreditar. Lucrécia
Bórgia repetiu a notícia e acrescentou:
-Que vai eu fazê? Maxwell ergueu-se, enquanto o impacto da
notícia penetrava na sua consciência.
-Olha, não sei. Põe-a na cama do Ham. Ela está mal? 0 bebé está
vivo?
-perguntou ele, e respondeu à sua própria pergunta: -Claro que
não.
Maxwell seguiu a cozinheira até à cozinha, onde Ellen estava
estendida, exausta, na esteira de Lucrécia Bórgia. Nada havia que
ele pudesse fazer, naquele momento. Foi até à prateleira dos
remédios, preparou uma dose de láudano e levou-o à rapariga.
Inclinou-se e, com a sua própria mão, chegou-lhe o copo à boca.
-Leva-a para a cama dele -voltou a ordenar a Lucrécia Bórgia. Meg
seguiu-o para a sala, com um toddy na bandeja. Agora seria
impossível esconder a Hammond o que se passara naquela tarde.
Como mitigar a sua ira? Culpou-se a si próprio por ter permitido a
Blanche que bebesse tantos toddies.

-Diz à Lucrécia Bórgia que venha cá -ordenou ao rapaz.
-Tá lá em cima, siô, patrão, co'a miss Ellen -respondeu o rapaz,
consciente de que algo, que ele não sabia bem o que era, estava
errado.
-Quando ela descer, diz-lhe. Não te esqueças. Só meia hora depois a
mulher se apresentou diante dele. Maxwell entrou directamente no
assunto:
-A miss Blanche feriu a Ellen, fez-lhe algum golpe com o chicote?
-Não siô. Mal tocou nela. -Lucrécia Bórgia sabia o que o branco
desejava a sua negação. -A miss Blanche nã o sabia mexê naquele
chicote.
-Então não foi o chicote que fez Ellen abortar? -perguntou, cheio de
esperança.
Lucrécia Bórgia compreendeu a deixa.
-Oh não, siô. Não siô, patrão. A Ellen ia abortá de qualqué modo.
Não foi chicote nenhum.
0 homem continuou a mascar o seu tabaco, enquanto a cozinheira
esperava.
-Não vamos contar nada ao patrão Hammond quando ele voltar concluiu
ele.
-Não siô, patrão -concordou a mulher. -Mas ele vai vê qu'a Ellen já
não tem bebé.
-Claro que vai notar isso. Não se pode esconder que ela abortou.
Simplesmente não se lhe vai dizer porquê, não se vai dizer que a
miss Blanche...
-A miss Blanche não fez coisa ninhuma, nunca fez coisa ninhuma
repetiu a mulher, para se convencer bem.
-Diz isso à Ellen. Diz-lhe que não conte ao patrão quando ele
chegar ... nada, nada. Eu falo com a miss Blanche. A Ellen que não
diga nada.
-Sim, siô, patrão, se o patrão quê -concordou Lucrécia Bórgia.
-Quero -ordenou o patrão, com determinação.



Capitulo trigésimo quinto


0 lote de negros chegou a Natchez, em etapas fáceis mas
impacientes, na sexta-feira à tarde, pela estrada de leste,
caminhando através das ruas largas e poeirentas, cheias de tráfego,
até Forks-of-the-Road, ao norte da cidade. Os negros estavam
fatigados e cobertos de pó devido à longa jornada, mas o seu
interesse pelo que lhes parecia ser uma grande cidade, encheu-os de
animação. Nunca tinham visto tanta gente.

Hammond podia escolher entre a meia dúzia de barracões, quase
todos vazios. Por o seu pai lho ter recomendado e por lhe parecer o
mais limpo e o mais espaçoso, escolheu a prisão de escravos de
Arrnfield e Franklin, uma simples paliçada, à volta de um espaço
aberto, rodeado de telheiros e cabanas. Um letreiro deteriorado,
dizendo "Armfield e Frank1in, Negros e Mulas" estava suspenso de
um poste, junto da entrada.

Uma negra de meia idade estava sentada numa cadeira partida, a
fumar cachimbo, em frente de uma das cabanas, e duas crianças
quase na adolescência, um rapaz e uma rapariga, brincavam no
chão, perto dela. Um escravo macho, aleijado, com uma muleta
debaixo do ombro, atravessou o outro extremo da área.

Dois mulatos, decididos mas entediados, avançaram vagarosamente
ao encontro do lote de MaxwelI, e um deles regressou à melhor das
casas, logo a seguir à entrada, para chamar o branco encarregado,
que apareceu, esfregando os olhos, mas que, uma vez totalmente
acordado, lhes pareceu suficientemente esperto e vivo.
-Belo lote-afirmou ele, olhando para os negros. -Todos saudáveis
ao que parece. Sim, há muito espaço para eles, agora, mas o senhor
Frank1in vai mandar negros esta semana, ou na próxima, de


Washington. Se estes não estiverem vendidos quando os dele
chegarem, tenho que pedir-lhes para saírem.
-Como está isto, de negros? -perguntou Hammond.
-Estão altos, altos -disse o branco. -Não se podem comprar nem se
podem manter. Aquela velha, os garotos e aquele negro velho
aleijado é tudo o que temos para venda, e os outros pouco mais têm.
-Acha que os meus se venderão? -disse Hammond, com esperança.
-Eu estava a pensar que talvez a cólera em Nova Oricães...
-Ajudasse a venda -disse o homem, completando a frase. -Toda a
gente para aqui veio, em vez de ir para lá. A cidade está cheia.
Claro, não sei quanto conta receber pelo lote; mas, olhando para
eles, acho que se devem vender bem. Ninguém tem negros para
venda.
Hammond desmontou e entregou o Eclipse a Frenesim.
-Tenho de lhe levar bastante dinheiro, no entanto. A cidade está
cheia de gente de Nova Orleães. Tudo subiu. Cinquenta cêntimos
por cabeça todos os dias e vinte e cinco pela mula. -0 encarregado,
pelo seu próprio tom de voz, admitia o exagero dos seus preços,
mas prosseguiu: -No entanto, temos tudo, locais para lavagem e as
grilhetas de que precisar, um bom poste para chicotear os negros, e
damos boa comida, toda a que eles quiserem.
Hammond não discutiu o preço, embora lhe parecesse elevado.
Começou a distribuir os escravos pelas instalações, dando-lhes
instruções para se lavarem e descansarem, avisando-os de que se
não aventurassem para além dos portões da paliçada. 0 activo
branco e os mulatos pasmados ajudaram-no a instalar os negros,
que estavam satisfeitos com aquilo que lhes davam.


A pensão de Natchez e o Hotel dos Plantadores estavam cheios. Os
seus vestíbulos estavam apinhados de gente, as ruas sob os toldos
borbulhavam de excitação. Esperava-se o paquete de Nova Orleães
com outra remessa de refugiados. 0 empregado da recepção do
Hotel dos Plantadores sugeriu que talvez Hamniond e Redfield



conseguissem encontrar quartos na Pensão dos Cavalheiros e
indicou-lhes o caminho para lá, a um quarteirão da rua principal,
voltando à direita. Redfield não desejava afastar-se do torvelinho
dos hotéis maiores, mas não havia outra alternativa.

A Pensão dos Cavalheiros não passava de uma enorme casa de
hóspedes que funcionava como pensão. A mulher vistosa, de
grande busto, que se balouçava num cadeirão, no varandim, olhou
para os homens quando eles se aproximaram, pelo passeio de
madeira, bordejado de ervas daninhas.
-Só há um-anunciou-lhes-, só um quarto. E não é grande. Uma
cama para os dois e talvez uma esteira no chão para quem quiser. E
é caro. Um dólar e meio por dia, agora, por cada um. É pegar ou
largar, não me interessa. Aparece alguém, se não quiserem. Damos
boa comida. Toda a gente fica satisfeita.
Os homens nem tinham falado. A mulher arranjou o cabelo,
puxando-o para trás das orelhas e voltou a balançar-se, fixando o
olhar numa casa do outro lado da rua, para sublinhar a sua
indiferença quanto à decisão deles. Só podia haver uma decisão; não
tinham outro sítio para onde ir.
-Gostava de saber se tem um sítio para guardar os cavalos arriscou
Hammond.
-Cinquenta cêntímos, cinquenta cêntimos por dia extra -declarou a
mulher sem os olhar.
Hammond aceitou as condições e a mulher começou a chamar em
altos gritos por Real. Os homens ficaram em frente dela, à espera.
Ela voltou a gritar, uma vez e outra, com voz aguda, chamando por
Real. Entre os guinchos, baloiçava-se impacientemente, para a frente
e para trás, dando um grito pelo escravo de cada vez que a cadeira
vinha para a frente.
Nada podia desmentir melhor o nome de Real do que o seu aspecto,
quando finalmente apareceu, embora os hóspedes não se


importassem com isso. Era um negro raquítico, de peito curvado
para dentro e pernas tortas, com os cabelos grisalhos.
-Real, estás a precisar de chicote -começou a mulher por dizer. Porque
não vieste quando te chamei? Não digas que não me ouves.
Quando me ouves, tens de vir logo.
-Sim, sinhora, sim, sinhora -disse Real sem se perturbar,
aguardando que a patroa lhe dissesse o que queria.
-Estes cavalheiros vão para o número sete. Trata de os levar lá. Vai
com eles e mostra-lhes o quarto. Ficam ambos com a mesma cama explicou
ela. -A casa de jantar abre às cinco. É melhor virem cedo,
se querem ficar com o melhor -gritou aos hóspedes, quando estes se
preparavam para seguir o escravo.


Hammond sentiu-se cansado, depois de inspecccionar os escassos
confortos do quarto. Contudo, voltou a montar Eclipse e dirigiu-se
para Forks, para verificar se os seus escravos se encontravam bem e
se tinham sido devidamente alimentados.


Quando chegou, encontrou os dois mulatos a distribuir entre os
escravos grandes frigideiras de guisado de carne, cujo odor lhe
agradou. As mulheres tinham camas para dormir e os homens
grandes montes de palha. Todos se encontravam confortáveis.


Havia um único cavalo atado à cerca e um homem observava os
escravos.
-É aquele o proprietário. Tem de falar com ele -explicou o
encarregado branco ao comprador. -Não tenho nada a ver com
estes negros. São dele.
0 homem, de rosto corado, ventre arredondado, pernas curtas, e
muito calvo, como se pôde ver quando tirou o chapéu para enxugar


o suor, avançou para Hammond.
-Aquele ali, parece-me bom. Quanto quer por ele? -Apontava para
Frenesim.

-Mil e quinhentos -disse Hammond, improvisando um preço, não
sabendo quanto pedir. -É muito esperto, de primeira e saudável.
0 homem resmungou e voltou-se para Alaúde, apalpando-c, por
cima da roupa.
-E este malandro? Quanto quer por ele?
-Esse é mais barato. Só mil e duzentos. É tão bom como o outro, mas
ainda não atingiu o crescimento total.
0 homem resmungou outra vez.
-Parece razoável -acenou com ar de conhecedor. -Não tem defeito?
-Estão garantidos, todos eles -disse Hammond, na expectativa.
-Talvez leve um ou dois, e tenho amigos que querem alguns. Tem
fêmeas?
Hammond interrompeu a ceia das mulheres para as mostrar.
-Ainda em idade de criar -comentou o comprador. -Não aparecem
muitas. Três delas prenhes, e já se vê. Hum.
-Estão todas prenhes -garantiu-lhe Hammond -embora em
Estrelita não se note muito ainda.
-Quero uma ou duas, não há dúvida -disse o homem, apalpando os
braços das mulheres e levantando-lhes as saias, para ver as pernas.
Depois voltou aos rapazes, apalpou-os e atirou pedras para eles as
irem apanhar.
-Quer que eu mande despir algum deles para os ver melhor? perguntou
Hammond.
-Não, acho que não. Esta noite não. Amanhã de manhã -disse,
fazendo os seus planos.
Voltou-se para Frenesim e perguntou ao escravo que tal o achava
como patrão.
-Eu trato-os bem, trato todos bem. É uma boa casa cristã. Como se
fossem de família -prometeu.
Finalmente despediu-se, montou no cavalo e partiu, com a grande
cara vermelha voltada para trás, ainda a olhar para os escravos.
-É o velho maior Wilkins -explicou o encarregado, depois de o
homem partir. -Não tem trabalhadores, nunca teve nenhum; não



tem dinheiro. É um bocado desaparafusado, penso eu. Sempre à
procura de negros. Mal chega um lote, é sempre o primeiro a ir vêlos.
-Julguei que ele fosse comprar dois ou três. Parece que perdi o meu
tempo com ele -disse Hammond, desapontado.
-Não, o major não compra; não pode. Mas espalha as coisas. Fala
dos negros -observou o encarregado. -Toda a gente em Natchez vai
ficar a saber que o senhor aqui está e tem negros para vender,
perfeitos e baratos. Não perdeu o seu tempo. Vale a pena atender o
major.
0 Dr. Redfield reservara um lugar para Hammond ao seu lado, na
longa mesa da Pensão dos Cavalheiros. Os seios gigantescos da
senhora Kermedy, a mulher com quem haviam tratado da sua
admissão, no varandim, caíam sobre o extremo da mesa que ficava
mais perto da cozinha, enquanto o seu velho marido, seco e
mirrado, presidia do outro extremo da mesa. A ceia estava servida a
dezassete pessoas, tudo homens, com excepção da senhora
Kermedy.
-Acabo de encontrar o maior Wilkins, que me disse que havia um
lote novo de escravos, no Armfield em Forks -disse um homem
baixinho, tentando estabelecer conversa com ninguém especial,
enquanto espalhava manteiga sobre um biscoito.
-0 velho Wilkins! -riu-se alguém.
-0 mais provável é estarem todos doentes. Todos para morrer,
vindo do Sul. Eu tinha medo deles -manifestou-se um homem que
estava sentado perto de Hammond.
Não, estes vem do Alabama ou qualquer outro local a leste -disse o
major. -São saudáveis e perfeitos -corrigiu o homem pequeno.
-Alguns especiais? Tenho de ir lá vê-los -declarou o senhor
Kermedy.
-Gostava de ter outro.
-Nada de negros especiais! Não quero nenhum por cá, e já sabes
bem isso, Ben. Kermedy. já temos bastantes problemas com a Dipsy


-disse a senhora Kermedy, apontando para a mulata que circulava
em volta da mesa com uma travessa -quanto mais com negros
especiais. Vocês os homens já não deixam em paz a pobre Dipsy,
apesar de ela não ser nada de especial, sabe Deus.
-Os negros subiram, ao que parece -comentou o homem pequeno,
comendo outro biscoito.
-Aparecem poucos para venda, só meia dúzia deles e são enfezados
e preguiçosos.
-As pessoas têm medo de Nova Orleães. Todos os compradores da
Luisiana vêm aqui e ninguém traz negros.
Hammond nada disse sobre o seu lote. Os pensionistas dos
Cavalheiros não eram compradores de escravos, apesar da sua
conversa.
Terminada a ceia, apesar de estarem fatigados da viagem, Redfield
quis percorrer os bares e casa de jogo. Era por isso que tinha vindo a
Natchez. Hammond juntou-se-lhe, caminhando atrás dele, a coxear.
Os bares eram cheios de luzes e de espelhos, muito diferentes da
taberna de Benson. As paredes estavam adornadas com nus. Havia
numerosos bebedores, gente de todos os tipos, homens
elegantemente vestidos, de chapéu alto, com sinetes de ouro em
pesadas correntes por cima dos coletes, trabalhadores mal vestidos,
desportistas e especuladores, todos eles aparentando um desespero
febril e desvairado de fugir a algo que os ameaçava. Muitos deles
tinham chegado recentemente de Nova Orleães, refugiados, fugindo
da epidemia que assolava a cidade. Aguardava-se um novo paquete
naquela noite, e todos esperavam amigos entre os passageiros.

À medida que Redfield e Hammond se arrastavam de bar para bar,
absorvendo as luzes e a excitação, iam vendo os mesmos rostos nos
espelhos por trás do balcão. Redfield sentia-se inclinado a jogar uma
partida de pôquer, e Harrimond ficou a vê-lo perder vinte dólares e
acabar por levantar-se e ceder o lugar a um homem que esperava
por trás dele. Embora vinte dólares parecessem a Redfield uma


perda considerável, para a multidão em vaivém o dinheiro não
tinha valor. No dia seguinte podiam morrer, pensavam eles. Ao
menos tinham escapado da cidade e pouco mais lhes interessava.
Para que servia o dinheiro, já que o tinham?

Um angariador pálido mostrou a Hammond e Recífield o caminho
para casa de Maggie e depois desapareceu. A própria Maggie era
muito jovial e tinha sido elegante quando tinha metade da sua idade
actual, e as mulheres do seu bordel eram bastante engraçadas.
Havia uma dúzia delas, mas estavam muito ocupadas para perder
tempo a conversar com os clientes, e a torrente ia aumentando.
Havia homens por toda a parte, sentados nos sofás, de pé junto das
portas, sentados no chão. A casa de Maggie tinha a reputação de ser
a melhor da cidade.

As mulheres eram todas brancas. Hammond não apreciava a carne
branca e ficou indiferente perante o atraso. As mulheres não
conseguiam atraí-lo. Não eram propriedade sua; antes pelo
contrário, pertenciam durante quinze minutos a quem lhes pagasse.
Hammond comprou urna garrafa de vinho, mas as mulheres
estavam todas muito ocupadas para beber com ele, e teve que a
partilhar com Redfield e com um estranho que se encontrava junto
da mesa onde uma mulata de tipo relaxado servia o vinho.

Contudo, Redfield sonhara todo o Verão com o deboche que gozaria
em Nova Orleães. Aquilo era apenas Natchez, evidentemente, mas
não queria perder a sua orgia. Objectou à sugestão de Hammond de
que se fossem embora sem esperar mais tempo pelas mulheres.
-Eu só tenho dormido com aquela viúva cheia de verrugas. Agora
quero gastar o meu dinheiro e arranjar uma rapariga nova, bonita e
macia, enquanto posso -argumentou. -Claro, como tem uma
coisinha nova, não me admira que não se interesse por estas.


Uma lourinha gorducha tocou no ombro de Hammond.
-Vem comigo, querido -disse ela. -Ficas para mim. Tenho estado
com velhos toda a noite. Agora, que diabo, tenho que me divertir,
também. Tenho estado a olhar para a tua carinha nova desde que
entraste e a planear apanhar-te.
Hammond olhou para o seu cabelo louro e encolheu os ombros.
-Não me parece -disse, declinando a oferta. -Não me sinto bem.
Redfield avançou logo.
-Vou eu contigo -ofereceu-se. A rapariga olhou para o homem,
depois voltou a fixar Hammond e fez um jeito de troça.
Bem, anda lá -disse, resignando-se. Vai esperar? -perguntou
Redfield, recebendo um aceno afirmativo do seu companheiro.
Afastou-se rapidamente com a rapariga, deixando Hammond
sozinho, a bocejar.
Maggie circulava entre as mesas, desculpando-se.
-Arranjo-lhe já uma rapariga -disse a Hammond. -Esta noite vêm
mais raparigas no paquete, vêm muitas de Nova Orleães.
-Não quero nenhuma -disse Hammond. -Estou só à espera.
-Está só incomodado -garantiu-lhe Maggie, pondo-lhe um braço
em volta do ombro. -Não precisa de se sentir assim. Nenhuma
destas raparigas lhe vai fazer mal. Não está habituado a vir a sítios
como este, pois não? É muito novo e amoroso. Eu sei.
Hammond corou e não lhe respondeu. Não sabia como negar a
inocência de que a mulher o acusava. Sentia que, em parte, a
acusação era verdadeira, mas não se sentia embaraçado.
Ouviu uma voz conhecida e, voltando-se, viu a figura protuberante
do major Wilkins que segurava um homem pelo cotovelo. Ouviu o
major dizer:
-Estes, estes são diferentes. São novos e de primeira. E baratos. 0
melhor lote que eu já vi. Eu próprio vou comprar uns dois ou três.
Não vão ficar lá muito tempo, garanto-lhe, quando as pessoas
souberem deles. É melhor ir lá logo de manhã, se quer apanhá-los.
No ArmficId, em Fork-of-the-Road.



Hammond não conseguiu ouvir a resposta do outro homem, mas
sabia que Wilkins falava dos seus escravos, como se fosse um
anúncio ambulante. Viu Redfleld aproximar-se, em passo vivo, até
ser interceptado pelo maior Wilkins, que o agarrou e o chamou
aparte. 0 maior descreveu-lhe os escravos que estavam à venda no
Armfield e voltou a declarar a sua intenção de comprar algum,
desta vez três ou quatro, para seu próprio uso.
-Eu sei -disse-lhe Redfield. -Eu é que os trouxe; não são
propriamente meus, mas acompanhei-os; eu vendo-os.
-Pois bem, felicito-o. Um belo lote, o melhor que tem aparecido.
Amanhã vou lá vê-los e comprar alguns -declarou o maior antes
que Redfield conseguisse escapar-lhe.
Hammond não sabia a quantas pessoas Wilkins contara a sua
história, mas isso não prejudicava em nada as suas possibilidades
de venda.
Redfield estava satisfeito e pronto a regressar à Pensão dos
Cavalheiros, incapaz de compreender como Hammond pudera
resistir ao encanto das prostitutas de Maggie.
-Vê aquela ruiva ali? -perguntou entusiasticamente quando os dois
se dirigiam para a rua sem iluminação. -Para a próxima vou
experimentá-la. As ruivas são as melhores. Claro, esta noite estava
ocupada.
-Gostava de saber o que pretende o major, a falar a toda a gente do
nosso lote -disse Hammond, mudando de assunto. -Penso que,
amanhã, de manhã, tenho que pôr um anúncio no jornal.
Quando entraram no quarto às escuras, Redfield tropeçou numa
esteira desocupada que estava aos pés da cama dele.
-Parece que vamos ter companhia -observou. Hammond despiu-se
às escuras, pedindo a Recífield que o ajudasse a descalçar a bota.
Retirou a bolsa da algibeira e colocou-a por baixo da almofada.
Adormeceu imediatamente, mas, mais tarde, foi vagamente
perturbado por alguém que entrava no quarto e se deitava na


esteira. 0 novo hóspede murmurava insultos para o criado que o
ajudava a despir e que depois desapareceu.
Hammond ouviu mas nem abriu os olhos. Depois da sua longa
viagem apesar de o colchão ser todo aos altos, a cama soube-lhe
bem e dormiu profundamente. Acordou quando o sol já formava
um longo desenho no chão. Não sabia se fora acordado pela luz ou
por uma figura que se movia no quarto.


Era uma figura grotesca, muito negra e muito gorda, de pernas nuas
por baixo de umas calças de zuavo, sujas, de um vermelho-vivo, e
de pés descalços. Hammond voltou-se de lado para observar o
gordo rapaz, que conhecia de qualquer lado, e que se ocupava em
escovar os fatos do patrão. Os seus movimentos eram lentos, apenas
gestos com a intenção de fazer o trabalho, sem o executar
propriamente. A manhã estava fresca e o negro não estava a fazer
grande exercício, mas o suor rolava-lhe da testa para as faces
obesas.


Hammond pensava na imprevidência de alimentar um criado ao
ponto de o transformar num barril, quando de súbito lhe ocorreu a
identidade do rapaz.
-Tu não és o Shote, o Shote do Pierce? -perguntou.
0 rapaz 'abanou a cabeça, com indiferença.
-Não, já não é. Eu tem um patrão novo, siô, e roupas e tudo.
-Mas tu eras do Pierce, não eras? 0 teu nome não é Shote?
-Sim, siô, patrão. Era sim; Jázão é. –O rapaz voltou a escovar o fato.0
meu novo patrão deu muito comê pra eu; engordou eu bem.
Da esteira, que Hammond não conseguia ver, veio uma pergunta:
-Com quem estás a falar, Shote? Se não te calas e me deixas dormir,
vais ver o que te faço. Levas umas chicotadas!
-0 siô que tá na cama perguntou a eu, siô. Eu não tá a fazê barulho
ninhum.



Hammond reconheceu a voz que vinha da esteira e saltou da cama.
-Charles! Charles Woodford! -exclamou. -Toda agente pensava que
estavas morto!
0 homem deitado na esteira abriu os olhos e fixou um deles no
homem nu que avançava para ele, a coxear.
-Primo, Hammond -disse. -Como apareceu aqui?
-Não se rale com isso! Não lhe interessa como apareci aqui.
Interessa é que o encontrei finalmente. Onde está o meu dinheiro?
Onde está o negro que me roubou?
Charles olhou-o tranquilamente.
-Nunca lhe roubei nenhum negro, nem nenhum dinheiro. De que
está a falar, primo Hammond?
-Sabe bem do que estou a falar: aquele negro, aquele dinheiro,
aquele anel.
-Daquele jasão que o primo Warren me deu? Fala dele, primo
Hammond?
-Sim, desse. Porque é que o roubou?
-Nunca. Sabe que não. Ouviu o primo Warren dizer-me que ele era
meu e que fizesse dele o que quisesse. Estava lá; ouviu o primo
Warren também -disse Charles, erguendo-se sobre um cotovelo.
-0 meu pai nunca quis dizer isso, e sabe-o bem, nem por sombras.
Onde está o documento dele?
-Vindo de um cavalheiro, achei que não era preciso documento. 0
primo Warren não me deu documento nenhum.
-Sabe bem que o meu pai se referia a que o jasão estaria ao seu
serviço enquanto estivesse em Falconhurst. Não era seu e não podia
fugir com ele.
-Devia ter-me explicado. Pensei sempre que ele era meu, como ele
tinha dito. Agora é tarde demais -disse Charles, encolhendo os
ombros. -Vendi o Jasão. Nunca soube que não era meu.


Hammond lembrava-se de o pai ter dito a Charles que podia ficar
com jasão, mas presumia-se que se referia à duração da sua visita.



Não podia acreditar que o rapaz tivesse aceitado o negro como uma
oferta permanente, e, contudo, não havia maneira de contradizer a
afirmação de Charles.
-Bem, e o dinheiro? -disse Hammond, passando ao assunto
seguinte.
-Qual dinheiro?
-0 que lhe dei para entregar ao seu pai. Nunca lho levou.
-Oh, esse. Levei-o emprestado. Era dele, do meu pai; não era seu.
Levei-o por empréstimo. Hei-de lho pagar um dia, quando eu
puder, claro.
-0 dinheiro era meu e eu quero-o -declarou Hammond, impotente.
Charles limitou-se a rir.
-Não era seu. Deu-mo para o meu pai. Eu fiquei com ele, como
empréstimo, mas do meu pai, não seu, para vir para Nova Orleães.
Sempre quis ir para Nova Orleães. Acha que o meu pai fará alguma
coisa a esse respeito?
-Há-de chicoteá-lo, como se fosse um negro -ameaçou Hammond.
-Ele que experimente! Acabaram-se as chicotadas. Acabaram-se!
Ouviu? Acabaram-se! -Charies sentou-se, com a excitação, mas
depois reclinou-se de novo, a rir. -De qualquer modo, ele tem que
me apanhar primeiro.
Se Charles roubara os dois mil e quinhentos dólares aos Maxwell ou
ao seu pai era um assunto a discutir. De qualquer modo, era mais
abuso de confiança do que roubo. Mesmo que Hammond quisesse
prosseguir na acusação, a explicação de Charles desarmara-o. De
quem era o dinheiro, uma vez nas mãos de Charles? Dos Maxwell
ou dos Woodford?
-E o anel? -prosseguiu Hammond. -Que lhe sucedeu? Acha que
lho ofereci, não?
-Raios, não! Tenho-o aqui, tenho-o aqui no dedo, vamos a ver se
consigo tirá-lo. Está muito apertado.
Charles lutou para tirar o anel, chupou o dedo e, depois de um bom
esforço, conseguiu arrancar o anel. Atirou-o aos pés de Hammond.



-Tencionava dá-lo à Blanche quando a visse. Penso que a verá
primeiro. Leve-lho.
Hammond inclinou-se para apanhar o anel satisfeito por o ter
recuperado.
Como está ela? Calculo que se tenham casado. Não havia maneira
de o impedir -prosseguiu Charles. -Penso que já descobriu que eu
estava a dizer a verdade, quando lhe afirmava que ela era veneno.
-Sim, casámos. Esqueci-me de que não sabia disso. A Blanche está
bem,, simplesmente está grávida. Vai ter um filho.
-Não? A Blanche? Isso é muito interessante! -A surpresa de Charies
não era fingida. -Espero que não nasça com os olhos tortos, como
eu.
Porque havia ele de considerar tal possibilidade? Hammond
disfarçou a repercussão que tal comentário lhe provocara.
-Como vai a minha mãe? Tem-na visto? -perguntou Charies. Continua
a ler a Bíblia, imagino eu.
-Está bem. Pelo menos estava na altura do casamento. Desde essa
altura que não a vejo. 0 Dick fez-se pregador, deixou-se de leis.
-Ser pregador é melhor para ele. Não precisa de aprender mais
nada, é só pregar. -Charles pouco se interessava pelo assunto. Para
que veio a Natchez? Comprar mais uma fêmea?
-Vim vender um lote, eu e o doutor Redfleld, que está ali na cama.
Os negros estão em Forks.
-Vendem-se bem? Os negros estão caros.
-Só cheguei ontem. Ainda não tive tempo.
-Vão vender-se bem. Os compradores já não vão a Nova Orleães.
Vêm todos para aqui. Os seus negros nem sequer estiveram perto
de Nova Orleães, pois não? Então vendem-se bem. É cómico,
encontrarmo-nos aqui, e no mesmo quarto.
-Que está a fazer aqui?
-Venho refugiado de Nova Orleães. Cheguei no paquete ontem à
noite. Quase ninguém lá ficou, ou morreram ou foram-se embora.
Trouxe o Shote comigo. Lembra-se dele?



Hammond lembrava-se e comentou:
-Está mais gordo do que nunca. Demasiado gordo. Charles saiu da
cama e Shote começou a ajudá-lo a vestir-se.
-Está o mais gordo que consegui pô-lo -disse-, mas mesmo assim
não consigo vendê-lo. Os monstros valem dinheiro, quando os
conseguimos arranjar, mas há demasiados gordalhões. já ninguém
acha piada aos gordos.
Hammond reparou na mudança que o seu cunhado sofrera. A cara
já não tinha borbulhas e engordara. A carne era flácida mas os
contornos tinham arredondado. Se não fossem os olhos, poder-se-ia
dizer que era um belo homem, ou que viria a sê-lo.
-Comprei um marrequinho de pernas fininhas, um moleque muito
cómico -continuou Charles. -Paguei muito pouco por ele, só cento
e cinquenta; vendi-o no dia seguinte a um jogador por quinhentos
dólares. Usa-o para lhe dar sorte. Depois arranjei uma fêmea idiota.
Não sabia nada. Nem sabia falar. Seguia-me como unia cadelinha,
irias não podia conservar as roupas. Rasgava-as logo que eu lhas
vestia. Um tipo deu-ma. Ainda não a tinha há uma semana quando
um homem, na Bolsa, a achou engraçada e me ofereceu trezentos
dólares por ela. Queria-a para animal de estimação do filho. Vejo
que são os monstros que dão dinheiro, se conseguirmos apanhá-los.
Lembrei-me deste Shote e fui comprá-lo. Tive que pagar bastante,
trezentos e vinte e cinco dólares por ele. já era muito crescido. As
pessoas querem os monstros novinhos. Claro, posso vendê-lo por
quatrocentos e cinquenta, quinhentos dólares, em qualquer altura,
mas quero setecentos. Não é o escravo mais gordo que já viu? Eu
sinto vontade de rir cada vez que olho para ele. -Charles deu uma
palmada, com orgulho e com certo afecto, no gordo lombo de Shote.
-Se fosse três anos mais novo, valia uns mil. Alguém o há-de
querer. E era melhor trazê-lo comigo do que deixá-lo em Nova
Orleães para apanhar cólera e morrer.
Hammond vestiu-se e começou a tentar calçar a bota.


-0 seu Shote pode ajudar-me? Parece que estou a ficar pior, em vez
de melhorar -disse.
-Claro, claro. Ajuda o senhor Hammond, rapaz. Faz o que ele te
disser. Charles procurava ser simpático, como dantes. Estava
satisfeito por terem feito as pazes.
Já vestido, Hammond acordou Redfield, que estivera sempre a
dormir e não ouvira a conversa. Vestiu-se apressadamente,
enquanto Hammond esperava.
-Ainda tem aquele rapaz corri três tomates, seu e do primo
Warren? -perguntou Charles. -Penso multas vezes nele. Podia
vendê-lo bem a um marinheiro que eu conheço.
-Ainda o tenho -respondeu Hammond. -Está comigo, lá em Forks.
-Quanto quer por ele?
-Não lho vendo a si, nem ele nem nada; só depois de me pagar e me
dar o valor de Jasão.
-julgava que estava já tudo explicado e resolvido. Não me diga que
ainda tem ressentimentos contra mim.
A voz de Charles tinha um tom magoado.
-Não tenho ressentimentos, mas não quero negócios consigo,
apesar de ser irmão da minha mulher.
-Pensei que quisesse que eu o ajudasse a vender o seu lote.
Hammond não respondeu. Teria preferido nã o ter encontrado
Charles, teria preferido esquecer-se dele, considerá-lo um aldrabão
e um ladrão. Mas a explicação que o rapaz dava para o seu
comportamento era suficientemente susceptível de levantar dúvidas
na mente de Hammond -não tinha sido exactamente um roubo, não
fora um roubo aos Maxwe11. Pelo menos devolvera o anel, na
primeira oportunidade.
Charles, não tendo qualquer propósito em Natchez, além de escapar
de Nova Orleães e da cólera, decidiu juntar-se a Hammond e
retomar as suas relações como se nada tivesse ocorrido entre eles.
Esperou que Redfield se vestisse e acompanhou-o a ele e a
Hammond até à casa de jantar, para tomarem o pequeno-almoço.


Era primo e cunhado de Hammond e este foi incapaz de o mandar
embora, apesar de ainda sentir algumas dúvidas quanto à aplicação
de Charles sobre o dinheiro e o negro. Aceitou-o sem grande
entusiasmo, mas livrou-se logo dele porque Charles não tinha
cavalo que o levasse a Fork-on-the-Road.

Redfleld foi directamente para lá, enquanto Hammond ficava na
cidade para pôr no jornal um anúncio da sua chegada com um lote
de negros para venda, e para comprar roupas novas para os
escravos, pensando que elas lhes dariam melhor aspecto perante
possíveis compradores. Apressou-se nas suas tarefas e chegou à
paliçada de Arinfield antes das dez horas. Redfield assegurara-se de
que os escravos tinham comido até se sentirem cheios. Estavam
sentados em bancos em frente das portas das cabanas, não tendo
coisa alguma para fazer além de esperar que aparecesse alguém e os
comprasse. A sua passagem pela cidade tinha estimulado o seu
interesse, mas nada mais podiam fazer além de descansar ao sol e
esperar pelo que lhes quisessem fazer.
A chegada de Hammond animou-os e a distribuição de roupas e
acessórios excitou-os.
-Têm a certeza de que estão limpos? -perguntou Hammond,
enquanto lhes entregava calças, camisas e vestidos. -Não quero
esses fatos novos no chão!
-Nós lavou-se ontem, patrão, siô -declarou Vulcano -, logo que
chegou.
A novidade da distribuição de roupas encantou os negros, que
corriam de uns para os outros, mostrando-as e trocando-as entre si,
para ficarem com coisas que lhes servissem melhor. Alguns dos
rapazes começaram a dar cambalhotas que fizeram rir os outros, e a
alegria entre eles era grande. Alguns deles, que haviam esperado
poder passear pelas ruas à procura de compradores para si
próprios, sentiam-se desapontados por terem de limitar-se a um


barracão, mas não se sentiam desconfortáveis e estavam bem
alimentados.
Alguns jovens da vizinhança e alguns homens aproximaram-se para
fazer uma inspecção superficial da mercadoria, mas nenhum tinha
dinheiro para comprar.
Os jornais com os anúncios de Hammond só sairiam no dia
seguinte, mas o proprietário começava já a ficar desapontado por
não ser maior o interesse do público pelos seus escravos. Só às duas
horas apareceu um possível comprador.
Era um jovem mal vestido, de corpo curvado, com uma barba
negra, montado num cavalo mal cuidado, de pêlo longo.
-Ouvi dizer que tem negros -disse ao encarregado branco,
enquanto desmontava desajeitadamente, apesar de os escravos
estarem à sua frente.
-São dele -respondeu o encarregado, apontando na direcção de
Hammond.
0 homem aproximou-se de Hammond e repetiu a sua pergunta
afirmativa, que o proprietário admitiu ser verdadeira. Os escravos
levantaram-se e alinharam-se, como Hammond lhes ensinara.
0 homem caminhou ao longo da fila, observando o lote
individualmente, parando ocasionalmente para apalpar os
músculos de um dos rapazes.
-Muito bons -comentou sem se referir a nenhum em especial. Muito
bons. Da Virgínia ou do Kentucky?
-Alabama -respondeu Hammond.
-Muito bons -repetiu o homem -, vindo de lá. E este aqui? Quanto?
-apontava para Vulcano.
-Este? -Hammond hesitou antes de indicar um preço. -Custa mil e
oitocentos.
-Sim -disse Redfield aproximando-se -mas esse vale bem dois mil
e quinhentos.
0 homem assobiou, alarmado com o preço.



-Há outros mais baratos. Este é o mais caro de todos. 0 senhor sabe
escolher um bom negro -disse Hammond. -Logo à primeira
escolheu o melhor.
0 homem examinou os outros rapazes e perguntou os seus preços,
mas voltou sempre a Vulcano. Alaúde, o mais barato dos machos
adultos, custava apenas mil dólares. 0 homem pediu a Vulcano,
Napoleão e outros dois que despissem as camisas e Hammond
mandou-os despir totalmente. Eram todos de primeira, sem nada
para esconder e sentia orgulho neles.
-Belos machos, sem uma marca -disse o homem, com admiração,
passando a mão pelas costas de um deles. -Mas mil e oitocentos? É
de mais. Dava-lhe mil duzentos e cinquenta, mais ou menos, por
aquele. Dou-lhe mil duzentos e cinquenta. Que diz? Hammond
abanou a cabeça, na dúvida e olhou para Redfield, pedindo-lhe
conselho.
-É um macho para procriar-disse Redfield. -Há aí outros
igualmente bons, se os quer para trabalhar.
-Tenho três fêmeas e todas elas têm machos. Não preciso de
procriador, mas gosto do aspecto deste -disse o homem, hesitante.
-Naturalmente os seus machos não são tão bons como este. Dê-lhe
as fêmeas e ele faz-lhes gérneos, é o mais provável. É bastante forte sugeriu
Redfield.
0 homem suspirou, convencido mas relutante.
-Seis meses? -perguntou.
-A pronto -exclamou Hammond positivamente.
-Bem, não tenho esse dinheiro. Não tenho mesmo.
0 vendedor não respondeu.
-Tenho de ir ao banco, penso eu.'O banco há-de servir-me. Sempre


o fez .Guarde-me esse; eu volto cá.
Quando o comprador se dirigia para o cavalo, encontrou o major
Wilkins que entrava no cercado.
-Não comprou nenhum? -perguntou o major.

-0 melhor que ele tem -respondeu o homem. -Mas tenho de ir ao
banco. Não gosto de pedir empréstimos.
-Eu disse-lhe que eram de primeira. Não tenho razão? Não são de
primeira?
-São de primeira, mas são caros, muito caros -admitiu o outro.
-Os negros subiram -disse o maior. -Vou comprar um ou dois,
também.
0 homem afastou-se a cavalo e o major avançou para Hammond.
-Velo que o Bryce já cá esteve. Vi-o esta manhã e disse-lhe que o
senhor cá estava. Penso que ele já escolheu. É difícil fazer negócios
com ele, mas é muito honesto, muito honesto. Tem uma quintazinha
que o pai lhe deixou, e meia dúzia de negros; é tudo quanto tem,
mas é honesto.
-Leva este se o banco lhe emprestar o dinheiro -disse Hammond,
apontando Vulcano, que estava a vestir-se.
0 maior aproximou-se de Vulcano, apalpou-o superficialmente e
resmungou a sua aprovação.
-Não é este o que tem três tomates? -perguntou, com certa
ansiedade.
-Não -disse Hammond. -É aquele rapaz ali. Como sabe que ele
tem três tomates?
0 major não respondeu à pergunta.
-Qual é ele? -perguntou. -Tenho dinheiro; tenho-o aqui mesmo. Tirou
da algibeira superior das calças uma considerável quantidade
de dinheiro, endireitou-o, e voltou a metê-lo no bolso. -Qual é ele?
Era difícil acreditar que o major fosse o tipo de homem para
comprar uma deformidade anatómica, e que o encarregado
estivesse enganado ao afirmar que o major não dispunha de meios.
Harrimond chamou Atrides, que se aproximou, arrastando os pés e
piscando os olhos cinzentos.
-Despe-te e mostra-te a este cavalheiro. Mostra-lhe o que tu tens disse
Hammond, colocando a mão sobre o ombro do rapaz. -Ainda
não é grande coisa, praticamente nada, mas há-de crescer; tem bons



ossos -disse o proprietário, em tom de desculpa, enquanto Atrides
despia as calças.
-E que tem mesmo! Raios me partam! -0 major ganhava
entusiasmo, ao apalpar os orgãos genitais do rapaz. -Nunca vi nada
assim na minha vida, nunca vi. já apalpei tanto negro, em toda a
minha vida e nunca vi nada assim.
Atrides não sentia embaraço; de facto estava satisfeito com o
interesse do branco.
-Há-de crescer. É ainda um garoto-explicou Hammond, apalpando

o braço magro do rapaz.
-Claro que sim. Claro que sim -concordou o major. -E tem as
costas limpas. Nem uma marca.
-Nunca foi chicoteado -disse Hammond. -É um negro especial, por
causa dos três tomates.
-É o que eu pensava -concordou o maior. -Ele sabe dançar? Sabe
alguns truques?
Hammond foi forçado a admitir que não tinha ensinado nada desse
gênero ao rapaz.
-Pode aprender. É muito rápido, apanha tudo o que lhe ensinar ...
Pode ensinar-lhe -interrompeu Redfield.
-Quanto pede por ele, quanto? Hammond hesitou e Redfield
respondeu à pergunta do maior.
-Mil e duzentos; mil e duzentos dólares. E merece-os bem.
-É um bocado alto, não é? Nesta idade? -objectou o maior,
observando o rapaz, duvidoso.
-Não aparecem negros com três tomates todos os dias argumentou
Redfield. -Este é especial.
0 major parecia não o ouvir, olhando para longe, através do portão,
sem nada ver. Hammond, sabendo que o preço era alto de mais,
abriu a boca para o baixar.
-Bem -disse o major -é caro, mas eu sei que os negros estão a subir.
Se não consegue baixar o preço, levo-o mesmo assim. Pode passar

me um papel. Rapaz, és meu. Que dizes a isso? Veste-te, vais
comigo no meu cavalo.
Hammond foi até ao escritório e pediu ao encarregado um impresso
em branco para fazer um documento de venda. 0 maior e Atrides
foram com ele, e o major ia contando o dinheiro, enquanto
caminhava. Pouco ficou no seu rolo, depois de pagar o rapaz.
-Volto cá para levar mais dois ou três -prometeu o major ao
afastar-se, com Atrídes montado atrás dele, acenando com uma mão
e agarrando-se com a outra à larga barriga do major.
-Aquele major! -disse o encarregado. -Onde teria ele ido buscar o
dinheiro para comprar um negro? Que irá fazer com ele?
Hammond estava muito satisfeito por se ver livre de Atrides tão
facilmente e por um tal preço; mas não lhe agradava o facto de não
fazer mais vendas. Claro, tinha a palavra de Bryce de que levaria
Vulcano, mas o dinheiro não tinha mudado de mãos e a venda
ainda não estava feita. Hammond e Redfield ficaram junto do lote
toda a tarde, mas não apareceram mais compradores sérios. Vieram
alguns homens, quatro no total, que olharam para os escravos, os
apalparam, mas apenas um perguntou preços, e sem qualquer
intenção de comprar.
-Espere que os jornais façam o seu trabalho -disse Redfield que não
tinha pressa nenhuma de ver a venda terminada e de partir para
Benson. -Ninguém ainda sabe que aqui estamos.
Os escravos tiveram a sua refeição do dia, e os brancos montaram
nos seus cavalos e voltaram a Natchez. Hammond estava
descoroçoado. Chegaram tarde para a ceia da pensão e os homens
estavam já a sair da casa de jantar quando eles entraram. Passaram
por Charies que já tinha comido e estava a dar ordens a Shote.

Depois da ceia, Hammond, sem paciência para orgias, foi cedo para
a cama, enquanto Redfield se dirigiu de novo para os bares, salas de
jogos e bordéis, que abundavam em Natchez e que haviam
aumentado com o influxo de refugiados de Nova Orleães.


Hammond apalpou a bolsa, que havia colocado por baixo da
almofada, quando ouviu, mais tarde, Charles deitar-se na sua
esteira; contudo não receava que Charies tentasse roubá-lo. Charies
repugnava-o moderadamente, e teria preferido que ele estivesse em
qualquer outro lado, mas não sabia como livrar-se do rapaz. Ainda
mais tarde, Hammond meio ouviu meio sentiu Redfleld entrar
silenciosamente na cama, ao seu lado.

A meia luz da manhã sombria, anteviu uma figura que se
movimentava no quarto e concluiu que seria Shote a preparar as
coisas para quando o amo se levantasse. Em breve viu que
efectivamente não era ele. Era Atrides, vestindo um uniforme azul
com botões de latão.
-Donde vieste tu? Que estás aqui afazer? -gritou Hammond ao
rapaz.
-Como vieste para aqui?
-Não sabe, patrão, siô. Eles não disseram a mim -respondeu
Atrides vagamente, sem perceber bem o que lhe sucedera.
-Para onde foi aquele major? -perguntou Hammond.
-Eu não sabe, siô. Eu é dele agora -respondeu o rapaz, apontando
para Charles adormecido.
Era inútil fazer mais perguntas ao escravo. Hammond conservou-se
na cama, tentando calcular o que sucedera. Finalmente não pôde
continuar assim por mais tempo. Levantou-se e vestiu-se, fazendo
deliberadamente barulho para acordar Charles, que abriu os olhos.
-Onde é que arranjou o Atrides? -perguntou Hammond.
-Comprei-lho a si -respondeu Charles rindo. -Tenho um papel
dele, urna nota de venda. Desta vez não vou ser apanhado sem uma
nota de venda, para não dizer que eu o roubei.
-Eu vendi-o ontem ao maior Wilkins -disse Hammond.
-Onde pensa que o maior Wilkins foi arranjar dinheiro para
comprar negros? -perguntou Charles, divertido. -Não queria


vender-mo; o próprio primo o disse. Mas eu comprei-lho,, raios o
partam, e vou fazer bom dinheiro com ele.
-Comprou-o com o meu dinheiro. Com o dinheiro que me roubou.
Foi como se mo roubasse -acrescentou, modificando a acusação.
-Raios, não! Esse dinheiro já desapareceu há muito tempo! julga
que eu não tenho dinheiro? Negoceio em negros e em apostas, eu e


o senhor Brownlee, desde que cheguei a Nova Orleães. Tenho
bastante dinheiro.
-Brownlee! Está ligado a essa víbora do Brownlee? 0 Brownlee
negreiro?
-0 senhor Brownlee é um cavalheiro muito simpático, para quem o
conhece bem. É muito esperto. Era, pelo menos.
-Era? -perguntou Hammond, intrigado.
-Morreu. A peste apanhou-o. Estava bom num dia, morreu no
outro. A cólera é assim.
-Talvez conheça o Neri também?
-Neri? 0 sócio de Brownlee? Claro que o conheço. Foi para o oeste,
para o Texas, penso eu, antes de o Brownlee morrer. Teve um
problema qualquer por roubar um negro. Estava falido, ao que ouvi
dizer.
Estas notícias, por muito que lhe agradassem, não consolavam
Hammond da venda de Atrides a Charles. 0 dinheiro valia tanto
como se tivesse vindo de qualquer outra pessoa, mas Hammond
pensava que, de qualquer modo, era o seu próprio dinheiro. Sentia
que tinha dado o negro.
-E quanto ao Atrides? Que vai fazer com ele? Para que o comprou?
-quis saber Hammond.
-já não é Atrides, a partir de agora vou chamar-lhe Prestamista por
ter aqueles três tomates à frente. Foram os cavalheiros do Globe que
lhe deram esse nome na noite passada.
-Mas para que o comprou? Sabe que machos como ele valem mil e
duzentos dólares.

-Comprei-o por o primo dizer que eu não podia comprá-lo -gabouse
Charles. -Vou mostrá-lo por aí e vendê-lo outra vez. Conheço um
marinheiro que gosta de coisas esquisitas e que o vai querer. Talvez
receba dois mil dólares ou mais por ele.
Hammond tinha pensado em se oferecer para anular o contrato e
receber de novo Atrides, crendo que o interesse de Charles pelo
rapaz seria provar a Hammond que conseguira vencer a recusa de
lho vender, mas quando soube da intenção de Charles de conseguir
um vasto lucro, calou-se. Que quereria Charies dizer ao afirmar que
estava rico? Dois negros e quanto dinheiro? Hammond sentia
curiosidade, mas não conseguia fazer uma ideia.
Hammond nada podia fazer. Vetou imediatamente a sugestão de
Redfield de convencerem Atrides a fugir com eles.
-já há muitos negros que fogem sem nós lhe darmos ajuda -disse
Hammond, com indignação. -Eu ficava igual a ele. Não sou ladrão
de negros! Por enquanto ainda não!
-Só recolhia o que é seu -argumentou Redfield. Depois do
pequeno-almoço, foram ambos para junto do lote de negros e
esperaram. Ao fim da manhã começaram a chegar homens para ver

o material. Nenhum deles encontrou aquilo que procurava, por um
preço que pudesse pagar. Todos concordaram em que os negros
eram de primeira e que os preços não eram demasiado elevados,
mas queriam comprar negros adultos a preços de quinhentos a
setecentos dólares. Sabiam que o preço dos escravos tinha subido,
mas procuravam pechinchas e não se interessavam especialmente
pela saúde e energia dos escravos.
Hammond e Redfield foram jantar a Natchez e regressaram a Forks.
Nessa altura, perto das duas horas da tarde, dois homens,
aparentemente irmãos e suficientemente parecidos para serem
gémeos, desmontaram dos seus puro-sangue que entregaram a um
criadito claro, a cavalo, para que tomasse conta deles. Com cerca de
quarenta e cinco anos, estavam vestidos com roupas caras mas


conservadoramente negras, e calçavam botas muito bem
envernizadas. De boa compleição e ágeis, avançaram pelo pátio, e
dirigiram-se a Redfield.
-Os escravos são seus, senhor? -perguntou um, que era levemente
mais alto.
-Para falar verdade, são deste. Mas eu também trato do assunto respondeu
Redfield, relutante em negar a propriedade dos negros.
0 homem voltou-se para Hammond e disse:
-Disseram-me que tem uns rapazes muito perfeitos para venda,
senhor. Espero já não chegar muito tarde.
-Acho que são perfeitos, senhor. Não vi melhores. Quer observálos,
senhor? -perguntou Ham, fazendo uma vénia tão semelhante
quanto era capaz à que o outro lhe fizera.
Hammond notara logo que ele era um cavalheiro e não queria
demonstrar que não o era. Bateu as palmas e gritou:
-Luke! Pólo! Alaúde! Frenesim! Os rapazes chamados saíram das
cabanas e juntaram-se aos outros, alinhando-se.
-Dispam-se, todos. Deixem estes senhores verem-nos -ordenou o
patrão.
Os negros tinham começado a despir-se quando o estranho
interveio:
-Não vale a pena despirem-se, senhor. Eu peço para ver o que me
interessar.
Como o patrão não contradisse a ordem dada, os escravos
continuaram a despir-se, até estarem todos nus. 0 comprador
avançou ao longo da fila, olhando para os rapazes e expressou a sua
admiração por eles.
-Um bom lote, do género que eu tenho andado a procurar -e
voltou-se para o irmão e depois para o proprietário: -Sim, senhor;
um belo lote.
Hammond ficou satisfeito com o elogio. Era fácil ver que o homem
era um conhecedor.



-São muito bons. São o melhor que eu e o meu pai temos criado. E
todos perfeitos. Nem uma marca nas costas.
-Isso não interessa, senhor -disse o homem, caminhando
lentamente ao longo da fila. -Hão-de fazer o que lhes mandarem,
não duvide. E as costas limpas não duram muito tempo, com os
meus capatazes. Não consigo impedi-los de usar o chicote; e às
vezes demasiado. Como eu nunca os vendo, umas cicatrizes não
lhes fazem mal nenhum. Cultivo cana-de-açúcar -explicou. -Parou
em frente de Alaúde, estendeu o braço e apalpou-lhe a coxa, e
puxou-o para fora da linha. -Este é um -disse.

Em seguida escolheu Vulcano; quando Harrimond lhe disseque
Vulcano já estava prometido, devolveu-o à fila. Hammond teria
vendido o rapaz, se o branco tivesse insistido.
-Não tem importância, senhor. Um é tão bom como outro. Todos
eles são perfeitos e saudáveis -disse o homem, escolhendo outro. Dois
é o que eu pensava comprar, é tudo o que preciso; mas estes
são tão bons -pensou um pouco e puxou mais dois negros para fora
da fila.
Tendo escolhido quatro, observou-os cuidadosamente, procurando
possíveis hérnias, hemorróidas, dedos partidos ou torcidos, falta de
dentes. Nada encontrou. Mandou os rapazes correr e saltar. Ficou
satisfeito.
-Porquê tantos? -perguntou o irmão. Só precisamos de dois.
-Agora, sim! -disse o irmão. -Mas, para o ano, quem sabe? Não se
encontram destes todos os dias. Todos novos e saudáveis.
-A cana desgasta-os -admitiu o irmão.
-Sim, e a maioria dos plantadores contam com sete anos para um
negro. Os meus duram pelo menos onze ou doze. Tenho um que já
trabalha há quinze anos. Mas era perfeito e novo quando o comprei.
Se o pai não nos ensinou mais nada, pelo menos dizia e provou-nos
que compensa sempre comprar negros fortes e fazê-los trabalhar
bem. Os negros baratos não prestam.


0 colóquio fraternal atrasou a transacção até que o comprador,
finalmente, se voltou para Hammond e disse:
-Estes quatro, quanto quer por eles? Hammond hesitou, fazendo
contas pelos dedos.
-Acho que dá cinco mil e quatrocentos e cinquenta pelo lote-
arriscou.
0 comprador encheu as bochechas de ar e expeliu-o antes de
responder:
-Os negros subiram, bem sei. Há muita procura. Acho que o seu
preço está bem, senhor, calculado por cabeça, e pode obtê-lo. Mas...
-hesitou. -Pensei que, levando quatro, obteria um preço um pouco
mais baixo, menos por cabeça, quero eu dizer.
Não queria depreciar a mercadoria.
-Valem bem o preço -interrompeu Redfield, e teria dito mais se
Hammond não o interrompesse.
-Não sei -ponderou o proprietário. -Talvez pudesse fazer, talvez,
note, cinco mil duzentos e cinquenta pelo lote.
-E que tal cinco mil; mil duzentos e cinquenta por cabeça? Isso dou-
lhe.
Implicava, embora não o afirmasse, que não daria mais. Hammond
não fizera qualquer venda durante o dia e estava mais do que
ansioso. Caminhou lentamente ao lado dos negros, de cabeça baixa,
a pensar. Depois levantou o olhar e perguntou.
-A pronto?
-Em metal sonante -disse o homem. -Dou-lhe o meu cheque sobre


o banco de Natchez e deixo-lhe os negros até o receber. Tenho que
lhe pedir que lhes dê de comer por mais uns dias até voltar para
casa. Vivo para além de Baton Rouge e estou aqui instalado com
meu irmão.
Perante o acordo, os interessados retiraram-se para o pequeno
escritório, para fazerem troca do cheque e das notas de venda.
Quando tinham partido, um mulato que tinha estado a espreitar,
aproximou-se respeitosamente de Redfield, de chapéu na mão.

-São todos negros inteiros, não são, senhor? Não tem negros de
casa? Eu precisava de um -disse.
-Tu próprio és negro de casa, ao que me parece -respondeu
Redfield com desprezo. -Para que queres um negro? Para quem
estás a comprá-lo?
-Eu sou livre, senhor-explicou o homem. -Viemos de São
Domingos, depois da revolução que lá houve. Preciso de um rapaz
forte e claro.
-Tens dinheiro? -inquiriu Redfield, sem mostrar interesse.
-Sim, senhor -afirmou o homem, tirando do bolso um rolo de notas
que espantou o médico. -Venho refugiado da peste. Um dos meus
criados morreu com a cólera e tenho que o substituir.
Por muito desprezo que Redfield sentisse pelos negros livres,
pressentiu que faria boa venda.
-Observa-os -disse, apontando os escravos nus. -Estes estão
vendidos. Hás-de encontrar algum.
-São todos inteiros. Na Luisiana costumamos castrar os negros de
casa. Não tem nenhum castrado, senhor?
Redfleld sentou-se num banco, mais para mostrar a sua indiferença
que para aliviar a fadiga.
-Posso castrar-te um, qualquer deles, e garantir-te que sobrevive
propôs. -Sou médico, veterinário de negros, quero dizer.
0 negro livre avançou ao longo da fila, parando algumas vezes para
inspeccionar algum dos escravos. Voltou três vezes a Frenesim.
-Quanto quer por este, senhor branco? -perguntou.
-Este? Este é o melhor que temos. Esse custa-te dois mil e
quinhentos dólares.
-An! An! -disse o negro, espantado. -É muito caro! Mas isso é já
castrado, são e garantido?
-Se morrer não pagas um dólar! -prometeu o doutor.
-já é muito crescido para isso, não é? Do outro lado do rio, fazemlhes
isso aos treze ou quatorze anos, antes de não saberem nada.



-Agora é a melhor altura, depois decrescidos -garantiu Redfield. -Se
se corta antes de estarem maduros, pode crescer outra vez.
Se o negro reconheceu que ele estava a mentir não teve qualquer
importância para o caso.
Frenesim não estava a seguir a conversa, pelo que não ficou
alarmado.
Hammond emergiu do escritório e acompanhou os brancos aos seus
cavalos, que parou para admirar. Depois disso avançou a coxear, até
junto de Redfield, satisfeito com a sua transacção.
-Foi bem bom; cinco mil pelos quatro. Bem bom.
-Podia conseguir um pouco mais, dado o preço total -observou
Redfield.
Hammond viu o negro a examinar Frenesim.
-Quem é aquele negro -perguntou. -Que está ele a fazer?
-Livre -explicou Redfield. -Procura um macho. Quer o Frenesim.
Disse-lhe dois mil e quinhentos dólares.
-Mil e quinhentos -murmurou Hammond. -Dois mil e quinhentos,
castrado, isto é, com garantia de ficar vivo. Posso fazer isso eu
próprio, Levo-lhe dez dólares a si. Não morre um em cinquenta.
-0 que está a dizer, doutor Redfleld? -disse Hammond indignado. Não
vai castrar nenhum dos meus negros, nem o senhor nem
ninguém. Sabe o que o meu pai pensa disso.
-Há um extra de mil dólares -argumentou o médico. -Novecentos
e noventa, quero eu dizer.
-Não importa quanto seja. Aquele rapaz custa mil e quinhentos. E é
tudo. Se o negro livre o quiser comprar e pagar o seu valor, pode
fazer com ele o que quiser, castrá-lo ou moê-lo para fazer salsichas.
Não me interessa. Mas ser eu a castrá-lo, isso não.


0 Dr. Redfield encolheu os ombros. Não conseguia compreender um
homem que lançava fora mil dólares tão tranquilamente.
-Além disso -prosseguiu Hammond -, os negros livres são patrões
duros. Não sabem como tratar os criados. Deviam todos ser



arrebanhados e vendidos no mercado. Um negro é um negro. Não
está certo libertarem-nos. Negros livres, parece que esta terra está
cheia deles. -Cuspiu, enojado. -Quer aborrecer-me, doutor
Redfield? Parece que está a querer aborrecer-me, com essa de
castrar negros, hem? Não percebo o que se passa consigo!
Transferiu a ira que sentia contra o médico para o cliente em
perspectiva. Avançando para ele, mal se notando que coxeava,
agarrou no estranho pelos ombros.
-Afasta-te desse rapaz -ordenou-lhe. -Não vendo os meus machos
a um negro filho da puta como tu. Tu é que devias ser castrado e
vendido, meu bastardo de branco. E agora vai-te embora e nunca
mais cá voltes. Percebeste.
0 negro não percebia nada, mas afastou-se de Frenesim, soltou-se do
branco, e partiu sem urna palavra.
-Vistam-se e voltem para dentro -disse Hammond severamente aos
escravos. -Tu -disse a Alaúde. -Tu e vocês aí estão vendidos. Se
aparecer alguém, ficam lá dentro. Não quero que os vejam e se
estraguem as vendas.
0 vosso novo dono vem buscá-los daqui a dois ou três dias.
A tarde estava no fim eRedfield estava impaciente por cear para
poder ir ao Globe, ao Woodbme e mais tarde a casa de Maggie. Não
se podia esperar mais nenhum comprador e, depois de verificar se
os negros eram devidamente alimentados, Hanimond estava pronto
a regressar à Pensão dos Cavalheiros. Redfield e ele tinham
começado a dirigir-se para os cavalos, quando o homem pequeno,
de barba, apareceu para completar a aquisição de Vulcano.
Hammond já não acreditava que o rapaz estivesse vendido. Foi
preciso regressar ao escritório, receber o dinheiro do homem e dar-
lhe uma nota de venda.
Quando foi chamado para se fazer a transferência, o enorme negro
caiu de joelhos e abraçou-se às pernas de Hammond, a chorar.


-Eu sabe que tem de ir como o patrão manda-soluçou mas o
patrão era tão bom e o patrão velho era tão bom. Nunca mais vai te
um patrão assim bom.
-Este cavalheiro, o teu novo patrão, vai ser bom para ti, também, se
fizeres o que ele mandar. Tens que fazer tudo como ele te disser. Ele
dá-te boa comida e tudo.
-Sim, siô, patrão, siô -concordou Vulcano. As vendas do dia
tinham sido satisfatórias. Depois da ceia, Hammond foi até à cidade
com Redfield, tomou duas ou três bebidas num bar apinhado, mas
quando Redfield decidiu sentar-se para uma partida de poquer, o
jovem, pouco habituado a horas tardias, voltou para a pensão e
deitou-se. já era tarde quando sentiu Redfield deslizar para dentro
da cama e mais tarde ainda quando ouviu Charles praguejar contra
Shote, enquanto o gordo negro o ia despindo.
Na manhã seguinte, Hammond foi procurar o banco para descontar

o cheque que o senhor Hillhouse lhe dera no dia anterior pelos
quatro escravos. Como ainda tinha os escravos, não estava
preocupado quanto à possibilidade de o banco não lhe pagar. Não
confiava nada nos bancos e ainda menos em notas, pelo que recebeu
o pagamento em ouro e trocou por ouro as notas que recebera para
pagar Vulcano. Aprendera isso com o pai, que já vira bancos falirem
e o valor das notas flutuar.
Já era tarde quando chegou ao barracão de Armfield e Frank1in,
mas o Dr. Redfleld tinha lá chegado primeiro. Quando Hammond,
entrou, encontrou cinco indivíduos que examinavam os escravos, e
Redfield a tentar atendê-los a todos. 0 encarregado tinha vindo
ajudar o melhor que podia, mas reconheceu logo os diversos
homens como os habituais visitantes que vinham sempre ver todos
os lotes que chegavam, mas nunca compravam escravos. Parecia
uma manhã atarefada, mas, depois de examinarem todos os
escravos, perguntarem pelos seus preços, lhes apalparem os
músculos e olharem para os dentes, fazendo comentários

libidinosos sobre a gravidez das mulheres, os compradores em
perspectiva afastaram-se, um a um.
Hammond verificou se os escravos eram bem alimentados e, depois
disso, ele e Redfield voltaram à pensão para jantarem também.
Quando voltaram, viram uma caranguejola de rodas altas com um
cavalo cinzento de patas largas atrelado, em frente da cerca. Depois
viram uma mulher seguir o encarregado até às cabanas dos
escravos. 0 encarregado, cujo nome Hammond soubera ser Charlie
Hopkins, parou e ficou à espera. Hammond ouviu-o dizer à mulher:
-Aqui vem o dono. Ele que lhos mostre. É melhor. A mulher era
atarracada e gorda, de busto grande, cara redonda e abolachada,
louraça. Faltavam-lhe dois dentes no maxilar superior, à frente, e os
restantes eram pequenos e cobertos de lima. 0 cabelo grisalho, liso e
caído, tinha um tom esverdeado, como o do bronze manchado, e os
seus olhos de peixe, bem afastados, eram pequenos e de um verde-
aguado. Trazia um largo vestido cinzento-escuro e sobre ele um
avental de um cinzento mais claro. Os seus sapatos de homem eram
pesados, estragados e sujos, e trazia na cabeça um velho chapéu de
homem de feltro negro. Caminhou, gingando, ao encontro dos
homens.
É o dono deles? -perguntou a Redfield. É ele, minha senhora respondeu
Redfleld, indicando Harrimond. jovem e escorreito observou
ela. -Mas coxeia um bocado. É casado, suponho. Tem
mulher?
Hammond admitiu ter uma mulher. Apreciara a mulher, tal como
apreciava todas as brancas que via, tal como os negros; mas sentiu-
se embaraçado por a mulher o avaliar a ele, como se fosse um
escravo, num leilão. Além disso, embaraçava-o a própria presença
de uma mulher numa venda de escravos. Não sabia corno deveria
tratá-la, e teria preferido que Redfield se tivesse ocupado dela.
-Quero um criado -ciciou a mulher entre os dentes que lhe
faltavam, parecendo engolir as palavras, guturalmente. -Um forte e


jovem, repare bem, jovem. Claro, não quero desses negros mal
cheirosos, quanto mais branco, melhor.
-Sim, senhora. Hammond encaminhou-a. Redfield seguiu atrás
deles. Hopkins olhou para Redfield e piscou o olho. Ficou à escuta.
-Não há muita luz para se ver, mas são bastante fortes. Quer dizer,
podem ser bastante fortes quando... -Hammond sentiu que era
indelicado mencionar a gravidez a uma branca. -Quero dizer,
quando estiverem livres. Agora estão todas num estado mais
delicado.
Chamou as mulheres das cabanas.
-Não quero fêmeas -disse a mulher, rindo com desprezo. -Quero
um rapaz, forte, claro, crescido mas novo, não quero um desses
velhos já gastos e usados.
-Oh, julguei... -Hammond calou-se, embaraçado. -Traga-me o Pólo
e os outros, doutor Redfield, se faz favor.
Os rapazes chamados apareceram e alinharam-se para inspecção.
-Não, não, não -exclamou a branca. -Não quero os escuros. E
melhor pô-los já de parte. Quero ver este, e este e este.
Os rapazes rapidamente escolhidos eram Frenesim, Napoleão e um
rapaz chamado Pequenino, por ser tão alto. Hammond mandou os
outros embora e eles regressaram relutantemente para as cabanas,
sentindo-se rejeitados.
A mulher começou a andar à volta dos três mulatos, analisando-os,
apalpando-lhes os músculos, passou os dedos sujos, de unhas
partidas pelos seus dentes, atirou fora paus para eles os irem buscar
e manifestou a sua aprovação. Os escravos estavam a gostar do
exame, sabiam que iam ser vendidos e disputavam entre si qual
seria o escolhido.
Recuando e olhando para Hammond, a mulher perguntou:
-Então? Hammond compreendeu pelo seu tom que ela esperava
qualquer coisa.
-São todos muito bons. Qual prefere? -procurava fazê-la tomar
urna decisão.



-Não sei -disse ela, separando cuidadosamente as palavras. -Corno
posso eu decidir? Não compro um porco dentro de uma caixa.
Fez um gesto para baixo, com as mãos, numa pantomima como se
despisse as saias, para indicar que queria ver os escravos nus.
-A senhora quer que os mande despir -interpretou Redfield, e a
mulher acenou afirmativamente.
Hammond sentia-se corar, mas reuniu a coragem suficiente para
dizer aos escravos que se despissem, para o que eles não mostraram
escrúpulos. A mulher que os examinava era de uma espécie
superior, era branca. Tendo sido avisados, não sabiam porquê, a
nunca exporem os seus corpos à patroa de Falconhurst, não sentiam
vergonha por obedecer ao patrão em frente daquela estranha, e ela
não se envergonhava de olhar para a sua nudez.
-Ponha de parte aquele-disse ela, indicando o mais alto dos
rapazes. -já percebi porque é que lhe chamaram Pequenino.

Riu-se da sua própria piada e Redfleld bateu na perna, divertido. 0
rosto de Hammond ficou ainda mais vermelho, embora não
estivesse certo de ter interpretado bem a piada.
-Quer um varrão, não é? -perguntou Redfleld, confidencialmente.
-Um capado é que eu não quero, por enquanto! -retorquiu a
mulher, observando e comparando os méritos dos dois rapazes
restantes. Passou-lhes as mãos pelas costas e verificou que estavam
lisas, obrigou-os a ajoelhar e a afastar as nádegas, e sopesou os seus
orgãos genitais, contemplativamente.
Hammond voltou-se de costas, embaraçado. Redfield, estava
apenas divertido.
-Esse é o melhor, minha senhora -aconselhou, apontando para
Pólo.
-É mais velho, conhece melhor o ofício.
-Eu gosto deles novos. Eu ensino-os -disse, rindo. -Além disso,
este tem cabelos no peito. Eu gosto de cabelos no peito. -Agarrou


Frenesim pelo braço e puxou-o para a frente, coçou o queixo e
perguntou: -Quanto quer por este?
-Mil e quinhentos dólares, por qualquer deles -disse Hammond
voltando-se, na esperança de que ela já tivesse terminado o exame.
-Ai! -gritou ela. -Eu não quero os dois. Quanto é só este?
Hammond repetiu o preço.
-Dou-lhe metade. Setecentos, que diz? É um bom preço argumentou
ela.
Hammond manteve-se firme.
-Não é um negro vulgar -disse Redfield. -É especial, jovem e
perfeito. Não consegue comprar um macho destes por setecentos
dólares, nem por mil.
0 argumento era inútil e destinava-se apenas a preencher o
interlúdio para a decisão da mulher.
Ela tornou-se recatada, procurando enganá-lo.
-Sou apenas uma pobre viúva. Pense nisso, sou uma pobre viúva,
sozinha. Cavalheiro, senhor, devia dar-mo mais barato, sou uma
pobre viúva.
Hammond preferia que a mulher desistisse. Não se dignou
responder à sua súplica.
Redfield respondeu-lhe por ele.
-0 senhor Maxwell não baixa o preço. 0 que ele diz está dito e
ninguém o demove.
-Mas eu pago a pronto -sublinhou, batendo com a mão no peito.
Hammond acenou afirmativamente.
-Mil e quinhentos a pronto.
-Tanto não tenho, não tenho -e a mulher enrugou o rosto como se
fosse chorar.
-É pena -admitiu Hammond. -Ele vale isso e mais ainda. Frenesim,
pega nas tuas roupas e volta para a cabana. A senhora branca não
tem dinheiro.
A mulher viu que não conseguia comprar mais barato e rendeu-se.



-Bem -disse ela -, se é esse o seu preço. Uma pobre viúva, não está
certo. Tenho que entrar numa cabana ou ir para trás de qualquer
coisa, para o tirar ... o dinheiro.
Desapareceu, desapertando o vestido e reapareceu com um maço de
notas, das quais contou cuidadosamente quinze de cem dólares. No
maço tinha ficado pelo menos outro tanto.
Redfíeld olhou cheio de pena para o dinheiro que ela guardava.
-E dizia que não tinha! -disse-lhe a rir. Como resposta, ela fez um
gesto recatado, rindo-se também para ele. Agarrou Frenesim pelo
braço e disse-lhe:
-Anda rapaz, agora és meu, não és? já não dormes mais em palha.
Dormes em colchão de penas. E vais comer bem, carne de porco e
tudo.
-Não quer uma nota de venda? -recordou-lhe Hammond.
-Ah! claro. Nem eu me esquecia, pagando mil e quinhentos dólares.
Acompanhou Hammond ao escritório, seguida de Frenesim,
enquanto Redfleld se aproximava de Hopkins. Quando voltaram do
escritório, Hammond não fez qualquer movimento no sentido de a
acompanhar ao carro. Ela saiu orgulhosamente, ajudou ternamente
Frenesim a subir e sentou-se ao lado dele, pegou nas rédeas e
incitou o cavalo preguiçoso. Hammond dirigiu-se para o pé de
Redfield eHopkins, enquanto a mulher se voltava, ao afastar-se,
acenando desportivamente. Hammond suspirou e Hopkins abanou
a cabeça.
-Aquilo não é nada -disse o último. -É uma daquelas holandesas
das colónias além. -Fez um vago sinal coma mão na direcção do
oeste. -Fazem tudo, aquelas holandesas.
-Apalpou os machos ... e tudo -disse Hammond. -Como se fosse
um homem.
-Aquela já não pode dizer que esta noite não tem homem comentou
Hopkins. -Acha que ele consegue dar-lhe prazer? Volta
cá amanhã se ele não conseguir.


Hammond compreendeu o propósito da mulher ao comprar o
escravo e corou profundamente.
-Ele terá tudo, se tiver Juízo, juízo e potência, enquanto lhe der
prazer e fizer bem amor com ela -raciocinou Hopkins. -Mil e
quinhentos é muito. Eu fazia isso por menos, não fazia também,
doutor RecIfield?
-Claro. Lá isso fazia. Não é pior que a viúva que eu tenho lá em
casa. Claro, eu não queria esta. Não queria os restos de um negro.
Os senhores estão errados -disse Hammond. -Ela é branca e
nenhuma branca leva um preto para a cama. Estão enganados.
A ideia da ligação sexual de uma fêmea branca com um macho
negro parecia-lhe demasiado horrenda para a acreditar, ainda que
fosse demasiado óbvia.
Sem se perturbar, Hopkins observou:
-É vulgar. Aquelas holandesas fazem tudo, e há mais quem o faça.
0 incidente fora divertido -nada mais. Mas não divertiu Hammond.
-Talvez eu pudesse apanhá-los, acavalo. Trazia aquele negro e
salvava a senhora. Para que lado foram? Viram?
-Não consegue apanhá-la nem conseguia trazer o negro de volta,
se a apanhasse -retorquiu Redfleld. -Ele é dela, agora; ela pagou-o
e recebeu uma nota sua.
-Que diferença faz? Porque está tão preocupado? Nunca teve
nenhuma fêmea? Branco e fêmea preta, preto e mulher branca, que
diferença faz?
-É diferente. Eu não sei porquê, mas é diferente. -Hammond
sentia-se confuso. -Os homens não têm filhos; mas as senhoras têm.
Acho que é aí que está a diferença.
-Aquela velha holandesa já não pode ter filhos, nem daquele
macho, nem de ninguém -declarou o méd1Ç<@k.
A Idade da mulher consolou um pouco o Jovem, mas não muito.
Suspirou e afastou-se do grupo. Agora que revia a venda de
Frenesim, a intenção da mulher tornava-se evidente. Ambos os
brancos tinham compreendido a sua intenção. Maldita fosse a sua



inocência, a sua estupidez, que o tinham tornado cúmplice de uma
tal violação dos seus princípios raciais. Mesmo só, corou ao pensar
que aquilo era real.

Capitulo trigésimo sexto

Ao jantar, Hammond não conseguiu comer. Mais tarde
acompanhou Redfield ao centro da cidade e bebeu uma boa
quantidade de uísque nos bares, mas partiu cedo e foi para a cama.
Deixou-se ficar acordado, obcecado e horrorizado ao imaginar a
holandesa nos braços do negro. Talvez estivessem nus; uma branca
que se submetia ao abraço de um escravo negro decerto se
desnudava -tal como uma negra com um branco. Viu, na sua
imaginação, o contraste da carne loura da mulher e o tom de bronze
do homem, e o entusiasmo com que aquele bruto viril se agarrava
aquele prazer proibido. Com que satisfação ele próprio enterraria
uma faca nas costas largas do escravo quando ele tivesse nos braços
vigorosos a sua vítima voluntária.

Recífield voltou cedo, mas Hammond fingiu dormir. Um pouco
mais tarde ouviu Charles despir-se e deitar-se na esteira. Finalmente
caiu no sono. Algum tempo depois acordou com uma dor no
abdómen, que era intermitente mas foi piorando.

Quase de manhã, quando a luz do dia começava a aparecer, não
conseguiu suportar a dor por mais tempo. Sacudiu o Dr. Redfield e
disse-lhe:
-Estou doente, doutor Redfield. Não pode fazer nada?



-Onde lhe dói? -perguntou o médico.
-Na barriga. Dói-me horrivelmente.
-Não se consegue arranjar um médico, um dos verdadeiros, para
seres humanos, a esta hora da noite, e as lojas estão fechadas. Eu
não trouxe remédios comigo. Tem que aguentar até a manhã
romper e eu lhe poder arranjar qualquer coisa.
0 rapaz resignou-se a sofrer. Dores intensas, cada uma das quais
esperava que fosse a última, percorriam-lhe o baixo ventre, e sentia-
se alternadamente gelar e arder em febre. Agoniado, tirou o bacio
de baixo da cama e tentou vomitar. Mas nada conseguiu. Redfield,
deitado de costas, ressonava complacentemente ao seu lado.
Hammond passou pelo sono entre dois espasmos de dor.


Através da janela, viu Mercúrio aparecer e subir lentamente,
enquanto o oriente se tornava vermelho. Voltou a abanar o seu
companheiro e suplicou-lhe:
-Doutor Redfield, não pode fazer nada? Redfleld ergueu-se e
colocou a mão sobre a testa do rapaz que achou terrivelmente
quente.
-Ainda lhe dói? -perguntou desnecessariamente. -Qualquer coisa
que comeu, provavelmente; aquele peixe-gato, julgo eu. Devia estar
bom, nesta época.
Hamniond negou ter jantado.
-Então foi isso; todo aquele uísque no estômago vazio diagnosticou
o médico.
-Não pode fazer nada? Podia se eu fosse negro. Eu sei que pode.
0 médico saiu da cama, relutantemente, e vestiu-se.
-Aquela loja deve estar a abrir. Vou arranjar-lhe qualquer coisa,
talvez láudano, e óleo de castor.
-Vá depressa, por favor -pediu o doente. Redfield deu a volta à
cama. A luz era suficiente para ele ver o brilho vidrado dos olhos
febris. Tomou-lhe o pulso rápido e irregular e pediu a Hammond
que deitasse a língua de fora. Afastou as cobertas e carregou no



abdómen do rapaz, que apenas gemia. Não sabia o que procurava,
mas acenou gravemente com a cabeça como se tivesse encontrado.
-Láudano e óleo de castor -murmurou para si próprio e, em voz
alta, procurou encorajar o jovem. -Houve uma paragem. Vai ficar
bom -disse.
-Vou buscar remédios, logo que me deixem entrar.
Quando ele partiu, Charies que o médico acordara, levantou-se da
sua esteira e veio até à cama.
-Que se passa, primo Hammond? Está doente? Bastava-lhe olhar
para os olhos do outro.
-Estou a arder em febre -retorquiu Hamniond.
-Conserve as cobertas bem puxadas para cima. Não deve apanhar
frio -avisou Charles.
Vestiu-se rapidamente e voltou ao pé da cama.
-Apanhou-a, sabe?
-0 quê? Não sei. 0 quê? Hammond falava em voz fraca e sem
inflexões, sem interesse.
-A peste! A cólera! Tão certo como ter nascido! Aparece assim, tal e
qual, Está morto antes de amanhã à noite. A maior parte morre ao
fim da tarde.
Hammond continuou indiferente.
-É possível que eu e o velho Redfield também a apanhemos, a
dormir no mesmo quarto.
-0 doutor Redfietd diz que é só uma dor de barriga -suspirou
Hammond. -Mas dói, dói-me imenso.
-Ele não passa de um médico para porcos ou para negros. Não
conhece a cólera, como ela aparece, bem num dia, morto no outro. 0
primo tem cólera.
Atrides entrou no quarto para ajudar Charles a vestir-se, mas o
patrão, já vestido, mandou-o rapidamente embora para evitar o
contágio de Hammond. Bateram na porta e entrou Real, o escravo
da pensão, que trazia dois frascos que Redfield lhe entregara.



-Por favô, siô, o cavalheiro diz pró siô doente bebé isto, por favô,
siô.
0 cavalheiro diz qu'ele vai pra Forks; vai tratá duns nêgo que tem lá
explicou o negro.
Charles voltou-se para Hammond.
-Vê? -declarou. -Ele sabe. Redfield sabe o que o primo tem. Não
Volta.Esse remédio não lhe faz nada; nada faz.
-Talvez me doa menos -disse Harrimond, estendendo o braço para
os frascos. -Se tenho que morrer, ao menos que não me doa tanto.
Charles deu-lhe o láudano que o doente engoliu e a seguir o óleo de
castor que ele vomitou para o bacio, tendo que repetir a dose.
Charles estava visivelmente assustado, imaginando-se doente e a
morrer ainda naquela semana. Contudo foi tomar o pequeno-
almoço, e Hammond sentiu-se muito solitário, abandonado. Se ao
menos tivesse trazido Ellen, ou mesmo Meg! Nenhum deles o
deixaria morrer só. Sentiu-se culpado, ao desejar a presença deles.
Porque haviam de morrer de cólera, só porque ele a tinha?
0 facto de Redfield não ter trazido ele próprio os remédios traía a
sua crença. Não voltaria. Que sucederia aos seus negros, pensou
Hammond -e ao seu dinheiro? Redfield levaria o dinheiro ao pai?
Isso incomodava-o mais do que a ideia da morte.
Charles, evidentemente, não voltaria. Não era de esperar isso dele,
depois da disputa que tinham tido. Tinha fugido de Nova Orleães
para deparar com aquilo de que fugia. Hammond espantava-se de
que ele lhe tivesse mesmo dado os remédios. A cólera tinha uma
coisa boa; era rápida. No dia seguinte estaria morto e livre de
sofrimentos. Gostaria de poder encurtar o tempo.
Resignava-se ao isolamento, quando, inesperadamente, Charles
voltou. Trazia com ele um escravo que transportava uma grande
bandeja envernizada, mas não permitiu ao escravo que entrasse no
quarto. Em vez disso, pegou ele na bandeja e levou-a até à cama.
-Tem que se sentar, para comer isto. Não pode engolir deitado disse
Charles alegremente.


0 doente olhou para a pesada refeição que estava na travessa-
presunto frito, ovos, pão de centeio com manteiga, papas de aveia, e
café. Sentiu o estômago às voltas só de olhar para aquilo.
-Pouse aí. Não posso comer agora; dói-me muito. Mas se me der
um pouco mais daquele remédio, do primeiro, talvez consiga comer
depois.
Charles deu-lhe uma ampla dose de láudano e Ham bebeu-o.
-É a única coisa que parece fazer-me bem -disse. -Deixe ficar aqui
ao pé de mim. Talvez precise de mais, depois de se ir embora.
-De me ir embora? Para onde? Eu não vou para parte alguma. Vou
ficar aqui para tratar de si. Parece que mais ninguém o fará.
-Não vale a pena. Não pode fazer nada. Eu vou morrer -murmurou

o doente resignadamente.
-Penso que sim -respondeu o outro.
-Não vale a pena apanharem-na, o primo e o Redfield. Deixe-me
aqui o láudano, ao pé da cama.
-Se eu tiver que ter, já a apanhei. E o mesmo quanto ao doutor
Redfield; ele esteve a dormir consigo. Eu não vou. Vou ficar aqui a
ajudá-lo. E meu primo, mesmo que não goste de mim.
Charles fez uma pausa e Hammond não fez comentários. A dor
diminuíra e Hammond caiu num sono irregular, perturbado, febril,
durante o qual murmurava e gemia, chorava e gritava. Charles
estava cada vez mais convencido de que se tratava de cólera. Todos
os sintomas coincidiam com aqueles que ouvira contar. Pensou
quanto tempo viveria o cunhado e nas suas probabilidades de
ocupar a cama depois de ele morrer. Duvidava que Redfield
consentisse em ocupá-l a com ele. Talvez ficasse com ela sozinho
durante uma semana, depois de o outro morrer também. Deixou-se
ficar sentado ao lado da cama e foi puxando os cobertores para
cima, todas as vezes que o doente os afastava. Ao meio-dia saiu
silenciosamente do quarto e foi jantar, mas não revelou a ninguém
que havia um caso de cólera na pensão. Comeu pouco e sem apetite

e regressou para junto do doente. 0 quarto, com as janelas fechadas,
cheirava a febre.

Ao princípio da tarde, o paciente acordou e moveu-se. Sentia
necessidade urgente de esvaziar os intestinos, mas estava fraco de
mais para sair da cama sozinho. Charles ajudou-o a levantar-se e
amparou-o enquanto se sentava no bacio, e depois ajudou-o, a
voltar, exausto, para a cama. Hammond não sentia dores agora, mas
os movimentos fizeram-no suar frio.
-Penso que queira um padre, não? Alguém com quem rezar? perguntou
Charles. -Bem, nenhum deles vinha, se soubesse o que
tem. Eu não sou grande coisa, para rezar; mas posso tentar, se
quiser.
-já é muito tarde para rezar, agora -respondeu o doente, deitando-
se de lado e puxando os cobertores para o pescoço. -Acho que não
preciso, de qualquer modo. Nunca fiz nada de errado, nada que
Deus possa voltar contra mim. Pelo menos até ontem, e não sabia
que estava a fazê-lo. juro por Deus, que não sabia. Acho que o tal
anjo não vai escrever isso no livro, visto que eu não sabia.
-Pois eu tenho muita coisa, às vezes fazia mal e sabia que estava a
fazê-lo. Quando morrer, vou para o inferno, bem sei. Há pessoas
talhadas para ir para o inferno, e eu sou uma delas. -Charles fez
uma pausa, suspirou, e depois voltou a falar: -Que fez ontem de
mal?
-Vendi ontem um negro, lembra-se daquele negro grande, o
Frenesim, deve lembrar-se dele.
-E então?
0 crime não parecia grande para Charles.
-A uma branca. Não sabia para o que é que ela o queria, juro que
não sabia -repetiu Hammond. -Sabe para que ela o queria? Para se
divertir com ele; veja bem.
-Podia ter pedido mais dinheiro, se soubesse para o que ela o
queria -disse Charles.


-Se soubesse para o que ela o queria, não lho teria vendido.
Redfleld sabia; mas eu não.
Hammond, na sua excitação, apoiara-se num cotovelo. A sua
confissão, a negação do conhecimento das intenções da mulher,
aliviaram-no. Sentiu-se melhor, pediu um pouco de presunto, que
mordiscou e chupou. A febre baixara. Não tinha dores. Sabia que
estava condenado a morrer, mas sentia-se melhor.
Deitou-se de costas e estendeu as pernas.
-Gostava de saber se o doutor Redfield está a tomar conta dos meus
negros.
Começava a preocupar-se.
-Foi o que disse o negro que lhe trouxe os remédios -respondeu
Charles. -Não se preocupe, eles estão bem. E que diferença lhe faz
isso? Não chegará a saber, depois de morrer.
-Não vou morrer. Sinto-me melhor. Não me sinto com forças, mas
estou melhor-anunciou o paciente. -As pessoas nunca se curam da
cólera?
-Não muitas, só algumas, poucas.
-Então não tenho cólera. Nunca a tive. Amanhã de manhã já me
levanto.
-Espero que tenha razão -suspirou Charles. -Se não a apanhou, eu
também não a apanho.
Após um intervalo de silêncio, Hammond disse:
-Foi muito bondoso da sua parte ficar a tratar de mim,
especialmente pensando que eu tinha cólera. Muito bondoso, depois
de tudo o resto.
-Não podia fazer outra coisa, sendo seu primo. Não podia deíxá-lo
aqui a morrer sozinho-disse Charles, minimizando o seu acto de
caridade.
-Não posso culpar Recífield por não ter voltado, ao pensar que eu a
tinha apanhado. Não posso culpá-lo visto que, nem é da família.
Na negação de Hammond notava-se ressentimento, mas a sua
animosidade para com Charles desaparecera. Charles mais do que



compensara o seu roubo -se roubo houvera-de Jasão e do dinheiro
que lhe fora confiado. Talvez, pensou Hammond, o rapaz tivesse
mesmo acreditado que o negro era um presente e tencionasse
devolver o dinheiro ao pai.


Hammond não se sentiu com coragem para descer para cear, mas
Charles trouxe-lhe uma tijela de sopa. Redfleld, segundo Charles
verificou, não voltara à pensão para nenhuma das refeições. Os
rapazes prepararam-se para dormir, e, quando Charles se levantou
para ajudar o primo pouco depois da meia-noite, Hammond
sugeriu-lhe que se deitasse com ele na cama.
-Ele não vem-argumentou, rindo. -Bem pode aproveitar. Não
tenho nada contagioso e a cama é melhor do que a esteira.
Charles aceitou a sugestão, não tanto por a cama ser mais macia do
que a esteira, mas principalmente porque o convite era um garante
do seu perdão. Na noite anterior, tal ideia teria sido inimaginável.
Na manhã seguinte, Hammond vestiu-se com a ajuda de Charies.
Shote e Atrides tinham recebido instruções para não se
aproximarem.
Hammond ardera em febre e ainda estava fraco. Contudo, insistiu
em montar para ir a Forks, ver os seus escravos. Charles,
principalmente porque não queria interromper a amizade renovada,
e não por achar que Hammond precisasse dele, alugou um cavalo
num estábulo e acompanhou-o.
Faltavam seis escravos, quatro homens e duas mulheres. Hammond
não podia acreditar que tivessem fugido. Foi até ao escritório,
consultar o encarregado.
Hopkins disse-lhe:
-Aquele cavalheiro vendeu alguns deles ontem. Não sei quantos.
Não fez mal, pois não, eu deixá-los sair? 0 senhor Redfield tem
licença sua para os vender?
Hammond tranqüilizou HopkIns. Embora confiasse na honestidade
de Redfield, pelo menos nas suas relações consigo e com o seu pai,



ficou aliviado, no entanto, ao vê-lo aproximar-se a cavalo. Redfield
avançou, embaraçado, espantado por ver Hammond.
-Pensei que era melhor eu tomar conta destes malandros -opiniou
ele -unia vez que o senhor estava doente. Eu sabia que não era nada
de grave.
-Não foi nada -disse Hammond, minimizando a sua doença. -0
primo Charles tomou conta de mim.
Redfield detectou a recriminação contida na informação e mudou
de assunto.
-Tivemos um bom dia. Livrei-me de seis -duas fêmeas entre eles.
-Bem vejo, que já se foram -disse Ham, acenando afirmativamente.
-Já julgava que ninguém queria as fêmeas. Conseguiu bons preços?
-Mil por cada fêmea. Não estou a pedir os preços que o senhor
fixou. Podia ter vendido as outras duas, se tivesse baixado um
bocado. -Guardou deliberadamente para o fim o melhor. -Sabe
daquele Napoleão? Tive um certo êxito com esse. Mil e oitocentos.
-Como foi isso? Só se pediam mil e quinhentos. Como foi?
-Bem, o homenzinho queria um bom procriador. Disse isso logo de
entrada. Não queria rapazes vulgares; queria um mesmo bom.
-0 Pólo não. Não presta para isso. Sabe bem que ele não tem feito
filhos. Era por isso que o meu pai o queria vender. Sabe isso muito
bem. Isso não é honesto.
Redfield ríu-se da decepção dele.
-0 homem só vai saber isso daqui a seis meses. Eu disse-lhe que o
Pólo tinha engravidado as fêmeas todas. Ele acreditou.
Hammond sentia-se envergonhado.
-Quem é ele? Onde é que ele vive? Vamos procurá-lo e trazemos
Pólo de volta. Podemos dizer-lhe que o senhor não sabia que o Pólo
é estéril.
-Como é que hei-de saber onde ele vive? Chama-se Miller; a nota de
venda foi feita nesse nome.
-Miller? Há montes deles?
-Não consegue encontrá-lo. Deixe-o ir. Guarde o seu dinheiro



aconselhou Charles.
-Não há nada a fazer -suspirou Hammond. -Mil e quinhentos. Era


o que o Pólo valia, mais não. 0 doutor Redfield tem de ficar com a
diferença. Eu não a quero.
Assim salvava a sua consciência. Recifield objectou, mas, depois de
Hammond insistir, acabou por aceder. Agradavam-lhe os trezentos
dólares, mas sabia que eles constituíam uma censura.
-Só tenho tido azares com esta viagem -lamentou-se Hammond. Primeiro,
o mestiço que fugiu. Depois aquela branca a comprar o
Frenesim; eu devia ter percebido, mas não percebi. Depois fiquei de
cama doente. E agora enganei um branco, vendendo-lhe um macho
estéril.
-Pelo menos não apanhou a cólera -disse Charles alegremente. -E
somos primos outra vez -acrescentou.
No decurso dos três dias seguintes, os machos restantes foram
vendidos gradualmente. Contudo havia pouco interesse pelas
mulheres, Estrelita e Sheba. Alguns plantadores olhavam para elas,
mas nenhum comprava. Com excepção de não serem especialmente
bonitas e servirem para concubinas, ninguém duvidava da sua
qualidade e apenas alguns objectavam à sua idade. Mas iam
ficando.
-0 meu pai disse-me para não voltar com nenhum deles para casa.
Acho que tenho de baixar o preço -concluiu Hammond.
-Há-de conseguir o que pede. É uma questão de esperar -disse
Recífield que estava a apreciar a estada em Natchez e tinha pouca
vontade de voltar para casa.
-Estão a ficar caras, cinquenta cêntímos por dia, além do que
pagamos na Pensão dos Cavalheiros -objectou Hanimond.
Mas esperou. Durante quatro dias não houve vendas e apenas
apareceram dois ou três basbaques. Hammond pensou na hipótese
de mandar as mulheres para um dos leilões que se faziam
frequentemente no centro de Natchez, 'mas Redfield falou na
incerteza dos preços dos leilões e na necessidade de pagar

comissões. Estrelita e Sheba, argumentou, eram demasiado boas
para irem a leilão. Só o que não prestava era assim vendido.

Era desencorajador esperar, sem nada fazer, dia após dia, visto que
não apareciam compradores. Hammond, contudo, recobrava as
forças que a doença lhe roubara.

Certa noite, num bar, Charles encontrou um bêbedo com oitocentos
dólares e vendeu-lhe Shote. 0 incrível bolo do negro tinha feito rir o
homem embriagado, mas, depois de o usar uma noite como alvo de
zombarias, o comprador procurou Charles, no dia seguinte, e
ofereceu-se para lhe vender novamente Shote por metade do que
lhe pagara. Charles estava farto daquele monstro glutão e recusou-
se a aceitá-lo de novo. Além disso tinha Atrídes e estava à espera
que o homem do barco a vapor voltasse a descer o rio e lho
comprasse.
Ao fim do quarto dia da desencorajadora espera de Hammond, sem
compradores, o major Wilkins desmontou junto da paliçada e
entrou.
-Lembra-se de mim? -perguntou, dando uma forte palmada rio
ombro de Hammond. -Sou o cavalheiro que lhe comprou aquele
negro com três tomates.
Hammond acenou, para mostrar que se lembrava.
-Bem, tenho um cavalheiro, um outro cavalheiro, que quer
compraras duas fêmeas. Ainda as tem?
Hammond admitiu que as tinha.
-0 único problema é que esse cavalheiro não tem dinheiro, não
pode pagar a pronto -continuou o major.
-Eu quero dinheiro a pronto -especificou Ham.
-Eu sei, eu sei-disse o major, sem se perturbar. -Mas ele não tem.
No entanto tem negros, muitos negros. Pensou que talvez o senhor
quisesse trocar uma fêmea por um ou dois garotos, talvez três. Tem
medo de perguntar, não quer que o senhor pense que ele é pobre.


Hammond não estava muito entusiasmado com a ideia, por
conhecer o tipo de negros que provavelmente lhe seria oferecido.
Levantou-se do banco em que tinha estado sentado e esfregou as
mãos uma na outra, como se quisesse afastar a ideia.
-Acho que uma troca não me interessaria-disse. -Mas pode trazêlos,
se quiser, que eu observo-os.
-Estão no campo, para o norte. Eu vou lá consigo e com o seu sócio.
Ver não lhe faz mal -insistiu o maior, sentando-se no banco que
Hammond largara.
Redfield juntou-se a eles.
-Vamos com este senhor, Ham. Não serve de nada estarmos aqui
sentados à espera.
-Podemos ir, se acha bem -concordou Ham.
-Só uma coisa! -Wilkins hesitou, com medo de estragar o projecto. Eu
devia receber qualquer coisa, no caso de o senhor fazer a troca,
uma espécie de, uma espécie daquilo a que chamam comissão, ou
honorários, por assim dizer.
-Podia-lhe dar cinquenta dólares. Isto é, se saírem as duas, vinte e
cinco por cada uma-ofereceu Hammond. -Mas não fico como que
me aparecer, só para fazer uma troca.
-Pensei que devia ser mais; o dobro -vacilou o velho. -Estou a
arriscar o meu tempo. É valioso.
-0 outro homem devia pagar-lhe metade -contrapôs Hammond.
-oh, ele vai fazê-lo. Concordou com isso. Mas o senhor devia
pagar-me cinquenta por cada uma, por se ver livre delas.
-Bem -estipulou Hammond , como não sou forçado a trocar se não
quiser. A que distância fica?
-Quatorze, quinze, talvez dezoito milhas. É uma viagem agradável.
Até nos faz bem -disse o major.
Charies, montado num cavalo alugado, juntou-se ao grupo que
combinou partir na manhã seguinte. A viagem, mais longa do que
estava previsto, não foi desagradável. Estava mais perto das vinte e
cinco milhas do que das dezoito calculadas pelo maior. A estrada



passava entre cabanas rústicas, rodeadas de cardos e urze, por
quintas arranjadas e luxuosas plantações, com as casas tão longe da
estrada que apenas se podiam ver através de alamedas de árvores.
As pessoas que encontravam eram uniformemente cordiais, os
cavaleiros brancos emitiam uma saudação no gênero de "Como
passam, cavalheiros; belo dia! ", e os negros a pé tiravam os seus
chapéus, quando os usavam, em sinal de deferência para com uma
raça superior.
-Não fica muito mais longe -insistia Wilkins, por cada milha que
ultrapassava as dez, sabendo que tinha enganado Hammond,
quanto à distância. Mas, apesar das repetições do major, ninguém se
preocupava com a distância.

Finalmente o major voltou para uma estrada particular, passando
por uma quebra da vedação, que apenas parecia servir para
demarcação. Sob o sol surgiu uma casa grande de toros,
inteiramente rodeada, à frente, atrás e aos lados, por plantas de
algodão a secar. Nem uma árvore à vista. Por trás da casa havia um
espaço aberto, a fervilhar de negros que desapareceram na fila de
cabanas à chegada de estranhos. Dois dos mais ousados
permaneceram às portas a espreitar. Uma preta atarracada emergiu
de uma das cabanas e chamou outra, para a vir ajudar a tomar conta
dos cavalos dos visitantes.
Ficou em silêncio até o maior perguntar:
-0 senhor Bixby está?
-Anda por aí, siô -respondeu ela. -Menino Johnnie -chamou ela. Onde
tá o seu pai? Há uns sinhores que quer ver ele.
Johrime apareceu, vindo das traseiras, um rapaz branco, de quinze
anos, de cabeleira hirsuta, esfarrapado, que trazia na mão uma
grossa fatia de pão com manteiga.
-Não sei onde está! -murmurou. -Para que o queres?


-Não é o siô que vem buscá os nosso filho? 0 patrão diz que vai
vendê. É o siô? -perguntou, cheia de suspeitas, a negra atarracada Não
leva os meu, não fica c'os meu, nenhum deles.
Hammond tranquilizou-a:
-Ninguém quer levar nada do que é teu.
-A Annie está sempre com medo que venha alguém buscar os filhos
dela. Sempre que aparece alguém. Não é , Arime? -disse o rapazito,
rindo-se. _ 0 patrão vendeu um dos meti -murmurou a mulher,
levando os cavalos.
-E vende os outros, se alguém os quiser -troçou Johnnie, com a
boca cheia de pão com manteiga.
-Quem está aí? Quem está a falar? -perguntou urna voz, de dentro
do celeiro meio derrubado. Um homem anguloso, de cerca de
sessenta anos surgiu à luz, piscando os olhos, por causa do sol. Pareceu-
me ouvir brancos a falar -acrescentou, avançando para
eles.
0 maior Wilkins estendeu-lhe a mão e o senhor Bixby apertou-lha
com força, depois de enxugar a mão nas calças.
-Estes são o senhor Maxwell e o senhor Recífield e o senhor... o
senhor Charles. Não me recordo do resto do nome -disse Wilkins.
-Woodford -disse Charles, sem que ninguém lhe desse
importância.
-Vi o senhor Maxwell no barracão do Armficid, mas não o
conheciadisse o enrugado Bixby, apertando as mãos a todos. 0 seu
lábio inferior descaiu e foi recolhido, como um sabujo paciente,
enquanto aguardava que o informassem do motivo da visita.
0 major Wilkins explicou-lhe.
-É por causa daquelas duas fêmeas que estavam no Armfield e que


o senhor queria ...
-Quem disse que eu as queria? -contrapôs Bixby, com ar rabujento.
-Disseque as trocava por crianças, duas por uma, não disse? perguntou
o major, tentando fazer o outro comprometer-se.

-Só machos, nada de fêmeas. Guardo as fêmeas para procriar.
Quero procriação -disse o velho. -Tenho quatro famílias, agora;
não é muito, mas eles arranjam crianças.
Hammond interrompeu para dizer que o seu interesse era apenas
em machos, se fossem perfeitos.
Juntou-se ao grupo, na sua periferia, uma rapariguinha corada, de
ar desleixado, com cerca de treze anos; os seus olhos de um azul-
pálido e o cabelo descorado pelo sol contrastavam com a pele
queimada. As barrigas das pernas fortes e as nádegas gordas
atraíram a concupiscência sempre alerta de Charles; e Bixby, vendo

o seu olhar e sentindo o seu desejo, ordenou à rapariga que voltasse
para casa.
-A Polly é minha filha, mesmo minha -disse o pai, julgando-se na
necessidade de explicar. -É a última que tive, porque a minha
mulher, a minha terceira mulher, morreu ao dá-l a à luz. Este não é
meu. É só enteado. Era filho da minha mulher. Tanto o pai dele
como a mãe morreram e eu estou a criá-lo. É como se fosse meu, no
entanto.
Ergueu o braço e colocou-o em volta dos ombros do rapaz, que se
afastou dele, fugindo ao abraço.
-Vamos lá a ver os negros -sugeriu Hammond.
-Com certeza -concordou o proprietário. -Ajuda-me a fazê-los sair
das cabanas, Johnnie. Só os machos, deixa ficar as fêmeas.
Com a ajuda de Johmne, puxou, aos empurrões, para fora de quatro
ou cinco cabanas, e trouxe para o ar livre, onze rapazes, cujas idades
iam dos cinco anos à adolescência. Hammond ia-os rejeitando à
medida que apareciam. As escravas, com as portas abertas,
escutavam as conversações,_ e fechavam as portas logo que os seus
filhos eram mandados embora por não servirem.
-Tenho muitos mais pequenos. Pensava que não queria crianças
pequenas -disse Bixby.
Hammond disse que realmente não queria. Reteve, para melhor
observação, três dos rapazes, dois mais escuros, cujas idades

avaliou entre os oito e os dez anos, um pouco mais novos do que ele
desejaria, mas de esqueletos perfeitos e bem formados, embora de
pouca carne. 0 terceiro era uni rapazito bastante claro, de longos
ossos, com cerca de doze anos, o mais velho de todo o lote, uma
criança decidida e viva, com grandes olhos interrogativos, e lábios
grossos e revirados que se abriam num sorriso grato à mínima
atenção. Despidos e observados, mereceram os três a aprovação de
Hammond.
-Mais um -sugeriu o maior Wilkins. -Quatro pequenos pelas duas
fêmeas.
-Não há outros que eu queira. Uma das fêmeas por estes dois mais
crescidos -propôs Hammond. -Não há mais nenhum que eu queira
levar para o meu pai. Ele é muito exigente quanto a negros para
alimentar.
-Estes três são todos da mesma fêmea -disse Bixby. -Só tenho que
aturar uma. Tenho sempre problemas com as mães quando lhes
vendo os filhos.
-Gritam e protestam durante um dia ou dois. As fêmeas esquecem-
se depressa -disse Wilkins, pondo o assunto de parte.
-Como é que nasceu um claro e os outros pretos, da mesma fêmea?
-perguntou Redfield. -Deve ter havido branco no caso.
-0 Georgie, penso eu -explicou Bixby. -Pelo menos castiguei o
Georgie, quando ele saiu daquela cor. Da última vez que ele me
deixou, castíguei-o e ele não protestou.
Hammond, cansado daquela conversa sem sentido e vendo que não
lhe ofereciam jantar, propôs o regresso a Natchez.
-Eu levo o maior, à minha frente, no Eclipse, e o doutor Redfleld
pode levar o mais pequeno consigo. Pode ficar com a fêmea, com a
que preferir, desde que não se venda antes, logo que a queira
senhor Bixby. Fazemos os papéis quando for buscá-la.
-Não, eu vou convosco, vou já convosco. -Bixby estava pouco
disposto a separar-se dos rapazes sem receber o pagamento devido.
-Tem a certeza de que não quer nenhum dos outros?


Hammond declinou a oferta para voltar a examinar os rapazes que
rejeitara.
-Oiça uma coisa! E se fôssemos a casa do Georgie? -propôs Bixby. Ele
tem um rapazito de que talvez goste, um verdadeiro
cormantino, parece-me. Troco-lho por uns destes que o senhor não
quis. jantamos lá; o Georgie tem sempre muita comida, muita.
-A que distância vive o Georgie? -perguntou Hammond, que tinha
fome.
A perspectiva da comida interessava-o mais do que o negro, pois
acreditava pouco na entusiástica descrição que Bixby fizera dele.
-E um pouco mais adiante -disse Bixby, minimizando a distância.
Tinham avançado pouco mais de uma milha, quando um cavaleiro
os alcançou a louca velocidade. Era Johnnie que cavalgava sem sela.
Seguiu-se uma discussão entre ele e o padrasto, para decidir se o
rapaz poderia ir com eles, mas tudo se decidiu a seu favor e ele
acompanhou o grupo. Johnnie adorava Georgie e a mulher de
Georgie e gostaria de viver com eles.
Quando avistaram o local, o rapaz chicoteou o cavalo e seguiu à
frente, gritando a plenos pulmões, para anunciar a sua chegada.
Georgie surgiu à porta da sua cabana, à espera deles. Era um
homem, alto e vigoroso, louro de olhos verdes, quase com trinta
anos, e tinha ao seu lado um cão, cuja cauda acenava em sinal de
boas-vindas.
-Desmontem, desmontem -disse ele, avançando hospitaleiramente
para ajudar os cavaleiros a atar as rédeas às árvores baixas que
rodeavam-na
-Não há espaço no meu pequeno celeiro. Corno está, pai? Que tal
vai a Polly?
-Pensei que a Clarie podia dar de jantar. a estes cavalheiros -disse
Bixby.
-Ainda não comeram? já é quase uma hora -calculou Georgie,
olhando para o Sol. -Claro, claro. Nós já comemos, mas penso que a
Clarie pode arranjar qualquer coisa, nem que seja pão e torresmos.


-Posso, sim -disse Clarie, que apareceu com duas meninas
envergonhadas, espreitando por trás das suas saias, a que se
agarravam. -Não leva muito tempo.
0 interior da cabana desmentia a aparência exterior. Era uma única
sala grande, com uma lareira rústica a uma das extremidades e um
pequeno poial que servia de cozinha e de armário para comida, mas
tudo estava limpo e bem arranjado. 0 fogo ardia lento, mas Mamie,
uma negra magra e comprida, chamada da única cabana de
escravos, espevitou-o para ganhar mais força e começou a fritar
presunto. Marme avançou, gingando, para acomodar o seu traseiro
protuberante, no extremo das pernas frágeis, entre a lareira e a
cozinha, murmurando para si própria todos os gestos que ia fazer,
antes de os efectuar.
Enquanto esperavam que a refeição estivesse pronta, o mais velho
dos Bixby explicou a Georgie o fim da sua visita e propôs-lhe trocar
dos escravos que ele quisesse pelo rapaz que Georgie tinha, se
Hammond o quisesse.
-Quaisquer deles -explicou o velho. -De qualquer modo vais
herdá-los, tu e a PoIly, quando eu morrer. já não devo viver muito
mais tempo. Tenho sessenta anos, mais ou menos.
A sua tentativa deganhar a simpatia do filho pela sua idade era
premeditada.
Mas era desnecessária. A natureza de Georgie não lhe permitia
negar a ninguém aquilo que ele pudesse dar. 0 pai podia ficar com o
seu preto, se quisesse.
-Tenho andado apensar em levar aquele Willie a Natchez e ver o
que me davam por ele. Está a ficar tão grande que tenho medo de
deixar a Clarie e as miúdas com ele, quando vou ao mercado. Até
agora nunca sucedeu nada, mas estou sempre a dizer à Clarie que se
deixe ficar na cabana, fora do caminho dele. Pode levá-lo se quiser.

Logo que o preto apareceu, Hammond verificou que o queria. De
cabeça levantada e confiante ao ponto de se tornar imponente,


Willie avançou até ao centro da sala, revirando os olhos pretos e
mostrando os dentes de marfim. Apesar de ser tão alto como
Johnnie, era consideravelmente mais novo -tinha talvez treze anos.
Ondulava, ao caminhar, seguro da sua força e os seus músculos
sobressaiam através dos farrapos que vestia.

Hammond resmungou, sem se comprometer.
-Só senão gostar deles mesmo pretos -sugeriu Bixby. -É um
cromantino, puro cromantino, pelo menos é de raça, foi o que me
disse o homem a quem o comprei.
Willie gostava de ser o centro da atracção. Levantou uma perna e
bateu na própria coxa, abriu a boca com os dedos e deu voltas no
centro da cabana, para que todo o vissem. Não sabia qual o
propósito com que o exibiam.
-Dava um bom lutador -murmurou Charles a Hammond.
-Acho que sim, mas tenho que o ver despido -admitiu Hammond.
Georgie mandou Willie despir-se e ajudou-o a fazê-lo. Nu, o rapaz
parecia ainda maior, mais pesado, com maior vitalidade, do que
vestido, mas Hammond notou marcas lívidas nas pernas negras e
levantou-se para passar a mão por elas.
Prevendo as objecções que Hammond iria fazer, Georgie tentou
evitá-Ias.
-Isso não é nada -disse ele rindo. -Antes de ontem tive que o
chicotear. Acho que nem fez sangue, foi com o chicote da carroça.
Não me parece que fizesse sangue. Cura-se depressa. Não lhe fez
mal nenhum.
-Porque é que o chicoteaste? Que fez ele, Georgie? -perguntou
Johnnie que perdera uma cerimónia de que teria gostado de ver.
-Uma coisa por que o pai te castigou na semana passada. Lembraste?
Por brincares sozinho, foi por isso -disse Georgie, esclarecendo

o irmão, que ficou envergonhado e se calou.
-Que acha, senhor Maxwell? -perguntou Wilkins, impaciente pela
sua comissão.

-Acho que serve -disse Hammond, acenando afirmativamente com
a cabeça. -Só quero saber quanto dá o senhor Bixby de excedente.
-Nem um dólar, nem sequer um cêntimo -protestou Bixby,
levantando-se e começando a andar pela sala. -Na verdade até
devia receber excedente, em vez de dar. Aquela fêmea vai-me custar
três rapazes, desta maneira. 0 dinheiro não nasce do algodão, pelo
menos este ano não.
0 excedente devia ser para mim.
Hammond não esperava receber dinheiro, mas não fazia mal tentar.
Receava que, se não o pedisse, fosse Bixby a pedir-lho. Soube logo
que viu o possante rapaz, que queria ficar com ele. 0 preto era do
gênero que o Maxwell mais velho aprovava e considerava merecer
comida, para se transformar num trabalhador, pois dentro de cinco
ou seis anos se poderia obter por ele mil e quinhentos dólares, ou, se
se tivesse sorte, talvez dois mil dólares. Contudo, no fundo do
espírito de Hammond, havia necessidade de pagar a Wilkins.
Não tendo intenção de partir sem o rapaz, Hammond levantou-se
da sua cadeira e pegou no chapéu. Georgie puxou o pai para um
canto para conferenciarem. Redfleld e Charles levantaram-se.
Wilkins fez um esforço final. Agarrou Willie pelo braço e dando-lhe
uma palmada nas nádegas, empurrou-o para Hammond.
-Vai lamentar -disse. -Se não o leva, há-de lamentar tê-lo feito. É o
melhor pedaço de carne negra do Mississipi. Olhe para estes
ombros, estes braços, estes fiancos. Ia batendo com a mão nas áreas
que mencionava, para mostrar como a carne era sã.
Bixby acenou para Georgie com a cabeça e aproximou-se do canto
onde eles estavam.
-0 Georgie quer que eu o faça, por causa da Clarie e das meninas.
Ele põe metade. Dou-lhe cinquenta dólares de excedente, só para
satisfazer o Georgie. 0 que é que diz?
-Bom, acho bem -acedeu Hammond. -Devia ser cem, mas
excedente é excedente. Eu levo-o. Quando vem buscar as raparigas?
Tenho que partir amanhã.


-Vou já consigo. A altura é tão boa como qualquer outra. Pega no
teu cavalo, Georgie, e vem também. Tenho que voltar a casa, para ir
buscar o dinheiro, se ainda o quer.
-Veste-te depressa. Também vais -disse Georgie a Willie.
Desorientado, o rapaz que nada compreendera da transacção
perguntou:
-Eu vai? Onde vai nós, patrão Georgie? -Onde vai eu?
-Não interessa -foi a resposta que recebeu.
-Onde vai nós? Que vai fazê aquele branco? Eu não vai. Deixa eu
saltá deste cavalo, patrão Johnnie ---suplicou Willie, sabendo
perfeitamente que não podia escapar ao seu destino. -Que vai ele
fazê com eu?
-Não sei -disse J9hrinie encolhendo os ombros. -Vai-te dar a comer
aos porcos, penso eu. E o que os cavalheiros fazem aos seus negros,
especialmente aos mais novos.
A ameaça implícita na resposta de Johnnie tranquilizou Willie que
confiava em que os brancos não davam os rapazes negros a comer
aos seus porcos. Os brancos eram imprevisíveis, isso sabia ele; mas
isso não, não iam fazer isso. Sabia que Johnnie estava apenas a
assustá-lo. Embora ainda pouco à vontade, sentiu-se melhor.
Comprado por Bixby quando ainda era tão pequeno que nem podia
lembrar-se e dado a Georgie quando do seu casamento, não havia
ninguém, excepto Clarie -e talvez um pouco de Johnnie também de
quem sentisse saudade. Possivelmente, se a situação não lhe
agradasse, talvez pudesse fugir e voltar para Georgie. Que grande
era o mundo! Encontraria o caminho?
0 Sol pôs-se antes de o grupo chegar ao barracão de Armfield e
Frank1in em Forks-of-the-Road. Os cavalos cansados sentiram-se
felizes por se livrarem dos seus fardos.
Hopkins veio recebê-los e disse a Hammond:
-Acaba de chegar uma carta do senhor Armfield a dizer que o
senhor Frank1in vem a caminho com um lote de negros. Detesto pô



lo fora, mas temos que arranjar espaço. Não sei quantos é que ele
trás.
-Amanhã, senhor. Amanhã tiro todos daqui, logo de manhã prometeu
Hammond. -Acabo de vender as duas últimas.
-Não há assim tanta pressa; três, quatro, cinco dias está bem. 0
senhor Frank1in deve vir devagar, para descansar os rapazes explicou
Hopkins.
Hammond e Bixby foram até ao escritório para trocar notas de
venda e para pagar o excedente. 0 major Wilkins conservou-se em
frente da porta, para que os interessados não se escapassem sem lhe
pagar a sua comissão na venda. Quando saíram, fez parar Bixby e
falou seriamente com ele, mas parecia desanimado, segundo
Redfield notou, com os resultados da conferência.

Hopkins disse que Sheba e Estrelita tinham comido e estavam
deitadas. Também tinha dado a ceia ao rapaz de Charles.
Hammond fez levantar as duas mulheres e entregou-as ao seu novo
dono que, apesar dos protestos de Johnnie, planeava voltar nessa
mesma noite. Os alojamentos em Natchez eram caros e, de qualquer
modo, não se arranjavam, explicou ele ao rapaz.
-A não ser que queiras dormir aqui numa cabana com os pretinhos
do senhor Maxwell -disse.
-É melhor cavalgar devagar -aconselhou Harrimond a Bixby -, se
não quer perder as crianças que elas trazem dentro delas.
-Vamos devagar -assegurou Georgie. -Mesmo que leve até à meia-
noite. É melhor fechar aquele Willie. Nã o confio em que ele não
fuja. Está a ficar muito grande.
-Se fugir, sabe-se para onde foi; para casa, claro. Os pequenos estão
bem. Não fogem --disse Bixby, quando se afastava.
Os três irmãos estavam satisfeitos, mas esfomeados, e não se
importaram por o guisado que Hopkins lhes trouxe estar frio. Willie
não conseguiu comer, apesar da fadiga e de ter o estômago vazio.


Atrides ficou encantado por ver Charles e por o libertarem das suas
grilhetas. Hammond, ao prender Willie por um tornozelo certificou-
se de que a corrente tinha o comprimento suficiente para lhe
permitir estender-se confortavelmente na palha e tapou-o com um
cobertor esfarrapado.
Faltava pagar a Wilkins e Hammond contou o dinheiro com
relutância, os cinquenta dólares das notas que obtivera de Bixby e
mais cinquenta em ouro.
-0 outro homem, aquele Bixby, não me vai pagar -queixou-se
Wilkins, guardando o dinheiro de Hammond no bolso. -Nunca
mais o vejo, desconfio.
Contudo, estava satisfeito corri os cem dólares e insistiu em que o
grupo o acompanhasse numa bebida quando chegassem a Natchez.
Os bares estavam cheios e havia dificuldade em arranjar lugar junto
do balcão. Cada um dos brancos pagou uma rodada, e Wilkins
propôs outra, mas Hammond recusou. Após a terceira bebida,
Charles ordenou a Atrides que abrisse as calças para exibir a sua
anomalia a quem quisesse vê-Ia. Muitos homens se interessaram e o
rapaz foi alvo de piadas indecorosas de que se ria sem as perceber.
Um dos brancos quis pagar uma bebida a Atrides, mas Charles não

o permitiu, mesmo que o empregado do bar não tivesse dito que
não servia um negro.
Era a última noite de Redfield em Natchez e estava decidido a
aproveitá-la o melhor possível. Ele e Wilkins deixaram Hammond e
Charles, que estavam cansados, e voltaram, depois de devolverem o
cavalo de Charles ao estábulo, à Pensão dos Cavalheiros para
comerem a ceia e se deitarem. A ceia mal cozinhada tinha sido
aquecida para eles, mas comeram com entusiasmo, após a fadiga do
dia e as bebidas que tinham tomado.
-Porque não vem comigo? -propôs Hammond ao parente recuperado.
-Fica em Falconhurste quando estiver farto volta para Crowfoot.
A sua mãe está muito triste, julgando-o morto. _ Deixe-os pensar
isso. Não lhes diga que me viu, nem sequer à Blanche. Ela fala de

mais. Não se pode confiar nela-disse Charles com amargura. Diga
ao primo Warren, se quiser: ele é muito simpático, ele e o
Hammond.
-Senão quer que diga, não digo -prometeu Hammond. -É bem-
vindo a Falconhurst, especialmente depois de me ter tratado,
mesmo pensando que eu tinha cólera.
-Além disso -acrescentou Charles -, aquele tipo do vapor ainda não
chegou. Vou vender-lhe o rapaz dos três tomates. Ele vai querê-lo,
de certeza, se não tiver morrido na viagem rio abaixo.
-Pagou-me dinheiro a mais por aquele negro. Não sabia que lho
estava a vender -confessou Hammond.
-Disse que não mo vendia, que não queria negócios comigo. Já lhe
mostrei que não sou assim tão mau. Vou vendê-lo. Vou vendê-lo e
ainda ganho dinheiro.
Foram para a cama. Charles deitou-se na esteira. já passava da
meia-noite quando Redfield regressou, se despiu em silêncio e
entrou na cama, ao lado de Hammond. Ficou estendido durante um
minuto e depois sacudiu Ham até este ficar parcialmente acordado.
-Porque não ficamos cá, só mais um pouco, só mais uns dias? perguntou
em tom de queixa.
Hammond resmungou uma resposta.
-Tive aquela ruiva esta noite, em casa da Maggie -continuou o
velho.
-Depois dela, custa muito ir para a cama com a viúva.



Capitulo trigésimo sétimo


Chovia quando Hammond acordou. Deixou-se ficar um pouco,
deitado, a ouvir a chuva bater nas telhas e pôs-se a pensar se seria
sensato partir num dia húmido, fez planos, contando pelos dedos,
para os diversos pormenores que tinha de ter em conta antes de
iniciar a viagem. Ergueu-se e foi a coxear até à ]anela, para observar

o tempo. Não se preocupava em expor-se a ele e Redfield à chuva,
mas esta poderia fazer mal aos quatro escravozinhos. Poderia
provocar-lhes febre nos pulmões.
Aborrecia-o o atraso, passara quatro dias vazios à espera de vender
as duas últimas fêmeas, quando podia ter estado a percorrer a área
onde lhe fugira o mestiço. Quando chegasse a Falconhurst, teria
provavelmente que partir outra vez para procurar, talvez em vão, o
rapaz perdido.

Mas a sua responsabilidade terminaria. Tinha cumprido as suas
obrigações de uma maneira que sabia que iria deixar o pai satisfeito.
Decerto teria que suportar a censura do pai, expressa numa risada
cacarejante pelos azares sofridos -a fuga do mestiço, a venda do
estéril Napoleão como um garanhão e, o que era pior do que tudo o
resto, a venda de Frenesim a uma branca, para satisfazer os seus
desejos. Corou ao lembrar-se disso e desejou poder expulsar a
lembrança da sua consciência. 0 velho não acharia decerto graça à
doença do filho; talvez isso diminuísse a sua troça pelos seus erros.

Contra o mau julgamento que Hammond fazia de si próprio,
colocou, porém, o pesado saco de ouro -quase vinte e três mil
dólares; não sabia ao certo quanto era -que lançaria aos pés do pai,
e aquilo que o velho apreciava ainda mais, carne jovem para


reabastecer Falconhurst. 0 propósito da expedição tinha sido levar
uma colheita ao mercado, e tinha-o feito. Embora não tivesse
partido com a ideia de comprar escravos, os negros machos jovens e
saudáveis eram difíceis de encontrar e os quatro que adquirira
aumentariam de valor todos os anos, enquanto as fêmeas por que
trocara em breve deixariam de procriar e perderiam valor
rapidamente. No conjunto, tinha actuado bem.

Vestiu-se e Charies levantou-se e ajudou-o a calçar a bota. Tinha
prometido a Blanche levar-lhe qualquer coisa da cidade. 0 quê?
Vestidos não poderia usar por estar grávida. Depois do pequeno-
almoço, meteu-se à chuva para ir comprar qualquer bugiganga qualquer
coisa. Não lhe interessava o quê. Um anel? Tinha para lhe
dar o anel de diamantes que Charles lhe devolvera.

Na mais elegante das joalharias, a Wineberg, viu uns brincos de
pendentes, uns discos redondos garridamente enfeitados com
granadas. Decerto agradariam a uma mulher. Comprou-os e, ao
comprá-los, pensou como ficariam bem contra a pele morena de
Ellen, que ar bárbaro lhe dariam. Sabia que as jóias numa negra
eram um desperdício, mas como Ellen ficaria satisfeita! Ela nada
exigia, nada esperava! Mas os brincos distinguí-la-iam, marcá-laiam
como sua. Num capricho estouvado, comprou UM segundo
par, exactamente igual ao primeiro.
Não como presente, antes corno utilidade, comprou para o seu pai
uma liteira aberta, semelhante a uma em que tinha visto transportar
um inválido pelas ruas, aos ombros de dois negros. Aquilo
permitiria ao reumático atravessar a plantação e ter um papel mais
activo na sua direcção. Nas lojas onde Hammond perguntou pelo
artigo não foi capaz de dizer o seu nome, mas compreenderam
perfeitamente o que ele queria; contudo, não tinham tal coisa para
vender e mandavam o comprador de uns lados para outros.
Finalmente soube de um homem, agora morto, que tinha utilizado


uma liteira e o seu herdeiro ficou satisfeito por a dar a quem
pudesse fazer uso dela. Guardada num estábulo, a liteira estava
coberta de poeira e palhas e a sua estrutura estava um pouco
desconjuntada, mas as peças ajustavam-se bem e podia ser
utilizada, apesar de não ser bonita. Hammond teria preferido pagála
e ficou embaraçado com a generosidade do doador. A transacção
terminou com a declaração da eterna gratidão de Hammond e o seu
convite para que o generoso homem fosse a Falconhurst ver a sua
dádiva em USO.


A chuva transformara-se numa morrinha. Hammond, contra o
conselho do Dr. Redfield e os desejos de Charles, decidiu dirigir-se
para casa. Comeram o seu último jantar na Pensão dos Cavalheiros,
deixaram o seu quarto a Charles e pagaram a sua conta. No
armazém de Armfleld, verificaram que Hopkins tinha aberto a
porta da cabana e dado de comer às crianças. Willie estava ainda
preso pelo tornozelo, mas os três irmãos brincavam na área aberta,
Hammond pediu a Hopkins a conta pela manutenção dos escravos
e, enquanto ele a esperava, Hammond atrelou a mula ao carro, com
a ajuda do negro aleijado que, segundo HopkIns, não se conseguia
vender.


A conta que HopkIns lhe entregou, transcrita em papel amarelo,
numa meticulosa quirografia, era maior do que Hammond previra,
mas estava cuidadosamente discriminada, e Hammond não lhe
encontrou erros. Pagou de má vontade.
-Talvez fosse melhor eu levar um par degrilhetas para pôr à noite
neste negro -disse Hammond, ao soltar Willie. -Podia dispensar-me
um par? Ou tenho que ir a um ferreiro?
-Tenho muitas. Tenho sempre multas -disse Flopkins. -Pode ficar
com aquelas que lhe tirou. Servem-lhe e a chave funciona bem.
Hammond pagou-lhe os dois dólares que ele lhe pediu, atirou as
grilhetas para a parte de trás do carro, e meteu a chave no bolso.



-Entrem -disse Hammond às crianças. -Os maiores à frente, porque
a velha mula precisa de ser guiada.
Eles obedeceram e Wíllie pegou nas rédeas.
-Sobre aquilo que eu lhe disse ontem à noite, da vinda do senhor
Franklin, eu não queria dizer que partisse hoje. Ele não chega tão
cedo -disse Hopkins desculpando-se, com medo de que o seu aviso
tivesse apressado a partida.
-Não se rale-tranquilizou-o Harrimond. -De qualquer modo
tencionava ir-me embora. Desperdicei muito tempo, por causa das
duas fêmeas.
-Tenho multa pena de que se vão embora, agora que eu começava a
conhecê-los bem.
-Sim -disse Redfield em tom acusador. -É sempre "rápido, rápido",
com o senhor Maxweli. Não se pode perder um, dois ou três dias.
Hammond ergueu o braço em despedida e a procissão começou a
sair do pátio, com Hammond à frente, seguido pelo carro puxado
pela mula e finalmente por Redfield. Os quatro escravos pequenos
contrastavam com os negros vigorosos que tinham trazido. Ainda
tinham de ir despedir-se de Charles e de ir a Narchez buscar a
liteira.
Não tinha pensado no modo por que a liteira seria transportada. Era
fácil ver que o tecto do carro era demasiado frágil para a aguentar;
atada de lado interferiria com as altas rodas; era uma oferta aceite,
não podia ficar para trás. Redfield lutando com uma das
extremidades do desajeitado aparelho, largou-a, respirou
pesadamente, e sugeriu.
-Mande os dois maiores levarem-na. Têm tamanho suficiente. Não
é muito pesada. É a única maneira.
-Hammond olhou para os jovens que estavam dentro do carro e
depoís para a liteira.
-Acho que podiam -admitiu ele. -Mas vão atrasar-nos. Quem me
dera nunca ter visto isto.
-Vai ser muito bom para o seu pai. Vai poder circular.


-Quem guiará a mula?
-Não precisa de ser guiada. Segue-nos. Aquele maior pode segurar
nas rédeas -disse Redfield.
-Não podemos prendê-la e arrastá-la -observou Hammond. Desçam,
desçam -disse aos rapazes. -Vamos tentar.
A liteira vazia não era pesada, mas os ombros dos rapazes,
especialmente os do mais claro eram estreitos de mais para aguentar
os varais, e eles precisavam de segurar com as mãos. A liteira seguia
a meio pé do chão.
-Tem de ser -aceitou Hammond. -Mas custa-me atravessar
Natchez assim. Vamos andando.
Willie ficou satisfeito por ser utilizado. Começou a correr a tal
velocidade que o rapaz claro, que seguia atrás, não conseguia
aguentar. Seguiam fora de ritmo e a liteira vazia balouçava-se
loucamente. Hammond, seguindo-os, diminuiu a velocidade até um
trote lento e mostrou-lhes como deviam acertar o passo. Redfield,
no seu cavalo castanho, levava a mula pela brida; o rapazito no
assento da frente do carro segurava nas rédeas e tentava conduzir o
carro. A bizarra procissão excitou os olhares de curiosidade ao
atravessar as ruas escorregadias com a terra molhada transformada
em lama.
Pararam em frente de Woodbine Sallon, onde Charles prometera
esperar.
Charles desembaraçou-se do elegante de bigodes e casaco de pano
fino com quem estava a falar e, ao dirigir-se a Hammond e Redfield
disse, mini murmúrio alto.
-É ele, o marinheiro de que lhes falei esta manhã. Quer mesmo
comprar o rapaz, mas não acredita, quer ver com os seus próprios
olhos. Vamos levar o negro a um médico para lhe perguntar se os
três tomates são mesmo dele, se nasceu com eles.
Estava mais preocupado com a venda do que com a partida do
primo.


-São tão naturais como Os meus dois -disse Hammond, rindo,
enquanto atirava uma moeda para o balcão, para pagar uma bebida.
-Não lhes diga, aos meus pais e à Blanche, que me viu. Prometeu
que não dizia -recordou-lhe Charles e Harrimond renovou a sua
promessa.
Redfield propôs mais uma bebida que Hammond recusou.
-Estamos a perder tempo -disse. Charles veio até à porta e saiu
para o passeio desigual de tijolo, para os ver montar. Apertou a mão
de Redfield e reteve Hammond durante um minuto, batendo-lhe no
ombro.
-Porque não traz o seu macho grande à costa? Claro, depois de a
cólera ter deixado a cidade. Conheço quatro ou cinco cavalheiros, ao
longo do rio, que têm negros, bons negros. Posso arranjar um
combate com o seu em qualquer altura, sempre que queira.
-Refere-se ao meu mandingo? -perguntou Hammond.
-Sim, aquele mandingo, ou como é que lhe chamam -especificou
Charles.
Hammond não respondeu. Fez sinal aos rapazes para se porem em
movimento com a liteira vazia. Recífield conduziu a mula durante
umas cem jardas e, quando largou a brida, a mula seguiu atrás dele.

Era evidente que não podiam avançar mais depressa do que o trote
dos rapazes com a liteira aos ombros, e Hammond resignou-se a
essa velocidade porque não podia deixar ficar a liteira para trás.
Recífield não tinha pressa, e o ritmo convinha perfeitamente à velha
mula. 0 avanço através de estradas más e a necessidade de se
manterem com passo certo aborrecia mais os rapazes do que os
fatigava fisicamente. De poucas em poucas milhas Hammond
permitia-lhes que se sentassem à beira da estrada e descansassem. 0
rapaz de dez anos segurava nas rédeas e fingia conduzir a mula,
embora esta não precisasse de ser guiada.


0 rapaz mais novo seguia atrás, cantarolando uma música amorfa,
lamentosa, até adormecer. Ao acordar, mostrou-se mimado e, a
choramingar, gritou:
-Quê a 'nha mãe! Onde ta a 'nha mãe? Vamos prá nossa mãe!
-Agente foi vendido. Não pode já tê mãe-tentou explicar-lhe o
irmão mais velho. -Vamos tê novo patrão. Aquele branco que vai no
cavalo. Ele é qu'é o nosso patrão agora.
0 rapaz insistiu e Hammond não se importou com os lamentos
durante uma hora ou duas, mas, vendo que não paravam, levou o
cavalo para junto do carro e tentou tranqüilizar a criança.
-Vamos para casa -consolou-o com voz bondosa. -Eu vou ser bom
para ti, vou dar muita comida a todos. Vais ter muitos negrinhos
para brincar.
-Eu quê a 'nha mãe -amuou o garoto.
-já não podes ter a tua antiga mãe. Ela ficou para trás. Vês aquele
Willie, aquele preto que ali vai com a liteira? Ele é que vai ser a tua
nova mãe. E melhor convenceres-te disso e parares de chorar -disse
Hammond severamente mas sem ira. -Vais gostar. Agora senta-te,
como um negro crescido, e porta-te bem.
Exceptuando o tempo consumido, nada de especial ocorreu na
viagem. Hammond contara fazer sessenta ou setenta milhas por dia
sem dificuldade; mas, com os rapazes a carregar a liteira, trinta
milhas já era muito, e trinta e cinco o máximo que conseguiu,
havendo um dia em que fizeram pouco mais de vinte. Hammond
sentia-se impaciente.

Certa noite o grupo chegou a uma estalagem na aldeia de Sanchez,
já tarde para cear. Os cavalos e os escravos foram alojados no
estábulo, enquanto os restos da refeição eram aquecidos para os
brancos. Uma rapariga cor de ocre trouxe a comida e serviu-a o
melhor que podia. jovem e em idade núbil, os seus contornos
vistosos excitaram Hammond, e ela sorriu-lhe atrevidamente
enquanto servia Redfleld do outro extremo da mesa. Hammond não


tinha tido companhia feminina desde que saíra de Falconhurst e
sentiu-se tentado a pedir à simpática rapariga que fosse ao seu
quarto, mas, quando ela se aproximou dele, sentiu o cheiro da
sujidade do seu corpo, que interpretou como cheiro a catinga. Era
demasiado tarde, e fazia muito frio para lhe exigir que se fosse
lavar.
Redfield que não disfarçava a apreciação visual da jovem escrava,
era dotado de um olfacto mais pobre e era menos exigente. A
rapariga complacente, embora não fosse indiferente à escolha dos
homens, não foi consultada.
A viagem de Natchez para Falconhurst gastara sete dias e, na noite
final, não houve pausa para dormir. Quanto mais Hammond se
aproximava do seu destino, mais impaciente se sentia por o
alcançar. Duas horas antes do nascer do Sol, abandonou o grupo aos
cuidados e Redfield, deu rédeas a Eclipse e, rompendo em galope,
chegou a Benson antes de alguém estar a pé e, às oito horas, voltava
a área para Falconhurst.
Lucrécia Bórgia e Meg pareciam pressentir a chegada; nem sequer
ouviram os cascos do cavalo. Algo os trouxe a correr para o
varandim, onde esperaram que o patrão desmontasse. Lucrécia
Bórgia envolveu-o nos seus braços e Meg deu-lhe palmadinhas no
casaco.
-Onde está o meu pai e os outros -perguntou o amo. -Tudo bem?
Lucrécia Bórgia absteve-se de responder à última pergunta.
-0 patrão velho está bem; ele tá bem, patrão, siô. Acho que ele não
ouviu -disse ela. -Vai buscá ele, Meg, Meg diz a ele que patrão
chegou.
Mas era desnecessário. 0 velho apareceu logo, radiante e encantado.
Abraçou e beijou o filho até que este foi forçado a levá-lo para casa.
Onde... onde está Blanche e os outros? A Blanche não se sente muito
bem. Não desceu -explicou o pai.
-Bêbeda?


-Bem, não -defendeu-a o velho. -Quer dizer, não tem bebido
muito. Só o que precisa para estar em forma.
Hammond abanou a cabeça pra expressar a sua dúvida, enquanto
retirava um toddy da bandeja que Meg trouxera.
-E como está a Ellen? Onde está ela? Porque não aparece? perguntou.
-Bom, a Ellen, eu te conto -hesitou o velho. -Ela perdeu o filho que
estava para ter.
-Ellen tá envergonhada, tá cum medo de aparecê, patrão, siô interrompeu
Lucrécia Bórgia. -Eu vai dizê a ela que tu não tá
zangado.
-Abortou? Como foi isso? Lucrécia Bórgía deixou a explicação para

o patrão e este limitou-se a encolher os ombros em fingida
ignorância.
-Onde está ela? Tenho que a ver, quero saber -disse o rapaz. Trouxe-
lhe uma coisa para ela. Trouxe-lhe uma prenda.
-Tá na cozinha, à espera -disse Lucrécia Bórgia, e ele pousou o seu
toddy sem o provar e foi procurá-la.
Ellen estava trémula de ansiedade por ver o seu amante, cheia de
medo e ávida. Quando ele entrou, olhou-o mas recuou, como se
receasse que ele lhe batesse, o que suportaria melhor do que a ira
que previa.
-Eu não fiz de propósito. Patrão, eu não queria -suplicou ela
começando a chorar.
Hammond agarrou-a e enlaçou-a nos seus braços.
-Não faz mal; não faz mal -garantiu-lhe. -Tu estás bem? Ellen,
querida, logo que estejas melhor, fazemos outro. Não compreendes,
querida, não faz mal. Eu não estou zangado.
Ellen apenas pôde enterrar o rosto no casaco dele, reconfortada,
soluçando de satisfação por não ser inculpada.
-Olha, Ellen -disse Hammond, afastando-a, segura pelos ombros. Olha.
Trouxe-te uma coisa da cidade, uma coisa para te fazer bonita.
Não que tu precises disso para seres bonita. -Tirou do bolso uma

pequena embalagem e desembrulhou os brincos do papel de seda
que os envolvia. -Toma. Isto faz-te mais feliz.
Ellen pegou-lhes, comovida.
-São para mim? São suficientemente bonitos para uma branca agradeceu,
radiante e recomeçou a chorar.
-Trouxe uns iguaizinhos para miss Blanche -disse Hammond.
-A miss Blanche já tem as orelhas furadas; pode usá-los. Eu tenho
que furar as minhas.
Hammond esquecera-se da necessidade de perfurar as orelhas.
-Não dói muito. Tratamos disso depressa.
-São lindos. São lindíssimos, patrão, siô. -No seu entusiasmo, Ellen
esquecera-se do aborto. -Não devia ter comprado. São caros.
-Não te importes com o que custaram -desdenhou Hammond.
Ellen levou as jóias até às orelhas.
-Nenhuma outra negra ficou tão bonita. Patrão, siô! Patrão, siô!
Estava radiante.
-Marcam-te como minha, só minha, como letras marcadas a fogo na
tua pele. Estás já boa para esta noite? Vê se estás limpa. A Lucrécia
Bórgia que te lave toda.
Hammond não insistiu por saber a causa do acidente. Voltou para
relatar a viagem ao pai.
-Onde está o doutor Redfield? -perguntou o pai, quando o filho
voltou à sala. -Foi para casa? Porque é que ele não entrou? É
melhoro rapaz aquecer-te o toddy.
-0 doutor Recífield já vem aí com os negros. Eu vim à frente.
-Não os vendeste? Eu disse-te para os venderes. Fosse pelo que
fosse. Devias tê-los vendido.
-Estes que eu trago são outros. Só crianças, quatro -elucidou
Hamniond.
-Oh -o pai mudou de tom. -Os negros estão a descer? Os nossos
não valiam nada por causa da cólera e daquilo tudo?
-Os negros subiram, estão constantemente a subir. Natchez está
cheio de gente que fugiu da cólera. Fizemos bastante dinheiro; vinte



e três mil ou coisa parecida, além destes quatro que eu trago gabou-
se Hammond. -Claro, um fugiu, aquele mestiço. -admitiu.
-Apanhaste-o?
-Não. Continua a monte. Penso que tenha ido para Briarfield.
Amanhã vou lá por ele.
0 pai falou em tom complacente, embora se risse da falta de cuidado
do rapaz.
-Não vale a pena -disse, abanando a cabeça. -Aquele rapaz é quase
branco. Foi para o Norte. Pensei que o Redfield fosse mais
cuidadoso.
-Ele queria que eu lhes pusesse ferros -disse Hammond,
absolvendo o médico. -Eles aí estão a chegar.
Foram juntos ao varandim receber Redfield que trazia a sua carga
pela área fora. 0 médico desmontou, exausto, e apertou a mão
estendida do velho.
-Que maquineta é aquela que os rapazes trazem? -perguntou o
velho, adivinhando logo para que servia a liteira.
-E uma liteira para o pai ser transportado pela plantação. Agora
pode ir a toda a parte, ao Tombigbee, até ao cemitério, ao campo do
algodão, a toda a parte que queira! -explicou Hammond, com
orgulho.
-Hum -resmungou o reumático. -Se pensas que vou andar naquela
engenhoca estás enganado. Nem um passo. Ainda tenho as minhas
pernas. Não são fortes, mas são minhas. Antes de ter que andar às
costas dos pretos, prefiro deixar-me ficar por aqui.
-Toda a gente em Natchez usa estas liteiras -exagerou Hammond. Toda
a gente que não pode andar bem.
-Não me importa. Não a uso. Talvez esteja muito bem em Natchez,
ou no Brasil Já ouvi dizer que lá as usavam e em todas essas cidades
elegantes, irias aqui no campo não a quero. Não sou nenhum dandy
do Alabama. Talvez aquilo seja bom para agente se divertir, muito
macio, senão tiver um leito de penas, mas um adulto andar aos
ombros dos negros, até os negros do campo me perdiam o respeito.


Hammond compreendeu que a rejeição era definitiva. Tinha
perdido pelo menos quatro dias para trazer a liteira, esgotado os
dois rapazes e a sua própria paciência, para nada. Orgulho. Simples
orgulho. Disse aos rapazes que a depositassem no varandim,
encostada à parede.

Deu instruções a Lucrécia Bórgia para alimentar bem as quatro
crianças e depois as deitar numa cama de boa palha, e depois levou
Redfield para dentro de casa, a fim de tornarem o pequeno-almoço.
Durante este, o médico, fortificado por dois toddies preliminares,
contou, divertido, o desgosto de Hammond por terem vendido
Frenesim a uma branca, para fins que o rapaz considerava
degenerados. Hammond tencionava confessar o facto ao pai, mas
não tão cedo. Ficou embaraçado, pelo relato do médico.
0 velho Maxwell riu-se ruidosamente.
-Que te importa a ti, Ham, o que ela vai fazer com ele? -perguntou
em tom retórico. -Branca? Sim! Mas é holandesa. Não é o mesmo,
não é como nós. Não sabes que os holandeses que moram além, ao
longo do rio, são capazes de tudo? Não são melhores do que os
negros.
-Era o que eu lhe dizia -comentou Redfield. -A única coisa cómica
é que o Ham desejava nunca o ter vendido. Mil e quinhentos
dólares.
-Tens de te lembrar, filho, que nem todas as pessoas têm sangue
Hammond.
Redfleld não se referiu à venda do estéril Pólo, visto que ele próprio
a fizera; também não contou a doença de Hammond e o encontro
com Charles, Era uma negligência conveniente. Tinha ouvido a
promessa de Hammond de não dizer a Blanche que vira o irmão e
esperava que o segredo se aplicasse também ao pai. Sentia-se
compungido por ter abandonado o seu companheiro, embora


Hammond nunca tivesse falado do assunto e não parecesse culpálo.
Depois do pequeno-almoço, o velho sugeriu:
-Traz o teu saco de dinheiro, Ham, e paga ao doutor Redfield. É
melhor ser Já. Quanto lhe devemos, doutor?
-Nada, absolutamente nada. Não recebo nada. Não recebo nada,
nem um cêntimo -afirmou Redfield.
-Porquê? -perguntou Maxwell. -0 Hammond fez uma viagem
bastante proveitosa. Contávamos pagar-lhe. E é justo!
-Para começar o Hammond pagou tudo, todas as minhas despesas.
Além disso, vendi um dos rapazes por mais trezentos dólares do
que ele queria e ele disse que eu podia ficar com o dinheiro. Eu não
queria...
-Nesse caso -acedeu Maxwe11. -Mas nós queríamos pagar-lhe.
Estou-lhe muito grato por ter ido. Se o Hammond tivesse adoecido
ou precisasse de alguém ...
A alusão fez Redfield pensar se Hammond teria falado da doença
antes da sua chegada. Maxwell era capaz de uma acusação oblíqua
como aquela.


Talvez não. Redfield achou melhor despedir-se. Não detectou
qualquer falta de cordialidade.
Hammond até acompanhou o seu convidado ao cavalo, após o que
foi à cabana examinar os mandingos. Encontrou Medes estendido
na cama, enquanto Lucy lhe dava a comida, pedaço a pedaço.
-0 que tem ele? Não tem forças para comer? -perguntou
Hammond, irritado.
-Sim, siô, patrão, siô. 0 Medes tá forte -respondeu Lucy. Mas ele
gosta de comê assim, deitado. E eu tamem gosta. Ele é tão bonito.
Para a mulher Medes era um boneco grande, uma criança para
amimar. Gostaria de lhe pegar ao colo e de lhe dar o peito.
-Eu ponho-te bonito -ameaçou Hammond.



0 rapaz levantou-se para permitir que o patrão o inspeccionasse.
Hammond detectou uma certa flacidez dos músculos do abdómem
e um arredondamento das nádegas que não lhe agradavam. Acusou

o escravo de negligenciar o treino.
-Não se consegue que tu trabalhes aqui. Talvez seja melhor voltares
a dormir no celeiro. Há lá muito espaço. Este sistema ...
-Não, não, patrão, siô. Ele tá sempre a trabalhá. Sempre a trabalhá.
Medes tá sempre a corrê, a saltá, a levantá coisa. Sempre. Sempre.
Havia ansiedade na voz de Lucy. Medes ficou indiferente perante a
ameaça. Aceitava tudo o que lhe sucedia.
-Bem, ele que continue a trabalhar. Dentro de três, quatro, cinco
dias, estarei em casa para ficar. Nessa altura trato dele. Eu ensino-
lhe o que é trabalhar.
Depois de ter cavalgado toda a noite, Hammond sentia-se fatigado e
regressou a casa. Blanche, de grande barriga e com um ar
desleixado, tinha descido à sala.
Balançando-se lentamente na cadeira, saudou o marido com estas
palavras:
-0 que é que me trouxeste? Estiveste tanto tempo fora e eu à espera!
Ele tirou os brincos do bolso e deu-lhos. Agradaram-lhe mais do
que ele previra. Limitou-se a arquejar, sufocada. Deixou ficar os
brincos no colo, sobre a bata, mas levantava-os, um de cada vez, e
olhava-os um a um, apesar de serem Iguais.
-São diamantes? -perguntou ela.
-Não são diamantes -opinou Hammond. -Os diamantes são
brancos. Estes são outra coisa qualquer.
-São caros, penso eu. Hammond admitiu que tinham bastante
valor.
-Põe-os lá -sugeriu. Blanche lutou para enfiar os brincos nos
pequenos orifícios das orelhas que tinham encolhido por falta de
uso. Nem se importou com a dor.
-Agora já não os posso ver. Ficam bem?

-Com o cabelo penteado, ficam bonitos. Agora não se vêem, porque

o teu cabelo está todo emaranhado. Não havia censura na voz do
rapaz.
-Agora todos vão saber quem é a tua mulher, a quem tu compras
jóias. Blanche voltou o rosto corado e inchado, de um lado para o
outro, para mostrar a prenda. As granadas acentuavam o tom do
cabelo louro da rapariga e o inchaço da sua pele de grossos poros.
A imprudência de trazer ofertas idênticas para a sua mulher e para
a sua concubina ocorreu a Hammond pela primeira vez. Porque não
previra o ressentimento de Blanche, que decerto se verificaria? Não
seria necessário dar prendas a Ellen, que não contava com elas -mas
ele amava-a. A oferta tinha sido feita e não podia retirá-la. Manteve-
se silencioso a esse respeito.
-Esses não valem nada. Não te marcam como minha mulher. Mas
tenho outra coisa para ti. Tenho finalmente o tal anel de diamantes.
-Tirou do bolso o anel que Charles atirara aos seus pés e colocou-o
no dedo dela. -Agora é que é um diamante -disse.
Blanche examinou-o com orgulho e beijou-o no dedo.
-Como ele brilha! -admirou-se ela, levantando a mão suja e
torcendo o pulso grosso. -Agora já posso ter o meu filho. Estou
devidamente casada. Como deve ser.
-já estávamos casados como deve ser. 0 teu pai escreu tudo na
Bíbliaafirmou Hammond sem satisfação. -Vale. 0 teu filho é
legítimo.
-Eu sei, mas agora é que tenho o anel de diamente. Hammond ficou
satisfeito com a alegria da rapariga perante o seu brinquedo.
-Ela não tem -disse Blanche, regozijando-se. -Aquela Ellen.
-Claro que não. É apenas uma negra -disse Hammond, com ar de
desprezo.
-Ela perdeu o filho -Blanche introduziu o assunto na conversa, à
experiência e cuidadosamente. Queria ter a certeza de que ele não
conhecia a causa.


-0 meu pai disse-mo. Não sei o que lhe sucedeu. Quero que tu
tenhas cuidado.
-Tenho. Eu não vou abortar. Estou contente, contente por ela ter
abortado. Não tive culpa, mas estou contente.
-Porquê? Porque estás contente? 0 filho dela valia cem a duzentos
dólares.
Hammond atribuiu o seu interesse ao valor monetário da criança.
-Oh, ela julga-se muito bonita, sempre a revirar os olhos. Não passa
de uma negra como as outras!
-Ellen não o faz por mal. É muito simpática e dócil -disse
Hammond, defendendo a sua propriedade.
-julgas que a criança era tua?
-Qual criança?
-A da Ellen -especificou Blanche, cheia de despeito. Hammond
encolheu os ombros, fingindo ignorância. Nunca negara à mulher as
suas relações com Ellen ou com qualquer outra fêmea.
-Talvez seja de um dos machos; o mais provável é que seja de todos
eles. Ela anda com todos, especialmente com o Medes -garantiu a
mulher, sem que ele a desdissesse. -Pelo menos nasceu preto continuou
ela mesmo muito preto, todos dizem.
-Quem é que diz? Quem?
-As pessoas, os negros, toda a gente que o viu. Mesmo muito
escuro. Hammond não discutiu a afirmação. Se aquela crença dava
satisfação à mulher, deixá-la acreditar. Estava cansado, cansado da
viagem, e cansado da conversa. 0 gelo fino em que Ellen patinara
não se tinha quebrado.
-Penso que é melhor deitar-me uni bocado -disse Hammond. Tenho
de partir outra vez, amanhã de manhã.
Quando acordou, Blanche estava com o pai, e não teve
oportunidade de lhe contar o seu encontro com Charles; nem lhe
podia falar da sua doença, sem arrastar Charles para a conversa.


Capitulo trigésimo oitavo

Antes do nascer do Sol, no dia seguinte, Hammond iniciou a sua
viagem para Briarfield. Meg levantou-se para o vestir e Lucrécia
Bórgia para lhe preparar o pequeno-almoço. Sentia-se irritado pela
necessidade de fazer a viagem, irresoluto na sua determinação de
chicotear o escravo fugitivo quando o encontrasse. Ainda furioso
com Ás por ter de fazer aquela viagem, a violência da sua ira foi
diminuindo e passou a preocupar-se apenas em recuperar e
conservar a sua propriedade. Se houvesse outro sistema além do
chicote para impedir um escravo de fugir, Hammond tê-lo-ia
utilizado.

Cavalgou rapidamente. 0 seu cavalo não se esforçara muito durante
a viagem a Natchez e descansara na espaçosa bala durante todo o
dia anterior. A manhã estava fresca e havia um pouco de geada,
mas a actividade aqueceu tanto o cavalo como o cavaleiro.

Em bom galope, chegou a Falrfax à hora da ceia e a Briarfield na
manhã seguinte, a tempo de jantar. Ao passar pela quinta dos
Church, viu Luar, prenhe, e Queridinho a pastar. 0 potro já ia
avançando para a maturidade, e relinchou, desafiando Eclipse.
Hammond prosseguiu a galope, receando um encontro com Mad
Church do qual sabia que resultaria a insistência para parar, e Mad
acabaria por chorar se ele o não fizesse.

Eph Maddox, o dono do hotel, não tinha visto Ás. Após a morte do
irmão, a casa da viúva ardera e ela tinha deixado a região e tinha


voltado para a Geórgia, de onde Sime a trouxera, supunha Eph. Eph
Maddox e a viúva de Sime não morriam de amores um pelo outro.
De qualquer modo, teria sido inútil uma viagem à quinta dos
Maddox.
-Aí está o resultado de não o desancar quando lho entreguei. Devia
tê-lo feito logo no dia em que o apanhou, logo nesse dia, e de ter
marcado um R, na cara dele, com um ferro em brasa, logo que
chegou a casa. Se espera, se vai adiando, os negros esquecem-se,
especialmente os mais novos. É preciso marcar um fugitivo.
Hammond concordava com Maddox, em princípio.
-Claro, eu compreendo. Estava em lua-de-mel, não queria
incomodar-se -disse Eph, para temperar a sua censura.
Hammond resignou-se, não contara muito em encontrar o rapaz, de
qualquer modo, e não sabia onde havia de procurá-lo. Não sentia
desejo nenhum de ir a Crowfoot, mas, uma vez que estava tão
próximo, sentia-se na obrigação de visitar os parentes da mulher.
-0 velho major está a ficar maluco, dizem por aí -informou o
estalajadeiro. -Eu não sei. Não o veio há muito tempo.
-Não ouvi dizer nada, e a senhora Maxwell também não -disse
Hammond, expressando as suas dúvidas.
-Foi aquele rapaz que fez isso, foi por aquele Charles ter fugido.
Levou o pai à loucura.
Hammond compreendeu que devia ir lá para verificar. Quando
chegou a Crowfoot, notou que a plantação estava em melhor estado
do que da última vez que a vira. As cercas tinham sido reparadas,
os portões estavam de pé, as ervas daninhas tinham sido cortadas,
as cabanas caiadas. A casa estava toda fechada, embora saísse fumo
da chaminé e se notasse que havia lá gente. Finalmente surgiu uma
negra, vinda de qualquer lado, para tomar conta do cavalo, e ele
teve que bater à porta.
0 negro que, ao fim de algum tempo veio abrir a porta, disse-lhe:
-0 patrão Dick num tá, siô, patrão. Eu num sabe onde ele tá. Pode
intrá e sentá, siô. É o homem da miss Blanche, eu conhece o siô.


-Mas onde está o maior Woodford? Onde está o teu patrão? perguntou
Hammond.
-Senta, patrão, siô -sugeriu o criado, levando-o para a sala. -Eu diz
à sinhora que tu chegou.
Hammond ouviu-o na salinha, tentando fazer compreender a sua
presença a Beatriz, e ouviu-a exclamar "Oh!".
Quando entrou para o cumprimentar, parecia mais castanha do que
nunca, mais pálida e vazia de sangue, com os dentes mais
descoloridos, o mesmo vestido castanho, que parecia mais escuro.
Parecia mais velha, muitos anos mais velha. Avançava para ele com
a corneta no ouvido.
-Oh, primo Hammond! -saudou-o, caindo nos seus braços. -Tenho
pensado tanto em si, pensado e rezado para que viesse. Corno está a
Blanche? Como está ela? Como está a minha filhinha?
Hammond gritou para dentro da corneta, para tranquilizar, mas
não conseguiu ter a certeza de que a mulher o compreendera. .
-Onde está o major? Onde está o maior Woodford? -perguntou.
Saiu?
-Como? -disse ela, enrugando o rosto e estendendo a corneta.
Hammond repetiu a pergunta.
-0 pai? -perguntou ela. -Está mal. Senta-se e não diz nada. Venha
vê-lo.
Hammond seguiu Beatríz até à sala, onde o major estava sentado
numa grande cadeira, balouçando-se lentamente e sem qualquer
propósito, para trás e para diante, para trás e para diante. Olhou
para Hammond sem parecer vê-lo e sem o reconhecer.
Beatriz agarrou-lhe no ombro e sacudiu-o:
-É o Hammond, o primo Hammond Maxwe11. Não o conheces?
Hammond dificilmente teria reconhecido o sogro, tão mudado
estava. Engordara, mas a sua gordura era flácida, e o seu rosto
inchado, ao ponto de não se lhe verem as rugas. Estava inteiramente
despido de expressão. Toda a animação desaparecera. Não prestou
qualquer atenção a Hammond, parecia não o ter visto, sequer.


Hammond pegou na mão que o major tinha sobre o colo, apertou-a
e voltou a largá-la. 0 outro não fez qualquer pressão.
-0 pai está mal -voltou a explicar Beatriz.


-Quem dirige Crowfoot? -perguntou Hammond e repetiu: -está
muito melhor, muito melhor do que estava.
Quando Beatriz finalmente compreendeu a pergunta, respondeu:
-Pois é o Dick quem está a dirigir, o melhor que pode. Oh, não
desistiu de pregar. Eu não suportava isso. Continua a servir Deus,
mas teve que suspender. Não havia mais ninguém, uma vez que o
Charies se foi, que morreu, penso eu. Não temos tido notícias dele.
Eu farto-me de rezar, pedindo a Deus para o encontrar, porque
precisamos tanto dele.
Hammond esforçou-se por responder, mas não conseguiu fazer-se
entender. Beatriz continuava a falar, e o genro limitou-se a acenar
ou a abanar a cabeça, fazendo caretas para lhe dar a entender que
compreendia o que ela lhe dizia. 0 maior Woodford não disse uma
palavra e parecia nada ouvir.
Beatriz olhou para a janela e disse:
-Gostava de saber porque é que o Dick não vem. São horas de ele
chegar. Ele pode falar contigo; eu não, porque estou a ficar cada vez
mais surda. já reparaste?
Hammond acenou afirmativamente, e a mulher calou-se. Só meia
hora mais tarde se ouviram os passos de Dick no varandim e,
durante esse tempo, Beatriz e Hammond ficaram a olhar um para o
outro e o silencioso major para nenhum deles.
-Raios, raios! -disse Dick, saudando o cunhado. -Raios, já sabia que
tinha vindo. Vi o seu cavalo no estábulo. Estou muito contente por o
ver, muito mesmo! Não tenho ninguém com quem falar, com o pai a
perder o juízo e a mãe surda, não fica ninguém, excepto os negros.
-Não sabia do seu pai. Que tem ele? Dick abanou a cabeça.



-Não sei. Senta-se e fica calado. 0 juízo foi-se. Não levou a vida que
devia, penso eu; a beber e a fazer outras coisas. Não estava bem com
Jesus.
-Blanche vai ficar muito triste quando souber -disse Hammond
-É verdade, a Blanche? -perguntou Dick, como se se tivesse
acabado de lembrar da irmã. -A Blanche? Como vai ela?
-Está bem -garantiu o marido. -Isto é, o melhor possível, no estado
em que está.
-Em que estado?
-Bem, vai aumentar a família. Vai ter um filho. Hammond não
sabia como explicar a situação com maior delicadeza.
-Raios! Vai mesmo? Tem a certeza? Quando nasce?
-Não sei exactamente. Dentro de alguns meses. já está muito grande
disse Hammond, com orgulho.
-Então o casamento resultou bem. Não perdeu tempo a engravidála!
Raios!
Dick voltou-se para a mãe e perguntou:
-Ouviu isto, mãe? Ouviu o que o Ham está a dizer? Beatriz
levantou a corneta e Dick voltou a fazer a sua pergunta. Ela abanou
a cabeça e inclinou-se para ouvir.
-0 Hammond diz que a Blanche vai ter um bebé.
Dick repetiu a informação três vezes. Quando finalmente
compreendeu Beatriz ficou chocada e alarmada:
-Oh, oh, que homem horrível, fazer isso à minha filhinha! Não! Não!
Ela é nova de mais! Não deve fazer isso; não deve! -gritou a mãe,
deixando cair a corneta e contorcendo as mãos.
Dick apanhou a corneta.
-0 que é que queria? Estão casados, não estão? Para que haviam eles
de casar-se, então? -gritou ele, para a mulher que não conseguiu, ou
não quis, ouvi-lo.
0 maior Woodford não compreendeu nada do que se dizia e
continuou a fitar, com o olhar vazio, um canto da sala,
prosseguindo o seu balanço.



-E eu não posso ir lá, não posso estar com a minha pobre filha e
ajudá-la -disse Beatriz, abanando a cabeça e começando a chorar. -0
pai enlouqueceu e eu não posso deíxá-lo só apenas com o Dick.
Podia fazer qualquer coisa ao Dick. Oh, oh, oh! Tu és a causa de
todos os meus problemas. Quem me dera nunca ter visto, que a
prima Sophy nunca te tivesse tido!
Levantou-se e fugiu da sala.
-Raios! Não sei qual está mais maluco, ela ou o pai! -disse Dick,
abanando a cabeça. -0 Charlie e a Blanche tiveram sorte ou foram
suficientemente espertos para se irem embora e ficarem livres deles,
deixando-me aqui para me ralar e dirigir isto.
-A plantação tem melhor aspecto, muito melhor mesmo -disse
Hammond, felicitando o primo.
Sim, vendi alguns negros velhos. Tinha de o fazer não me importo
que estivessem hipotecados, vendí-os como se fossem meus. Tinha
que arranjar dinheiro para plantar. E pus os outros a trabalhar. 0
meu pai nunca os fez, trabalhar. Tenho três ou quatro fêmeas
grávidas e as porcas todos para parir. Vou fazer a plantação e a
colheita, também. Vou proceder como se isto fosse meu. Acho que,
com o Charlie morto, eu vou herdar isto brevemente, de qualquer
modo. Os velhos não podem viver muito mais tempo.
0 major Woodford parou de balançar-se.
-Eles querem matar-me, o Dick e a Beatriz -disse ele, num
murmúrio alto. -Estão sempre a querer envenenar-me, a querer
envenenar-me. Não podes fazer nada, Hammond?
Eram as primeiras palavras que dirigia a Hammond, a primeira vez
que reconhecia a sua presença.
-Eu acho que não querem, senhor. Eles não querem que morra disse
Hammond, tentando acalmar o velho.
-Está sempre a pensar naquilo. Não ligue àquela maluquice interveio
Dick.


-Eles vêem-se livres de mim e depois o Dick mata a mãe, para ficar
com Crowfoot para ele -insistiu o pai. -Fsquece-se da Blanche e de
ti, e do Charlie, se ele ainda estiver vivo.
-0 Charles está vivo. isto é, julgo eu. Hamniond sentia-se tentado a
contar que vira Charles em Natchez.
Pensou se, dadas as circunstâncias, não deveria violar a sua
promessa, mas decidiu conservar-se em silêncio.
-Não o culpo por o ter morto, insistiu o louco. -Como o fez, com
um tiro, ou com veneno? Onde o enterrou?
A acusação, apesar de reconhecer a sua irresponsabilidade, fez
Hammond sentir-se incomodado.
-Pelo menos fê-lo falar -disse Dick. -Não tem dito nada, não abre a
boca há um mês. Pai -disse, voltando-se para ele-o Hammond não
matou o Charlie. Está a imaginar coisas, como quando diz que a
mãe e eu o queremos envenenar.
0 major Woodford deitou a língua de fora ao filho, voltou a recolhêla
e fechou os lábios firmemente. Recomeçou a balançar-se e nada
mais disse.
-A ceia tá pronta, patrão, Díck, siô-veío anunciar o velho
Washington, que Hammond vira antes como cocheiro.
Ajudou o maior Woodford a erguer-se e guiou-o até à sala de jantar,
Os dois jovens seguiram-nos.
Beatriz já estava sentada à mesa e Wash puxou a cadeira em frente
dela para sentar o marido. Dick e Hammond sentaram-se entre eles,
um em frente do outro. Dick deu graças, longa e apaixonadamente,
em voz muito alta, em direcção à corneta de Beatriz, mas ela não
conseguiu ouvir as palavras.
Woodford ignorou a oração e, logo que se sentou, começou a servir-
se da comida, em grandes quantidades,
-Podias ter esperado pela oração de graças -protestou Beatriz especialmente
quando temos visitas. -Para Hammond acrescentou:
-Tem que dar desculpa ao pai, ele não sabe o que faz. Não consigo
que ele espere e se porte bem.


0 velho não lhe deu importância e fingiu não a ouvir. Antes de a
oração terminar, enchera o prato de comida e, agarrando-o com
ambas as mãos, apresentou-o a Wash e disse-lhe:
-Prova.
0 negro pegou no prato e, usando os dedos em vez do garfo, levou
um pedaço à boca. Quanto à galinha, não tinha outra alternativa
além de lhe dar uma dentada.
-0 pai pensa que queremos envenená-lo e dá a provar a comida ao
negro -disse Beatriz, explicando o estranho ritual. -Se não matar o
negro, pensa que está boa para ele comer.
Terminada a cela, Hammond pediu o seu cavalo. Beatriz, que nada
ouvira sobre o escravo fugitivo, ficou chocada e ofendida por aquela
pressa.
-Parece que não gostas de Crowfoot -queixou-se. -Nunca te
decides a ficar por cá.
-Oprimo Hammond tem que apanhar um negro fugitivo -gritou
Dick para dentro da corneta. -Por Deus, não compreende?
Beatriz olhou para um e para o outro, sem perceber.
-Parece que podia tão bem ficar cá esta noite como em Briarfield.
Não há luar e ele não pode ir.
-Vai atrás de um negro -gritou Dick outra vez; e depois, com voz
normal acrescentou: -Está a piorar. Não ouve nada, especialmente
quando não quer.
Hammond não tinha intenção de continuar a perseguir Ás, pois não
sabia onde procurá-lo. Frustrado, apenas desejava regressar a casa.
Quando chegou a Briarfield, a pequena cidade estava às escuras. No
estábulo gritou pelo negro para lhe guardar o cavalo e já tinha
desistido e decidido fechar Eclipse numa bala vazia, quando
finalmente o rapaz desceu a escada do sotão onde dormia.
Languidamente e meio adormecido, o escravo arrumou o cavalo,
prometendo alimentá-lo e dar-lhe água. Macidox que ouvira
Hammond chamar pelo escravo, saiu da cama e, de camisola


interior e longas ceroulas largas, apareceu à porta da taberna com
uma vela acesa, para conduzir o hóspede ao quarto.
-0 maior está completamente louco, não está? -comentou ele. -Eu
podia ter-lhe dito, mas não quis. Ninguém gosta de ouvir falar
assim da sua família, mesmo que seja só família da mulher. 0 velho
major nunca foi muito bom, penso eu, da maneira como ele vivia, a
fingir que era rico.


-Nunca notei nada antes de hoje. Claro, ele era um pouco estranho admitiu
Hammond.
-Espero que não pensasse que ele era rico, quando se casou com a
filha dele -inquiriu Maddox.
-Nunca me interessou isso -gabou-se Hammond. -Temos bastante,


o meu pai e eu.
-já calculava -disse Maddox, acenando afirmativamente. -Acho
melhor ir dormir.
Ficando só, Hammond esforçou-se por descalçar as botas, despiu-se
e meteu-se na cama. No dia seguinte chegaria a Fairfax facilmente e
outro dia depois estaria em casa. A jornada fora tão vazia de
acontecimentos quanto inútil.
Capitulo trigésimo nono

Hammond receava que a plantação tivesse sofrido a falta da sua
direcção, durante a longa ausência em Natchez, que o seu único dia
em casa não tinha resolvido, mas ficou um pouco desapontado ao
verificar que tinha feito pouca falta. Lucrécia Bórgia, além dos seus
deveres como cozinheira, tinha-se ocupado da supervisão da


plantação e nada nem ninguém lhe tinha escapado. Ocupara-se de
que os escravos fossem bem alimentados e cuidados, ocupara-se de
que eles se mantivessem suficientemente atarefados para não se
tornarem preguiçosos. Quando não apareciam tarefas, arranjava-as
-remendar roupas, limpar as cabanas e os celeiros, cortar madeira
desnecessária, cavar os canteiros do jardim. Até distribuía tarefas às
crianças, tais como arrancar ervas daninhas, varrer as áreas entre as
cabanas, atar feixes. Hammond ficou satisfeito com a ordem que
encontrou.

0 ouro que trouxera de Natchez ainda estava em casa e ele mandou
os seus rapazes desenterrarem o panelão que estava por baixo da
árvore, juntou ao tesouro o dinheiro de Natchez e voltou a enterrar

o panelão. À falta de coisas para fazer, aliviou as tarefas dos
escravos e deu-lhes maior liberdade. Todos excepto Medes, que ele
pensava ter afrouxado o seu treino e que pôs a trabalhar
arduamente, deitando árvores abaixo e cortando madeira para
cercas, e, após um dia de trabalho, forçou-o a correr atrás de Eclipse
durante meia hora, a transportar pesos, a dar saltos, em altura e em
comprimento, a dobrar-se a contorcer-se, para pôr os seus músculos
em funcionamento, a fim de os tornar flexíveis e resistentes. A força
de Medes era prodigiosa, mas ele era preguiçoso e não via motivos
para a exercer. Contudo, o patrão nunca se fartava de observar a sua
actividade. Lucy, untando e massageando, à noite, o seu corpo
exausto, com a banha de cobra, censurava-o pela sua letargia e
exortava-o a maiores esforços para satisfazer o patrão. Quanto mais
resmungava, com mais força o ia esfregando. Medes prestava pouca
atenção aos sermões dela, mas gostava da fricção e da massagem
que ela lhe dava e, quando ela acabava e lhe puxava a coberta para
cobrir a sua nudez, descontraía os músculos e adormecia.
Não era o arredondamento dos ventres das duas mulheres, que o
impediam de fornicar, mas o seu próprio cansaço. Aceita a


oportunidade de poder estender-se na cama sozinho, afastado. E
enquanto as mulheres dormiam juntas, com Bal, no chão, sem lhe
disputar o direito. Quando, de vez em quando, permitia a Pérola
Grande que se lhe juntasse, pelo que a rapariga estava sempre
ansiosa. afastava-a depois de satisfeito o seu apetite e estendia-se
por forma a cobrir todo o colchão e a dormir sozinho.

Medes não só endurecia como ia crescendo, aumentava em altura e
em perímetro. A,, suas pernas pareciam arbustos de chicória, o,,
seus braços pitons, o seu ventre uma bigorna. Comia imenso e
dormia sempre que podia. 0 seu proprietário não previa qualquer
hipótese de lhe arranjar um adversário, mas continuava a treiná-lo
para exibição e para o ter sempre pronto, para o caso de aparecer
um adversário à sua altura. Não atendendo ao aviso de Wilson de
que os híbridos de mandingo eram seres traiçoeiros, Hammond deu
a Medes algumas das suas fêmeas e já havia três ou quatro, além de
Lucy e Pérola Grande, grávidas dele. Lucy não se importava de que

o rapaz fosse assim usado, mas Pérola Grande sentia um ciúme
feroz, embora impotente, e atribuía as culpas a Medes e não ao
patrão, que era o verdadeiro culpado. 0 jovem estava sempre pronto
para tais funções, mas nunca ansioso, embora as mulheres se
considerassem favorecidas e se gabassem às vizinhas. Medes sabia
que era propriedade do patrão, para ser usado como lhe apetecesse;
como se fosse um garanhão, Medes sentia-se grato não só pela
fêmea que lhe fora dada, mas também pela curta pausa no seu
treino que sabia se lhe seguiria. Hammond não gostava desses
intervalos, nem da perda das suas forças, que tentava restaurar,
obrigando o negro a engolir mais leite e ovos.
Hammond não se preocupava assim tanto com a sua própria
virilidade, porque todas as noites partilhava o seu leito com Ellen,
que recebia as suas carícias como se cada uma delas fosse a última
da sua vida. Ela não se apercebia das obrigações dele para com a


mulher e Hammond acreditava que, aceitando uma substituta,
estava a aliviar Blanche dos seus desagradáveis deveres para com
ele. Para Ellen, o patrão era o patrão, a quem teria obedecido,
mesmo que não o amasse tão absolutamente. Mal podia acreditar na
sua boa sorte por ter sido escolhido para sua amante e receava o dia,
que já previa, em que seria substituída por outra.

Lucrécia Bórgia, tão encantada como a rapariga com os brincos,
tinha-lhe furado os lóbulos das orelhas como urna agulha, para ela
poder enfiar as jóias e, quando Hammond regressou de Briarfield,
encontrou Ellen com palhinhas enfiadas nas orelhas, para evitar que
os orifícios se fechassem, enquanto saravam. Três dias depois,
incapaz de esperar mais tempo, Ellen tirou as palhinhas e enfiou os
brincos, que davam maior realce à sua beleza escura. Talvez fosse a
sua expressão radiante com as pedras vermelhas e com a aprovação
de Hammond que aumentasse o seu encanto, mas ela pensava que
toda a beleza provinha das jóias. A prenda era uma garantia de que
continuava a possuir o afecto do seu dono, e ela puxava o cabelo
para trás e agitava a cabeça, de modo que todos o notassem.

As outras escravas admiraram as jóias de Ellen sem inveja; afinal ela
era a rapariga do patrão e tinha direito a um ornamento que
marcasse a sua posição. Só Meg não pensava assim. Durante alguns
dias fingiu não ver os brincos, mas eles feriam-no.
-Patrão, siô, por favô, siô -disse a Hammond certa noite, ao despilo,
incapaz de se conservar calado por mais tempo: -Quando chegá
aquela altura, a altura do Natal, vai dar pra eu umas coisa prás
minhas orelha, como a miss Ellen tem?
Era uma sugestão, pretendia apenas lembrá-lo.
Hammond foi paciente com ele.
-Tu és um rapaz. Os machos negros não usam brincos. Só as
fêmeas. Além disso, era preciso furar as tuas orelhas e isso dói-
explicou, fugindo ao assunto.


-Num dói mais a mim qu'àmiss Ellen-amuou o rapaz. -Eu queria
tê. Eu queria sê como ela e dormir contigo na cama e dá prazê a ti,
cumo ela faz. Deixa eu, patrão, siô, qualqué dia?
A paciência de Hammond esgotou-se. Subestimando a ignorância
de Meg, ofendeu-se com a proposta e esbofeteou três vezes,
vivamente, as faces cor de bronze do rapaz. Este desatou a chorar,
mais pela recusa do que pela dor, e caiu de joelhos aos pés do
patrão.
-Não quero um negro malcheiroso na minha cama. Masque julgas
tu?
-disse Hammond, com indignação. -Se queres ser o meu negro, sê


o meu negro. Se não, mando-te dormir no celeiro com os outros,
engordo-te e vendo-te. És um negro para o algodão, não és uma
fêmea. Apalpa entre as pernas. Da próxima vez que te oiça dizer
que queres ser fêmea, penduro-te pelos pés, ouviste?
Apiedada, Ellen inclinou-se e beijou Meg.
-Se ele furar as orelhas, eu deixo-c, usar as minhas jóias algumas
vezes, quando o patrão não estiver em casa para ver -propôs ela. _
Os brincos são teus -disse Hammond -e nenhum macho os vai
usar. E é tudo. Ele não é fêmea, não precisa deles.
Meg sabia que Ellen o protegeria do castigo prometido, mas
também sabia que não teria brincos nem o lugar que cobiçava no
leito do patrão, e sentia-se desapontado, rejeitado, ao estender-se ao
lado da porta de Hammond.
Blanche, indo um dia à cozinha para preprar um toddy sem
Maxwell saber, viu os brincos de Ellen e compreendeu que eles
eram iguais aos seus. Sentiu-se tentada a rasgar as orelhas da
rapariga, mas Hammond estava em casa e ela sabia a ira que isso
despertaria no marido. Controlou-se. Em vez disso, subiu ao quarto
e retirou os brincos das suas próprias orelhas mas não conseguiu
decidir-se a atirar as belas jóias brilhantes pela janela fora, corno
tencionara fazer. Pô-las a um canto da gaveta da cómoda. Na
verdade era muito mais bonita sem eles do que Ellen com os seus. A

sua ausência não representava uma perda para ela. Quebrou-se-lhe

o coração ao tirá-los das orelhas mas já o sentira quebrar-se antes, ao
ver Ellen com uns iguais.
0 dia estava no fim quando Hammond regressou do trabalho, mas,
mal entrou na sala, notou que os brincos tinham desaparecido das
orelhas da mulher.
-Os brincos magoavam-te? -perguntou.
-Não! -Blanche parecia morder a palavra.
-Porque não os usas? -perguntou ele, ingenuamente.
-Aquela puta, aquela negra suja que tu tens! Trouxeste-lhe brincos
iguais aos meus! julgas que eu os vou usar? Não!
Blanche começou a chorar, furiosa. Hammond compreendeu então
como era grave a ofensa de dar presentes iguais à sua mulher e à
sua concubina.
-Então, então -disse ele. -Não tem importância.
-A hora dela está a chegar-consolou o pai. -Ela anda estranha.
Todas as brancas são assim, nesta altura.
Detestava desentendimentos e queria impedir aquele.
-Mais valia gravares as tuas iniciais a fogo na cara dela, e na minha.
Marca-nos, para toda a gente saber que te pertencemos. Ninguém
pode tocar numa mulher que use brincos vermelhos. É mulher do
Hammond MaxwelI, branca ou preta! -gritou Blanche. -Eu não sou
a tua rameira, para ser marcada!
Levantou-se, agitando os braços, e dirigiu-se para o hall. Hammond
agarrou-a por um ombro e voltou a fazê-la sentar-se.
-Tiro-te o anel de diamantes, se não te portas bem. E depois, o que
sucede? 0 rapaz que trazes na barriga nasce bastardo, se eu to tirar.
Queres que ele nasça bastardo e toda a gente o saiba?
-Não! Não! Não! -gritou Blanche.
-Sabes que o nosso casamento não tem valor. 0 Dick não é um
reverendo, não é um reverendo como deve ser, e só um pregador
para negros. Não tem o direito de casar brancos. Basta-me dizer

ameaçou Hammond -que não estamos casados e mandar-te para o
maluco do teu pai, para teres lá o teu bastardo.
A rapariga acreditou naquilo em que Hammond também
acreditava, até certo ponto. Não respondeu, Limitou-se a gritar
histericamente.
-Então, filho, está tudo bem -disse MaxwelI, tentando acalmar a
tempestade. -Estás casado, sabes que estás casado como deve ser
com a Blanche. Não devias assustá-la, nesta altura. É capaz de
perder a criança aqui mesmo, se a assustas.
-Não me interessa! A Ellen é minha e eu conservo-a, digas tu o que
disseres -declarou Hammond, em tom amimado.
-Fica com ela! Fica com essa puta! Não me interessa que a tenhas,
mas não tentes marcar-nos com os teus brincos vermelhos. Não
podes casar-te com ela. Ela não é branca. É só a tua rameira. Eu sou
tua mulher, tua mulher! -gritou Blanche, erguendo-se de novo e
dirigíndo-se para a porta.
Hammond deixou-a ir e ouviu-a subir a escada.
0 pai estava mais perturbado com aquela cena do que o filho e a
nora. Custava-lhe sempre ver que Hammond procedia mal e não
podia negar que ele agira com brutalidade.
-Vai atrás dela e faz-lhe amor, filho -pediu ele. -Diz-lhe que não é
assim. Diz-lhe que estão bem casados. Pede-lhe desculpa.
-Quero que ela vá para o inferno! -disse Hammond, irritado. -A
Ellen é minha, é minha, e eu quero ficar com ela, ouviu? Fico com
ela!
-Claro, claro que ficas com a Ellen. Não acho que ela tenha alguma
coisa de mal -disse o pai, para tranquilizar o filho, fingindo rir. Mas
a Blanche é branca. E a tua mulher. Não tens o direito de a
aborrecer, especialmente agora, no estado dela. Ninguém te impede
de teres a tua fêmea.
-Acho que não devia ter-lhe trazido brincos iguais aos da Blanche,
mas ficam-lhe tão bem! E nunca pensei nisto -admitiu.


Blanche não desceu para a ceia e nenhum dos Maxwell sentia
vontade de comer. 0 mais velho bebeu os seus toddies quentes e
fortes, quando a refeição terminou. 0 mais jovem absteve-se de
beber e deixou-se ficar sentado, contemplando silenciosamente a luz
bruxuleante da vela, até chegar a altura de se ir deitar.
No dia seguinte a tempestade acalmara, Blanche desceu para o
pequeno-almoço corno se nada tivesse sucedido, tão afável como
habitualmente. Hammond não pôs objecções ao seu toddy após o
pequeno-almoço e, depois de ele sair, ela foi bebendo novos toddies,
sem que Maxwell tentasse impedi-Ia. Conrudo, não trouxera os seus
brincos, o que Hammond notou sem f azer comentários. Também
notara e admirara já os de Ellen, nas suas orelhas.

Capitulo quadragésimo

0 Natal não era ignorado em Falconhurst. Os três dias de ociosidade
concedidos aos escravos, excepto aos da casa não eram novidade,
antes considerados como um direito e não como uma ausência de
tarefas. 0 gado era alimentado e cuidado, mas, tirando isso,
ninguém trabalhava -nem sequer nos jardins. Nessa altura do ano,
Hammond procurava arranjar trabalho suficiente para os rapazes,
para os livrar do tédio e torná-los diligentes, mas mesmo assim,
fazia uma pausa no Natal. Até Medes teve licença para interromper

o seu treino, o que preocupou bastante o patrão, que receava que ele
ficasse flácido. Aos negros de casa não era tirado nenhuma das suas
tarefas que, de qualquer modo, não eram nada pesadas -com
excepção das de Lucrécia Bórgia, mas ela teria ficado desolada se
fosse privada da supervisão de tudo e todos, incluindo os patrões.

Embora entregues às suas tarefas habituais, a disciplina dentro de
casa afrouxava e havia licença para actos e conversas que, noutras
alturas, não eram tolerados. Maxwell partilhava os seus toddies
com Meg, até o rapaz tropeçar, meio embriagado.

Os presentes eram poucos. Roupas e cobertores que, de resto,
teriam sido necessários, foram entregues aos escravos, muitos deles
simplesmente remendados e lavados. Aos adolescentes mais
pequenos distribuíam-se as roupas de jovens a quem já não
serviam. Cada criança recebeu um chupa-Chupa. Algumas
corneram-no imediatamente e lamentaram depois que tivesse
desaparecido. Outras, mais prudentes, chuparam-no
cuidadosamente, tiraram-no da boca e guardaram o resto, levando
vários dias a consumi-lo. Algumas guardaram-no sem o provar,
para poderem apreciar a sua beleza. Blanche deu a Tense umas fitas
amarrotadas para enfeitar o cabelo, e Tense ficou encantada.
Todos os rapazes já demasiado crescidos para o chupa-chupa foram
reunidos em frente da casa e cada um deles recebeu um toddy
quente. Maxwell saiu para o varandim para beber com eles. Alguns
deles apreciaram e saborearam a poção, outros fingiram apreciá-la,
pela importância que lhes dava bebê-la corri o patrão.
-An, an, num é mêrno bom? -perguntava um rapaz claro,
esforçando-se por não deixar transparecer que detestava a bebida, a
um outro, um pouco mais escuro, que estava ao seu lado.
-Isso não é nada -gabou-se Alph, sem copo na mão. -Eu tem disso
quando quê, mêmo do copo do patrão, todos os dia, mêrno do copo
dele.
Aquela meia verdade criou o espanto, se não mesmo a inveja, que
ele desejava.
-Tem mêmo? -disse o rapaz claro, revirando os olhos.
-Pró meu reumatismo, como o patrão. Ele passou ele pra mim gabou-
se o garoto.


A saudação de "Prenda de Natal, Prenda de Natal " era trocada
entre os negros sempre que se cruzavam, por toda a plantação,
durante aqueles três dias. Era tudo o que tinham para trocar e
nenhum deles sabia exactamente o que aquilo significava. Implicava
boa vontade, e é esse o significado do Natal. Apesar da sua pobreza,
a época era jocosa e alegre.
-Assim é que devia ser sempre -declarou Maxwe11. -Os garotos
crescem mais nestes três dias do que em três semanas de trabalho.
Até parecem crescer, quando se riem.
-Crescem, penso que sim -concordou Hammond. -Mas o açúcar dos
doces dá-lhes cabo dos dentes e a falta de trabalho torna-os
preguiçosos.
-Porque é que eles têm de trabalhar? Para que serve isso? Que
vantagens te traz? Deixa-os crescer.
0 velho não apreciava a diligência. Que trabalhasse quem precisava;

o incremento de que ele dependia não era o ganho. 0 pai não se
referia, evidentemente, às horas que Hammond dedicava ao treino
de Medes, porque isso era desporto, mas sim ao outro trabalho, à
sua ronda diária à plantação para pôr os negros a trabalhar, e a que
o filho dedicava tanto tempo que, na opinião do pai, seria melhor
dedicado a sentar-se ao seu lado, a sorver toddies. 0 seu conceito de
economia era alimentar os negros e encorajá-los a reproduzirem-se e
a crescerem. Amava os seus escravos colectivamente, como se
fossem animais de estimação, e apreciava a sua homenagem, a sua
confiança e a sua dependência dele. Tinha uma ansiedade constante
em relação à hipótese de os seus vassalos comerem pouco ou
trabalharem de mais.
Em fins de janeiro, Pérola Grande teve o seu filho. Estava deitada no
chão, ao lado da mãe e, acordando durante a noite, sacudiu-a e
queixou-se:
-Mãe Lucy, eu tem uma dô. Lucy ergueu-se e perguntou:
-Onde é que tá a doê?

-No meu barriga. Dói muito -respondeu a rapariga, massageando o
ventre.
-Tá a chegá; teu bebé tá a chegá. Deixe doê. Num pode fazê nada té

o patrão acordá. Ele dá qualqué coisa pra ti -explicou a mãe,
erguendo-se e espevitando o fogo. -Tu tem frio?
-Não. Eu tá quente. Não pode aguentá mais. Tá a doê, tá a doê
outra vez! A dô vem e depois pára e vem outra vez -queixou-se a
rapariga.
-Ele tá a lutá pra saí. Tá farto da tua barriga -disse Lucy. -Lembrome
quando tu nasceu. -Ajoelhou-se, levantou o vestido da Pérola
Grande, e, com as mãos hábeis, tentou forçar a criança a descer. -Tu
tem que tentá, quando eu aperta. Faz ele saí -advertiu ela.
Lucy não sabia quantas horas teria a rapariga de sofrer. Ela fazia
tudo o que sabia fazer, mas Pérola Grande não estava a cooperar
com ela. De súbito, Pérola Grande teve uma grande convulsão e a
cabeça redonda da criança apareceu entre as suas pernas.
-Tá a saí, tá a saí. Agora eu já pode agarrá ele. Faz mais força! Faz
ele saí? -disse Lucy, aliviada, por o pior já ter passado. Agarrou a
cabeça do bebé e foi puxando, enquanto os ombros da criança
deslizavam gradualmente para fora, seguidos pelo tronco e pelas
pernas. Pérola Grande descontraiu-se, cansada mas grata por se
livrar das dores, enquanto Lucy rapidamente rompia a membrana e
libertava o bebé.
-É um machinho -anunciou com orgulho. -0 patrão vai ficá
contente. Ele quê um macho. Valem mais que as fêmea. Inclinou-se
e cortou o cordão umbilical com os dentes. Erguendo a criança pelos
pés, deu-lhe umas fortes palmadas, até ela aspirar profundamente o
ar e começar a chorar.
Medes que dormia na cama tão ferrado no sono corno de costume,
foi acordado pelo seu grito agudo. Abriu os olhos e perguntou:
-Que é isso? Que é isso? Que é isso? Que barulho é este? Que
aconteceu?

-Já saiu –disse Lucy, levando o bebé até à cama-, vê, é um macho,
um macho grande, e vai vivê.
A criança agitou-se nos seus braços e continuou a chorar, em
protesto. Indiferente, Medes perguntou, aleitando-se na cama:
Um macho? Saiu da Pérola Grande? É de Pérola Grande e teu. Põe
ele aí. Tu é o pai dele -insistiu Lucy, corri entusiasmo.
-Faz com que ele pare de berrar. Corno queres que eu durma, se ele
berra assim?
Medes voltou-se para o outro lado. Quando Lucrécia Bórgia se
levantou, encontrou Baltasar à porta, mandado por Lucy, para a
avisar.
-Que quê tu que eu faz? -disse Lucrécia Bórgia, fingindo
indiferença.
-A Pérola Grande ta mal ou que? 0 bebé ta vivo?
-Ta vivo, ta. Pérola Grande teve ele; já num ta doente -explicou
Baltasar. -Mãe Lucy diz pra tu dizê ao patrão, sinhora Lucrécia
Bórgía.
-Quê qu'eu vai aborrecê o patrão cada vez qu'uma fêmea tem um
filho? -disse Lucrécia Bórgia com desprezo. -Vai t'imbora daqui!
Baltasar, frustrado, retirou-se. Tinha feito o seu recado. Enquanto os
patrões tomavam o pequeno-almoço, Lucrécia Bórgia, com um ar
casual, com o filho nos braços, entrou na casa de jantar,
ostensivamente para perguntar se o café estava quente.
-0 Mem é tão preguiçoso, que nuni se pode confia nele pra trazê o
café quente -disse ela, para começar.
Como se se recordasse de súbito, contou as notícias de Baltasar.
-Que dizes tu? -perguntou Hammond, cheio de satisfação,
empurrando a cadeira para trás. -E o que é?
-Eu tava a dizê, siô, eu num preguntou se era fêmea ou macho disse
Lucrécia Bórgia, encolhendo os ombros.
-Come o pequeno-almoço -disse o pai. -Dir-se-ia que é teu, que és
tu o pai dele.



Hammond ignorou o conselho, saiu de casa a toda a pressa e
dirigiu-se, a coxear, para as cabanas.
-já chegou, Pérola Grande já teve ele, siô, patrão -disse Lucy, que o
aguardava à porta. Pérola Grande, ainda estendida no chão, sentou-
se, com o bebé nu nos braços, agarrado ao seu enorme seio.
-Vai dá qualqué coisa pra eu, patrão, siô, num vai, patrão, siô? perguntou
ela.
-Penso que isso vale uni dólar e um vestido novo, se ele saiu
perfeito. É perfeito? Falta-lhe alguma coisa?
Hammond tinha dúvidas, devido ao acasalamento entre irmãos.
Acocorou-se junto da esteira e pegou na criança. Apalpou-a toda.
Nada havia de anormal nela, com excepção do seu tamanho e vigor.
Com as suas pernas arqueadas, dava esticões e pontapés, como se
tentasse escapar, e depois irrompeu num choro sem lágrimas, rouco
e enérgico.
-E mesmo um machinho grande -foi o veredicto do patrão. -Cria-o
bem, Pérola Grande. 0 leite está a vir bem? -perguntou, solícito.
-Num tá a vir muito-disse Lucy-, mas vai vir, basta vê o tamanho
das mama dela.
-Há algum problema? Sentes-te doente? -perguntou o patrão. Lucy
fungou, com orgulho.
-Num siô, num deu problema ninhum -disse ela. -Saiu pra fora
como um caroço de pêssego.
Pérola Grande, sentindo-se privada da compaixão que desejava,
contradisse a mãe:
-Doeu, doeu muito. Lucy fez uma careta e abanou a cabeça.
-Num foi nada-disse ela -nada como quando eu teve ela em Coign.
Hammond colocou a mão sobre a testa de Pérola Grande e não
detectou febre. Deu-lhe uma palmadinha no ombro e louvou-a a ela
e à criança.
Quando voltou para casa, para acabar o pequeno-almoço, o seu pai
]?a tinha acabado de comer e estava na sala. Meg trouxe-lhe um
toddy.



-É esplêndido, um macho -disse ele ao velho. -Não houve
problema nenhum, é como se não fossem de família. Acha que tem
forças suficientes para ir vê-lo?
-já vi centenas deles -disse MaxwelI, agitando a mão com um gesto
de desinteresse. -Ao princípio não passam de vermes.
-Este é um autêntico macaco, e tem quase tamanho suficiente para

o ser. Parece mesmo o Medes, é tal e qual ele.
-Pois então, o que é que esperavas? 0 Medes é que o fez, não foi?
Hammond tentou acabar o pequeno-almoço, mas não conseguia
comer. A falta de interesse do pai irritava-o. Se ele não fosse lá ver o
rapaz, trá-lo-ia a casa, para lho mostrar.
Voltando à cabana de Lucy, encontrou Pérola Grande sentada num
banquinho, com o bebé nos braços, observando Lucy que
massageava Medes, estendido na cama.
-Devias ter ficado deitada mais uni tempo. Não há necessidade de
te levantares já -avisou Hammond.
-Ela tá bem, patrão, siô -garantiu Lucy. -Té podia ir apanhá
algodão, se houvesse algum, agora mêrno.
-Vê que grande rapaz eu lhe fiz, patrão, siô? -perguntou Medes,
que não se encontrava na cabana, quando da primeira visita do
patrão.
-Não fizeste nada de especial. Qualquer outro dos machos fazia o
mesmo -disse o patrão, para que ele não se vangloriasse tanto. -já
são horas de estares a cortar lenha. Porque é que ainda não foste?
-Eu vou, logo que a Lucy acabe de me esfregar, patrão, siô.
Hammond voltou-se para Pérola e tirou-lhe a criança dos braços.
-Espera aqui -disse ele -quero mostrá-lo. Saiu da cabana, com o
bebé cuidadosamente apertado contra o peito.
-Que vaio patrão fazê? -perguntou Pérola Grande, demasiado
desorientada para chorar.
-Tá calada. Ele já o traz -disse a mãe, fingindo despreocupação. -Tu
nem sabe quanto vale aquela criança.

-Mas ele vai vendê ele? Num pode vendê ele, pois não? -perguntou
Pérola Grande, muito excitada.
-Inda num vale nada. Tens que criá ele antes de vendê-explicou
Lucy.
-Nessa altura, tu já tem outros; num sente a falta.
-E se ele quiser vendê-lo? É dele, não é? -disse Medes, rindo. Fazemos
outro.
Hammond atravessou a clareira a coxear, com a criança apertada
contra ele. Blanche estava na sala, sentada numa cadeira baixa, em
frente do sogro. Inclinou-se perante ela, para lhe mostrar a sua
preciosa carga.


-Estão sempre a tê-los -disse a rapariga, fazendo uma careta. -São
umas coisas pretas e feias.
Hammond voltou-se com o bebé para o pai, que mostrou maior
interesse.
-E mesmo perfeito e saudável -disse o velho, inclinando-se para a
frente. -É grande, grande como um presunto. E é um mandingo,
um mandingo puro. Ora, como vês, não faz mal nenhum acasalar
irmãos.
-Tome-lhe o peso -sugeriu Hammond. -É carne sólida.
0 velho estendeu o braço e agarrou o bebé por um tornozelo,
levantando-o pela perna e agitando-o. A criança começou a chorar,
com medo instintivo de cair, mas o seu examinador não se
preocupou.
-Parece uma minhoca. Pesa bem umas dezoito ou vinte libras exagerou,
cheio de orgulho.
Tendo feito o cálculo, deixou cair a criança no colo e afagou-a. 0
bebé parou logo de chorar. 0 homem olhou-o, com o seu olhar
desfocado, e explorou-lhe as partes, para se assegurar de que estava
perfeito e completo.



-Aquele Medes! -foi o seu veredicto. -É o melhor garanhão que
temos tido. Acho que devemos usá-lo em todas as fêmeas, a partir
de agora.
-Lembre-se do que disse o senhor Wilson. Nunca se deve cruzar
um mandingo com outros negros. Nascem maus.
-Não! -disse Maxwell. -Qualquer negro é mau senão for vigiado. Eu
quero-os vigorosos. Vendêmo-los antes de se tornarem perigosos e
difíceis de manejar.
-Como lhe vamos chamar? -perguntou Hammond, voltando à
criança.
-Há tempo, há tempo -disse o pai. -Que tal está o velho senhor
Wilson? -perguntou.
-Que tal está? -disse Hammond, sem compreender. -Penso que já
está morto, nesta altura.
-Quero eu dizer, que pensas de chamar ao machinho "Velho
Senhor Wilson>,? É um nome tão bom como qualquer outro. Ele
gostaria, mesmo que esteja morto. 0 velho senhor Wilson gostaria.
-Acho que serve muito bem, como diz -concordou Hammond. -De
qualquer modo, não vamos vendê-lo.
-Vendê-lo? -indignou-se o velho. -Não senhor, não vamos. Vai
viver e morrer aqui mesmo em Falconhurst. Não nascem destes
todos os dias.
Maxwell deixara de aborrecer o bebé com as suas investigações e ele
adormecera no seu colo.
Ergueu-o na direcção de Hammond e disse-lhe:
-Vai devolvê-lo. Dá-o outra vez à Pérola Grande. Deve precisar de
mamar e temos que o fazer crescer. -Quando Hammond já pegara
no pequeno ser e se dirigia para a porta, o velho avisou-o: -Dá à
Pérola Grande um dólar e diz-lhe que o achei formidável. Faz-lhe
bastantes louvores e diz-lhe que queres que ela te arranje outro.
-Isso é com o Medes -disse Hammond, rindo, enquanto fechava a
porta atrás de si.


0 bebé de Lucy seguiu-se ao da filha, mais cedo do que estava
previsto. Houve certa ansiedade por parte dos patrões visto que
nasceu prematuro, embora fosse uma fêmea totalmente perfeita e
bem desenvolvida. Na realidade, excepto em relação ao Velho
Senhor Wilson, a criança era enorme, pesando aproximadamente
doze libras, e nasceu cheia de energia e capaz de subsistir.
Lucy tinha sido assaltada por um mal-estar interno ao fim da tarde
e não conseguiu cear. Não sendo noviça em partos, compreendera
que tinha chegado a sua hora. À meia-noite, as suas dores tinham-se
definido e localizado, mas ela aguentou-as com silenciosa fortaleza.
Aumentaram então de frequência e , finalmente, ela chamou
Baltasar, deitado no chão ao seu lado, e abanou-o, para o acordar.
Relutante e meio adormecido, o rapaz levantou-se e, seguindo as
instruções de Lucy, ajudou-a a ter o bebé. Terminada a tarefa,
Baltasar voltou a estender-se e retomou o sono, sem se preocupar
com a sorte da mãe ou do bebé.
Lucy deixou-se ficar estendida, livre das dores mas exausta,
apertando a criança contra o peito que enchia. Medes na cama e
Pérola Grande na esteira, não tinham acordado ou, se ouviram
qualquer ruído, não lhe prestaram atenção. Lucy, orgulhosa da sua
filha, agarrou-se a ele e desejou que chegasse a luz do dia para a
poder ver bem. Reconheceu que não era tão grande como o filho de
Pérola Grande, mas, pelo seu choro vigoroso que não conseguia
calar, e pelos seus movimentos vigorosos contra o seu corpo,
compreendeu que era forte e que sobreviveria. Lucy teria preferido
que fosse um rapaz, não por sua causa, não porque gostasse menos
de uma rapariga, mas porque sabia que um rapaz teria mais valor,
especialmente sendo tão preta. Uma rapariga muito escura tinha
pouco valor e Lucy receava que o patrão a censurasse por a ter tido.

Contudo, a sua previsão saiu errada; porque, embora o nascimento
do Velho Senhor Wilson tivesse levado Hammond ao auge da


admiração, o jovem patrão acolheu a filha de Lucy com entusiasmo
e louvores para a mãe.
Não levou a criança a casa, para o pai a ver, mas não deixou de lhe
descrever a sua força e o seu vigor.
-É uma benção, uma sorte inesperada -declarou Maxwell, quando

o filho lhe revelou o sexo da criança. -Assim não precisamos de nos
preocupar mais por os nossos mandingos acabarem. Vamos criar
essa fêmea para a dar ao macho da Pérola Grande, logo que cresçam
o suficiente. Assim se mantem a raça.
Hammond abanou a cabeça, duvidoso dos proJectos a tão longo
prazo que o pai fazia.
-Não deixes de o fazer, se eu lá cá não estiver para me ocupar disso
-avisou o velho, e Hammond, que nunca imaginara antes que o pai
pudesse morrer, prometeu-lhe.
Capitulo quadragésimo primeiro

Blanche, que ouvira contar com uma indiferença que atingia o
desdém, o nascimento dos negros, sentia-se aterrorizada à ideia do
seu próprio parto, que sabia estar perto. Sabia também que era algo
muito doloroso, para uma branca, e recordava-se duma certa
senhora Jackson, amiga da sua mãe, que morrera de parto. Pôs-se a
chorar, cheia de autocompaixão, sentada em frente de MaxwelI,
com o seu toddy na mão.
-Acha que eu vou morrer? -perguntou ela. -Não quero morrer
ainda. Tenho medo.
Maxwell tranquilizou-a o melhor que podia.
-Não vais morrer -disse-lhe. -Nem vais ter problema nenhum.
Claro -preveniu -há quem os tenha.
-Se eu morrer, o Hammond há-de ter remorsos, remorsos de me
tratar assim -disse a rapariga, a chorar. -Há -de ter remorsos.



-0 Hammond é muito bom para ti. Ele é bom para toda a gente-
disse o pai, defendendo o filho. -Claro, anda muito ocupado, por
toda a parte, a dirigir e a supervisar tudo.
-Mas arranja tempo para aquela Ellen. Nunca a deixa. Blanche
limpou as lágrimas que corriam dos seus olhos avermelhados, com
as costas da mão.
-Não compreendes -explicou Maxwe11. -0 Hammond não se
interessa nada pela Ellen. É apenas uma negra. Ele só está a poupar-
te. Tu sabes disso. A mãe dele, a Sophy, a senhora MaxwelI, ficava
sempre grata quando eu andava com as negras e a deixava em paz.
-Sim. Mas o Hammond só anda com a Ellen. Se ele andasse com as
outras todas, com a Lucy e a Lucrécia Bórgia, e as outras todas, eu
não me importava nada. -Blanche tinha dificuldade em explicar a
sua ideia. -Mas não, é só a Ellen, sempre a Ellen, todas as noites a
Ellen. Nem sequer olha para as outras mais do que para mim. Está
apaixonado pela Ellen, essa é que é a verdade.
-A Ellen é nova e jeitosa, e ele sabe que é limpa. Vai ser diferente,
depois de tu teres o rapaz.
-Não me importo de morrer, não me importo nada. Era bem feito
para ele -disse Blanche, amuada.
As roupas que Hammond usara em pequeno foram trazidas, para o
seu filho as usar. Lucrécia Bórgia sabia bem onde estavam
guardadas, numa gaveta superior de um guarda-fatos de um quarto
extra. Encontrou-as -feitas de um tecido um pouco áspero,
amarelecido pelos anos, empoeiradas, algumas delas
irremediavelmente manchadas. Estava tudo junto, os vestidos
compridos e os chambres com o dobro do comprimento da criança,
os mais curtos para uso posterior, e os bibes de algodão azul,
enfeitados com estrelas brancas, que Hammond usara aos quatro
anos. Havia também cobertas, faixas e fraldas macias, e tudo o que
pudesse ser necessário. Lucrécia Bórgia distribuiu pelas mulheres a
tarefa de lavar as roupas para o bebé e de as secar ao sol, sobre a
relva, para fazer desaparecer tanto quanto possível o tom


amarelado que o tempo lhes emprestara. Ela própria passou a ferro
os vestidinhos enfeitados corri fitas e folhos de renda feita à mão.
Quantas vezes tinha já passado a ferro aquelas mesmas roupinhas!
Riu-se, ao recordar que Hammond usara aquele vestido ao dar os
primeiros passos, o outro quando tivera um ataque de tosse que os
fizera recear pela sua vida, e outro ainda quando balbuciara o seu
nome pela primeira vez. Que tirano ele fora, mas que doce tinha
sido a sua tirania, peremptória, generosa, mesmo justa.

Quando todas as roupas se encontravam já limpas, Lucrécia Bórgia
levou tudo para a sala e empilhou-as junto da cadeira de Blanche.
Esta separou as maiores das mais pequenas. Serviriam para o seu
filho, embora tivesse desejado roupas novas.

Maxwell observou-a em silêncio. Venerava aquelas roupinhas, por
causa daquele que as usara. Eram insubstituíveis, não podiam ser
duplicadas. Não podia compreender que Blanche desejasse roupas
novas. A certa altura, enquanto ela as separava, estendeu a mão e
pegou num vestido de que bem se lembrava e, olhando para ele,
voltou a ver Sophia com o bebé nos braços. Antes de o entregar à
nora, derramara inadvertidamente toddy sobre ele e enxugara na
sua bainha os olhos cheios de lágrimas. Nada disse, porém. Blanche
não compreenderia. Ficou satisfeito por Hammond lá não estar,
para ver a sua fraqueza.

Na quinta-feira seguinte Blanche teve a sua criança. Eram dez horas
no caprichoso relógio da lareira quando as dores a assaltaram. A
princípio não passavam de um vago desconforto que a fez sair da
sala e ir para a cama. Maxwell bebeu o seu toddy quente, sem se
incomodar, e mandou Meg preparar outro. Estava um dia
enevoado, ameaçando chuva. A sua primeira noção de que Blanche
ia dar à luz foi um grito, um guincho agudo, mais de terror do que
de dor, seguido, momentos depois, de outro mais alto. Ouviu


Lucrécia Bórgia a correr pelo hall e subir as escadas. Acordou Alph,
adormecido no chão, aos seus pés e mandou-o procurar o patrão
mais jovem.

-Diz-lhe que venha, que venha depressa, que largue tudo! Diz-lhe
que a miss Blanche está a ter o bebé -ordenou ele ao rapaz. -E se
não vais depressa, mando-te chicotear, levas mais pancadas do que
alguma vez apanhaste na tua vida! -ameaçou. -Vá, vai depressa!

0 rapaz saiu da sala a trote e Maxwell ouviu-o atirar com a porta, ao
sair de casa. Ouviu também passos rápidos no soalho por cima de si
e outro guincho. Levantou-se e começou a passear pelo halI, sem
saber se devia subir as escadas, quando apareceu Lucrécia Bórgia
que as descia, correndo para a cozinha.
-Ela vai tê ele, a miss Blanche vai tê ele. Tá cum dores, tá cum
muitas dores -informou, sem parar.
-já calculava -respondeu ele, já nas suas costas. Deixou-se ficar à
espera, no fundo das escadas, pensando se deveria subir. Houve
outro grito de angústia, mais audível ali do que na sala.

Lucrecia Bórgia voltou da cozinha com um grande balde de água a
ferver numa mão e um monte de roupas no outro braço.
-Sai daqui, siô -ordenou ela ao patrão. -Sai do meu caminho.
Enquanto subia as escadas, apressadamente, disse, por cima do
corrimão:
-Aquela Tense num ajuda nada, num presta pra nada. Maxwell
compreendeu que também não podia ajudar e voltou para a sala,
onde não se sentou, continuando a passear de um lado para o outro,
para aliviar a sua ansiedade. Os gritos foram-se repetindo, mas
pareciam ir-se tornando mais fracos. Meg apareceu com um toddy
não pedido, numa bandeja, e o amo aceitou-o. 0 rapaz tinha os olhos
muito abertos, cheios de interesse pelo que se passava no andar de
cima e estava cheio de medo por causa dos gritos da branca.


-A miss Blanche tá a tê o bebé, num tá, siô, patrão? -perguntou,
com entusiástica inocência.
A palma da mão aberta de Maxwell caiu sobre o rosto da criança
impertinente, magoando mais a mão artrítica do que a face dele. 0
rapaz não percebeu por que estava a ser castigado, uma vez que a
sua pergunta tinha sido feita por gentileza. Mas os brancos eram tão
estranhos! Nunca se sabiam como iriam reagir. 0 lábio inferior de
Meg avançou, como se ele fosse chorar, não pela dor, mas pela
censura, e ele retirou-se para a cozinha.
Alph voltou sem fôlego. Tinha ido a correr buscar o patrão, tal como
lhe haviam mandado, e voltara a correr.
-Ele vem já, patrão, siô. Ele vem, patrão vem o mais depressa qu'ele
pode! -explicou, arquejante.
-Anda cá e bebe um pouco de toddy. Estafaste-te a correr -disse o
patrão que, arrependido do seu mau gênio para com o Meg, se
queria desculpar através da indulgência para com o irmão.
Os gritos que provinham da casa fizeram Hammond compreender o
motivo por que tinha sido chamado, ainda antes de entrar.
-Há quanto tempo está ela assim? -perguntou ao pai, e, sem
esperar pela resposta, propôs: -Vou mandar chamar o Murrey
ponho um negro numa mula e mando-o lá.
-A Lucrécia Bórgia está com ela. Vai tudo correr bem. Mas parece
que tem dores. Talvez seja melhor mandares chamar o Murrey,
penso eu. Não é lá grande médico. Não confio muito nele, mas é o
melhor que temos -concordou Maxwell.
-Vou mandar o Mem. Os outros são muito novos e não sabem o
caminho -sugeriu Ham, para ver o que o pai dizia, e, não obtendo
resposta, concluiu que ele estava de acordo.

Foi até à cozinha, à procura de Agamerririon e deu-lhe as suas
instruções. Voltou para a sala, certo de que Mem iria chamar o
médico. Sentou-se numa cadeira, mas não conseguia manter-se


quieto e voltou a levantar-se, coxeando de um lado para o outro da
sala. Estremecia quando ouvia novos gritos vindos de cima.
-Acha que é melhor eu subir? Acha que eu posso ajudar? perguntou
ao pai.
-Só te metes no caminho da Lucrécia Bórgia-respondeu o pai. -Está
armada em mandona, mandou-me embora. Ainda te dá uma
palmada, para saíres do caminho. Parecia que era eu o criado dela,
em vez de ser ela minha criada.
-A Tense está a ajudá-la, imagino eu.
-Ela diz que a Tense não serve de nada -disse Maxwe11. A
conversa morreu. Pai e filho nada tinham a dizer um ao outro e,
contudo, como uma só pessoa, ouviam os gritos que vinham do
andar de cima e avaliavam a agonia que os provocava. Ambos
sofriam com a rapariga que lutava para lhes dar um herdeiro. Os
guinchos transformaram-se em gemidos, que se tornaram menos
frequentes. 0 velho calculou que aquilo significasse uma fraqueza
crescente, uma exaustão da mulher em parto, mas nada disse ao
filho, para não aumentar a apreensão que sabia existir no coração do
jovem.
0 relógio batia descontroladamente sobre a lareira. Maxwell estava
tão habituado ao seu tiquetaque que deixara de o notar, mas agora
ele penetrava na sua consciência e marcava cada minuto que
passava. Antes de Merririon ter tido tempo de chegar a Benson,
Maxwell começou a levantar-se periodicamente para ir até à janela e
observar a estrada, para ver se ele voltava ou se o doutor Murrey
vinha a caminho.
Harrimond subiu a escada para perguntar pelo estado da mulher.
Bateu com os nós dos dedos na porta do quarto, antes de a abrir.
Lucrécia Bórgia estava inclinada por sobre a cama.
-Eu torna conta da miss Blanche. Ele tá quase. Ele tá a vir. Tu vai lá
pra baixo e senta, patrão, siô, num atrapalha eu. -Lucrécia Bórgia
ergueu o olhar para ele e falou em tom de comando. -Não vai havê


jantá pra ti e pró patrão velho, só se Dite e Ellen arranjá ele acrescentou.
0 tom das palavras da mulher revigorou o espírito de Hammond.
Aceitou o incentivo à paciência. Os gritos da mulher deixaram de o
atravessar como se fossem facas.
Merririon voltou. Tinha encontrado o médico que dissera que viria.
Hammond sentou-se à espera da sua chegada, certo de que, quando
chegasse, ele faria nascer o bebé rapidamente. Por volta das duas
horas, os gritos cessaram; o silêncio tornou-se opressivo, mais
penoso para o marido do que os gritos haviam sido. Pensou se as
forças da mulher estariam totalmente exaustas ou até mesmo se ela
teria morrido.
Um passo pesado nas escadas! Lucrécia Bórgia descia. Hammond
aguardou, exausto, esperando o pior. Lucrécia Bórgia entrou na
sala, transportando nos braços um monte de roupas brancas. Saindo
das roupas, a cabeça de uma criança, vermelha e amorfa. Lucrécia
Bórgia trazia no rosto um grande sorriso de satisfação. Dirigiu-se ao
patrão mais novo e inclinou-se para lhe mostrar a sua preciosa
carga, e depois mostrou-a a Maxwell.
-Como está a miss Blanche? -perguntou Hammond.
-Acho que tá a dormir -disse a mulher. -Ficou cansada de tê o bebé.
Hanimond respirou, aliviado.
-Não é muito grande -disse MaxwelI, olhando para a criança com
ar crítico. -Mas o rapaz há-de crescer!
Lucrécia Bórgia apertou a criança contra o peito. .
-0 rapaz? Não é um rapaz -anunciou ela. Maxwell sentiu as
vísceras contraírem-se dentro de si. Não era um rapaz! Ele queria
era um rapaz! Mas não fez comentários.
Hammond olhou para o rosto da criança.
-É vesga, como o Charies -declarou. E era. Tinha os olhos
nitidamente tortos, não com o estrabismo normal dos recém-
nascidos, mas com uma divergência que seria permanente. Porquê?
Charles, em Natchez, tinha manifestado a esperança de que a


criança não nascesse com os olhos tortos. Hammond cogitou se o
seu parentesco com a irmã teria alguma coisa a ver com aquele
fenômeno.
0 mínimo que podia fazer era ir lá acima ver a mãe, mas quando lá
chegou ela estava a dormir. Tense deslizou silenciosamente pelo
quarto, para o deixar entrar, com um dedo nos lábios. Ele parou
junto da cama e olhou para a rapariga, exausta, dormindo de costas,
com o cabelo preso numa longa trança. Que importava que a criança
fosse urna rapariga? Que tivesse os olhos tortos? Que fosse pequena
e desprovida de vigor? Ela tinha feito o melhor que podia, pensou
ele, cheio de compaixão. Talvez o seu próximo filho fosse um rapaz
vigoroso.
Quando voltou a descer, Lucrécia Bórgia tinha ainda o bebé nos
braços e balouçava-o para o acalmar, olhando com devoção para a
minúscula face enrugada.
A quem pensas dá-Ia para mamar? -perguntou Maxwe11. À mãe
dela, se puder, se o leite dela for bom -respondeu Hammond
despreocupadamente.
Lucrécia Bórgia voltou o rosto, com repugnância, perante tal
resposta, mas não interrompeu.
-Nenhuma branca dá de mamar aos filhos. Só as pobres e
ordinárias, talvez por não terem nenhuma fêmea com leite fresco.
Estraga-as, faz com que fiquem com as mamas descaídas -explicou
Maxwell.
-Nós não temos nenhuma fêmea com leite -objectou Hammond.
-Deixa eu dá, siô -propôs Lucrécia Bórgia. -Minha filha tá quase
desmamada e eu inda tem leite. Muito leite.
-0 teu leite é muito velho e tu já estás velha também -disse Maxweli,
abanando a cabeça. -Queres sempre meter-te nas coisas, queres ser
sempre tu.
-Lucy é a mais fresca que temos -sugeriu Hammond.
-Também é muito velha -disse o pai. -0 leite de uma fêmea nova é
sempre melhor, mais doce.


-Então só nos resta a Pérola Grande -suspirou o rapaz.
-Aquela giganta preta aqui dentro de casa! -troçou Maxwe11. -Não
sabe andar, galopa, e derruba as coisas ao passar. Além disso, ela
tem o Wilson. 0 Velho Senhor Wilson, a crescer como cresce, precisa
de muito leite.
-E viu com'a Pérola Grande faz com bebé dela? -perguntou
Lucrécia Bórgia. -Atira com ele como se fosse um saco d'aveia,
corno se o bebé fosse de ferro!
-Claro, a Lucy podia ajudar, dando também leite ao Wilson, se
fosse necessário, deixando assim mais leite à Pérola Grande para a
Sophy -observou Maxwell.
-Sophy?
-Sophy -repetiu Maxweli. -Vamos chamar-lhe Sophy, que era o
nome da avó, penso eu.
0 silêncio do pai da criança era uma aquiescência.
-Deíta-a -disse ele a Lucrécia Bórgia -e vai buscar a Pérola Grande.
Quando chegou, a negra encheu a sala, como um grande animal
selvagem. Trazia o seu vestido vermelho e o filho nu pendurado
num braço.
-Chamou eu, patrão, siô? -perguntou.
-Pérola Grande -perguntou Hammond -, como vais de leite? Pérola
Grande desabotoou o vestido e expôs um seio enorme, cheio e
redondo, cujo mamilo vermelho se erguia, do tamanho de uma
moeda de um dólar.
-Eu tem bom leite, patrão, siô -disse ela, olhando em volta com
admiração. Nunca tinha entrado antes na casa.
-Anda cá -ordenou Hammond. -Não tenhas medo e ajoelha-te.
Agarrou no selo cheio e, quando apertou o mamilo, jorrou uma
torrente de leite. Abriu mais o vestido e tirou para fora e outro seio,
que apertou também.
-Mostra ao meu pai -disse-lhe. A rapariga avançou de joelhos para


o velho que apalpou os seios negros com aprovação, se inclinou e

chupou um pouco de leite, para o provar. Acenou afirmativamente
para o filho.
-Tens uma nova senhora -explicou Hammond a Pérola Grande. -A
miss Blanche acaba de ter uma menina. Tu vais amamentá-la. Ficas
aqui na casa e comes comida de brancos, muita comida, para fazer o
teu leite bom.
-Mas o Medes... -interrompeu Pérola Grande.
-Deixa lã o Medes. Há outras fêmeas, ele precisa de outra -disse
Maxwell.
-Vais dar leite à tua nova senhora, à miss Sophy -continuou
Hammond.
-Sim, siô, patrão, siô -disse a rapariga.
-Tens de tratar a miss Sophy com cuidado. É muito frágil. Não
podes sacudi-Ia e atirar com ela como fazes com esse gigante que
trazes no braço -e Hammond deu uma palmada e um beliscão nas
nádegas de Wilson, com admiração.
-Sim, siô, patrão, não, siô, patrão -respondeu Pérola Grande com
insegurança, bebendo as instruções que lhe estavam a ser dadas.
-E quero que a miss Sophy tenha sempre bastante leite antes
depores o Wilson a mamar. Ele mama o que ficar, o que ela já não
quiser. Percebeste? Primeiro dás à miss Sophy -continuou o patrão.
A rapariga disse que percebia.
-Ela anda vestida e dorme num berço -explicou o patrão. -A
Lucrécia Bórgia ensina-te como a deves mudar para a manter limpa.
-Qu'é que o patrão faz c'o Velho Senhor Wilson? -perguntou Pérola
Grande. -Eu fica cum ele tamém?
-Claro que ficas com ele, tal como agora, desde que tomes bem
conta da tua senhora pequena.
Lucrécia Bórgia levantou a menina cuidadosamente e colocou-a no
braço livre de Pérola Grande. Pérola Grande olhou para o
rostozinho enrugado, de olhos tortos, e soltou um grito de encanto,
ergueu a criança no seu braço e asfixiou-a com beijos.


-Que linda que é, que linda, toda branca e encarnada! -gritou. Minha
sinhora querida! Eu vai ser tua ama!
-0 Velho Senhor Wilson vai ficar mal -disse MaxwelI, rindo.
-Acho que ela tem leite que chegue para os dois -comentou
Hammond.
0 tempo deixara de ter significado. 0 tiquetaque do relógio já não
penetrava na consciência de Maxwe11. 0 facto de o doutor Murrey
não ter chegado deixava de ter importância. Merimon voltou a
afirmar que tinha encontrado o médico, na casa dele, em Benson, e
que ele prometera vir, mas era difícil confiar em Merririon.
Acreditava estar a dizer a verdade, mas não se sabia ao certo com
quem ele falara nem o que teria dito. Mem tinha medo dos médicos,
julgava que eles esquartejavam as pessoas vivas, especialmente os
negros, e a sua conversa com Murrey, se tinha chegado a existir,
tinha sido o mais curta possível. Se o nascimento da criança se
tivesse prolongado ou se tivesse corrido mal, as culpas cairiam
sobre Merimon, mas, como tudo correu bem, escapou-se com uma
ligeira censura.

Capitulo quadragésimo segundo

0 tempo aqueceu, depois de começar a chover, primeiro num
chuvisco persistente, mais tarde com saraivada e aguaceiros
intermitentes. Era uma tarde sombria -uma tarde boa para toddies
em frente da lareira. Tinha corrido tudo bem, excepto quanto ao
sexo da criança, mas a aceitação do nome que ele lançara tão natural
e habilmente tinha diminuído o desagrado de Maxwe11. Alterou a
sua visão de um neto elegante, esperto e precoce que seria para
Hammond o que Hammond fora para ele, para uma visão


igualmente irreal de uma neta tão bela, encantadora, graciosa e
meiga corno aquela Sophy que lhe tinha dado Hammond. Com
sangue Hammond de ambos os lados, previa que ela seria uma
mulher exemplar.

Embora os serviços do doutor Murrey não tivessem sido
necessários, Maxwell sentia-se desapontado por ele não ter vindo.
Tinha pouca confiança na capacidade do homem, mas não ficava
bem que a filha de um plantador tivesse nascido sem a sua ajuda.
Além disso, o doutor Murrey gostava de uísque e Maxwell tinha
previsto um agradável intervalo, depois de terminada a tarefa do
médico, a beber toddies em frente da lareira, trocando mexericos.

0 caprichoso relógio acabara de bater as cinco quando Maxwell
ouviu na álea o bater de cascos de cavalos, o que o levou à janela.
Reconheceu o carro do médico, uma espécie de caleche coberta,
puxada por uma parelha de cavalos baios perpetuamente fatigados.
Apesar de ele já não ser necessário, ficou satisfeito por o médico ter
vindo; agora já podiam ter a sua conversa e era já tão tarde que
talvez conseguisse persuadi-lo a ficar para a ceia, talvez mesmo a
passar lá a noite.

Chamou Merririon para abrir a porta, mas ouviu logo o correr dos
pés nus de Meg que impediu Mem de ir à porta. Viu um jovem
branco puxar as rédeas, prendê-las no guarda-lamas e descer
desajeitadamente do carro. Era alto, muitíssimo alto, magro, de ar
cadavérico. Deu a volta ao carro até ao outro lado, e, estendendo os
braços, ajudou, com aparente dificuldade, a descer do carro um
homem que Maxwell reconheceu ser o médico, vestindo um longo
casaco e um chapéu de castor. Um rapaz negro tomou conta dos
cavalos, enquanto o médico se agarrava desajeitadamente ao rapaz,
que tentava ampará-lo. 0 médico deu três passos e parou. Ficou de
pé, pouco seguro, amparado pelo rapaz, e depois, inclinando-se


para a frente, começou a vomitar. 0 médico encontrava-se bêbedo,
perdido de bêbedo. 0 jovem afastou-se para o lado, segurando o
médico com os braços estendidos, para evitar ser salpicado pelo
vómito que escorria da boca do outro homem, mas não mostrou
impaciência. Mantinha-se imperturbável, corno que habituado às
aberrações do médico.
Maxwell dirigiu-se à porta da frente, da qual Merririon se
encarregara, mandando Meg embora.
-Não serve de nada cá virmos. Ele está bêbedo -disse o rapaz. Temos
de o meter na cama, se tiver uma livre. Que tal está a fêmea?
já teve o filho?
-Não era uma fêmea. Era a senhora Maxwell -replicou Maxwe11.
-Uma senhora branca? Então não posso fazer nada. 0 doutor não
me deixa tratar de brancas, por enquanto. Se fosse uma preta, eu
podia tratar disso -disse o rapaz.

-A criança já nasceu. É uma menina -explicou Maxwe11.
-Então metêmo-lo na cama. Depois ficará bom. De vez em quando
sucede-lhe isto -explicou o rapaz alto.
Hammond, que descia as escadas, ouviu esta conversa e chamou
Memnon:
-Vai lá fora e ajuda o cavalheiro branco, ouviste? Estás a tornar-te
preguiçoso outra vez? Queres levar mais?
Mermion não queria levar mais. Revirou os olhos para o patrão e
correu a amparar o médico, do outro lado do rapaz.
-Leva-o para cima e mete-o na cama, naquele quarto em frente do
meu, não no que fica ao pé do da tua senhora. Não a podemos
incomodar, no estado em que está -ordenou Hammond ao escravo.
0 pequeno doutor, corado e de grande ventre arredondado,
cambaleou, sem firmeza nas pernas, firmemente amparado por
Merririon, e entrou em casa. Lembrou-se de tirar o chapéu, ao entrar
na casa de um cavalheiro, mas, quanto ao resto, entregou-se aos
cuidados do escravo. Merririon levou-o cuidadosamente escada


acima, e o jovem, embaraçado, segui-os. MaxwelI, desapontado por
perder a conversa que tinha imaginado, retirou-se de novo para a
sala. Hammond seguiu os convidados escada acima, esperou no hall
que o jovem e Meirmon despissem o médico emibriagado e o
metessem na cama, e depois escoltou de novo o rapaz, escada
abaixo.
Quando entraram na sala, Maxwell sentou-se mais firmemente na
sua cadeira, para não ser privado ao menos da conversa que se iria
desenrolar.
-Está a estudar? -perguntou.
-Sim, senhor, o melhor que posso, com o doutor neste estado
respondeu o rapaz alto, ainda de pé, timidamente.
-Sente-se, sente-se -convidou o velho. -Meg -gritou -, arranja-nos
toddies.
0 rapaz escolheu uma cadeira e sentou-se. -Não, obrigado, senhor
Maxwell -disse, abanando a cabeça -, toddy para mim, não.
Maxwell olhou para ele, alarmado.
-já tem idade suficiente! Temperança?
-Só em relação a mim próprio -disse o rapaz. -Não para si ou para
qualquer outra pessoa. Só quero ser médico, não posso ser corno
ele. -Uma sensação de deslealdade levou-o a acrescentar: -0 doutor
é muito bom. Ele sabe muito, quando não bebe, mas quando começa
a beber, parece que não consegue parar. Cada vez está pior.
Os seus lábios recurvados formaram uma linha recta, cheia de
determinação e os seus olhos azuis tomaram um ar sério, afastou da
testa a madeixa de cabelos pretos e tentou impedir-se de corar.
-Nesse caso -concordou o velho, incapaz de encontrar um
argumento que alterasse a convicção do rapaz. -Vive em Benson? perguntou,
tirando um toddy da bandeja de Meg.
-Sim, senhor. Agora quero eu dizer. Estou a estudar corri o doutor
Murrey e vivo com ele -esclareceu o rapaz. -Mas sou de Bankside.
Deve conhecer-me, senhor Maxwe11; pelo menos eu conheço-o. Sou


o Willis Smith, filho de Willis Smith da Plantação Bankside proclamou
orgulhosamente.
-Céus! 0 filho do Willis Smith! Claro que o conheço, o seu pai,
quero eu dizer. Santo Deus!
Maxwell acenou com a cabeça, impressionado.
-Lembro-me de que uma vez foi a nossa casa, comprar pretinhos, e
ficou para jantar -recordou Willis. -Não gostei nada de si, nessa
altura, porque queria comprar o meu negro de brincar, mas o meu
pai não o quis vender.
-Lembro-me, lembro-me; chorou para ficar com ele -disse Maxwell.
-Nem quis jantar, cheio de medo que o seu pai o vendesse. Era um
rapazinho claro, com cara de judeu, muito perfeito.
-Isso mesmo. Era da velha Cinthy e de um vendedor judeu. 0 nome
dele é Job, porque o meu pai dizia que ele tinha muita paciência
para aturar o que eu lhe fazia -explicou Wíllis. -Ainda o tenho.
-Em Benson?
-Não. Job ainda está na plantação. Casou-se e não quero que ele se
separe da mulher e do filho. Quando vou a Bankside, serve-me de
criado de quarto.
-Willis Smith? 0 Wíllis tinha muito dinheiro. Porque quer ele fazê-lo
médico? É o mais velho, não é?
-Sim, senhor, sou o filho mais velho do meu pai, isto é, o mais velho
ainda vivo. Não é propriamente o meu pai que quer fazer-me
médico. Eu é que quero ser médico. A decisão é minha, sim senhor.
-Onde vai parar o mundo? -observou Maxwe11. -Parece que os
pais já não mandam nada. 0 Willis sabe que o senhor devia ficar na
plantação e ser um plantador. Ele precisa de si.
-0 mundo precisa de mim. As pessoas, as pessoas é que precisam de
mim. -Os olhos de Willis brilhavam com fervor. -A minha
irmãzinha, lembra-se dela? A Nellie, morreu. Era a criança mais
linda que havia, com os seus cabelos dourados, e a mais meiga, doce
como o mel. De uma inflamação de garganta, dizem; nem me
deixavam beíjá-la. Nessa altura compreendi, quando enterrámos a

Nellie, que queria ser médico, para não deixar morrer mais Nellies,
se pudesse impedi-lo. Ela não devia ter morrido. Mas o médico
estava bêbedo, Murrey estava bêbedo, e eu não vou ser um bêbedo,
vou estudar muito e hei-de aprender. Vou impedir que as pessoas
morram.
Hammond, que não tomara parte no colóquio, interveio.
Os seus lábios recurvados formaram uma linha recta, cheia de
determinação e os seus olhos azuis tomaram um ar sério, afastou da
testa a madeixa de cabelos pretos e tentou impedir-se de corar.
-Nesse caso -concordou o velho, incapaz de encontrar um
argumento que alterasse a convicção do rapaz. -Vive em Benson? perguntou,
tirando um toddy da bandeja de Meg.
-Sim, senhor. Agora quero eu dizer. Estou a estudar com o doutor
Murrey e vivo com ele -esclareceu o rapaz. -Mas sou de Bankside.
Deve conhecer-me, senhor Maxweli; pelo menos eu conheço-o. Sou

o Willis Smith, filho de Willis Smith da Plantação Bankside proclamou
orgulhosamente.
-Céus! 0 filho do Willís Smith! Claro que o conheço, o seu pai,
quero eu dizer. Santo Deus!
Maxwell acenou com a cabeça, impressionado.
-Lembro-me de que uma vez foi a nossa casa, comprar pretinhos, e
ficou para jantar -recordou Wíllis. -Não gostei nada de si, nessa
altura, porque queria comprar o meu negro de brincar, mas o meu
pai não o quis vender.
-Lembro-me, lembro-me; chorou para ficar com ele -disse Maxweli.
-Nem quis jantar, cheio de medo que o seu pai o vendesse. Era um
rapazinho claro, com cara de judeu, muito perfeito.
-Isso mesmo. Era da velha Cinthy e de um vendedor judeu. 0 nome
dele é Job, porque o meu pai dizia que ele tinha muita paciência
para aturar o que eu lhe fazia -explicou Willis. -Ainda o tenho.
-Em Benson?
-Não. Job ainda está na plantação. Casou-se e não quero que ele se

separe da mulher e do filho. Quando vou a Bankside, serve-me de
criado de quarto.
-Willis Smith? 0 Willis tinha muito dinheiro. Porque quer ele fazê-lo
médico? É o mais velho, não é?
-Sim, senhor, sou o filho mais velho do meu pai, isto é, o mais velho
ainda vivo. Não é propriamente o meu pai que quer fazer-me
médico. Eu é que quero ser médico. A decisão é minha, sim senhor.
-Onde vai parar o mundo? -observou Maxwell. -Parece que os pais
já não mandam nada. 0 Willis sabe que o senhor devia ficar na
plantação e ser um plantador. Ele precisa de si.
-0 mundo precisa de mim. As pessoas, as pessoas é que precisam de
mim. -Os olhos de Willis brilhavam com fervor. -A minha
irmãzinha, lembra-se dela? A Nellie, morreu. Era a criança mais
linda que havia, com os seus cabelos dourados, e a mais meiga, doce
como o mel. De uma inflamação de garganta, dizem; nem me
deixavam beijá-la. Nessa altura compreendi, quando enterrámos a
Nellie, que queria ser médico, para não deixar morrer mais Nellies,
se pudesse impedi-lo. Ela não devia ter morrido. Mas o médico
estava bêbedo, Murrey estava bêbedo, e eu não vou ser um bêbedo,
vou estudar muito e hei-de aprender. Vou impedir que as pessoas
morram.
Hammond, que não tomara parte no colóquio, interveio:
-Nesse caso, seria de pensar que o doutor Murrey ...
-Não há mais ninguém -interrompeu o rapaz. -É o único médico
de Benson. Além disso, é bom, quando não é bêbedo. Pode ensinar,
e tem livros, livros de medicina, livros grandes, que eu posso ler.
-Com todos aqueles palavrões -disse Hammond, abanando a
cabeça, duvidoso.
-Eu não sei dizê-los, não me saiem -admitiu Willis. -Mas nem é
preciso. Posso escrevê-los e sei o que significam, na sua maioria. 0
doutor Murrey vai-me explicando, quando não está bêbedo, e
mostra-me o que se deve fazer com os doentes. Ele sabe que terá


que desistir muito em breve, e então eu terei que me ocupar deles o
melhor que souber.
A segurança do jovem era equilibrada pela modéstia, mas
sustentada por uma grande vontade de aprender, uma grande
curiosidade e determinação de levar por diante a sua vocação.
Tocou a sineta para a ceia. Willis sentiu que devia ir ver o doutor
Murrey antes de ir comer, mas sugeriu aos Maxwell que não
atrasassem a sua refeição. Esperaram por ele. Encontrou o doutor a
dormir, deitado de costas, ressonando levemente, e ajeitou-lhe as
cobertas, que haviam escorregado.
-Vai ficar bom outra vez. Não é caso para preocupação -anunciou o
jovem, ao regressar. -Mas temos de ficar cá esta noite. Não há outra
hipótese. Pode arranjar-nos onde dormir?
-Claro, claro -disse MaxwelI, hospitaleiramente. -Não podem fazer
outra coisa. Nem pensar em se irem embora, com esta escuridão,
com tanta chuva.
-Depois o doutor poderá observar a senhora MaxwelI, amanhã de
manhã -disse Willis, como que a justificar a necessidade de ficarem.

-A criança já nasceu -disse Hammond. -já não precisa dele.
-Eu podia ter ajudado o bebé a nascer tão bem como o Murrey;
tenho-o ajudado a fazer nascer tantos, que sei bem como é, mas ele
ainda não me deixa. Penso que tem medo de que eu lhe tire o lugar.
-Não o culpo a si -disse Hammond, para o fazer sentir-se mais à
vontade. -A culpar alguém, culpo-o a ele.
-Além disso, o senhor é novo -disse Maxwell.
-Não é nada de especial, fazer nascer uma criança. Qualquer pessoa
pode fazer isso, a menos que a criança saia de rabo. Nesse caso é
preciso endireitá-la -explicou Willis.
Observou com angústia a ajuda que Merimon dava ao velho para se
levantar da sua cadeira, ouviu os seus protestos em linguagem
profana quando este o levava para a casa de jantar, observou de
soslaio a dificuldade que o velho experimentava em cortar o seu


presunto, mas conservou-se em silêncio. Lucrécia Bórgia, ao trazer a
ceia, queixou-se da pobreza da comida preparada por Dite e Ellen.
A conversa versou, como habitualmente, os preços do algodão e dos
escravos.
-Custa-me pensar que dentro em breve não teremos escravos; estão
a desaparecer -opinou Willis. -São todos fracos. Acabam por
morrer por si próprios, mesmo que nos deixem ficar com eles.
-Quem diz que não podemos ficar com eles? Só aqueles
abolicionistas do Norte. Pois o Andy também os tem, ele próprio,
mesmo na Mansão do Presidente -observou Maxwell.
-A maior parte deles sofre de qualquer coisa. Precisam de ser
tratados. Não se pode trazer mais para esta zona e eles estão a fugir,


o gado está a fugir. -Wíllis abanou a cabeça. -Acabam por se abolir
a eles próprios.
-Dêem-lhes de comer -disse Ham. -E se os jovens tiverem boa
comida, não fogem -protestou.
-E se não os matarem a trabalhar antes de serem capazes disso disse
Maxwell.
-E se as pessoas usassem machos fortes e jovens para procriar, em
vez de capatazes brancos, para tentarem obter crianças mais claras.
Não importa que nasçam fracas, desde que nasçam claras, ao que
parece -disse Hammond, desgostado.
-Gosta deles escuros? -perguntou Willis.
-Gosto deles fortes, fortes e perfeitos. Não me interessa que sejam
às riscas, até. Não os tenho para olhar para eles.
-Não compensaria procriá-los, se conseguíssemos comprar crianças
perfeitas para alimentar e criar -queixou-se Maxwe11. -Mas quem
os tem, não os quer vender, mesmo por bom preço.
-Acho que é um desperdício tratá-los e uma benção deixá-los
morrer, quando são enfezados e doentes -suspirou Willis. Contudo,
gosto de curá-los, seja qual for a idade que tenham, ou por


mais fracos e escuros que sejam. Eu gosto, e às vezes o doutor
Murrey deixa-me. Ele gosta é dos brancos.
-Não temos problemas desse género aqui em Falconhurst -gabouse
Hammond. -Se um nasce enfezado, vendemo-lo e não ficamos
com eles até estarem velhos.
-já notei. Os seus, pelo que vi deles, parecem muito perfeitos admitiu
Willis, empurrando a cadeira para trás e desabotoando,
delicadamente, a parte de baixo do colete, para demonstrar que
comera bem.
0 gesto era desnecessário, visto que o seu corpo era tão magro como
os seus longos braços e pernas, e ele não comia muito.
Ao voltar à sala de estar, Willis foi forçado a dominar o seu impulso
de oferecer amparo a MaxwelI, que ele ouvira injuriar o negro por
tentar ajudá-lo, no caminho para a casa de jantar. Wíllis desconhecia
que tal ajuda era aceite sem ressentimentos quando não havia
convidados. A doença do velho excitava a compaixão do rapaz e o
seu desejo de exercer as suas artes curativas, mas respeitava a
discrição do outro sobre o seu sofrimento.
-Sabia que esta chuva vinha aí, diziam-mo os meus joelhos e as
minhas mãos -disse MaxwelI, esfregando as articulações da mão
direita corri a esquerda, enquanto se deixava cair na cadeira. Quando
vem chuva, o meu reumatismo cal em cima de mim.
-Está bastante atacado -disse Willis.
-Sim. Por isso é que eu bebo todos aqueles toddies. Acho que me
ajudam -suspirou MaxwelI, aceitando o copo que Meg lhe trouxera.
-0 uísque para o reumatismo faz melhor por fora que por dentro sugeriu
Willis. -É melhor esfregá-lo do que bebê-lo.
A observação de Maxwell proporcionara-lhe a deixa que procurava.
Chegou a cadeira para o pé do paciente, colocou-lhe a mão na testa,
tomou-lhe o pulso, pediu-lhe que lhe mostrasse a língua, tudo isto
sem qualquer relação com aquilo que queria saber -simples gestos
de diagnóstico.
Maxwell apreciou a sua atenção, sem se ressentir.


-Estou a melhorar, estou a melhorar, mas esta noite, com a chuva. Abanou
a cabeça. -Estou a passá-lo, através dos pés para este
pretinho. -Estendeu o copo a Alph, que estava deitado aos seus pés
e disse-lhe: -É melhor beberes um golo, rapaz; vais precisar disto
antes que a manhã chegue.
Willis olhou-o, duvidoso.
-Talvez ele o apanhe, e o apanhe bem. Mas isso não o livra dele. Só
passa para ele, não sal de si -explicou com autoridade,
Estendeu a mão e apalpou com solicitude a testa do negro.
-Acha que ele está a apanhar o reumatismo? Sente alguma coisa? perguntou
Maxwell.
-Ainda não; e mesmo que ele o apanhasse, isso não queria dizer
que o senhor lho tivesse passado. É como essa blenorragia que anda
por aí -explicou Willis. -As pessoas pensam que conseguem passála
a uma negra virgem, se arranjarem uma, Não faz nada. Conheço
um cavalheiro que usou três delas e ainda a tem. E elas também.
Não quero dizer que fossem todas virgens, mas uma delas havia de
ser, e eram todas novinhas. Pode ser que não haja negras virgens.
Eu nunca vi uma. Talvez fosse assim que a ideia da cura começasse.


-A blenorragia, tem que se esperar até desaparecer. Não há cura.
-A sanguinária-do-canadá amarela é bastante boa. Faz desaparecer


o ardor -declarou o médico-aprendiz. -Foi o que eu dei a um dos
negros do meu pai em Bankside, que a apanhou no ano passado. Eu
queria capá-lo, mas o meu pai não quis. É o melhor, para um negro.
Evita que se espalhe. 0 meu pai receava que o rapaz morresse.
-Mais valia morrer, penso eu -declarou MaxwelI, desaprovando a
operação. -E eu também bem podia... -Nã o conseguiu completar a
frase. -Se não melhorar das minhas dores.
-Então, pai -interrompeu Hammond. -Está é aborrecido por ter
nascido uma rapariga. Quando o pai se irrita, fica com mais dores.
-Que tem isso a ver com as dores? Não é a cabeça que me dói iriçou-
se Maxwell. -São as mãos, os pés, os joelhos, o corpo todo.

-Reumatismo? -Wíllis afastou a cadeira do paciente, desistindo. Não
sei. Ainda não cheguei a essa parte do livro. Isso fica no fim?.
Mas hei-de lá chegar. Espere um tempo, e quando eu lá chegar ...
A sua promessa estava apenas implícita, mas deu certa esperança ao
inválido.
-Acha que esfregar-me com uísque... -perguntou Maxwell,
aguardando a reacção dele.
Willis encolheu os ombros, pouco seguro.
-Banha de cobra? Não era melhor? -disse Hammond, expressando
a sua opinião.
-Cheira tão mal! Prefiro ter dores -exclamou Maxwe11.
-Banha de cobra! Banha de cobra! A do doutor Mullbach ou lá de
quem é? Isso não passa de gordura de ganso, claro, com um
ingrediente para cheirar mal e um corante verde. Nunca teve nada a
ver com cobras. É a massagem que faz o efeito, que a faz dar
resultado -declarou Willis, com certa indignação.
-Mas diz no frasco, diz mesmo no frasco... -disse Hammond,
defendendo o remédio.
-E o que é que isso interessa? -troçou Willis. -Pode imprimir o que
se quiser e colocá-lo num frasco. Pergunte ao doutor Murrey, se
aquilo não é só gordura de ganso.
Hammond preferiu acreditar no autor da panacéia do que naquele
aprendiz imberbe. Todos os médicos desprezavam os remédios que
podiam ser utilizados sem a sua sanção.
-Eu não a uso, nem que... -afirmou MaxwelI, com determinação. -Só
mais um toddy e acho melhor ir deitar-me. Só um não o embebeda,
doutor Willis, e vai aquecê-lo para se retirar.
Willis sentiu-se lisonjeado por lhe chamarem "doutor" e esteve
tentado a aceitar, mas lembrou-se de Murrey e abanou a cabeça.
-Obrigado, senhor, mas não quero ser como ele nesse aspecto disse.
-Se calhar também não quer uma fêmea 'para se divertir -disse
Hammond. -Estava a pensar qual poderia ser.



Willis sentiu as faces a arder e corou até à raiz do cabelo. Tinha
ouvido falar do costume de muitos plantadores cederem aos seus
convidados uma mulher para passar a noite com eles, mas nunca se
lhe tinha deparado o sistema. Isso não se fazia -pelo menos não
aberta e francamente -em Bakside, onde os escrúpulos de sua mãe
proibiam tal costume dentro de casa. Claro, não sabia do que
ocorria furtivamente dentro das cabanas, nem se importava.
-julgo que vou dormir com o doutor Murrey -disse, fugindo a uma
resposta directa. -Há pouco espaço, com ele bêbedo e todo
estendido.
-Tenho outra cama, não precisa de ficar com ele -disse Hammond.
-Bem, nesse caso, se tem urna fêmea clara e limpa -acedeu Willis.
-Estava a pensar na Dite -disse Hammond ao pai.
-Se já não a queres para ti -concordou o pai.
-Eu tenho a Ellen -disse Hammond. -A Dite é nova e clara, e não
cheira mal.
-Quando eu disse limpa, referia-me à blenorragia. Não tem disso? especificou
Willis.
Hammond riu-se.
-Nenhum dos nossos negros tem nem nunca teve -gabou-se.
-Anda por aí -garantiu Wíllis, e deixou de corar, ao ver que não era
observado.
-Anda sempre por aí -disse Maxwell, levantando-se e acordando
Alph. Chamou, aos gritos, por Merrinon, que veio ajudá-lo a ir para
a cama, Hammond acomodou Willis no quarto da extremidade do
hall, perto do seu, e voltou à cozinha para ir buscar Dite.
A rapariga riu-se, excitada.
-Acha que ele vai querê eu? Que faz eu c'o meu bebé?
-Eu toma conta dele -ofereceu-se Lucrécia Bórgia -Se ele quizé
mamá, eu dá pra ele. Agora vai, como patrão diz. 0 cavalheiro
branco é muito simpático. Eu reparou nele quando tava a jantá.
Claro, ele é novinho.



A juventude de Willis justificava que fosse Afrodite a escolhida, em
vez de ela própria.
Na manhã seguinte, o doutor Murrey acordou, totalmente sóbrio,
após a sua bebedeira. Aceitou de boa vontade o convite de Maxwell
para uma bebida antes do pequeno-almoço e bebeu o seu uísque
sem água, conservando-o na boca antes de o engolir, como se
apreciasse tanto o seu sabor como os efeitos que lhe produzia.
Insistiu em ver a criança que tinha vindo ajudar a nascer, e elogiou a
sua beleza, embora nada mais visse dela além do rosto minúsculo e
das pequeninas mãos. Os olhos estavam fechados pelo sono e ele
não pode ver o estrabismo. 0 Velho Senhor Wilson, nu e robusto,
também estava a dormir, no outro braço de Pérola Grande e,
embora o doutor cumprisse bem o seu dever elogiando a menina
branca, o seu interesse profissional concentrou-se no mandingo.
-Tome-lhe o peso, tome-lhe o peso -insistiu Maxwe11.
-Não vale a pena acordá-lo -disse o médico, apalpando a coxa da
criança.
-Não faz mal. Tome-lhe lá o peso -insistiu MaxwelI, pegando no
tornozelo do bebé e puxando-o para fora do braço da mãe.
0 médico riu-se ao ouvir o choro irado da criança assustada, e tirou-
a da mão do proprietário, segurando-o longe de si para evitar que
ele o sujasse. Sacudiu o bebé para avaliar o seu peso, que era
superior ao que ele considerava possível.
-Quinze ... dezasseis libras -avaliou.
-Mais, mais; é mais do que isso -insistiu Maxwe11.
-Claro, a mãe é muito corpulenta -observou o médico, entregando
novamente a criança a Pérola Grande e inclinando-se para lhe
levantar a saia e admirar a grossura das suas pernas.
-Havia de ver o pai! São mandingos puros -gabou-se Maxwe11.
Ambos.
-Nunca estudei tribos -disse o médico, encolhendo os ombros, Sempre
achei que um negro é um negro.



-Todos excepto os Mandingos -prosseguiu Maxweli. -São meio
rinocerontes, acho eu; são muito fortes. Mas são meigos e
obedientes como gatinhos. Nunca saiem da linha.
Quando Willis entrou na sala, não conseguiu deixar de corar, mas o
seu porte era másculo até à truculência. Pensou se Maxwell teria
falado ao médico em Dite; não receava a sua zanga, mas sim a sua
troça. 0 médico não estava em posição de se indignar com ele.
-Ele fartou-se de falar, não? -perguntou o médico, dando uma
palmada nos ombros do rapaz. -Geralmente faz isso. Sabe tudo o
que há para saber sobre tudo, ou pensa que sabe.
-Foi muito interessante ouvi-lo. Sabe muita coisa, para a idade que
tem -concordou Maxwe11.
-Vou ensiná-lo a ser médico, se não for ele a ensinar-me -disse
Murrey, rindo. -Lê livros, pensa que pode aprender a tratar pelos
livros, diz-me o que lê neles. É preciso aprender é com os doentes, é

o que eu sempre lhe digo. Não é verdade, Willis?
-Esteve a dizer-me que é filho de Willis Smith. Conheço o pai dele disse
Maxwell. -É parecido com ele, agora que o vejo à luz do dia,
também muito alto, mas mais bonito, mais elegante.
-Sim, é elegante. Vai sê-lo, quando se fizer mais forte -disse o
médico, acenando aprovadoramente com a cabeça. -0 senhor Smith
entregou-mo e disse-me que fizesse dele um médico, o rapaz está
interessado em sê-lo. E, por Deus, hei-de fazer dele médico, se ele
não quiser andar depressa demais.
Após o pequeno-almoço, o médico tentou justificar a sua inútil
visita, observando a paciente. Hammond levou-o a ele e a Willis ao
quarto de Blanche, onde encontraram a rapariga sentada na cama,
com um grande pequeno-almoço em frente. Encolheu-se, fugindo
do médico, recusando-se a deixá-lo tocar-lhe ou mesmo a deixá-lo
pôr-lhe a mão na testa, para ver se tinha febre; de qualquer modo,
era evidente que não tinha.


-Não posso beber um toddy, doutor? Só um? -suplicou ela. -0
Hammond não me quer dar, nem deixa os negros darem-me um.
-É a melhor coisa, a melhor coisa do mundo -disse o médico. Todos
precisamos deles.
-Ela costumava estar sempre a bebê-los, antes -disse o marido. Acho
que é a altura de parar. Não quero que ela seja ...
Harrimond calou-se, por consideração para com a fraqueza do
médico.
-Se os bebia antes, tem de beber agora. Não pode parar de repente.
Tem que ir diminuindo, diminuindo lentamente. Pode ter ataques,
ou coisa parecida. Não quer que ela tenha ataques?
Hammond reconheceu gravemente que não queria.
-Isso, toddies, tão quentes quanto a senhora Maxwell possa
aguentar, e na cama, pois não deve sair dela tão cedo; é tudo o que
precisa -declarou o médico. -Estará tão bem como dantes daqui a
dez dias, duas semanas.
Willis deixou-se ficar para trás, a escutar, a aprender, sem dizer uma
palavra. Os olhos de Blanche pousaram-se nele com admiração. Não
se teria encolhido, se fosse ele a tocar-lhe. Lucrécia Bórgia já lhe
tinha contado que Dite tinha sido a companheira de cama de Willis,
e Blanche invejava a sorte de Dite.
Os homens desceram, mas, pouco tempo depois, houve um toque
na porta do quarto. Tense abriu-a e entrou Willis, com um copo
fumegante na mão. Ele próprio preparara e trazia o toddy que o
doutor Murrey prescrevera. Não confiando em Tense para o servir,
levou-o até à cama e, com o braço esquerdo, amparou Blanche pela
cintura, enquanto ela bebia do copo, seguro na sua mão direita.
Willis não sabia ao certo se fora admiração pela beleza loura da
rapariga ou a sua vocação para curar as pessoas que o levara a
afastar-se dos outros homens e a voltar ao quarto.

Blanche bebeu lentamente, para prolongar o abraço do médico-
aprendiz. Os seus seios começavam a encher e sentia comichão.


Esteve tentada a falar disso ao médico, mas absteve-se por pudor.
Em vez disso, pegando com ambas as mãos na mão dele, levou-a à
testa e deixou-a lá ficar. Ele pediu-lhe que mostrasse a língua e
depois tomou-lhe o pulso, que batia rapidamente. Depois encostou
o ouvido ao peito dela, para ouvir o coração. Não sabia ao certo que
sintomas procurava; estava apenas a brincar aos médicos.
-É muito bom e muito amável -disse Blanche. -Não tenho medo
nenhum de si. Do outro tenho medo.
-Não há motivo para ter medo. Desejo que se ponha boa e de pé. É
só isso -respondeu o rapaz. -Esse toddy vai ajudá-la a melhorar.
-Acha que sim? já me sinto melhor -declarou a rapariga. -Vou
beber toddies, todos os que me apetecerem. Foi o que o doutor
disse, não foi?
Willis disse que sim.
-Mas não o tenho cá para me amparar enquanto os bebo -disse
Blanche, observando rapaz, de pé ao seu lado.
-Eu volto, quando passar por cá, para ver como vai indo -prometeu

o rapaz.
-Venha em breve, venha muitas vezes -insistiu Blanche. Willis
olhou para Tense, antes de se inclinar e beijar a sua paciente.
Quando Tense o levou à porta, apalpou-lhe os seios imaturos e deu-
lhe urna palmada nas nádegas.
-Se fores boazinha e não contares a ninguém o que eu fiz, peço ao
teu patrão que te mande deitar comigo, da próxima vez que eu cá
venha. Havemos de divertir-nos muito -disse ele à rapariga
inocente.
Tense respondeu-lhe:
-Sim, siô, patrão, siô. Não havia outra resposta a dar a um homem
branco. Tense não tinha a certeza daquilo que não deveria revelar.
Tinha visto o jovem beijar a sua senhora, mas não sabia que isso não
era costume entre os brancos, cuja natureza e costumes eram
inexplicáveis. Também não se ressentiu do atrevimento do jovem
para com ela, pois considerava-o como uma prorrogativa dos

brancos, e, além disso, achou-o agradável, embora vagamente
perturbador.

Capitulo quadragésimo terceiro

Oito dias mais tarde, Blanche pôde descer as escadas, com a ajuda
de Lucrécia Bórgia. Entretanto, tinha acalmado a sua impaciência
com toddies, que, em face do conselho do dr. Murrey, Hammond
deixara de lhe negar. Habituara-se a ir ao quarto dela todas as
manhãs e todas as tardes e, quando tinha tempo, ao meio-dia, mas
não lhe agradava fazê-lo, porque estava quase sempre embriagada
ou irritadiça, ou ambas as coisas. Contudo,ficou satisfeito por a
encontrar sentada em frente do pai, nasala, quando voltou para
jantar, apesar de ela estar a sorver um toddy.
Á pergunta do marido, Blanche respondeu:
-Acho que estou mais forte. Parece-me que sim. Penso que estes
toddies, como o doutor disse, me ajudam a ganhar forças.
0 conselho do médico justificava que ela bebesse tanto quanto lhe
apetecia.
Em relação à filha, Blanche sentia-se e continuava a sentir-se tão
indiferente como se não tivesse nascido. Não se preocupava com
Pérola Negra, excepto para lhe dizer que levasse as crianças da
presença dela quando choravam. Era geralmente Sophia que, sem
que se lhe diagnosticasse qualquer doença previsível, não conseguia
medrar. 0 Velho Senhor Wilson, por seu lado, glutão pelo seio
materno, crescia e prosperava e raramente chorava. Certa vez,
quando a impaciência do rapaz pelo seio de Pérola Grande o
excitou tanto que desatou a chorar, Blanche ordenou à negra que o


levasse para a cozinha e o espancasse até ele se calar. Pérola Grande
não hesitou em fazê-lo, mas as suas palmadas no rabinho redondo
só aumentaram o barulho, que continuou até o garoto adormecer de
exaustão.
0 favoritismo que a ama demonstrava pela filha do patrão não era
totalmente fingido, mas sim uma preferência real pela pequena
Sophia, branca, semelhante a uma boneca, em comparação com o
escuro Wilson, grande, robusto e cheio de vontade própria. Pérola
Grande bajulava Blanche e tinha medo dela, mas amava mais a filha
de Blanche do que o seu filho e as instruções que recebera para lhe
dar precedência eram desnecessárias. Era a sua própria vontade.
Não conseguia afastar os lábios grossos do rosto e do corpinho de
Sophia. Erguia-a ternamente e aninhava-a contra o seu peito
enorme, para acalmar a sua inquietação, enquanto que se mantinha
indiferente perante as birras ocasionais de Wilson, levantava-o
frequentemente por um braço ou por uma perna, e batia-lhe
sonoramente quando ele a aborrecia.
Para Pérola Grande, o Velho Senhor Wilson apenas servia para um
propósito -para esvaziar os seus seios, o que Sophía não conseguia
fazer. Comia muitíssimo e segregava leite em conformidade. Depois
de a bebé branca hesitar entre acordar e adormecer, à hora do jantar,
Pérola Grande apreciava o zelo com que o rapazinho negro se
atirava aos seus seios e os esvaziava até à última gota. No desinchar
dos seios, a enorme rapariga sentia algo semelhante a amor pelo
filho.
Enquanto Maxwell e Blanche iam sorvendo os seus toddies, ele
prestava pouca atenção aos frequentes elogios feitos a Willis Smith e
às reflexões dela sobre os motivos por que o rapaz não cumprira a
sua promessa de voltar.
-Não é que me importe que ele não venha, mas escusava de dizer
aquilo -terminava ela sempre.
-Há muitas doenças por aí e, com o Murrey bêbedo, penso que o
rapaz deve andar ocupadíssimo -respondia Maxwe11. -De


qualquer modo antes o queria a ele, apesar de não estar ainda todo
coberto de penas.
-Antes ele, antes ele -suspirava Blanche. Blanche estava já a pé
havia duas semanas quando certo dia Lucrécia Bórgia se aproximou
de Hammond, que passava pela cozinha.
-Acho melhõ fazê qualqué coisa pela Dite, siô, patrão -sugeriu ela. Ela
tem qualqué coisa, de certeza. Apanhou aquilo do branco que
veio cá tratá as pessoa.
Hammond interrogou Afrodite. Não havia dúvidas quanto à sua
doença e só a podia ter apanhado de uma pessoa.
-Maldito filho da puta -exclamou para o pai. -A espalhar a doença
em vez de curar as pessoas. Anda a espalhá-la, só a espalhá-la.
Apetece-me pegar na pistola e ir a Benson matá-lo.
-0 doutor Smith não fazia isso. Eu sei que ele não fazia, Hammond protestou
Blanche. -De qualquer modo é só uma negra.
-Negra ou não negra, podia passar a todos, a todos que temos disse
Hammond, deixando-se cair numa cadeira, com o rosto entre
as mãos. -E nos a querermos manter o nosso gado limpo. Nunca
tiveram nada, nunca tiveram nada antes.
-Não te rales, Ham -disse Maxwell, procurando acalmar o filho. Tiraste
o filho à Dite?
Claro que tirei. Fiz logo isso. Acho que ele ainda não tem nada. É
melhor mandar vir o Redfield. Ele há-de fazer qualquer coisa para
secar aquilo, ou qualquer outra coisa -prosseguiu o pai. -De
qualquer modo não é nada de mau. Metade dos negros em metade
das plantações do Alabama apanham-na de vez em quando, para
não falar nos homens.
-Por isso aquele Smith falava tanto da blenorragia e de como curála,
sabendo que a tinha ele próprio.
Hammond ergueu-se e pós-se a passear de um lado para o outro,
para se impedir de chorar.
-Hás-de encontrar o Redfield no sábado em Benson. Pergunta-lhe.
Diz-lhe que venha por cá, quando passar por estes lados.


-E eu que tencionava acasalar a Dite com o Medes, para ver o que
saía -disse Hammond. -Agora não podemos fazer isso.
Redfield perdeu pouco tempo. Chegou no domingo de manhã e,
após um toddy, com os MaxwelI, pai e filho, examinou Dite. Para o
veterinário, parecia uma brincadeira que os escravos dos Maxwell
tivessem uma infecção venérea.
-Já há muito tempo que não tinha nada, senhor Warren. Recordo-
me que há uns dez ou doze anos teve um macho -disse voltando ao
assunto.
-Comprei-o, comprei-o eu próprio, já a tinha-concordou Maxwe11.
-Mas vendi-o outra vez, antes de ele fazer alguma coisa, antes de
espalhar a doença. Só que o Ham não quer vender esta. Quer ficar
com ela, a mãe e o filho. Não ia vender a sua própria carne.
-Bem, isto desaparece depressa -predisse o médico. -Não há muito
a fazer, excepto evitar que se espalhe. -Tirou um saquinho de pano
do bolso e acrescentou: -Trouxe umas ervas secas da viúva que ela
diz que são boas. Diz mesmo que são extraordinárias. Eu? Eu não
digo nada. Pode experimentar. Faça um chá. É mais amargo que fel.
Aquele Smith! -disse Hammond, cuspindo. -Um médico, a fazer
aquilo!
-Podia ser qualquer pessoa -observou Redfleld. -0 senhor nunca
teve. Eu tenho tido, multas vezes; e julgo que o seu pai, quando era
novo.
Os homens tinham regressado à sala. Ouviram-se os passos de
Blanche nas escadas e foi preciso mudar de assunto. Meg trouxe
mais toddies, incluindo um para Blanche, que notou o silêncio e
ficou a pensar em que teriam eles estado a falar.
Redfield não se demorou muito, mas, à partida, Hammond insistiu
em que ele observasse Medes, que estava em excelentes condições, e
a prole de Medes, que mereceu a sua entusiástica aprovação.
-Não o dê àquela fogueira, é só o que lhe peço-avisou o médico. Isso
ia enfraquecê-lo, de certeza.


-A Dite, quer o doutor dizer. Não, senhor -disse Hammond. -Até
aí sei eu.
Blanche não demorou muito a perceber de que tinham estado a
falar, visto que soube pelos criados -em segunda, em terceira e
quarta mão, já distorcido -do conteúdo da conversa. Mesmo assim,
não compreendeu muito bem do que se tratava, visto que Dite não
estava de cama. Blanche desejava que a vítima tivesse sido Ellen.

Capitulo quadragésimo quarto

Chegou a época de lavrar a terra. Ventos fortes tinham secado os
campos e os torrões desagregavam-se, quando os arados os
revolviam. Para Hammond era uma época atarefada e punha a
trabalhar todos os escravos maiores, incluindo Medes, que colocou
atrás de um arado para arar a terra antes que as chuvas chegassem.
Não foi a Benson no sábado e os negros trabalharam mesmo no
domingo. Hammond tinha intenção de os compensar dando-lhes
um dia da semana para descanso, mais tarde, quando já não fossem
precisos. Sentia escrúpulos em privá-los do seu descanso de
domingo que era um velho hábito da plantação, mas ninguém
protestou.

Hammond só soube da chegada de Mad Church quando chegou a
casa para jantar e encontrou no estábulo os cavalos de Church, que
reconheceu serem Luar e Queridinho. Luar estava acompanhada de
um potrozinho castanho, de longas pernas e ar estilizado, o
resultado provável, segundo Hammond calculava, da excursão após
a qual Hammond encontrara Mad na taberna de Fairfax.
Queridinho já tinha dois anos e transformara-se num elegante


animal, de pescoço longo de crina comprida, uma cabeça pequena e
clássica, orelhas pequenos e olhos angelicais. Hammond recordava-
se da caprichosa decisão do jovem de lhe dar o potro, o seu mais
precioso bem, e pensou se Mad teria vindo para insistir no presente.
Ficou aborrecido por ver os trabalhos interrompidos por aquela
visita, por muito curta que fosse.

Entrou em casa e encontrou o pai, a mulher e o seu amigo a beber
toddies. Blanche estava bem espartilhada no seu melhor vestido
castanho, calçada, com o cabelo bem penteado. Sentiu-se orgulhoso
dela. Madison Church, vestindo um longo casaco cor de ameixa, o
mais parecido que conseguira arranjar com aquele que Hammond
levara para o casamento, ergueu-se para ir ao seu encontro. Apertou
calorosamente a mão de Hammond, enxugou uma lágrima com a
mão esquerda e depois, incapaz de controlar as suas emoções, caiu
nos braços de Hammond e enterrou a cara no seu peito.

-0 que tem? Porque está a chorar? Eu não lhe fiz nada -protestou
Hammond, confuso.
-E por voltara vê-lo -soluçou Mad. -É só poro ver. Senti vontade de
chorar. Foi só isso. Não consegui evitar. É o meu amigo, o meu
melhor amigo, o meu melhor amigo. Agora estou ao pé de si.
-Pronto, está aqui, não está? Eu sou o mesmo. Deixe de chorar.
-Não posso. É de o ver. Só de pensar que estou a vê-lo. -0 jovem
voltou a cair na cadeira. -Tenho estado a pensar nisto desde que o

vi. Tenho estado a pensar em cá vir.
Puxou de um lenço sujo e limpou os olhos.
-Vi logo que cá estava, quando vi os seus cavalos. Aquele
potrozinho está a crescer muito bem.
-E está mesmo. Ele e o Triunfo. Ainda não viu o Triunfo -disse
Mad, arrastando-o ao local onde se encontrava, sentado no chão, ao
lado da cadeira. -Não está crescido? E sabe, todas as marcas de
chicote que tinha nas costas curaram-se e desapareceram.

Triunfo usava o mesmo fato azul com botões de latão que Meg
usara para o casamento, mas crescera tanto que os punhos já saíam
das mangas, e as calças chegavam apenas a meio da coxa, tão
apertadas que ameaçavam romper-se. Avançou, sorrindo, confiante
e ficou plantado em frente de Hammond, que mediu os ombros do
rapaz e lhe apalpou os biceps, aprovadoramente.
-Está a crescer, tem boa carne -disse Hammond,
despreocupadamente. -Penso que não quer vender-mo outra vez,
pois não?
-Vender-lho? Vender-lho? Não! Não, senhor. Não o vendo. Não o
trocava por uma bela soma. Pois não, Triunfo? -Mad puxou outra
vez o escravo, fazendo-o ajoelhar ao seu lado, abraçou-o e deu-lhe
um golo de uísque. -meu, é o meu macho de brincar. Ninguém fica
com ele.
-Já é muito crescido para ter um macho de brincar -comentou
Maxwe11. -Acho eu.

-Não me importa. É meu e há-de continuar a ser meu -afirmou o
rapaz.
-0 senhor Church ainda não tem mulher, avô -disse Blanche, a
título de justificação. -Não é verdade, senhor Church? Tem que ter
qualquer coisa.
Blanche começara a chamar avô a Maxwell logo que Sophia nascera.
Como resposta, Mad fez uma careta de nojo. Ao jantar, os gêmeos
agitaram os seus leques de penas de pavão e Triunfo ficou de pé
junto da cadeira de Mad. De vez em quando, o patrão dava de
comer ao escravo, com o seu próprio garfo, e parecia que o rapaz
tinha efectivamente tomado aquela posição para esse fim. Meg
olhava para eles, de boca aberta, espantado com aquela quebra das
boas maneiras, e Maxwell decidiu não expressar o seu desagrado.
Blanche espetava o dedo mínimo, com ostensiva elegância, e sorria
em aprovação a tudo o que Mad fazia ou dizia. Achava que seria
agradável ter Tense junto dela e dar-lhe um pouco de comer, de vez


em quando, não o melhor do prato, como Mad fazia com Triunfo,
mas as gorduras que ela própria não comia.


Blanche recordava-se de Madison Church quando o vira, em casa
dele, mas aquele já não era o mesmo. Tinha enchido e alargado,
entretanto, e, dentro do seu longo casaco cor de ameixa, erecto e
decidido, pareceu-lhe distinto. 0 problema era que Madison a
ignorava -delicada mas nitidamente. Isso excitou o seu interesse
por ele.


Erguendo-se da mesa, Hammond pediu que o desculpassem.
-Estou a fazer a sementeira -explicou. -Tenho de a acabar
enquanto o tempo não muda. Fique com o meu pai e a senhora
Maxwell, até à tarde, e depois falamos. Espero que fique algum
tempo em Falconhurst.
-Perdeu um -disse Mad, de súbito. -Disseram-me que perdeu um.
-Perdi um, um quê? -disse Hammond, de sobrolho franzido.
-Um. Um criado. Dizem que fugiu -disse Mad, corri ar
despreocupado.
Hammond esquecera-se de Ás, absorvera a perda.
-Sim, já há tempo -admitiu Hammond. -0 irmão do que eu lhe
vendi. Fugiu, para o Norte, penso eu.
-Não, não foi para o Norte. Eu sei onde aquilo está, anunciou
Madison, calmamente.
-Onde? Onde está aquilo? Hammond foi atrás de Mad, no uso do
gênero neutro para um escravo.
-Atado a um sicómoro.
-Um sicómoro? Onde?
-Para aqueles lados -disse Mad, acenando vagamente com a mão.
-Porque não disse logo? Venha, vamos buscá-lo. Vai morrer de
fome.
-Hammond imaginava que Ás tinha estado atado a uma árvore
desde a sua fuga.



-Não há problemas. Não tem fome. Deixei-lhe comida -explicou
Madison, tranquilamente, sem mostrar pressa.
-Venha, vamos buscá-lo -repetiu Hammond, excitado.
-Uma coisa -especificou Mad. -Não vai chicoteá-lo. Não fez mal
nenhum, só fugiu.
-E não basta? -inquiriu Maxwe11.
-Eu sempre disse que Ás tinha feitiço -interrompeu Blanche, fora
de propósito.
-Não vou só desancá-lo. Vou arrancar-lhe a pele, vou mesmo
arrancar-lhe a pele. É a única maneira de tratar um fugitivo. Não fiz
isso da outra vez, e está a ver? Fugiu de novo.
-Foi só para 'r ver o irmão -disse Madison, minimizando o pecado.
-Se não me diz que não o chicoteia, não lhe mostro o sítio onde o
escondi ameaçou.
-Isso não é legal, afastar um negro do seu dono -argumentou
Maxwell. -0 senhor não ia fazer isso, pois nã o, senhor Church? Não
é legal.
-Seja legal ou não -escarneceu Madison. -Tem de prometer,
prometa que não o chicoteia.
-Tu não vai deixá siô branco chicoteá o Ás, pois não, patrão? perguntou
Triunfo e o amo colocou um braço por cima dos ombros
do rapaz, para o tranquilizar.
Hammond viu que Mad falava a sério, que não conseguia demovêlo.
-Bom, desta vez, não. Não o chicoteio. Mas faço-o da próxima vez
que ele fugir. Um fugitivo, foge sempre -prometeu ele, na
esperança de nova fuga.
-E também não lhe vai fazer mais nada, no gênero de lhe pôr uma
coleira ou de o fazer passar fome. Vai tratá-lo bem -especificou
Mad. -Nem sequer o vai injuriar.
Ás pertencia aos MaxwelI, era sua propriedade, sua mercadoria, e
eles podiam fazer dele o que lhes apetecesse. Quem era aquele
vaidoso para lhes dar ordens? Hammond não fizera reservas quanto


à sua promessa de não o chicotear, mas deixá-lo passar sem castigo,
fosse ele qual fosse, era invocar sarilhos, não por As, mas porque
isso seria um mau exemplo para os outros escravos. Hammond
hesitou.
-0 Triunfo quer que o faça. A minha mãe quer assim. A Eminaline
quer assim. Eu próprio quero que assim seja-continuou Mad. -Logo
que o meu avô morra, ele já está velho, venho cá e compro-lho, seja
pelo preço que for. Vou ser rico. Não o quero estragado.
-Nesse caso -disse MaxwelI, fazendo uma relutante concessão.
Claro, o que era justo era que fizéssemos dele um exemplo.
Hamniond olhou para o pai e acenou afirmativamente.
-Está bem, então. Não lhe faço nada, desta vez. Venha comigo,
vamos buscá-lo.
-Eu sabia que não lhe faria mal -disse Madison, como se a
promessa tivesse sido feita voluntariamente.
-Venha, vamos buscar os cavalos-insistiu Hammond, impaciente. É
preciso continuar a lavrar.
-Não há pressa. Ainda agora comemos -disse Mad, massageando o
estômago cheio, enquanto se sentava numa cadeira da sala. -Não se
solta. Aquilo está bem preso. Além disso, tenho de dar de comer a
Triunfo.
-A cozinheira pode dar-lhe de comer, depois de partirmos.
-0 Triunfo também vai. Vai comigo para toda aparte, e sou eu
sempre quem lhe dá de comer, não é Triunfo? Assim como também
dou sempre eu de comer aos cavalos, eu e Triunfo.
Madison recusou-se a apressar-se. Bebeu um toddy após o jantar,
com os MaxwelI, antes de ir à cozinha supervisar a refeição de
Triunfo, que já estava meio-comida. Com grande aborrecimento,
não expresso, de Lucrécia Bórgia, Madison deixou-se ficar na
cozinha, tirando mais comida da panela e levando-a para junto do
rapaz, sentado à mesa, a comer. Mad estava preocupado, com medo
que o seu escravo não comesse bastante do que lhe dava. Andava à
volta dele, ensopava-lhe o pão no molho, cortava-lhe a


carne e, de vez em quando, como uma ave a alimentar um filho,
pegava num pedaço de comida e metia-a na boca do rapaz.
Meg e Alph riam-se, num embaraço divertido, perante a solicitude
do branco e não faziam qualquer esforço para manter os olhos nos
pratos dos seus patrões, dos quais era costume comerem. Tinham os
pratos bem cheios de comida, de que se tinham servido eles
próprios, e que não tinham pressa em comer.
-Achas que te chega? Não queres outro ovo! -perguntou Madison,
com a mão sobre o ombro de Triunfo.
0 rapaz sorriu para o patrão e abanou a cabeça.
-Tens de dizer: não, siô, patrão, siô -avisou Madison. -Não deves
só abanar a cabeça a dizer <@não". Tens de aprender a ser bem
educado. Que vão pensar aqueles?
0 rapaz repetiu a fórmula, com ar envergonhado.
-Comeste bem? De certeza? Não me parece que tenhas comido
nada disse o patrão.


Triunfo limitou-se a acenar negativamente e afastou-se da mesa;
Madison não reparou na omissão da fórmula. Apalpou o estômago
do rapaz, para ver se estava cheio e, retirando do bolso o lenço sujo,
com que enxugara as lágrimas, limpou a acumulação de ovo e
molho em volta da boca do rapaz, cuspiu no lenço para o
humedecer, e limpou-lhe os últimos vestígios de comida da cara.
Triunfo aceitava estas atenções como se lhe fossem devidas, embora
não se tivesse esquecido do desprezo que sofrera às mãos do seu
anterior dono. Sabia que estava à disposição do seu patrão, era uma
coisa, um animal doméstico, que se podia conservar ou vender,
amimar ou maltratar, e não se ressentia das atenções e dos mimos
efeminados de Mad.
-já lhe mudou a fralda? -perguntou MaxwelI, enquanto Mad
conduzia de novo o rapaz, com a mão no ombro dele, para a sala.



Mad não se apercebeu do sarcasmo da pergunta e respondeu
seriamente: _Ele não usa. É domesticado, porta-se bem. Não estou a
falar verdade, Triunfo?
Hammond, pra impedir os sarcasmos do pai, propôs a Mad que se
apressassem. Desejava, sobretudo, recuperar o seu mestiço e
regressar para supervisionar o trabalho.
-Vou mandar buscar os cavalos -disse.
-Não! Não! Não mande. Nós selamo-los. 0 Queridínho desata aos
coices se ve um negro estranho -avisou Madison, erguendo-se e
fazendo sinal a Triunfo.
Montando Eclipse, Hammond foi até aos seus campos, para
supervisionar os trabalhadores que manejavam os arados, enquanto
Mad e o seu rapaz alimentavam os cavalos, lhes davam água e os
escovavam, antes de os selarem. Mad amimava os seus cavalos tal
como amimava o seu escravo, obrigando-os a comer e a beber,
escovando-lhes o pêlo, dando-lhes beijos no focinho, cheio de
admiração pela sua beleza.
-Temos de ir devagarinho por causa da Perna Alegre -disse Mad,
montando em Luar. -Viemos sempre devagar por causa dela.
-Qual é a Perna Alegre? -perguntou Hammond.
-É a potrazinha da Luar -explicou Mad. -É muito novinha e ainda
não nos consegue acompanhar.
-0 Queridinho pode, patrão, siô -disse Triunfo, montando no jovem
alazão. -E quase tão forte como a mãe dele.
-Só contigo em cima, pode-admitiu Mad. -Por enquanto não posso
montá-lo eu. Tem de crescer primeiro.
-Vai fazer dele um cavalo de corrida? -perguntou Hammond,
passando os olhos com aprovação pelo animal.
-Não me importava, mas é preciso chicotear um cavalo de corrida.
Ninguém há-de pôr o chicote no Querídinho.
-Se ele não ganhar corridas, ninguém quer levar-lhe éguas, para ele
cobrir -disse Hammond.
Madison cuspiu.



-Não o quero para garanhão. Ele não quer isso. Ele é muito
amoroso, o Queridinho.
0 grupo seguiu pela álea fora, com Hammond no Eclipse à frente,
impaciente pelo atraso do potrozinho. Madison apanhou-o e, ao
chegar à estrada, voltou para a esquerda. Blanche tinha vindo até ao
varandim para acenar, quando eles passaram pela casa, alternando
a sua pretensa indiferença.
A Primavera estava luxuriante, a estrada estava ladeada de ervas
altas e os abrunheiros começam a florir. Mas Hammond não viu
nada disso. Os seus pensamentos ficavam para trás nos arados que
revolviam o solo do qual havia de nascer o algodão. Aquela
expedição era uma perda de tempo; Mad bem podia ter levado o
mestiço até Falconhurst em vez de manter em segredo o local para
onde iam.
-A que distância fica? Onde é que o tem? -perguntou Hammond,
ao fim de uma milha.
Partira do princípio de que o esconderijo de Ás não seria longe.
-Vai-se até ali e depois em frente -foi a informação que Mad lhe
proporcionou.
Cerca de duas milhas mais adiante, Mad puxou as rédeas à égua e
voltou-se para Hammond.
-Não lhe vai fazer nada, nem chicoteá-lo, nem nada? Prometeu-me
exigiu ele.
Hammond voltou a dar a sua palavra. Saltando uma pequena
ravina, Mad fez a égua penetrar num bosque, ao
lado da estrada. Hammond viu marcas de ferraduras na relva e um
caminho aberto, onde as ervas daninhas tinham sido pisadas, havia
pouco tempo. Para lá da floresta havia um prado aberto e, por trás
dele, um bosque de sicómoros, em direcção aos quais Madison
galopou, seguido de Hammond e de Triunfo, com o potrozinho
atrás. Ao chegar perto das árvores, Mad desmontou para evitar os
ramos e, passando a brida sobre a cabeça de Luar, guiou-a por entre
as árvores.


No chão encostado a um pequeno sicómoro separado dos restantes,
estava Ás, com as mãos algemadas e acorrentado à árvore. Ao seu
lado estava uma caçarola com comida, coberta de formigas, fora do
alcance das suas mãos. Mad, preocupado com ele, tinha colocado a
caçarola junto do rapaz, antes de o acorrentar e posteriormente
esquecera-se de que ele não a poderia alcançar. Os olhos de Ás
estavam vermelhos e tinham corrido lágrimas de impotência e
frustração pelo seu rosto, onde haviam secado. Tremia de medo.
-Eu nunca mais faz isto, patrão, siô -disse ele, estremecendo, ao ver
Hammond. Eu não volto a fugi, patrão, siô. Eu trabalha. Eu é bom.
Não castiga eu, por favô, siô. Não castiga eu.
Lutava com as suas algemas.
-Não te vai castigar. Prometeu-me. 0 teu patrão não te vai chicotear
nem nada. Não tenhas medo -garantiu-lhe Mad, enquanto tirava do
bolso a chave das algemas e soltava os braços de Ás.
-Anda -ordenou Hammond severamente. Ao ver o fugitivo a sua
ira ressurgiu. Desejou não ter prometido uma clemência que os seus
sentimentos para com o culpado não lhe inspiravam. -Anda repetiu.
Sabia que, se dissesse mais, começaria a insultá-lo. Ás flectiu os
braços e levantou-se, com dificuldade.
-Tava cum medo que ficasse escuro e tu não viesse. Há malandrins
nestes bosques. Eu ouvi eles, patrão Ham. -disse Ás.
-0 dia ainda não acabou. Olha para o sol. Sabias que não ia deixar-te
ficar aqui durante a noite -admoestou-o Mad.
-0 patrão num deixava. 0 meu patrão num deixava, Ás -garantiu
Triunfo ao irmão, agarrando-lhe o braço com afecto.
-Eu monto no Queridinho -decidiu Madison. -Não quero que ele
leve carga dupla. Vocês, Ás e Triunfo, montam Luar.
Trocou de cavalo com os escravos.
-Deixe-o correr ao nosso lado. É o melhor. Sempre é uma lição. Ele
não pode fugir -sugeriu Hammond.
Madison olhou para Hammond de frente, com as pernas afastadas:


-0 Senhor disse... -começou ele.
-Disse que não lhe batia -protestou Hammond.
-Disse que não lhe batia nem lhe fazia nada. Disse que ia ser bom
para ele. É um cavalheiro ou não? Mantém a sua promessa ou não?
-0 que é que eu lhe fiz? -perguntou Hammond, na defesa.
-Não é o que lhe fez, mas o que pensa fazer-lhe -retorquiu
Madison, desconfiado.
Ás encolheu-se quando Hammond avançou para ele, embora a
intenção do patrão apenas fosse ver em que condições ele se
encontrava. Mediu-lhe os ombros, apalpou-lhe os braços com
aprovação.
-Ele cresceu -foi a conclusão que tirou. -Deve ter comido bem. E
também aumentaste em altura, parece-me.
-Eu tinha-o trazido mais cedo, se não fosse a minha mãe. Ela queria
acasalá-lo com a Errimaline. Calculou que o senhor não se
importasse -explicou Madison.
-Raios, não! -disse Hammond. -Tive sorte em recuperá-lo.
-A mamã é que fez aquilo. Eu não o fazia. Eu próprio não o faria disse
Mad, negando responsabilidades.
-Está certo -disse Hammond, montando.
-A Errimaline já está com uma barriga bem grande -disse Mad,
montando Queridinho. -Espero que nasça um macho.
-Errimaline é minha mulhé agora, patrão, siô -proclamou Ás,
montado atrás de Triunfo, sobre a Luar. -Num é, patrão Mad, siô?
-Tua mulher! -troçou Hammond. -Há-de ser mulher de uma dúzia
antes que tu voltes a vê-Ia.
-Há-de ser tua quando o meu avô morrer e eu te comprar -disse
Madison, consolando o escravo.
0 grupo atravessou lentamente o espaço aberto e o bosque e
regressou à estrada. Madison sentia-se mal por carregar Queridinho
com o seu próprio peso e Luar com o peso dos dois irmãos,
Hammond seguia à frente, na esperança de lhes dar um ritmo mais
rápido, ao qual os puro-sangue de Church teriam aderido corri



prazer, se não fossem os cuidados do dono da casa. A certa altura
este parou mesmo, o que muito irritou Hammond, para permitir
que Perna Alegre mamasse.
Ao chegar à plantação, Hammond dirígiu-se logo para os campos,
para ver como tinha prosseguido o trabalho, na sua ausência, e
Madison levou Ás à cozinha para insistir com Lucrécia Bórgia para
que esta lhe desse a refeição que ele perdera. Embora grato a
Madison pela devolução de Ás, Hammond sentia desprezo pelo seu
hóspede, ressentia-se das condições que ele lhe impusera e sentia
repulsa pelos seus cuidados com o conforto de Triunfo, que
sobrepunha ao seu próprio bem-estar. Depois de Ás ter comido,
Mad e o criado levaram os cavalos para o estábulo e aí passaram
uma hora com eles, escovando-os, esfregando-os, beijando-os e
admirando a sua simetria e as suas qualidades.
-Porta-te bem -aconselhou o dono a Queridinho, dando-lhe um
beijo final. -Não tenhas medo. 0 Madison já vem e já vais cear.
-Não tinha qualquer dúvida de que o potro compreendia as suas
palavras e lhe retribuía o seu afecto.
Quando Madison voltou seguido de Triunfo à sala, onde Blanche e
Maxwell bebiam os seus toddies, a rapariga fez um ar amuado:
-Demorou tanto tempo. Deve estar estafado.
-Não foi muito tempo. Tivemos de ir devagar porque o Queridinho
é muito novinho ainda -explicou Madison.
-A mim, pareceu-me muito tempo -disse Blanche com um sorriso
malicioso. -Meg, arranja um toddy para o senhor Church. Não vês
como ele está cansado? Descanse e beba um golo do meu, enquanto
ele lhe arranja um -disse ela a Madison.
Ergueu-se e levou-lhe o copo à boca, enquanto, com a outra mão,
lhe acariciava o cabelo.
Madison fechou a boca e recusou-se beber do copo dela. Alisou de
novo o cabelo, no sítio onde a rapariga o acariciara.
Ao ver a reacção do rapaz, Maxwell abanou a cabeça para Blanche.


-Nunca deves fazer isso-censurou-a. -Ele é tímido e fica aborrecido.
Madison não era assim tão tímido, nem ficara embaraçado, mas sim
desgostoso pelo contacto coma mulher, que não lhe parecia
impróprio, mas sim desagradável. Não podia suportá-lo.
Meg trouxe o toddy que Madison ia bebendo e partilhando com
Triunfo, sentado no chão, ao lado da sua cadeira.
-Patrão, eu pode lá ir para fora brincá com Ás? -perguntou o rapaz,
reunindo toda a sua coragem e pondo-se de joelhos.
-Para que é que tu julgas que eu te quero, se não for só para mim?
respondeu o patrão, negando satisfação ao pedido. -Ficas aqui
muito quietinho e portas-te bem. Além disso, o Ás está cansado.
Madison abraçou o rapaz pelos ombros e puxou ternamente a
cabeça dele para a sua coxa.
-Já está a trabalhar, penso eu -disse Maxwe11. -0 Hammond está
com falta de pessoal.
Cortou um pouco de tabaco e ofereceu-o ao seu convidado, que
recusou.
-Acha que ele o pôs a trabalhar por ter fugido? -perguntou
Madison, apreensivo.
Maxwell riu-se.
-Vai trabalhar bastante aqui, para ver se lhe passa a mania de fugir.
Não faz mal nenhum. Não o vamos chicotear nem matá-lo à fome. 0
Hammond já lhe disse. Não lhe chega?
-Ele garantiu que não lhe fazia nada.
-Então não faz, pode estar certo disso. A palavra de Hammond é
lei. Mas não pode contar que ele deite um fugitivo num leito de
penas, como o senhor faz ao seu.
-0 senhor Church também não faz isso, avô, tem uma almofada
para ele -disse Blanche, vindo em defesa de Mad. -Mas gosta de ter


o rapaz ao lado dele, para o caso de querer alguma coisa. Não é,
senhor Church?

Capitulo quadragésimo quinto


Madison não poderia partir na tarde do dia em que chegara.
Hammond partira do princípio de que ele passaria a noite em
Falconhurst, mas pensou que ele partiria no dia seguinte.
Hammond regressou a casa exausto, pelo dia de trabalho. Tinha
passado doze horas na sela. Um toddy após a ceia e estava pronto
para ir para a cama. Como conhecia o desinteresse de Madison
pelas mulheres, conduziu-o ao quarto sem lhe oferecer uma fêmea.


Blanche também foi para a cama, depois de ter bebido três toddies e
Hamniond lhe ter proibido que bebesse mais. Os MaxwelI, pai e
filho, sentaram-se, ao crepúsculo.
-Não estás a cumprir o teu dever, filho -disse finalmente o mais
velho.
-Não estou? Eu faço tudo.
-A Blanche. É a ela que me refiro. Está a ficar inquieta, a enfeitar-se
toda para aquele Madison. Está sempre a fazer-lhe olhinhos -disse
Maxwell. -E se ela conquista o rapaz ...
-Eu mato-o. Expulso-o daqui para fora -ameaçou Hammond. Porque
não medisse? Se aquele labrego anda à voltada minha
mulher, eu ...
-Eu estou a avisar-te. Mas não é ele. Ele não fez nada. Parece nem a
ver. Na realidade, creio que não a vê, mesmo.
-Então é ela -ofegou Hammond.
-Enfeitou-se e portou-se muito elegantemente. Só por causa dele.
Esta manhã até tinha pó-de-arroz na cara, parecia que tinha saído
de um barril de farinha.
-Nunca pensei que ela fosse desse gênero. Que hei-de fazer?
Mandar embora o Mad? Eu próprio gostava que ele fosse; mas



como ele me trouxe o mestiço, não posso mandá-lo embora.
Especialmente se me diz que ele não fez nada.
Hammond estava perplexo.
-E tu também não fizeste nada -acusou o pai. -Queres um filho.
Como é que julgas que vais ter um, a conversar e a divertires-te com
a rua negra todas as noites, e deixando a tua mulher sozinha?
-0 pai disse, o próprio pai mo disse, que uma branca não gosta
dessas coisas. A Ellen serve para poupar a Blanche. Disse que não
fazia mal eu ter a Ellen. E também não me interessa que faça mal.
-Está bem, está bem que a tenhas. Sim. Não faz mal. Mas não está
certo que te apaixones por ela. Tu fazes pouco do Mad Church com


o seu mestiço. Tu estás na mesma, tu próprio, com aquela fêmea. De
vez em quando tens de dormir com a tua mulher. Especialmente se
queres ter outro filho. Não estou a fazer-te sermões. Não estou a
interferir. Nem um bocadinho. -Maxwell termina a sua diatribe. Mas
acho que devias saber. Por isso Blanche põe pó na cara. Por isso
ela bebe tanto uísque. Por isso ela faz olhinhos a todos os
cavalheiros que por cá passam. Não é exactamente por mal, penso
eu.
Hammond não revelou as suas intenções ao pai, mas foi o último a
ir deitar-se e foi ao quarto da mulher. Vendo que ele não ia para a
sua cama, Ellen, sentindo-se deslocada e abandonada, como havia
muito pensava ser inevitável, chorou até adormecer. Era cedo
demais! Sabia que não passava de uma negra, de uma escrava, de
um objecto, que podia ser posto de lado por um capricho, que não
podia enfrentar uma branca com quem o seu patrão, ainda por
cima, estava casado, uma mulher de pele branca e com vestidos
bonitos para a cobrir.
Triunfo recuperara parte das suas forças de manhã. Pôde seguir o
patrão quando este foi ao estábulo tratar dos cavalos, mas não
conseguiu ajudá-lo na sua tarefa. Madison estava radiante com a
recuperação do rapaz e, enquanto tratava de Queridinho, contou ao


cavalo tudo o que tinha sucedido e garantiu-lhe que Triunfo já o
escovaria no dia seguinte.

Bem espartilhada, no seu terceiro vestido, que agora estava muito
apertado porque o seu corpo alargara, Blanche encheu-o de
gentilezas. Agora que Harrimond voltara para ela, tinha menos
importância que Madison não se interessasse por ela. No entanto,
ainda não desistira totalmente e acreditava que o seu vestido e as
suas maneiras a tornariam irresistível. 0 que mais a humilhava era
ser rival de um rapazito negro.
-Não percebo, senhor Church, porque se interessa tanto por aquele
macho -disse, de súbito. -Em breve ele estará suficientemente
grande para o vender, penso eu, mas não me parece que seja
vigoroso e perfeito, por forma a render-lhe muito dinheiro.
-Triunfo? -perguntou Mad, encostando a cabeça do rapaz ao seu
ombro. -0 Triunfo? Não tenciono vendê-lo nunca. Vou ficar sempre
com ele. Não é, Triunfo?
0 rapaz inclinou a cabeça, em sinal de assentimento. À noite, depois
da ceia, quando Hammond invadiu a cozinha de Lucrécia Bórgia,
encontrou-a apinhada. Ellen e Dite lavavam e limpavam os pratos,
os gémeos comiam, Mad andava à volta de Triunfo, obrigando-o a
comer, Merrírion empilhava lenha para a lareira, Pérola Grande
dava de mamar a Sophia e ao Velho Senhor Wilson, a filha de
Lucrécia Bórgia dormia num cesto. Lucrécia Bórgia não tinha
reticências, mas o seu riso de despreocupação era fingido.
-A Ellen quê sabê pra onde vai dormir. Diz pra eu pergunta o
patrão, siô. Ela tá cum medo de perguntá -e Lucrécia Bórgia soltou
uma gargalhada,
Ellen, tensa, aguardava a resposta.
-Onde vai dormir? -repetiu Hammond. -Vai dormir onde sempre
tem dormido, na minha cama. Eu nunca disse para ela sair de lá.
-Ela pensou que talvez, tu não quisesse, como tu não foi na outra
noite


-Lucrécia Bórgia não sabia bem como é que ela queria que o
assunto fosse posto.
-Só se ela não quiser -acrescentou Hammond. -A Ellen pensou,
porque eu, na noite passada?
-Ela num sabe, siô, patrão, siô -disse Lucrécia Bórgia. Hammond
dirigiu-se à mesa junto da qual Ellen se debruçava sobre o alguidar
e envolveu-a com um braço.
-0 que sucedeu ontem à noite, sucederá só de vez em quando. Serás
minha esta noite e a partir daqui -disse-lhe. -Não te preocupes.
Nunca te preocupes, Ellen. És minha, tu sabes que és minha.
Depois desta garantia e da desaparição das suas dúvidas, os olhos
da rapariga encheram-se de lágrimas e ela enterrou o rosto no
casaco do patrão, chorando de satisfação.
-Eu disse a ela, eu disse a ela pra não se ralá -murmurou Lucrécia
Bórgia.
-Eu vou esta noite, vou de certeza -prometeu Hammond. Blanche
esperou, nessa noite, pela chegada do marido. Finalmente, vendo
que ele nã o chegava, ergueu-se e foi em bicos dos pés até ao hall,
onde viu Meg adormecido em frente da porta do quarto do patrão.
Voltou para o seu quarto, atirou-se para cima da cama e chorou, até
adormecer. Compreendeu que Hammond tinha feito a sua escolha.
E Madison ficava indiferente aos seus encantos. Quando se
levantou, de manhã, tirou os brincos da gaveta da sua cómoda e
colocou-os nas orelhas. Sabia que eles eram bonitos, mas não
conseguia decidir-se a usá-los, e tirou-os de novo. Não queria ser
marcada como propriedade de Hammond, usando-os, por muito
que eles pudessem encantar Madison Church. Lembrava-se de que
Madison a vira com o vestido de lã estampada, após o casamento,
mas já tinha usado os três outros vestidos sem qualquer reacção.
Tirou o vestido de lã do roupeiro e vestiu-o, mas, quando Tense
tentou apertá-lo, verificaram que ela lá não cabia dentro dele. Não
podia ser abotoado, sequer. Despiu o vestido.


De qualquer modo que importava isso? Os únicos interesses de
Madison eram o seu negro e os seus cavalos; estava imune aos
encantos femininos. As tentativas de Blanche para o conquistar
eram inocentes -pelo menos ela pensava que sim. Mad, pensava ela,
seria um dia rico, mas ela não tinha outros desígnios, além de
excitar o ciúme de Hammond. Para quê tentar?

De qualquer modo, Madison era tratado como se fosse da família.
Para que havia de continuar a fazer-se elegante? Uma bata limpa
chegava bem e sentia-se mais confortável do que com os seus
vestidos formais. Claro, calçaria sapatos e meias e pentear-se-ia. Os
dias estavam a ficar mais quentes.
Madison interessou-se tão pouco por Blanche de bata de algodão
azul, como vestida de seda. Em vez de ficar em casa para conversar
e beber toddies, como Blanche desejava, foi ter com Hammond ao
campo, levando com ele Triunfo, já recuperado.
-Aquele senhor Church -observou Blanche ao sogro -nem parece
humano.
Maxwell riu-se.
-Não por mal -disse ele. -Só quer ter a certeza de que Ham não
castiga o mestiço que fugiu. Não sei é como vamos livrar-nos dele.

-Parece que nem nota que nós estamos aqui. Nada mais lhe
interessa, além do machozinho. E Hammond, é claro -acrescentou
Blanche. -Parece louco pelo Hammond.
-Claro, ele pode ficar o tempo que quiser, é um cavalheiro branco.
Mas o Ham não precisa de ser vigiado. Ele cumpre a promessa de
não castigar Ás
-disse Maxwell.
A estada de Madison em Falconhurst já ia em três semanas e não se
avistava o final da visita. Blanche desistira das suas ideias de
conquista, embora continuasse a gostar do rapaz; e os Maxwell já se
tinham resignado a conservá-lo corno hóspede permanente. A sua
presença não trazia inconvenientes, e considerar as despesas com a


manutenção de um convidado teria sido uma violação da
hospitalidade. Contudo, a meio da semana, Hammond, ao voltar
dos campos para jantar, acompanhado por Madison e Triunfo, viu
um negro a dormir por baixo da nissa, em frente da casa. Ao seu
lado, na estrada, estava urna mula esquelética, sem sela, com a
brida passada por cima da cabeça.
-Aquele negro não é nosso -comentou Hammond para Mad. Gostava
de saber de onde é que ele veio. Avançou e, com o pé,
sacudiu o preto, para o acordar. -De quem é s tu? -perguntou
Hammond.
0 negro sentou-se.
-Eu é um nêgo do patrão Mad Church -murmurou ele, esfregando
os olhos. -Ele tá cá, por favô, siô, patrão.
-É o Lucke -gritou Madison, reconhecendo o seu escravo e
correndo a abraçá-lo. -Lucke? Donde vens tu, rapaz?
-Patrão, Mad. Patrão, Mad, siô -disse o negro, cuja expressão se
iluminou. -A sinhora mandou eu cá, siô. Ela diz para dizê ao siô
pra ir embora. Nós vai pró Norte. Ela diz pra ir imbora, siô, por
favô, siô.
-Para o Norte? -perguntou Madison desorientado.
-Sim, siô, patrão. 0 avô do siô morreu, diz a sinhora, e nós vai pró
Norte.
Madison ficou sufocado. Os seus olhos encheram-se de lágrimas,
lágrimas involuntárias, e o seu corpo agitou-se. Triunfo, vendo o
patrão a chorar, começou a chorar também, sem saber porquê.
Hammond pegou no braço de Mad e levou-o para o extremo do
varandim, onde ele se sentou para dar largas ao seu desgosto.
Estendeu o braço e puxou Triunfo para junto de si, e ambos
choraram abraçados.
-Coitado do avô! Coitado do avô! -gemia Madison, convulsionado
pelos soluços.
-Não chore, Mad -suplicou Hammond. -Ele já estava velho. Sabia
que ele ia morrer. já estava à espera disso.


-Eu sei. Eu sei. Pobre avô! -soluçava Madison. Hammond achou
que devia dizer qualquer coisa e perguntou:
-Há quanto tempo não via o seu avô?
-Eu nunca o vi -disse Madison. -Mas ele morreu! Morreu! Está a
arder. Está no inferno. Pela maneira como tratou a minha mamã!
Limpou os olhos com o lenço sujo, sorriu para Hammond, e desatou
a chorar novamente.
Hammond ficou ao pé dele e deixou-o chorar até se esgotarem as
lágrimas. Depois fê-lo levantar-se e levou-o para casa, sacudido por
soluços secos. Blanche, quando soube da notícia, pousou o copo e
chorou com o rapaz desolado. Não sabia por que chorava. Triunfo
beijou as faces molhadas do patrão, afastou-lhe as mãos da cara e
suplicou-lhe que não chorasse mais.
Quer para satisfazer o pedido do escravo quer porque os canais
lacrimais estivessem secos, Mad parou de choramingar tão
subitamente como começara.
-Sou rico, agora -disse ele, sorrindo. Acabara de lhe ocorrer a ideia.
-Sou rico e posso comprar-lhe Ás, logo que receba o meu dinheiro. 0
seu desgosto dera lugar à satisfação. -Vai guardá-lo para mim?
Não vende, nem lhe bate, nem nada?
Hammond prometeu.
-Tem de ir lá ver-me, Ham, para me ver a mim, os meus belos
negros, as minhas mulas, a casa, a terra, tudo aquilo.
Hammond prometeu despreocupadamente que iria.
-Acho que é melhor eu ir receber aquilo tudo. Não posso ficar mais
tempo a visitá-lo. -A voz de Mad reflectia o desgosto por partir. Mas
eu volto. Volto, não volto, Triunfo? 0 Queridinho já deve estar
bastante grande nessa altura. .
Durante todo o jantar, Mad falou da fortuna de que era herdeiro, ou
antes, a sua mãe. Não fazia a mínima ideia do seu tamanho nem da
sua natureza, sabia apenas que era uma grande plantação, com
escravos e mulas. A sua maior satisfação residia em que poderia


comprar Ás, para o dar de presente a Triunfo. Havia pouca
coisa mais que desejasse, por não ter. Esquecera já o seu desgosto.
Imediatamente após o jantar, Hammond acompanhou o seu
hóspede ao estábulo para selar os cavalos. Triunfo, nunca longe do
alcance do braço do patrão, foi também.
-Não vale a pena insistir comigo, tenho mesmo de ir -garantiu Mad
a Hammond, que, na realidade, não insistira absolutamente nada
para que ele ficasse. -Não se aflija. Eu volto, logo que estejamos
instalados, para acabar a minha visita. É mesmo do avô. É mesmo
dele, morrer nesta altura para me fazer interromper a visita. Mas eu
volto, não se preocupe.
Bem longe de se preocupar, Hammond sentia-se aliviado por se ver
livre do seu hóspede. Só se preocupava com o atraso, porque queria
voltar para o campo e os deveres de hospitalidade exigiam que
ficasse para se despedir.
0 mais velho dos Maxwell e Blanche vieram até à porta, assistir à
sua partida. Mad desmontou de Luar, fez uma vénia cortês à sua
anfitriã, apertou a mão do velho calorosamente, mas sem emoção.
Finalmente voltou-se para Hamniond, apertou-lhe a mão que
conservou na sua, e olhou para o rosto dele. Os seus olhos
encheram-se de lágrimas. Soltou a mão de Hanimond e abraçou-se a
ele, enterrando o rosto convulsionado no casaco de Hammond.
Suspirou, soluçou e choramingou, até que Hammond, embaraçado,
se conseguiu soltar e afastou Mad de si.
-Não me importo, não me importo, não me importo. Antes quero
ficar consigo do que ter todas as plantações e todos os negros do
mundo. Não me importava de ser negro para poder ser seu e
trabalhar para si. É o meu amigo, o meu melhor amigo -protestava
Mad.
Hammond não sabia que responder e limitou-se a dar-lhe palmadas
no ombro. Mad, nitidamente decidido, saltou para a sela, fez sinal a
Triunfo que já estava montado e, olhando para trás, pôs Luar em
movimento. Perna Alegre seguiu a mãe. Lucke, montado na mula,


ia atrás, sabendo que acabaria por se distanciar dos cavalos e teria
que fazer a viagem sozinho.
Mad voltou-se e gritou:
-Não venda o Ás; quero-o para o Triunfo. Hei-de voltar e comprálo.
E não lhe bata. Lembre-se de que prometeu.
Hammond levantou o braço, num gesto final de adeus. Depois
esfregou as mãos, como se as quisesse limpar, e murmurou, para si
próprio: "Idiota."
-Parece que afinal sempre tinha um avô -comentou MaxwelI,
regressando a casa.
-Eu bem lhe disse -afirmou Blanche. -Eu bem lhe disse.


Capitulo quadragésimo sexto

A Primavera estava húmida e ventosa. Muitas das sementes do
algodão apodreceram e não germinaram; havia largas áreas que
tinham de voltar a ser plantadas. As plantas que irromperam do
solo eram amarelas e pouco viçosas, mas o tempo não detinha as
ervas daninhas e o chão estava demasiado húmido para a enxada.
Hammond estava desanimado com as perspectivas da sua colheita.
-Algodão? Para que é o algodão? -disse o mais velho dos MaxwelI,
rindo, para acalmar a ansiedade do filho. -É a colheita de negros que
rende.
Era esta a sua convicção, mas reafirmava-a para tranquilizar o
rapaz.
0 grupo de negros encarregados das ervas era constituído pelos
trabalhadores mais dignos de confiança e experientes, pois os
menos cuidadosos poderiam cortar as tenras plantas do algodão
juntamente com as ervas daninhas. A humidade do solo atrasava o


trabalho e, nos dias que se seguiram a um pouco de sol e vento, o
grupo trabalhou desde que os seus membros começaram a poder
ver, à luz da manhã, até ao cair da noite. Hammond também não se
poupou. Foi o primeiro a sair e o último a regressar, andando a
cavalo entre as filas de algodão, admoestando os negros para que
trabalhassem com cuidado e atenção.
Multas das sementes que julgava perdidas acabaram por sair e as
áreas plantadas de novo tiveram que ser desbastadas. As folhas
amarelas do algodão tornaram-se verdes, sob o sol, embora as
plantas pouco vigorosas nunca ficassem fortes. 0 desencorajamento
de Hammond diminuiu, por acreditar que os seus esforços não
tinham sido vãos, que a colheita valeria a pena, e, mesmo que não
valesse, produziria actividade para os escravos, que, se não lhes
distribuísse trabalho, acabariam por ficar desmoralizados e viciosos.
Sabia que nã o podia exigir ao solo exausto de Falconhurst uma
grande capacidade.
Hammond ia de vez em quando a Benson, para ver as lutas na
taberna de Pérola, apesar de o seu interesse ser menor por não
poder participar nas lutas. Bebia corri os desportistas e fazia
pequenas apostas nas lutas, sem se preocupar muito em perder ou
ganhar. 0 seu principal propósito ao ir lá era recordar aos outros a
proeza de Medes, o que fazia menosprezando-a vagamente, para
não parecer que se estava a gabar.
-Que tal vai o seu macho grande, Ham? -perguntava sempre
alguém.
-Qual deles? -era a resposta.
-Sabe qual é o que eu digo. Aquele seu gigante.
-Ah, refere-se ao Medes. Vai bem, penso eu. Um bocado em baixo
de forma. Tenho-o posto a procriar em força. Isso deita-o um
bocado abaixo.
-Como não arranja um macho para lutar com ele, põe-o a lutar com
as fêmeas, hem?'-disse Alcorn, e todos os homens se riram.


-Gostava de o ver trabalhar -disse Alonzo Ky1e. -Deve ser
eficiente.
-É como qualquer outro macho forte -declarou Hammond. -É
preciso é ter cuidado para ele não as rasgar.
-Aposto que é mesmo preciso, pelo aspecto que aquilo tinha comentou
Lewis Gasaway. -0 rapaz está bem armado, parece um
burro.

Hammond tinha o hábito de ir todas as semanas aos correios, um
cubículo nas traseiras da mercearia, para obter o Comércio de Nova
Orleães, de que seu pai era assinante. Raramente havia qualquer
outro correio para ele. Contudo, no princípio de junho, encontrou
uma carta que lhe era dirigida: "Senhor H. Maxwell". Rasgou
rapidamente o envelope. Era apenas o anúncio de um leilão.
"LEILAO, LEILÃO", dizia, em caracteres grandes. "NEGROS,
MULAS, CAVALOS, ARADOS, CARROS. SÁBADO 7 DE JULHO
NO BAIRRO DE COURTHOUSE EM WAYNESBORO." Em letras
mais pequenas, prosseguia: "Vendidos em pregão público pela mais
alta oferta, sem qualquer reserva, pagamento a pronto, haverá 32
NEGROS, 32, todos perfeitos e saudáveis, homens, mulheres,
rapazes, raparigas, 11 mulas novas, pequenas e grandes, 3 éguas,
todas criadeiras, um sortido de arados, carros, charrettes, etc. etc.,
propriedade do falecido EDWARD ALLEN. Os herdeiros deverão
fazer dinheiro para liquidar as dívidas, etc. É uma oportunidade
única para obter material de primeira por bom preço. Nunca houve
nada como isto. Venham todos." (Assinado) "A. C. Murray,
Leiloeiro." Escrito a lápis tão levemente que Hammond mal a viu,
numa letra desajeitada, a seguir ao nome de "Edward Allen",
encontrava-se a indicação "Era o avô".

Hammond não fazia ideia onde pudesse ser Wayriesboro nem de
quem poderia vir a mensagem. Era ele o único H. Maxwell em volta
de Benson e sabia que ela lhe era destinada, de certeza. Dobrou o


impresso cuidadosamente meteu-o de novo no envelope e enfiou-o
na algibeira, para o mostrar ao pai. Qualquer correio que não fosse o
jornal era tão invulgar que era sempre lido cuidadosamente e bem
digerido. Hammond já ia a meio do caminho de casa, quando lhe
ocorreu, de súbito, que aquela mensagem provinha de Madison
Church. Sorriu ao imaginar a fátua vaidade que levara Mad a enviála.
Wayriesboro devia ser em Termessee, pensava ele, e Mad queria
que eles soubessem que era o neto de Allen.
-Olhe o que veio pelo correio -disse ao pai, extraindo o documento
do bolso. -Veja; diz aqui que era o avô dele. Velo do Mad, não
acha?
Maxwell leu o anúncio cuidadosamente, voltou-o e leu nas costas
uma mensagem a lápis que Hammond não tinha visto.
-Vais lá? -perguntou.
-Não! Deve ser longe Wayriesboro ou lá o que é -troçou
Hammond.
-Não sei. Não sei. Por causa daquele Ás. É uma boa oportunidade
de conseguir um bom preço. Eu não sabia quem o Mad era. Porque
é que ele não disse que era neto do Allen? Bom sangue, bom
sangue-observou o pai.


-Conhecia o avô dele? -inquiriu Hammond.
-Não, não o conhecia exactamente a ele; mas ouvi falar dele. Toda
a gente conhecia o velho Allen. Era rico. Bom sangue. Parece que
tinha bons negros. Talvez possas arranjar uns garotos, um, dois, ou
três, se fossem mesmo bons. Não é muito longe, um pouco depois
da fronteira do Tennessee.
-Parece que estão com falta de dinheiro, a vender coisas.
-Não me parece. Se assim fosse, porquê aquela ânsia de comprar o
Ás?
-discordou Maxwe11.
-Qual ânsia?
-Diz aqui para o levares.



-Onde é que diz? Não veio nada disso.
-Está aqui. Não leste? 0 velho estendeu a folha dobrada para o filho.
-Nem vi isto. Não olhei para o outro lado -disse Hammond,
decifrando a mensagem escrita com lápis muito claro. -Querido
amigo-leu em voz alta -traga consigo o Ás que eu compro-lho se
não tiver marcas de chicote, seu humilde e obediente servidor
Madison Church. Bem, nunca vi este bocado.-Hammond leu a
mensagem outra vez. -Que serão todos estes xx depois do nome?
-São beijos, penso eu -disse o pai, a rir. Hammond sorriu
secamente.
-Se levo o Ás, peço-lhe mil e quinhentos dólares por ele. 0 Mad
paga isso, se tiver dinheiro. Não tem juízo nenhum.
Ficou decidido que Hammond iria a Termessee para o leilão dos
Allen. Blanche ficou radiante quando ouviu o plano.
-Tenho de fazer mais vestidos -projectou, com entusiasmo. -A
miss Forsythe pode fazer-mos. Tenho que me pôr bonita, para ir
fazer uma visita.
-Não sei. Depois se vê-disse Hammond, pondo-a de lado. -Não sei
se aquele carro aguenta outra viagem grande. Hei-de ver. Vou mais
depressa a cavalo, sozinho. Além disso, isto é uma viagem de
negócios. É melhor ficares em casa com o meu pai.
Blanche começou a chorar.
-Nunca posso fazer nada nem ir a parte alguma -lamentou-se ela. Tu
andas sempre a passear e nunca me levas.
Levantou-se, a chorar, da mesa da ceia e foi para o quarto. Poucos
minutos depois, ouviram-na descer a escada. Nem pensar em ir
para a cama sem o seu toddy depois da ceia.
Na manhã seguinte era domingo e Blanche desceu para tomar o
pequeno-almoço tão afável como habitualmente, não falando mais
da viagem projectada. A palavra do marido era definitiva e ela
sabia-o. Bebeu mais toddies do que era habitual e Maxwell não
interferiu. Hammond andava fora, a treinar Medes. Além disso,
apesar de só partirem daí a duas semanas, Hammond levou Ás até


ao rio e obrigou-o a tomar banho. Ao fim do dia, ele e Dido
cortaram o cabelo ao rapaz. A única dúvida residia em se Mad
Church poderia dispor de mil e quinhentos dólares.
Blanche afogou o seu desapontamento em toddies quentes, mas
nada disse. Perante a suave censura de Hammond por ela beber
tantos, teve uma resposta pronta:
-0 médico disse, todos os que eu quiser. Maxweli, que apreciava a
companhia da rapariga meio embriagada, apoiou-a:
-Ela é delicada de saúde. Precisa disto para lhe dar forças -disse. E

o marido calou-se.
Na quarta-feira, dia 4 de julho, Hammond e Eclipse partiram para
Waynesboro, levando Às montado numa mula, apesar de saber que
o passo desta o atrasaria. Se necessário, estava pronto a aceitar o seu
pagamento em escravos jovens, desde que os que havia para leiloar
lhe agradassem. Além disso levava nos alforjes da sela um saco de
moedas de ouro, para comprar quaisquer outros que lhe
agradassem.
-0 neto de Ed Allen não pode sertão idiota que pague mil e
quinhentos dólares por aquele macho de oitocentos -avisou-o o pai.
-já tens sorte se lhe arrancares mil. É um fugitivo.
-0 Mad está interessado nele, mesmo muito interessado-disse o
filho, com optimismo.
-0 mais importante é trazeres negros jovens. Temos falta deles, esta-
mos a precisar.
-Não trago nada que não preste. 0 pai sempre disse que não se faz
dinheiro dando boa comida a gado enfezado.
0 velho sentiu-se satisfeito por os seus ensinamentos darem bons
frutos. Foi ideia do pai que Ellen, vestida como um rapaz, partisse
uma hora antes do patrão e esperasse por ele na estrada. Não via
motivo para que Hammond não levasse a sua escrava corri ele, se o
desejasse, mas tentava proteger Blanche do rancor que sentiria se
soubesse que o marido preferira a companhia de Ellen à sua.
Blanche não se levantou para se despedir de Hammond, pelo que o

estratagema foi desnecessário. Parecia resignar-se à sua ausência,
uma vez que ficava livre para beber quantos toddies desejasse.

Era impossível determinar quando é que o seu plano de vingança
tomara forma. Talvez se começasse a formar no seu cérebro confuso
na noite em que Hammond decretara que ela ficaria em casa, e deve
ter tomado forma mais definida a partir daí. De facto, a própria
Blanche não sabia ao certo quando a sua determinação de agir se
iniciara ou quando se transformara num esquema definido.

Na tarde da partida de Ham, Maxwell adormeceu e Blanche foi à
cozinha para obter um toddy de que ele não tomaria conhecimento.
Ela sentia que ele censurava mais a quantidade de toddies que ela
bebia do que lho dava a entender e achava que se tornava
justificado beber um ou outro sem que ele o soubesse. Encontrou a
cozinha cheia de negros -Lucrécia Bórgia, e a filha, Mertirion, Dite,
Pérola Grande e os bebés, a sua própria Tense -mas não viu
Ellen, de cuja presença ou ausência o seu ciúme a tornava sempre
consciente.

-Onde está Ellen? -perguntou a patroa, dirigindo a pergunta a
quem quer que soubesse responder-lhe.
Como não era dirigida a ninguém em especial, ninguém respondeu,
e caiu sobre os negros um silêncio ominoso, quebrado apenas pelo
gorgolejar do uísque do garrafão. Blanche repetiu a pergunta:
-Eu perguntei onde estava a Ellen@ Lucrécia Bórgia esperou que
outro falasse, mas toda a gente deixou a resposta para ela. Hesitou e
murmurou:
-Hum, não sei, miss Blanche. Num sei onde ela foi. Tava aqui, faz
tempo.
Lucrécia Bórgia não desejava trair o patrão. Meg riu-se e abafou a
mistura de divertimento e embaraço com a mão sobre a boca,
enquanto a mãe o esbofeteava em ambas as faces, a toda a extensão


do seu braço forte. A criança era tão leal para com Hammond como
a mãe, e, se esta tivesse ignorado o seu riso, a mulher, meio
embriagada, não o teria visto. Mesmo meio embriagada como
estava, imaginou o que sucedera.
-Faz tempo -perguntou, fechando os olhos, na sua confusão. -Faz
quanto tempo? Quanto tempo? Onde está ela agora? Para onde foi?
Não me mintam.
Merririon e Dite tinham saído da cozinha, mas Pérola Grande
continuava impassível, cuidando dos bebés. Os gêmeos não
conseguiam controlar a sua curiosidade.
0 lábio inferior de Lucrécia Bórgia descaiu e ela murmurou a
resposta:
-Não sabe, sinhora. Não sabe, tá a dizê que num sabe.
-Pois eu sei. Foi com o teu patrão. É com ele que ela está. Eu sei.
Não precisas dizer-mo. Eu sei -gritou Blanche, engolindo o seu
toddy quente, entre arquejos, e servindo-se de outro. -Não passa de
uma rameira negra, é isso que ela é, uma rameira, com os seus
brincos encarnados. Não percebo o que é que o Hammond vê
naquela rameira suja e malcheirosa que se diverte de dia com todos
os negros da plantação e passa as noites agarrada ao Hammond,
com os braços à volta dele, a beijá-lo na boca e, se calhar, a lamber-
lhe os pés. Aquela negra suja fazia isso, se o patrão lho pedisse. Ela
não se interessa mais pelo Hammond que pelos machos negros da
plantação, a não ser para ele lhe trazer brincos para marcar que ela é
dele! Agora já sei porque é que ele nunca me leva a parte nenhuma.
Ele gosta do cheiro daquela negra, gosta de carne preta, prefere
divertir-se com uma macaca. É isso mesmo. já sei onde ela está. Não
precisas dizer-me. Eu sei.
A sua voz foi subindo de tom, numa choraminguice de bêbeda, e,
ao gritar as últimas palavras, saiu da cozinha, amparando-se aos
móveis por que passava.
-E melhó tu ir atrás dela-disse Lucrécia Bórgia a Tense. -Mete ela
na cama, antes que tenha de limpá o vomitado dela.


No dia seguinte, Blanche ficou no quarto. Embora nada houvesse
para dizer de que não tivessem já falado cem vezes antes, Maxwell
ficou desapontado por a rapariga não descer e vir sentar-se ao lado
dele a beber toddies. Certa vez quando chamou Meg para lhe trazer
uma bebida, foi Memnon quem veio servi-lo, com desculpa de que
Meg tinha ido levar um à patroa. Maxwell concluiu que a
indisposição de Blanche, fosse ela qual fosse, não a privava das suas
bebidas. 0 dia de julho estava húmido e, através dos vidros
martelados, podia ver as ondas de calor que subiam do chão, ao sol
cor de manteiga. Estava meio embrutecido pelo uísque e assim
tencionava conservar-se até o filho voltar; era o único anódino para

o vazio do seu coração, que a ausência de Hammond esgotara.
Blanche estava estendida na cama, com a camisa aberta, brincando
com os seios suados. Voltou-se de lado e disse a Tense:
-Traz-me o macho maior e mais preto que houver na plantação.
Aquele negro Medes. Esse é que me serve. Vai buscá-lo e traz-mo
cá.
-Mas sinhora pra que quê ele? -teve Tense a temeridade de
perguntar.
-Não te preocupes. Não te interessa. Disse-te para o ires buscar. Eu
sei o que vou fazer; vou pagar-lhe na mesma moeda. É isso que eu
vou fazer.
-0 patrão não vai gostá. Ele num quê um nêgo dos campos aqui na
casa -objectou Tense.
-Eu disse-te para o ires buscar, não te disse, negra? -exigiu a
patroa. Quando eu te digo para fazeres uma coisa, tu vais fazê-la.
Ouviste? Ouve bem o que eu te digo!
-Sim, siô, patroa -disse Tense, voltando-se para sair.
-Trá-lo pela cozinha e ele que suba a escada sem fazer barulho. Em
silêncio, ouviste? Se aquele velho que está a dormir na sala os ouvir
chegar, faço-te em tiras. Em tiras, ouviste?
-Sim, siô, patroa. Eu não faz barulho -prometeu a escrava.

-Se tu fazes barulho ou deixas aquele Medes fazer barulho, atiro-te
ao chão e chicoteio-te até morreres. Ouviste? Estás a ouvir-me?
Agora vai buscá-lo. Diz-lhe que fui eu quem mandou.
Tense foi. Encontrou Medes estendido na cama, nu, meio
adormecido, e Lucy, com o bebé num dos braços, a abanar-lhe o
corpo com um leque de folhas de palmeira já velho que os patrões
tinham deitado fora. Tense deu-lhe o recado.
-Que quer ela de mim? Que me quer a patroa? -Medes estava
incrédulo pois sentira o ódio da patroa por ele. -Tenho medo admitiu.
-Não tenho licença para entrar na casa grande.
-A sinhora disse. Eu digo a ti pra ir lá. Faz-se que os brancos diz disse
Tense, com impaciência. -A sinhora tá bêbeda e eu acho que
ela quê alguém pra dá prazê a ela.
-Não! -exclamou Medes, com horror e medo. -Eu não vou. 0
patrão ficava furioso. Matava-me corri um tiro, o patrão Hammond.
E a patroa não gosta de mim.
-Ela diz... -objectou Tense.
-Tu tem de que fazê o qu'ela diz pra tu fazê -declarou Lucy. Medes
tremia ao levantar-se e ao enfiar as calças e a camisa.
-0 patrão vai-me cortar aos bocados e dar-me aos abutres -disse ele,
sabendo que isso era bem verdade.
-Talvez num seja isso qu'a patroa quê-opinou Lucy. -Ela é branca, a
patroa. Num vai queré um nêgo tão grande e tão preto como tu.
-Se ela quê isso e tu num faz, ela vai contá pró patrão que tu tentou
violá ela. Eu sabe -disse Tense, abanando a cabeça. -Eu sabe. Num
há nada qu'a patroa num faz. É muito capaz de contá mentiras. Vem
comigo.
-Eu não faço isso. Eu não faço -protestou Medes, enquanto seguia
Tense, por entre as cabanas, em direcção à casa.
Os negros que estavam na cozinha ficaram espantados ao ver o
enorme mandingo seguir a jovem que eles sabiam estar a executar
uma ordem da patroa. Meg seguiu o par e viu-os subir as escadas.
Dite olhava perplexa, para Lucrécia Bórgia que ergueu as


sobrancelhas. Pérola Grande riu alto e embalou o Velho Senhor
Wilson.
Nas escadas, Tense avisou Medes que não devia fazer barulho, mas
ele não conseguiu evitar que os degraus estalassem sob os seus
passos pesados. No hall superior, parou e deixou passar à frente a
rapariga que o levou ao quarto da senhora.
-Agora sai daqui, negra, e espera -disse Blanche à criada. -Espera
até eu te chamar. E não te ponhas a espreitar e a escutar. Ouviste?
Tense admitiu que ouvira. Saiu, fechou a porta e sentou-se no cimo
das escadas, com o rosto entre as mãos. Tense nunca soube ao certo
os pormenores do que ocorrera no quarto, mas imaginou factos que
calculou serem reais e que se tornaram tão vivos para ela como se
tivesse estado presente e tivesse visto e ouvido tudo o que se
passara. Estava aterrorizada porque sabia que, por muito inocente
que estivesse, ao executar as ordens da sua ama, a ira do patrão
explodiria por igual contra os inocentes e os culpados, se chegasse
sequer a suspeitar de que Blanche tivera relações com o mandingo.
Tense não gostava de Blanche e não era o destino de Blanche que a
fazia tremer, mas sim o seu próprio e o de todos os negros da
plantação. Eles seriam vítimas da terrível vingança do patrão.
Faltava ainda a tarefa de levar Medes silenciosamente pela escada
abaixo e de regresso à cabana sem o conhecimento do Maxwell mais
velho.
0 tempo passava, Tense não sabia quanto; pareceu-lhe um século.
Finalmente a porta do quarto de Blanche abriu-se e Medes saiu,
caminhando com passos furtivos. Passou por ela silenciosamente, e
desceu sozinho a escada sem falar. Ela olhou para ele e viu jóias
vermelhas nas suas orelhas, os brincos que o patrão trouxera à sua
senhora de Natchez. Quando passou por ela, no cimo das escadas,
uma gota de sangue caiu sobre a carpeta. Blanche tinha-lhe furado
as orelhas e enfiado os brincos sem esperar que os orifícios
estivessem sarados.


A oferta dos brincos teria sido o motivo por que ela mandara vir o
mandingo? Tense não acreditava que assim fosse. Quantas vezes, na
ausência de Blanche, tirara aqueles brincos da gaveta e os revirara
sob a luz para os ver brilhar! Como os cobiçara para si própria.
Pensava que, com eles nas orelhas, seria tão bela como Ellen e
poderia ser sua rival no afecto do patrão.

Com um pano, Tense limpou a gota de sangue da carpeta e,
caminhando em direcção ao quarto de Blanche, sentiu outras sob os
seus pés nus e limpou-as. Entrou no quarto e viu mais sangue na
cama desmanchada que a patroa mandou endireitar. Conseguiu
limpar o sangue das almofadas, mas não pôde fazer desaparecer a
mancha. 0 quarto cheirava à banha de cobra com que Medes estava
untado, mas as janelas estavam abertas e Tense não sabia como
limpar o mau cheiro do quarto. Blanche parecia feliz, triunfante.
Ordenou a Tense que mandasse Meg trazer-lhe um toddy e, quando
ele chegou com duas bebidas em vez de uma só, ela vestia, apesar
do calor do dia, o seu pesado vestido castanho.
-0 Medes já foi imbora? -perguntou Meg, com ar de quem sabia.
Preparei um pra ele tamém.
-Medes? Que sabes tu do Medes, negro? 0 Medes não esteve aqui.
Não o vi -protestou Blanche.
0 rapaz riu alto e, tirando imprudentemente a segunda bebida da
bandeja, sentou-se na cama para beber.
-Que vai dizê o patrão quando descobrir> Que vai dizê o patrão@
escarneceu.
-0 teu patrão não precisa de saber. Não lhe interessa. Negro, tu não
vais dizer-lhe. Não lhe digas nada. Não metas o teu nariz nisto. -
Blanche tentou aparentar confiança, mas não conseguiu esconder o
seu medo do rapaz. -Negro, estou a dizer-te que se dás à língua
sobre mim e Medes, digo-te que te arranco a pele à chicotada, e não
fica nem um pedacinho da tua suja pele negra a cobrir a carne.
Meg riu-se da ameaça:


-Quem vai esfolá eu, patroa? Quem vai esfolá eu? -troçou ele. -Eu
pensa que tu vai sê boa pra eu agora, pra eu não contá. Tu faz o que
eu diz. Tu dás tudo o que quê, patroa.
A ama capitulou.
-Que queres tu, criança? Que queres que eu faça?


* tom das suas perguntas traía a ansiedade de Blanche.
* rapaz deitou-se para trás e riu-se.
-Tou a dizê que tu vai fazê o que eu quê, sempre que eu quê,
quando eu diz.
-E tu não contas nada? -disse Blanche num tom que era meio
declaração, meio interrogação. Estendeu os braços e, puxando o
rapaz para ela abraçou-o.
-Eu não diz se tu fizé comigo o que tu fez com Medes, em qualqué
altura, quando eu dissé-exultou Meg. -Logo à noite quando todos
tiver na cama, eu vem e nós brinca?
-Esta noite-acedeu Blanche. -Mas vem sem fazer barulho e não
digas a ninguém.
Acabou de se vestir e desceu, ao encontro do sogro. Este acordou do
seu sono quando ela entrou e pediu toddies. Meg trouxe-os com a
habitual deferência, mas, sem que o patrão o visse desafiou a ama
com um olhar directo para os olhos dela.
Maxwell aspirou o ar, ao pegar no seu copo.
-Que mau cheiro é este? -perguntou ele. -És tu que cheiras mal,
rapaz? Agarrou Meg e, puxando-o para si, cheirou-o, mas verificou
que estava limpo. -Há aqui qualquer coisa que cheira mal -repetiu.
-Parece o cheiro daquela banha de cobra do doutor MuIlbach.
Manda-me aqui a tua mãe, rapaz.
Quando Lucrécia Bórgia entrou na sala, Blanche sentiu-se invadir
pelo pânico, e, cônscia de que a cozinheira sabia do que se passara,
encolheu-se na cadeira e evitou o seu olhar. Lucrécia Bórgia ficou à
espera de ordens.



-Cheira-me aqui mal -declarou o patrão. -Parece-me o cheiro
daquela banha de cobra.
Lucrécia Bórgia cheirou o ar, audivelmente, por três vezes.
-A mim num cheira a nada, patrão, siô. Talvez eu teja intupida, ou
coisa parecida -disse desculpando-se. .
-Aquele mandingo não esteve cá em casa? -perguntou MaxwelI,
severamente.
-Não, siô, patrão, siô. An, an. Não, siô, eu num tive ele cá. Lucrécia
Bórgia olhou fixamente para Blanche, enquanto abanava a cabeça.
Blanche sentiu-se grata pela generosa negação da mulher, pela qual
nunca escondera a sua antipatia. Simplesmente a branca não sabia
que não era ela que Lucrécia Bórgia estava a proteger; era antes
Medes, e todos os negros da plantação.
-Parece-me mesmo o cheiro da banha do doutor Mullbach -voltou
a afirmar Maxwell.
-0 vento tá a vir dali -disse Lucrécia Bórgia, apontando as cabanas
com a cabeça.
Apesar da ausência de vento de qualquer direcção, Maxwell aceitou
a explicação e mandou embora a cozinheira.
Blanche ficou tranquila; estava segura. Depois de Medes, não temia
nem receava a noite com Meg, que, sendo dois ou três anos mais
novo do que ela própria, ainda considerava como uma criança. Pelo
menos era limpo e apenas emitia o seu cheiro racial-0 que ela não
pensava era que nunca mais poderia escapar à chantagem sexual do
rapaz. A partir dali ficava à sua mercê, num terror constante de que
ele falasse.
0 encanto que a branca tinha para Meg residia no facto de ser branca
e proibida, era a fascinação de quebrar um tabu. A plantação
abundava em raparigas pretas e claras, cuja sedução, se o patrão a
descobrisse, apenas lhe custaria uma descompostura ou talvez um
açoite, nada mais, e que teriam acalmado a sua lubricidade em
amadurecimento. Mas ele era o filho da sua mãe, com a mesma
paixão pelo domínio, que ela alcançara pelo serviço eficiente aos


seus patrões brancos e pela cruel autoridade sobre os outros
escravos; ele, menos prudente, pela chantagem feita à patroa.
Conhecia os riscos -uma morte adequada.
Dois dias depois, na data marcada para o leilão dos Church, Blanche
mandou outra vez chamar Medes, desta vez com menos
temeridade. Não o abominava menos do que antes, mas o seu
impulso para ter relações com ele estava enraizado na vingança que
queria tirar do interesse do marido por Ellen. Hammond não
saberia, mas a vingança não era menos doce por isso. Blanche
decidiu que Medes ficaria ao seu dispor, que gozaria os abraços dele
(ou fingiria gozá-los) sempre que quisesse. Com os brincos nas
orelhas, ela marcara-o como seu.
Medes não sentia qualquer triunfo. Estava sob o domínio da branca
e fazia o que ela lhe mandava. Sentia-se aterrorizado com a ideia de
que o patrão viesse a saber das suas relações com a mulher dele,
relações que não procurara nem queria, embora tivesse de obedecer
às ordens da branca. Para ele, a carne branca não valia mais do que
a negra; não a preferia nem lhe desagradava. Para ele, uma mulher
era uma mulher, uma fêmea, uma fêmea. Aceitava o que lhe era
oferecido, o que lhe era prescrito. Conhecia o perigo tão bem como
Meg, melhor ainda; mas a ordem da sua ama era tão peremptória
que lhe parecia haver menos perigo em cumprir os seus desejos do
que negá-los. Mesmo no momento mais íntimo das suas relações,
ele sentia o desprezo dela pela sua cor, o desdém pela sua raça, o
nojo pela sua pessoa, embora notasse também a satisfação que a sua
virilidade lhe proporcionava. Ao voltar à cabana, tentou explicar a
sua veleidade a Lucy, que ficou alarmada, com medo de que ele
fosse descoberto.
A mudança no temperamento da mulher, na sua disposição no seu
próprio carácter, não ocorreu a Hammond imediatamente após o
seu regresso da viagem, mas em breve começou a notar que ela
estava mais amável e generosa, simpática e bondosa do que
habitualmente. Erguia-se, de manhã, sem se queixar das suas


doenças nem da maneira como era tratada. Com excepção de dois
ou três, por vezes quatro, inócuos toddies por dia, deixara de se
embriagar e não parecia desejar mais uísque do que aquele que
bebia. Era amável e graciosa para com os criados, que
correspondiam à sua mudança com um esforço e um desejo de lhe
agradar maior do que correspondia à sua obrigação. Mesmo nos
seus raros contactos com Ellen, não mostrava irrascibilidade. 0
vitríolo tinha sido filtrado daquilo que ainda restava do seu ciúme.
Chamava Pérola Grande à sala e brincava com Sophy, pela qual
anteriormente não mostrara qualquer interesse. Hammond sentia-se
satisfeito, evidentemente, mas apenas conseguia pensar no que
poderia ter ocorrido para executar uma tal modificação da natureza
da rapariga, nos dez dias da sua ausência. Fosse o que fosse,
aumentou o seu afecto por ela, e ele começou a dividir as suas
noites entre a mulher e Ellen, que, embora desgostosa por o seu
amante nã o aparecer, se sentia segura do seu amor e não se ofendia.
Sabendo que ele tinha obrigações maritais e conhecendo o seu
desejo de ter um filho legítimo, ela adorava-o ainda mais por ele
cumprir o seu dever (pelo menos uma parte dele) para com a sua
mulher.

Capitulo quadragésimo sétimo

A expedição ao Termessee tinha constituído apenas um êxito
parcial. Madison Church tinha comprado Ás sem objecções ao preço
que ele lhe pedia, pagara em dinheiro, e destinara-o para criado e
companheiro de Triunfo. Dado que Triunfo nunca podia sair da
vista de Mad, estando sempre ao alcance do seu braço, Hammond
não conseguia compreender como é que ele poderia absorver mais


serviço e companhia do que aqueles que lhe eram prestados à força
pelo seu pseudo-amo que era, na realidade, o escravo do seu
pequeno escravo. Hammond sentiu certos escrúpulos em dispor do
escravo para tal mau costume, mas mil e quinhentos dólares eram
mil e quinhentos dólares.

0 que mais o irritara, contudo, fora a sua incapacidade de adquirir
quaisquer escravos no leilão. Em primeiro lugar, havia apenas dois
escravos oferecidos que Hammond queria comprar por qualquer
preço. Em segundo lugar, Madison, ameaçava chorar, tinha, no
último momento, forçado a mãe a especificar que nenhum dos
escravos vendidos no leilão poderia ser afastado da região e que as
famílias de escravos deveriam ser oferecidas num só lote, para não
serem divididas nem separadas. Em terceiro lugar, os dois rapazes
que Hammond estaria disposto a comprar, foram oferecidos com as
suas mães, que já tinham ultrapassdo a idade produtiva e seriam
inúteis para os Maxwell. Hammond ficara ainda com pior
impressão de Madison Church do que antes. Ele dominava a mãe
com as suas lágrimas sempre prontas e assumia posições que
criavam condições absolutamente ir razoáveis e incompatíveis com
os seus próprios interesses, e que impressionavam o prático
Hammond pela sua inutilidade. Três dos escravos, duas mulheres j
à idosas e um rapaz imbecil, tinham sido levados a leilão mas ao
contrário; isto é, eram aceites as ofertas pelo preço mais baixo a ser
pago pelos Churches e pelo qual os ofertantes aceitariam os
escravos e os conservariam até morrerem. 0 Dr. Redfleld tinha um
método mais directo, mais barato e, no fundo, talvez mais humano,
para acabar com tal lixo. Hammond não fora o único comprador em
perspectiva desapontado com o leilão; tinham aparecido outros
homens, alguns vindos de distâncias consideráveis, para assistir ao
leilão, para afinal, depararem com as restrições impostas ao uso da
mercadoria, que não podiam satisfazer. As ofertas foram
necessariamente limitadas e os preços baixaram, em virtude da


recusa de Mad se livrar sem condições dos negros que tinham
pertencido ao seu avô. Não admirava que Hammond e os outros se
fossem embora muito desapontados.

No relato que Hammond fez ao pai, da sua viagem, não se esqueceu
de falar nos Church, dos quais fora convidado. Encontrara-os a
viver naquilo que lhe pareceu ser o máximo do luxo, numa grande
mansão pintada numa vasta plantação de colinas férteis,
suavemente onduladas, bem servida de negros robustos, éguas de
procriação, e três belos garanhões, além de porcos, carneiros e gado.
Um capataz barbudo, de idade indefinida, que tinha tomado conta
de tudo no tempo de Allen, continuava encarregado da plantação,
mas a senhora Church vigiava tudo o que ele fazia. Exceptuando a
interferência mimada de Mad, ela demonstrava ser uma hábil
administradora, um tanto dominadora mesmo arbitrária e cruel,
mas era frequentemente restringida pela benignidade piegas do
filho para com todo o gado, e especialmente para com os escravos,
só inferior à que tinha para com os seus cavalos favoritos.
Os Church estavam ricos. A necessidade de dinheiro a que o
anúncio do leilão se referia não era mentira, porquanto Allen, no
decurso da sua longa doença que terminara com a sua morte, tinha
incorrido em dívidas que a sua filha estava impaciente por pagar.
Era essa a finalidade do leilão, além de se verem livres de escravos,
gado e equipamentos desnecessários. Não era tão indispensável
quanto os Maxwell tinham suposto. A senhora Church tomara o seu
lugar respeitado na comunidade de Waynesboro, como herdeira do
seu pai, e Madison era socialmente aceite como um membro solteiro
de uma família de longa tradição, uma possibilidade matrimonial
para todas as raparigas da comunidade.

Maxwell ficou satisfeito por saber que as coisas corriam tão bem
para o seu recente hóspede, desde que a comparação entre a
situação de Mad e a sua, demonstrasse que a sua era superior.


Contudo, também ficou satisfeito por saber que Edward Allen
morrera com dívidas, o que ele próprio decerto nunca faria.
-Arruinado o Ed Allen! Ninguém iria imaginar -exultou Maxwell
em voz alta.
-Mas, pai -corrigiu Hammond -,o avô de Mad não estava
arruinado. Tinha muita coisa. Está tudo pago, agora.
-Mas morreu com dívidas, não morreu? Eu tenciono morrer sem
dever nada, absolutamente nada, a ninguém.
-Não temos dívidas -garantiu o rapaz, como o pai já sabia -nem as
teremos.
-Tu sabes onde está enterrado o ouro, as panelas cheias de ouro,
para o caso de eu morrer, não abes? Há lá mais do que o suficiente,
Maxwell não especificou para que fim, enquanto esfregava uma das
mãos doridas com a outra.
-0 pai não vai morrer -garantiu-lhe o filho.
-Não morro antes de a Blanche ter um rapaz, filho. Embora às vezes
me sinta tão mal, que preferia morrer.
Hammond pegou numa das suas mãos deformadas e massageou, o
que parecia sempre diminuir um pouco as dores.
Quando Hammond viu os brincos encarnados nas orelhas de
Medes, a sua primeira emoção foi a cólera, que em breve foi
substituída pelo divertimento. Compreendeu imediatamente que
Blanche o tinha feito por retaliação pelo seu presente a Ellen, mas
era uma vingança tão estéril, tão fútil, que apenas o fez sorrir, Onde
arranjaste esses brincos, rapaz? -perguntou, sabendo qual
seria a resposta.
Medes ficou aterrorizado, mas não ousou recusar-se a responder.
-Foi a senhora, síô, patrão, por favô, siô -murmurou de cabeça
baixa.
-Que disse ela quando tos deu? Quem fez os buracos nas tuas
orelhas. Quem tos colocou?
-Ela diz para eu os usar sempre, para nunca os tirar, siô.
0 rapaz tremia.



-Pois bem, vamos tirá-los. Para que havia um negro lutador de usar
brincos nas orelhas? Só servia para tos arrancarem e te rasgarem as
orelhas. Baixa-te -ordenou Hammond, e começou a desenroscar a
porca que prendia a jóia à orelha esquerda. -Quem fez este buraco
tão grande e com quê? Não era preciso fazer um buraco deste
tamanho.
-Foi a senhora, siô. Fez um buraco com um garfo -explicou o negro,
recuando.
Quando o patrão se voltou para a outra orelha, descobriu que
estava inflamada e inchada e em chaga.
-Esta está ferida -disse. -Está cheia de pus. Porque é que não te
trataste, ou não tiraste o brinco?
-A senhora disse para eu os usar sempre, patrão, siô, por favô. Eu
pedi-lhe para os tirar, mas ela não quis. Quer que eu os use.
-Espero que essa orelha não gangrene. Ia estragar-te. já basta ficares
com esses buracos enormes -disse o patrão, espremendo o pus,
enquanto o escravo gemia de dor. -Nunca deixes ninguém mais
fazer-te uma coisa dessas. Um negro para lutar!
As jóias eram agora inúteis. Tendo estado nas orelhas de um negro,
não se podia esperar que nenhum branca as usasse. Hammond
olhou-as, na sua mão, manchadas com sangue seco, e depois atirou-
as ao chão, e elas caíram entre as ervas, ao pé da cabana. Lucy viu
onde elas caíram e, mais tarde, foi apanhá-las. Guardou-as
secretamente entre as suas coisas, com os dólares de prata que
recebera pelos nascimentos dos seus filhos, uma prata amachucada
e um alfinete de peito em latão, mas nunca as usou.
-Deves ter parado os treinos mal eu voltei costas -disse o patrão,
cheio de suspeitas, apalpando as coxas e o abdómem do escravo. Tens
o corpo todo flácido e não estás nada em forma.
-Não, siô, patrão, siô -disse Lucy, defendendo Medes. -Ele
trabalha. Ele trabalhou bem, enquanto tu tava fora, só quando tava
doente da orelha. Eu faz ele trabalhá.
Hammond sabia que Lucy não mentia.


-Bem -disse ele, -temos que fazer qualquer coisa para essas pernas
e por esta barriga flácida. Põe o Baltasar às costas e começa já a
correr com ele.
Medes sentiu-se aliviado por se afastar. Sabia que uma simples
suspeita por parte do patrão já seria terrível. Mas Hammond não
tinha suspeitas. Claro, sabia, mesmo sem a confissão de Medes que
os brincos tinham vindo de Blanche, como uma simples e tola
tentativa de vingança da rapariga, mas nunca lhe passou pela
cabeça que a história tivesse mais implicações. Era virtualmente
impossível de imaginar que a sua mulher, uma branca, tivesse, por
sua vontade, qualquer contacto carnal com um negro, com qualquer
negro, e muito menos com aquele bruto e corpulento mandingo, e
Hammond nem poderia pensar em tal. Não se tinha esquecido da
mulher de Natchez que comprara Frenesim para ser seu amante,
embora nunca tivesse podido acreditar inteiramente nisso e tivesse
querido banir a ideia do seu cérebro. Além disso, aquela mulher era
uma estrangeira, uma holandesa, ou coisa parecida. já era bastante
mau que Blanche tivesse dado a Medes o presente que ele trouxera
para ela e tivesse manchado as mãos na carne do negro, ao furar-lhe
as orelhas.


Nessa noite, à ceia, deu-lhe a conhecer que sabia da sua travessura,
ao dizer-lhe:
-Estragaste o melhor macho, ao furar-lhe as orelhas. Uma delas é
capaz de ter de ser cortada. Se assim for, o preço dele baixa
quinhentos dólares. Não quero ver ao pé de mim um negro sem
uma orelha.
-Quinhentos dólares! -Blanche nunca pensara na possível
gravidade do seu acto e ficou alarmada. -Não tinha essa intenção!
Nunca pensei que a orelha gangrenasse.
-já calculava -disse Hammond, perdoando-lhe. -Mas não voltes a
fazer isso. Não é bonito uma senhora branca tocar num negro.



A ferida da orelha de Medes sarou e o rapaz ficou sem defeitos,
além dos enormes buracos. 0 valor do mandingo não diminuía; na
realidade até foi aumentado, em proporção com a maturidade, a
força e a intensidade do seu treino, para não falar na tendência geral
para a subida dos preços dos escravos.

Capitulo quadragésimo oitavo

Os dias de Verão foram-se tornando mais quentes e as noites
húmidas proporcionavam alívio insuficiente para a tortura do dia.
Tinha havido pouca chuva nesse ano e o sol que se seguia a
qualquer aguaceiro pouco frequente era mais intolerável do que
aquele que o precedera. 0 Tombigbee corria pouco volumoso, no
seu leito, e das suas margens subia um odor de putrefação. 0
algodão, lento no seu crescimento, era ainda mais atrasado pelo
calor e pela seca, que apenas estimulavam o crescimento da
beldroega e outras ervas, que se desenvolviam, luxuriantes, entre as
filas de algodão e que faziam os escravos suar, no seu esforço para
conter o seu avanço. Raramente optimista, Hammond sentia-se
desesperado, enquanto passava a cavalo por entre as filas de
algodão, para avaliar as possibilidades da sua produção, e para
pesquisar o céu abrasado em busca de uma nuvem. De vez em
quando fazia parar o cavalo, para admoestar, brandamente, algum
trabalhador dos que arrancavam as ervas com a sachola, mas quase
não valia a pena o trabalho, que era feito, porque não havia outras
ocupações para o tempo dos escravos. Além disso, Hammond
estava preocupado com a escolha dos escravos para venda no
Outono seguinte. Haveria três ou quatro homens prontos para o
mercado, talvez cinco ou seis, mas, quanto aos restantes, faltava



lhes maturidade e parecia-lhe mais conveniente conservá-los
durante mais um ano.

Na realidade, essa era a verdadeira finalidade da visita do Dr.
Redfield a Falconhurst, em princípios de Agosto, embora passasse
por uma visita casual para saber da saúde de Maxwell. 0 veterinário
tinha gostado tanto da expedição a Natchez no Outono anterior que
queria ter a certeza de que fazia parte da próxima-desta vez
provaveImente a Nova Orleães, uma vez que o perigo de cólera já
desaparecera. Tencionava falar apenas casualmente do assunto, pois
não desejava trair o seu interesse. Mas acabara de beber o seu
primeiro toddy com o anfitrião, quando foram interrompidos por
um galope pouco habitual na álca que levava até à casa. Redfleld
apressou-se a abrir a janela.

Não havia equipagem alguma como aquela em toda a região e
Redfield conhecia-as todas. Tratava-se de uma carruagem puxada
por quatro cavalos, de outra época, e, a avaliar pela poeira que a
cobria, parecia ter vindo de muito longe. De cor vermelho-escuro,
ornamentada a ouro, com puxadores de prata nas portas, era
puxada por quatro robustos cavalos, três castanhos e um cinzento, e
trazia um cavalo castanho extra montado por um homem.
-Quem é? -perguntou ele ao seu anfitrião, partindo do princípio de
que o visitante tivesse sido esperado e receando que a sua própria
visita fosse inoportuna. -Não conheço ninguém que tenha um carro
daqueles. Deve ter vindo de longe.
Maxwell ergueu-se sobre as pernas reumáticas o mais de que foi
capaz e juntou-se a Redfield, à janela.
-Deve ser engano -disse. -Não vêm cá pessoas finas como aquelas acrescentou,
chamando Merimon.
0 cavaleiro, um robusto rapaz de cor clara, deixou-se ficar montado,
sem saber se devia descer do cavalo; um outro rapaz também claro
desceu do assento ao lado do cocheiro preto, de meia idade e


dirigiu-se à porta. Estavam todos vestidos com librés cor de areia,
com a parte da frente em azul, com botões de prata. Todos usavam
calças justas, meias de seda brancas e sapatos com fivela de prata.
Exceptuando a poeira cinzenta nos chapéus e nos ombros dos
casacos, estavam tão limpos e arranjados que impressionavam.
Merrition abriu a porta da frente e conservou-a aberta, e Maxwell
apressou-se a acorrer ao ele, a tempo de ver o rapaz que viera ao pé
do cocheiro abrir a porta da carruagem e emergir um rapaz mestiço,
com cerca de um oitavo de sangue negro, muito elegante no seu fato
leve, cinzento-claro, de camisa de folhos e meias de seda, que
esperou junto da porta, para ajudar outra pessoa a descer. Houve
uma pausa enquanto o homem que estava dentro da carruagem
parecia vestir o seu casaco.
Apareceram primeiro um braço e uma mão que o negro de cinzento
agarrou com deferência, para ajudar o seu proprietário a descer com
segurança. Surgiu em seguida uma perna dentro de umas calças
azuis-claras, metidas dentro de uma bota de verniz, e finalmente
apareceu o homem completo, vestindo um longo casaco cinzento
que parecia ter dificuldade em ajeitar e do qual o negro tirou um
grão de poeira, alisando um vinco, enquanto o homem branco
esfregava os joelhos para aliviar a fadiga de ter vindo sentado. Era
uma cerimônia, a saída do homem de dentro da carruagem.

Era um homem pequeno, de aspecto frágil, cujas costas curvadas
Maxwell imaginou serem o resultado de ter vindo sentado no carro,
até o homem começar a caminhar. Viu então que se tratava de uma
corcova permanente. Contudo a elevação era apenas de um lado e o
ombro direito não a reflectia. Esta falta de simetria lateral, em
conjunto com um jeito afectado, davam ao seu andar, o ar de tentar
voar com uma asa partida. Pelo menos, foi a impressão que deu a
Maxwe11. Não parecia incapaz de caminhar sem ajuda, mas o seu
negro agarrava-o levemente pelo ombro, como que para guiá-lo.


0 cabelo longo e liso, o que dele restava, porque o homem estava a
ficar calvo, caía sobre as orelhas e o colarinho. Os olhos pequenos,
pretos e vivos, brilhavam no seu rosto moreno que tinha manchas
cor de carmim tão bem definidas nas faces, sobre os malares, que
Maxwell suspeitou de que tivessem sido pintadas.
-Procuro o senhor Maxwell -disse ele, em tom preciso, acentuando
a última sílaba e brincando com o bigode pequeno e macio, com
uma mão carregada de jóias, muito frágil em cumprimento e em
largura.
Maxwell não sabia ao certo se o seu gesto revelava timidez ou se
destinava a mostrar os seus diamantes.
-Sou Maxwell, ao seu serviço, senhor. Faça favor de entrar e de se
sentar -disse MaxwelI, o mais delicadamente que sabia. -0 Meg que
nos prepare já toddies -disse a Merimon e dirigiu-se para a sala,
seguido do estranho, que era escoltado pelo seu escravo. -A quem
tenho a honra de falar, senhor? -perguntou, antes de se sentar.
-Sucede que eu sou o senhor Roche, R-0-C-14-E -disse o estranho,
soletrando a palavra. -Roche é o nome da minha mãe, de Nova
Orleães, da Plantação La Allouctte, perto da cidade. Jules Adrian
Marie Roche. Na realidade sou filho natural, ao que me dizem, do
antigo governador, El Baron de Carondelet, que me educou e me
deu meios de fortuna. Portanto, sou em parte espanhol; a minha
mãe era francesa.
Falava lentamente, separando as palavras e pronunciando-as
distintamente, como se receasse não ser compreendido. Parecia
formular as frases noutra língua e traduzi-Ias, hesitantemente, para
inglês, e efectivamente assim era. 0 seu único erro consistia em
acentuar as sílabas finais das palavras.
Maxwell ficou um pouco espantado com a sincera confissão de
bastardia do homem, e com o facto de ele parecer orgulhar-se dela.
Não compreendeu bem o nome do outro e não o disse quando o
apresentou ao Dr. Redfield e fez sinal a ambos para se sentarem.


0 lacaio vestido de cinzento ficou de pé, numa posição rígida, por
trás da cadeira do amo.
0 homem entrou directamente no assunto:
-Tem uns gêmeos, não é verdade? Parecia uma acusação feita a
MaxwelI, que a negou rapidamente.
-Só tenho um filho, chamado, Hammond. A mãe dele era uma
Hammond, filha do velho Theophilus, e nunca teve qualquer
gêmeo. Veio ao local errado, falar com o homem errado.
Roche sorriu e alisou de novo o bigode.
-Eu não me faço entender bem. 0 meu inglês não é bom. Não me
refiro ao seu filho, mas disseram-me que tinha uns criados gêmeos,
muito bonitos.
-Oli esses. Sim, temos uma casal de machos, são perfeitos e
clarinhos, mas nada de bonitos. Os machos, e não é costume os
machos serem bonitos.
-Então informaram-me mal. Mas talvez eu os pudesse ver?
0 homem inclinou-se para a frente, na cadeira, ao falar.
-Acho que sim -disse o proprietário. -Um deles vem aí com os
toddies. 0 outro anda por aí. Mas é igual. Vendo um, é como se visse
os dois.
-Iguais como duas balas -interveio Redfield. -Eu já vinha a casa do
senhor Maxwell antes de eles nascerem, porque sou veterinário, e
não consigo distinguir um do outro.
-Não estão para venda -disse MaxwelI, num jeito decidido. -Mas
pode vê-los todo o tempo que queira.
Meg serviu o patrão primeiro, depois Redfielf e por último o
elemento estrangeiro que aceitou a bebida e apôs de lado e depois
agarrou no rapaz e o puxou para ele. Meg olhou para o patrão,
pedindo permissão para resistir.
-Esse cavalheiro quer apalpar-te. Fica quieto e deixa-o fazer isso disse
o patrão. Roche envolveu a cintura do rapaz corri um dos
braços e passou-lhe a mão direita rapidamente pelo seu corpo e
pelas pernas, forçou-o a inclinar a cabeça para trás e passou um


dedo pelos dentes sãos. Depois beijou o rapaz no pescoço antes de
deixar voltar a cabeça à posição normal. Meg revirou os olhos,
embaraçado, mas não fez qualquer esforço para fugir.
-Oli, mas é o senhor que está enganado; ele é lindo, lindo, lindo sublinhou
o homem, com entusiasmo; e depois temperou a
avaliação: -Exceptuando manchas ou cicatrizes que possa ter por
baixo das roupas.
-Nem uma borbulha, nem uma borbulha-afirmou Maxwell
orgulhosamente. -Meg -ordenou , despe esses trapos e deixa o
senhor ver-te. Claro, já lhe disse que eles não estão à venda.
-julgava que criava negros para vender. Foi o que me informaram disse
o homem, ajoelhando-se e ajudando o rapaz a despir-se.
-É verdade. Informaram-no correctamente. Mas não estes dois.
Valem mais, mais tarde, depois de crescidos. É difícil comprar
rapazinhos para criar, neste mercado. Os negros estão muito caros.
0 adolescente, de pele lustrosa e macia, ficou de pé, nu, à espera de
ser examinado, sem qualquer embaraço pela sua nudez, e
apreciando as atenções que recebia. Colocou as mãos por cima da
cabeça, para permitir ao estranho que visse bem o seu corpo,
ajoelhou-se e inclinou-se para a frente para afastar as nádegas,
saltou para mostrar a sua agilidade, e só recuou quando Roche
agarrou nos seus órgãos genitais.
-Meg -avisou o proprietário. -Deixa esse cavalheiro apalpar-te como
quiser.
Roche ainda de joelhos, puxou o rapaz para ele e encostou o rosto
ao seu ventre.
É perfeito, perfeito. Tenho que o ter. Eu pago bem, eu pago-lhe
muito. Não, acho que não -disse Maxwell, abanando a cabeça. -
Hammond, o meu filho, gosta muito deste e, de qualquer modo, eu
não ia separar o casal. Não os vendíamos, aos dois, nem por cinco
mil.
-E valiam bem, valiam cada dólar e cada cêntimo -afirmou
Redfield, pressentindo uma venda.


-E eu pago isso. Faço-lhe essa oferta, em ouro, a pronto, se o outro
for tão bom e tão bonito como este.
0 preço era escandaloso, para dois rapazes de quatorze anos, mas
Maxwell assumiu um ar de desinteresse, crendo poder obter um
ainda mais elevado, se aquele vaidoso francês tinha o dinheiro que

o seu aspecto, as suas jóias, os seus escravos, os seus cavalos e a
carruagem davam a entender.
-Eu disse que nem por cinco mil os vendia, que não os vendia por
esse preço. Não estão à venda -declarou o proprietário.
-Quanto? Quanto é que pede? -insistiu Roche, ainda de joelhos,
com um braço em volta de Meg, para quem se voltou. -Que tal
achavas, rapazinho bonito, seres o meu favorito? Seres só meu?
-Nêgo de casa? -perguntou o rapaz, encolhendo-se, numa tentativa
de se soltar. -Eu não é nêgo dos campo.
-Claro que não -disse Roche.
-E dá muita comida prós seus nêgo??
-Toda a que tu quiseres comer.
-Eu quê ficá nêgo dos patrão Ham.
-Isso não te interessa -disse o dono, para mostrar autoridade ao
escravo, cujo destino não lhe competia escolher, nem sequer
imaginar qual seria.
-Posso ver o outro, o gêmeo deste? -insistiu Roche, sem se
desencorajar.
-Meg, vai procurar o Alph e trá-lo aqui -ordenou Maxwe11. Ouviste?
Meg sentiu-se satisfeito por se afastar e saiu a correr da sala.
-Ainda falta o preço -disse o estranho, fazendo sinal ao seu escravo
para que o ajudasse a pôr-se de pé e regressar ao assento. -Seis mil,
digamos; interessava-lhe?
Maxwell abanou a cabeça, teimosamente.
-Creio que ficamos com eles -disse, sabendo que aceitaria o preço,
mas decidido a conseguir tudo o que o comprador pudesse pagar. 0
senhor Maxwell gosta muito deles dois. Usa-os para lhes passar o

reumatismo, não é verdade, senhor Warren? Talvez seja só um
deles. Não consigo saber qual -disse Redfield, para dar força ao
proprietário.
Meg voltou, arrastando o irmão com ele. Roche só sabia que o rapaz
despido era aquele que tinha estado a observar; caso contrário, não
os distinguiria. Chamou Alph para o pé de si e observou-lhe os
dentes; depois, para não se arriscar, pediu ao rapaz que se despisse.
0 seu escravo, por ordem do patrão, veio de trás da cadeira segurar
rapaz para a inspecção. Manipulou-lhe as articulações e apalpou a
criança toda. Finalmente pôs os gêmeos um ao lado do outro, e não
havia qualquer diferença entre eles, com excepção do umbigo mais
fundo em Alph e uma manchinha no seu ombro, que Meg não
possuía. 0 exame do segundo rapaz foi menos completo do que do
primeiro, mas deu-se por satisfeito. Roche ficou sentado, abraçando-
os com ar de posse, um de cada lado da cadeira. Tinha que os obter.

-Dou-lhe sete mil, monsieur. É a minha última oferta, sete mil, É o
bastante, é tudo quanto eles valem.
Roche falou com tom definitivo.
-São baratos por esse preço. Eu dava-os, se o tivesse à mão, a
pronto, quero eu dizer. 0 senhor Maxwell só recebe a pronto.
Redfield sabia que Maxwell seria incapaz de resistir a tão grande
soma de dinheiro.
-Vamos combinar uma coisa -disse Maxweli, hesitante. -Ponha-lhe
mais quinhentos, sete mil e quinhentos, e fechamos o negócio. Uma
vez que deseja assim tanto tê-los, não posso deixar de o servir. Mas
a pronto, não se esqueça. Sete mil e quinhentos e nem menos um
dólar.
-São meus -disse Roche para os jovens escravos, e, na sua
exuberância, beijou um deles tia anca e, puxando o outro para
baixo, beijou-o na boca. -Meus, meus. Sete mil e quinhentos é muito
pouco. Eu sabia que os havia de comprar, quando o senhor


Brownlee me falou deles há pouco mais de um ano. Ele tentou
comprar-lhos para mim, deve lembrar-se.
-0 Brownlee, esse cão rafeiro. Oferecia muito pouco e tive que
correr com ele da plantação. Era um aldrabão e um ladrão de
negros, Ordinário, ordinário.
Maxwell não tinha a certeza de que Brownlee tivesse tomado parte
no assalto, pelo que não podia incluir isso nas suas acusação.
-Disseram-me que morreu, o negreiro Brownlee -observou
Redfield.
-Não sei da morte dele. Não ouvi dizer nada -declarou Roche. -Ele
comprava-me os rapazes claros, bem jeitosos, e eu dava-lhe dinheiro
de vez em quando. Foi honesto comigo até que me vendeu este
castrado, chamou o cirurgião e ele próprio correu o risco, garantiume
que ele ficaria liso e não lhe cresceriam pêlos. E olhe para ele,
com as pernas cheias de pêlos, pêlos no peito, e até suíças, quando
não lhas mando cortar. Castrá-los, não impede que lhes cresçam
pêlos.
-Castrar um negro não lhe faz nada, excepto torná-lo perigoso. Eu
não queria ter um. Não vai castrar esses dois, se não lhos vendo por
preço algum.
Roche negou tal intenção.
-Mas eu já lhos comprei -protestou. -Farei com eles o que me
apetecer.
Olhou para um e para outro.
-Pode fazer, quando pagar -disse o velho. -Mas isso não! Há uma
lei; penso é que ninguém lhe presta atenção. -Ouviu o filho coxear
no hall. -Ele aí vem -acrescentou.
Hammond entrou. Beijou o pai, cumprimentou Redfield e observou
os dois estranhos.
-Este é o meu filho Hammond, senhor. Este cavalheiro veio de
Nova Orleães.-Maxwell fez a apresentação. -Vou vender-lhe os
gémeos. Espero que não te importes.
-Que disse a Lucrécia Bórgia? -perguntou Hammond.


-Sete mil e quinhentos dólares -disse o pai. -Ela não conta. Damos-
lhe dois dólares, um por cada filho.
Lucrécia Bórgia? -perguntou Roche. É a mãe deles -explicou
Hammond. -Prometemos-lhe não vender aqueles machos sem que
ela dissesse.
-Oh, então eles têm mãe? Tenho que a comprar também -disse
Roche, com surpresa, como se pensasse que os gémeos tinham
surgido partogenicamente. -Não podemos afastá-los dela. Eles vão
precisar dela. Compro-a.
-Não podemos vender Lucrécia Bórgia -declarou Hammond. -É a
nossa cozinheira e está a amamentar uma filha.
-Eu compro-a -afirmou o francês. -Dou-a aos filhos, de presente.
-Mas ela é a nossa cozinheira, e dirige as coisas. Não vendemos a
Lucrécia Bórgia -repetiu Hammond.
-Eu compro-a -repetiu Roche.
-Ela vale três mil e quinhentos dólares, ela e a filhinha -adiantou
Maxwell.
-Mas ainda pode ter uns três, quatro ou cinco filhos -disse o Dr.
Redfield, para amenizar o preço.
-Não importa. Compro-a -disse o estrangeiro. -Jasão, tu e o Albert
tragam cá aquela caixa de ferro. Sabem onde está, aos meus pés, na
carruagem.
Hammond prestara pouca atenção ao escravo de pé por trás da
cadeira e não o tinha reconhecido. Ao ouvir o nome do rapaz, olhou
para ele. -Jasão!
-gritou. -És tu, meu malandro?
-Sim, síô, patrão Ham, siô. Sou eu. Não sabia? -o rapaz avançou,
caiu aos pés de Hammond, abraçou-se às suas pernas e começou a
chorar.
-Porque é que tu fugiste? -perguntou Hammond. -Onde arranjou
este macho? -disse, dirigindo-se a Roche.
-Conhece-o, então? -respondeu Roche. -Pois comprei-o, ao senhor
Brownlee.



-Brownlee! Ele foi roubado, roubado aqui de Falconhurst. Era o
negro de meu pai -exclamou Hammond. -Porque quiseste ir com o
patrão Charles?
-0 patrão Charles disse-me para ir, patrão, siô. Disseque eu era dele
explicou Jasão. -Nunca pensei que ele e o senhor Brownlee me
tratassem daquela maneira.
Chorava e soluçava, de cabeça baixa e ar contricto, sempre agarrado
às pernas de Hammond.
-Referes-te a te terem castigado? -disse MaxwelI, sarcasticamente. Tiveste
o que merecias, por fugires.
-Eu não fugi, por favor, patrão. Não pense que eu fugi. Eu não
sabia suplicou o rapaz, enxugando os olhos corri a mão.
-Brownlee deu-me uma nota de venda -disse Roche, tentando
justificar-se. -Não a tenho comigo, mas mando-lha.
-Não importa -declarou Hammond. -Ele foi-nos roubado e eu
reclamo-o. Vou ficar com ele.

-Não o quero, não quero que o devolva-disse o pai, resolutamente,
-Não quero cá negros capados. Não prestam. Nem sei porque é que

o senhor Wilson mo mandou. já era meio fêmea antes de ser
castrado.
-Mas, pai -protestou Hammond -o senhor Wilson ...
-já te disse que não o quero, e não quero mesmo. Deixa este
cavalheiro ficar com ele. Recebeu-o honestamente.
-Mas eu prometi ao senhor Wílson.
-Não te preocupes -disse MaxwelI, cuspindo para a lareira fria.
-0 teu novo patrão é bom para ti, não é? Pareces gordo -disse
Hammond, cumprindo a sua promessa de tomar conta do rapaz.
-Sim, siô, patrão, é bom, quer dizer, era bom quando me comprou.
Eu era o seu negro de cama, o negro de dormir com ele. Mas agora,
desde que eu cresci e comecei a ter pêlos, fez de mim seu criado, seu
criado pessoal, e é severo, dá-me bofetadas e chicoteia-me se eu me
distraio.

0 sincero Jasão olhou para o patrão para ver se ele aprovava as suas
declarações.
Roche, que ainda estava abraçado aos dois gêmeos, não conseguira
fazer parar o jacto de palavras de Jasão.
-Chega -disse, severamente. -Disse que tu e Albert me trouxessem
a caixa forte. Não ouviste?
Jasão encolheu-se, compreendendo que falara de mais.
-Este negro mimado está a mentir -protestou Roche, defendendo-se.
-É meu criado pessoal. É para isso que o tenho. Cortou-me por duas
vezes ao barbear-me e eu tive que o corrigir com o chicote, uma vez,
só uma vez. Terei que o fazer de novo, para fazer com que deixe de
mentir.
-Há alturas em que é preciso usar o chicote-concordou Maxwell
que, interessado em receber o dinheiro, teria sancionado qualquer
coisa.
-Um negro não vale nada antes de ter sido castigado -opiniou
Redfield.
-Nós vai contigo no carruagem? -perguntou Meg ao seu novo
dono.
-São meus agora, compreendem? Vão comigo -assegurou-lhes o
patrão.
Os dois escravos trouxeram o pesado cofre de ferro e depuseram-no
aos pés do patrão. Roche tirou uma chave de qualquer lado,
introduziu-a na fechadura e levantou a tampa. A caixa, como
Maxwell pôde ver, continha um tesouro em moedas de ouro, soltas,
por contar, e ele não conseguiu avaliar a quantidade. Por momentos
ficou insatisfeito com o negócio que fizera; podia ter-lhe arrancado
uma soma maior.
Roche mexeu os dedos e fez as contas em voz baixa.
-Sete mil e meio pelos machos, três mil e meio pela mulher; oitenta
e cinco, noventa e cinco, dez e meio, onze. Onze mil. É isto, meus
senhores?
-É isso -afirmou Maxwe11. -Foi o que combinámos.



-Então ajude-me a contar, por favor -apelou o comprador para
Hammond. -Eu engano-me.
Embora relutante em mexer no dinheiro de outra pessoa,
Hammond acedeu. Sentou-se no chão, junto da caixa, com uma
perna estendida e a outra dobrada por baixo de si. Sabia que havia
cinquenta vezes vinte em mil, e, por isso limitou-se a moedas de
vinte. Fez uma pilha separada para cada milhar. Contou sete pilhas,
enquanto Roche, com insegurança, contava quatro mil dólares num
só lote. Redfield olhava-os, sentido por nã o ter sido convidado a
contar o dinheiro. A certa altura estendeu o braço e pegou numa
moeda, que mordeu para se certificar de que era ouro, tão
descuidadamente era usada.
Roche empurrou na direcção de Hammond as moedas que contara.
-É melhor contá-las -disse. -Nunca tenho a certeza. Não contou as
moedas que Hammond separara, não receando ser enganado.
Depois de Hammond se ter certificado de que a importância estava
certa, Roche, juntou as moedas e empurrou-as, pelo chão para o
sítio onde Maxwell estava sentado.
-Mas ainda nem sequer viu Lucrécia Bórgia -objectou Hammond.
-É a fêmea? -perguntou Roche. -Depois a vejo. E a mãe deles. Não
interessa. -Antes de fechar a caixa com as restantes moedas,
escolheu duas águias de ouro e meteu uma na mão de cada um dos
gêmeos. -Guardem-nas para comprarem qualquer coisa quando
chegarem à cidade -disse aos rapazes.
Aquele gesto espantou Redfield. Além de desejar o dinheiro para si
próprio, achava que o dinheiro desmoralizava os escravos. Que
podiam eles comprar que o patrão não lhes desse? Comida, roupas
para cobrir a sua nudez, um telhado primitivo -tudo o que
precisavam, tudo aquilo com que sabiam lidar. Os escravos não
conheciam os valores; as moedas podiam ter sido pennies 1 apenas.
Alph guardou a moeda de ouro na mão e olhou para ela; Meg, para
maior segurança meteu-a na boca.


Roche fechou a caixa e disse a Jasão e Albert para a voltarem a
colocar na carruagem. Levantou-se e fez uma vénia aRedfleid e
Maxwe11. Colocando as mãos sobre os ombros dos rapazes nus,
conduziu-os para o hall.
Há-de querer papéis -protestou Hammond. -Eu faço-os e o meu pai
assina-os.
Com um gesto, o comprador declinou aquela formalidade.
-Estou a tratar com cavalheiros -disse. Maxwell sugeriu que o
jantar estaria pronto em breve.
-Só uma pequena refeição, só para encher o estômago. A pena do
convidado pareceu bastante real, mas desculpou-se. Estava com
pressa. Tinha de partir.
-Mas a fêmea, Peço-lhe que traga a fêmea. Hammond foi à cozinha
informar Lucrécia Bórgia de que tinha sido vendida.
A mulher abriu as suas grandes pernas e olhou-o de frente.
-Eu não vai -disse ela. -Vendida! Vendida! Quem julga que vai
cozinhá o jantar do teu pai? Quem vai mandá nas costureira? Quem
vai dirigir as coisa aqui? Eu não vai.
-Vais sim. Foste vendida -afirmou Hammond. -Prepara-te, tu e a
tua filha. Tu vais. Arranjei-te um novo patrão muito bom. Vai tratar-
te bem. Eu e o meu pai, cá nos arranjamos. Não penses que
Falconhurst vai ao ar só porque tu cá não estás. -As palavras
severas do rapaz encobriam as suas emoções ao separar-se da
mulher que sabia amá-lo, que o defendera durante a infância e o
ajudara na maturidade. -Depressa! Vem logo que estejas pronta-
disse-lhe Hammond e retirou-se para não lhe mostraras lágrimas.
Maxwell e Redfield tinham seguido Roche até ao varandim e todos
esperavam que Lucrécia Bõrgia chegasse. Albert, em sentido,
mantinha aberta a porta da carruagem, e Jasão estava de pé, atrás
do patrão, cujas mãos estavam pousadas nos ombros dos gêmeos,
um de cada lado.
Hammond, passando pela sala, pegou nas roupas que os gêmeos
tinham moedas pequenas.


Despido e levou-as para o varandim.
-Não vai levar aqueles machos sem roupa-disse a Roche. -Aqui
estão as roupas deles. Não lhe custam mais.
-Os meus escravos não vestem roupas dessas -disse o comprador,
com desprezo. -Eu visto-os quando chegar à cidade. 0 dia está
quente e eu prefiro-os nus.
-Estão muito grandes para andarem nus -argumentou Hammond.
-São mais bonitos assim. Não ofende ninguém ver anjos sem roupa.
Lucrécia Bórgia apareceu, com o bebé num braço, uma trouxa de
roupas na outra. Tinha os olhos vermelhos, mas enxugara as
lágrimas. Roche, que a comprara sem a ver, olhou para ela
superficialmente e sem interesse, experimentou-lhe os biceps e
passou-lhe a mão pelas costas e pelas nádegas.


-É esta a mãe? -perguntou, desnecessariamente. -Não é estranho
que uma gansa como esta tenha parido cisnes?
Colocando a trouxa no chão e o bebé sobre ela, a mulher abraçou e
beijou os MaxwelI, primeiro o pai e depois o filho.
-Nunca mais os vejo, e foram tão bons para mim -disse ela.
0 seu novo dono interrompeu-lhe as lamentações com um:
-Entra para o carro, fêmea. A partir de agora pertences àqueles
rapazes. Faz o que eles te mandarem.
Os rapazes olharam um para o outro e depois para o seu novo
proprietário, com uma surpreendida aprovação. Pensando apenas
na viagem de carruagem, dispensaram as despedidas. Pressentiam
que só teriam indulgencia daquele estranho homenzinho retorcido a
quem teriam de chamar patrão.
Lucrécia Bórgia e o seu bebé foram arrumados em primeiro lugar no
assento avançado da carruagem, ficando a mulher de costas para os
cavalos. Em seguida Jasão ajudou a entrar o patrão, que se sentou
no meio do assento traseiro e estendeu os braços para acolher os
gêmeos; colocou Alph no assento em frente e Meg de pé entre as



suas pernas. Finalmente Jasão subiu e sentou-se ao lado de Lucrécia
Bórgia. 0 carro ficou cheio com os seis passageiros. Albert fechou a
porta, com força, e trepou para o lugar ao lado do cocheiro,
enquanto os cavalos começavam a mover-se e o cavalo exterior
acompanhava os outros. A carruagem balouçou, quando os cavalos
entraram a galope e os Maxwell, no varandim, com Redfield ao
lado, viram-na desaparecer ao fundo da álca.
Satisfeito mas confuso, Maxwell exclamou:
-Que pensa disto?
-0 que é que eu penso? Penso que poderia ter-lhe arrancado mais
dinheiro -respondeu Redfield literalmente à pergunta do seu
anfitrião. -Aquele anão marreco estava decidido, decididíssimo a
comprar os machos. E tinha muito dinheiro. Não viu? Podia-lhe ter
levado tudo.
-Talvez pudesse-acedeu Maxwe11. -Pelo menos podia ter ficado
com o bebé da mulher, mas tinha de arranjar alguém para tomar
conta dele. já tem idade para ser desmamado e o francês nem
chegou a olhar para ela, nem sabia que ela o tinha.
-Achaque não o roubou já bastante? -perguntou Hammond. -Onze
mil dólares por três negros, dois ainda pequenos e urna fêmea com
poucos anos de procriação, três crianças, quero eu dizer, não
esquecendo o bebé .
-Viram aquele vaidoso a beijar os machos, até a beijar-lhes a
barriga? Não me parece decente -observou Redfield. -Talvez façam
assim em Nova Orleães. Para que julga que ele os quer? Que irá
fazer com eles?
-Até os pode picar para fazer chouriços, se quiser. já recebemos o
nosso dinheiro -disse Hammond.
-Prometeu não os capar -comentou o pai. -Na Luisiana capam a
maioria dos negros de casa. Olha para aquele Jasão; arruinado.
Cuspiu. Redfleld, que não partilhava aquele conceito, acenou
afirmativamente.


-Torna-os mais seguros, havendo senhoras em casa. Entraram todos
em casa e Mertirion trouxe-lhes toddies. Blanche, certa de que o
estrangeiro tinha partido, desceu as escadas, pronta para jantar.
-Estou satisfeita por ficarmos livres deles. Eram muito espertalhões,
julgavam-se muito importantes -declarou ela, em relação aos
gêmeos.
Hammond sentou-se no chão e passou por entre os dedos as
moedas de ouro, amorosamente, depois contou-as de novo e voltou
a empilhá-las.

Capitulo quadragésimo nono

Dite fazia o melhor que podia na cozinha. Lucrécia Bórgia tinha-a
ensinado a cozinhar, mas a comida da família, embora continuasse a
ser abundante e boa perdera aquele sabor subtil que resultava da
experiência de Lucrécia Bórgia. Dite era incapaz de se ocupar dos
outros deveres que Lucrécia Bórgia executava sem esforço aparente,
e Hammond foi forçado a distribuir as rações aos escravos e a tomar
conta de outras tarefas de que a anterior cozinheira se ocupava. Em
breve compreendeu como a mulher era valiosa, como ela dirigia
habilmente os outros escravos, e quão pesada era a carga que ela lhe
tinha tirado de cima dos ombros. Sentia a falta dela não só pelo
trabalho que fazia, mas também por causa da sensatez e do carácter
dela, a sua obsequiosa agressividade, o seu domínio dentro dos seus
domínios. Tinha-se ocupado bem de tudo e no interesse dos
Maxwell.


0 trabalho efectuado pelos gêmeos era insignificante e as suas
funções foram absorvidas por outros. Merimon voltou a ser
chamado para preparar os toddies, e, embora Maxwell se queixasse
de que as bebidas não eram tão boas como as preparadas por Meg,
o patrão, na realidade, apenas sentia a f alta dos esforços que o
garoto fazia para assumir um papel de adulto. Nada havia de
errado nas bebidas que Mermion lhe preparava. Ellen servia tão
bem como Meg para ajudar Hammond a descalçar as botas, o que
constituía a única assistência de que ele precisava para fazer a sua
simples toilette. Hammond jamais acordara Meg durante a noite
para lhe prestar qualquer serviço, mas agora lembrava-se de que
não havia escravo algum a dormir junto da porta para o caso de ser
necessário. Pensou em arranjar outro rapaz, talvez Kitty, que
Lucrécia Bórgia tinha, em parte, preparado para o ser-viço de casa,
ou pelo menos para o serviço da cozinha, mas foi adiando a sua
decisão, por acreditar que nenhum lhe proporcionaria a lealdade, as
atenções e a prontidão a que estava habituado. A partida de Meg
produziu um vazio, pequeno, vago e indefinido, na existência do
branco.

0 negro Willie cheirava mal. Maxwell torcia o nariz todas as noites
ao deitar-se com Willie aos pés e nunca deixava de lho dizer. Dido,
por ordem de MaxwelI, lavava Willie diariamente, mas o patrão
continuava a achar que ele cheirava mal. 0 cheiro de Alph não era
desagradável para o velho. Willie era maior do que Alph, embora
não fosse mais velho, suficientemente escuro para se poder
considerar preto, os lábios grossos, nariz achatado, pés grandes e
largos. Depois de Mermion ter sido chamado a meio de noites
sucessivas para aplicar a palmatória no traseiro do rapaz, este
aprendeu a estender-se atravessado na cama sem se voltar nem se
mexer, e Maxwell achou que ele absorvia tão bem o reumatismo
como Alph, mas Willie não possuía a imaginação que Alph tinha


tido para imitar a doença do velho e para coxear e se queixar de vez
em quando.

Maxwell não gostava de ter Willie aos pés e, durante o dia
raramente o utilizava como reservatório para as suas dores. Wíllie
também não bebia do seu copo de toddy. Aqueles lábios grossos,
pretos e revirados, teriam contaminado o copo, coisa que não
sucedia com os de Alph. 0 uso de Willie era puramente prático, sem
qualquer elemento estético ou íntimo.

Claro, o aditamento do dinheiro ao panelão enterrado debaixo da
árvore compensou, até certo ponto, a ausência de Lucrécia Bórgia e
da sua prole. Nenhum dos Maxwell jamais expressou pena por
terem efectuado a venda, mas os escravos não tinham sido
esquecidos e os seus sucessores não serviam bem para os substituir.
Falconhurst sentia a sua ausência, embora ela não a prejudicasse. A
vaidade de Roche, a sua corcunda, o seu bigode, as suas jóias, a sua
carruagem, a sua saúde e os seus motivos, eram tópicos de interesse
infalível quando nada mais havia para dizer. Mas a especulação era
vã. A razão por que ele desejava tanto comprar os gêmeos e, ainda
mais, porque insistira em ficar com a mãe deles, era também
incompreensível.

0 algodão, pelo menos o que dele havia, amadureceu, foi prensado e
enviado ao mercado. 0 cereal foi colhido. Mataram-se porcas e a sua
carne foi fumada ou salgada. Dois dos trabalhadores do campo já
maduros foram vendidos a um negreiro de passagem, e a viagem a
Nova Orleães, com um pequeno lote de negros, foi adiada, com
grande desapontamento de Redfíeld.

Blanche estava grávida de novo. Adiou a comunicação do facto até
já não poder esconder a protuberância do ventre. Não estava certa
de quem seria o pai da criança que ia dar à luz. Esperava, forçando



se a crê-lo, que fosse Hammond, embora compreendesse que
também podia ser Medes, ou, menos provavelmente, Meg. Tentou
imaginar desculpas para o caso de a criança nascer negra, mas já era
tarde de mais. Se tivesse acusado um dos negros de a ter violentado,
Hammond tê-lo-ia morto e o assunto ficaria resolvido. Mas agora
era tarde de mais. Blanche voltou a beber cada vez mais toddies, e o
sogro encorajava-a a fazê-lo, por os achar bons para o seu estado,
mas a bebida não a tornava mais amável. Hammond andava
encantado, tal como o pai, com a perspectiva de ter, desta vez, um
herdeiro masculino.

A chegada da mãe de Blanche em Novembro foi anunciada mas não
desejada. Se a sua visita era inconveniente, ninguém lho disse.
Blanche, pelo menos ao princípio, ficou encantada por ver Beatriz,
que a consolaria da sua gravidez.

A senhora Woodford trouxe a notícia da morte do seu marido, que
sucumbira à fome, na crença de que a mulher e o filho o estavam a
envenenar. Nada disso se verificara, evidentemente, embora Dick,
como a mãe testemunhara, expressasse o seu alívio quando o pai
falecera. Beatriz estava certa de que ele não lhe apressara a morte.

Dick assumira a posse de Crowfoot e, de um jovem de vida fácil,
gastador e indolente, transformara-se num doentio avarento,
dedicado a arrancar do solo, dos escravos, do gado e de si próprio, o
máximo de rendimento possível. Os negros tinham rações menores
e mais horas de trabalho, e Dick lamentava a comida que ele
próprio e a mãe consumiam. Levantava-se ao romper do dia ou
ainda antes, e trabalhava até ao escurecer, incitando e forçando os
negros a chicote e a cacete, a colher o último bolbo de algodão, a
última espiga de trigo. Só assim, garantia ele à mãe, poderia libertar
a plantação das suas dívidas, para a glória de Deus e a salvação da
sua alma. Deixara de pregar -excepto para exortar os escravos ao


domingo -mas a sua religião tomara a forma da diligência acoplada
à mesquinhez.

Beatriz suportara as artimanhas de Dick enquanto pudera e,
finalmente, emalara as suas roupas escassas e usadas, e mandara
Wash aparelhar o carro e levá-la a Falconhurst, para se ver livre do
filho, ao menos por algum tempo. Na sua voz vazia e queixosa, que
não conseguia ouvir, insistiu com o genro para que reclamasse a
metade da herança que cabia a Blanche ,visto Charles estar morto,
como ela supunha) e assumisse a direcção de Crowfoot.

-Não. 0 Dick que fique com ela, o Dick e a prima -gritou Hammond
para dentro da corneta acústica.
Ela não conseguiu ouvi-lo ou fingiu que não conseguia. A sua
surdez aumentava. Hammond repetiu a frase, mas a mulher abanou
a cabeça, para indicar que não compreendia.
-Quando as dívidas estiverem pagas também já não restará nada
explicou o rapaz ao pai -a menos que o homem a quem eles devem
nunca mais apareça. Não quero que nos misturemos com o Dick.
Ele é maluco, acho eu, pior que o velho major.
Hammond baixou desnecessariamente a voz e Blanche não mostrou
qualquer preocupação quanto à sua parte na herança.
Até ter esgotado o assunto, Beatriz continuou o seu discurso sobre a
morte do major e a propriedade que ele deixara, e foi insistindo com
Hammond para que reclamasse a parte de Blanche. A sua voz vazia
e desagradável era tão alta como se pensasse que os outros estavam
tão surdos como ela.
Hammond, incapaz de lhe responder, voltou-se para o pai:
-A prima Beatriz quer é tirar a plantação ao Dick -disse. -Não se
interessa nada por mim e pela Blanche, ou pela nossa parte. 0 Dick
que fique com Crowfoot.
Beatriz continuava a censurar Dick, sem, na realidade, o acusar de
qualquer coisa definida, até que finalmente compreendeu que


apenas estava agastar o seu fôlego. Depois disso, vendo que
Hammond ficava indiferente à sua súplica, voltou-se contra ele. -Os
homens? Os homens! -gritou ela. -Os homens e os seus desejos. Até
parece que não têm as fêmeas negras@ Têm de conservar as
mulheres sempre grávidas, sempre a dar-lhes filhos. Eu disse-te,
quando se casaram, que ela era jovem e inocente, mas tinhas que lhe
fazer logo um filho, e agora já vem outro a caminho. Parece que não
tens vergonha, para deixares a pobrezinha de a Blanche descansar
um pouco, no intervalo. Nem se pode imaginar o que os homens
fazem sofrer as mulheres?
Beatriz parou e suspirou.
-Eu queria ter um rapaz -gritou Hammond para dentro da corneta,
sem que ela o ouvisse.
-Nós ternos de aguentar. É o nosso dever, como dizem os homens.
Não podemos fugir-lhes, têm de ter filhos brancos! -arengou
Beatriz. -Estou satisfeita por estar livre disso, com o major morto.
Eu por mim não queria um homem, nem que fosse o melhor do
mundo. Não o acreditava nem que jurasse sobre a Bíblia. Os
homens só querem é divertir-se com as mulheres. Não me venham
desculpá-los. Eu conheço-os bem. Bastou-me o major!

A bombástica diatribe embaraçou MaxwelI, ao mesmo tempo que o
irritava. Não se sentia em posição de ser censurado, mas não
conseguia refutar as acusações, porque não podia fazer-se ouvir
nem compreender. Na realidade, ele tinha utilizado uma concubina
para dar largas aos seus desejos e a gravidez da mulher não fora
premeditada. Beatriz sabia que a saúde de um rapaz podia ser
prejudicada pela sua continência, e, embora desprezando Ellen, não
desaprovava a utilização que ele lhe dava, apesar de não ter
poupado Blanche que ela imaginava ser tão frígida como ela
própria, às atenções de Hammond e aos seus visíveis resultados.


A chegada da mãe pôs fim imediato à embriaguez de Blanche e
mesmo Hammond limitou os seus pouco frequentes toddies à
cozinha, onde Beatriz o não podia ver. MaxwelI, contudo, teimava
na sua recusa de deixar de beber ou de ir a outro local fazê-lo. Por
perversidade, bebia mesmo ainda mais do que antes.

Beatriz abanava a cabeça, ou para implicar que não conseguia ouvilos
ou em desaprovação do medicamento deMaxwe11. Não se
conseguia perceber qual o motivo. A sua incapacidade de ouvir
provinha frequentemente da falta de vontade de compreender,
embora a sua surdez fosse real.

A insistência da mulher em que se fizessem orações em família, logo
na manhã da sua chegada, Maxwell fazia a concessão de sair da
sala, para não tomar parte nelas. Hammond estava fora de casa e
MaxwelI, que não apreciava a religião, recusou-se a permitir que os
escravos da casa fossem convocados, com excepção de Tense, que
pertencia a Blanche e da qual ela podia fazer o que quisesse.
Maxwell acreditava, e sabia por experiência, que a prática religiosa
tornava os escravos, especialmente os mais jovens, indóceis e
insatisfeitos com a sua situação. Os negros eram uns animais sem
alma, embora ele pouco mais confiasse nos seus proprietários.
-A menos que se aproxime de Jesus e se ajoelhe aos Seus pés, vai
para um sítio mau, primo Warren, e o Hammond vai consigo ameaçava
Beatriz. -Odeio pensar que eu e a Blanche estaremos no
céu a vê-los arder.
-Assim espero, prima, assim espero. Maxwell não especificava o
que esperava, mas isso não tinha importância visto que a sua
convidada não o ouvia, nem compreendia a ironia, se alguma havia,
na sua voz.
Quando se reunia o grupo para orar --Beatriz, Blanche, Tense e o
velho Wash -, Maxwell pegava no seu copo e ia para a casa de
jantar. Podia ainda ouvir Beatriz ler a Bíblia em voz alta, mais tarde,


quando ela e os escravos estavam ajoelhados -Blanche não o fazia
por causa da sua gravidez -, ouvia-a erguer ainda mais a voz,
desnecessariamente, quando rezava pela sua salvação e pela de
Hammond. Efectivamente, ela rezava longa e apaixonadamente,
com muitos suspiros e soluços, por toda a gente, por Charles, por
Dick, pelo major, por Blanche, pelas crianças, já nascida e por
nascer, por ela própria, e, às vezes, também pelos escravos, mas a
sua voz subia mais de tom quando se referia aos MaxwelI, pai e
filho.
Terminadas as rezas, Maxwell voltava à sala e, propositadamente,
segundo parecia a Beatriz, chamava Mermion para lhe trazer uma
bebida. Dava a saber à mulher que o seu conselho ao Todo
Poderoso sobre a governação do Seu universo não tinha sido
atendido, mas isso não a impedia de novas súplicas. Contudo, a
certa altura, Beatriz descobriu outros locais, fora da sala, para as
suas orações e, embora Maxwell fosse sempre convidado a assistir,
nunca insistiam muito com ele. Ele não se importava nada com as
rezas dela, desde que não fosse obrigado a ouvi-Ias e os seus
escravos não fossem desmoralizados pelo seu proselitismo. Pensava
muitas vezes que Deus precisava de receber orientação, mas não de
Beatriz Woodford.
0 principal propósito da sua visita tinha sido o de convencer
Hammond a reclamar a parte da mulher na propriedade do major
ou, pelo menos, a afastar Dick da sua direcção. Beatriz não sabia
que a filha estava grávida outra vez, ao partir, mas, quando
descobriu que Hammond ficava indiferente à suposta herança e que
Blanche, como o seu aspecto indicava, estava perto do parto,
resolveu esperar, para ver o seu novo neto. Nada a puxava para
regressar a casa e ali, ao menos, podia comer o suficiente sem ouvir
Dick resmungar. julgava-se bem-vinda a Falconhurst e, na
realidade, era-o; pois, mesmo que não fosse mãe de Blanche, ela
nascera Hammond.


Blanche, quando ela lho perguntou, não tinha qualquer noção da
duração da sua gravidez, ou de quando ela poderia terminar.
Perdera a noção do tempo e, de qualquer modo, não tinha grande
vontade de falar no assunto. A mãe atribuiu isso ao seu pudor
feminino. 0 volume do ventre da rapariga levou-a a concluir que o
parto teria lugar em breve. Beatriz admirava a sua primeira neta e
brincava com ela, enquanto esperava pelo segundo.

Blanche que, mesmo sem contar com a gravidez, já não poderia
mais usar o vestido de lã estampada, deu-o à mãe. Estava um pouco
sujo mas não muito usado. Só fez aumentar a palidez do rosto
enrugado da mulher e Hammond, que fora. mais atraído pelo
vestido do que pela rapariga que o usara, pôs-se a pensar se a
mulher teria algum dia aquele aspecto de limão azedo. 0 vestido já
velho de lã castanha-escura que sempre vira em Beatriz ficava
melhor à sua pele cor de ocre e condizia mais com os seus olhos e os
seus dentes.

Beatriz encontrava-se havia três semanas em Falconhurst quando
surgiu outra visitante. Os homens tinham-se levantado cedo, e
estavam a comer o pequeno-almoço composto por ovos, presunto e
molho de tomate. A comida estava subtilmente melhor do que era
habitual, o presunto mais tenro e melhor preparado, o molho mais
grosso e mais vermelho, o amarelo dos ovos mais colorido, dentro
da sua moldura branca.
-A Dite parece que aprendeu finalmente -comentou o velho.
-A Lucrécia Bórgia voltou, siô, patrão, siô. É por isso! Lucrécia
Bórgia tá cá -disse Memnon, servindo o café.
-Até parece; sabe à comida dela. Penso que a Dite já aprendeu disse
Maxwell ao criado.
-Mas ela voltou, siô. Lucrécia Bórgia voltou ontem à noite, numa
mula -repetiu Merarion.


-Tenho que voltar a castigar este negro. A mentir desta maneira!
Parece que nem sabe falar verdade -disse Hammond. -Queres que
eu te mande despir e te dê umas palmatoadas como da outra vez?
-Não siô, patrão, siô, por favô, não, siô. Eu é bom, eu diz verdade.
Eu vai sê bom. Eu não mente, patrão, siô -suplicou o negro.
-Estás a mentir, sabes que estás a mentir, rapaz -disse Hammond,
com severidade. -Para que é que tu mentes dessa maneira?
-Sim, siô, patrão, siô -disse Memnon, admitindo a acusação. -Mas
ela voltou, ela tá cá, a Lucrécia Bórgia.
Hammond afastou a cadeira.
-Se estás a mentir, ainda te penduro esta manhã. E arranco-te a pele
outra vez -disse, enquanto se levantava para ir à cozinha.
Ela ali estava, a Lucrécia Bórgia, em frente do fogão, rindo
nervosamente.
-Lucrécia Bórgia! -exclamou Hammond. -Donde vens tu? 0 teu
patrão sabe que voltaste? Que disse ele? Deixou-te voltar?
-Patrão Ham, siô, patrão Ham! -gritou a mulher, lançando os braços
à volta dele.


-Que fazes tu aqui? -perguntou o patrão.
-Tá a fazê o pequeno-almoço -respondeu ela, à letra.
0 jovem sentia-se satisfeito por a ver, por ela estar de volta, fosse o
que fosse que a trouxera.
-Anda comigo. 0 pai está na casa de jantar. Anda vê-lo -disse
Hammond, empurrando a mulher à sua frente.
Se Lucrécia Bórgia fosse branca, Maxwell acreditaria estar a ver um
fantasma, mas não podia duvidar do que os seus olhos lhe
mostravam.
-Donde vens tu? -perguntou. -Lucrécia Bórgia, tu sabes que foste
vendida! Porque voltaste?
-Eu voltou de Nova Orleães, siô, por favô, siô, patrão, siô respondeu
a mulher. -Eu não podia suportá aquilo.
-Tu fugiste? -perguntou ele, horrorizado.



-Sim, siô, parece qu'eu fugiu, patrão, siô -disse a mulher, contrita. Parece
qu'é isso, siô. Mas eu num volta, num volta. 0 patrão vai
chicoteá eu. Eu sei que vai chicoteá eu. Vai pendurá eu e chicoteá.
Pode fazê isso, siô, pode arrancá toda a minha pele. Mas eu num
volta. Num volta.
-Ai isso é que voltas, Lucrécia Bórgia! Vais voltar mesmo -disse
MaxwelI, tranquilamente. -0 castigo, deixamo-lo para o teu patrão,
quando ele te vier buscar, mas sabes o que significa fugir e sabes o
que ele te vai fazer. Vais voltar para lá. Lá isso vais!
A mulher começou a chorar.
-Por favô, patrão, siô, deixa eu tá aqui. Aqui é minha casa. Pode chicoteá
eu se quisé, patrão, mas deixa eu ficá -disse ela, soluçando.
-Pára com isso! Pára com isso! -ordenou o patrão. -Chorar não te
vai salvar. Para que fugiste? Sabes que isso não se faz. 0 teu novo
patrão não era bom para ti? Matava-te à fome, ou coisa parecida?
Pareces estar bem gorda.
-0 patrão era bom. Ele é bom. Dá boa comida. Comida de branco especificou
Lucrécia Bórgia.


-Então porque foi?
-Foi aqueles dois malandro. Foi o que foi, siô, aqueles malandro do
Meg e do Alph.
-Os gêmeos? -perguntou Hammond. -Que te fizeram eles?
-Eu era deles. Meu patrão deu-me para eles. Tinha que servir eles,
vestir eles, lavá eles e tratá deles, todo o tempo -explicou ela.
-Não está certo-concordou Hammond -,dar um negro a outros.
Não está certo. Só se é assim que se faz na Luisiana.
-Penso que ele não te deu aos gérneos, Lucrécia Bórgia -disse o
velho, pondo a história em dúvida. -Mas tu és a mãe deles e ele
pôs-te a tomar conta deles. Para que é que ele te quereria, para que é
que te comprou? Não me parece que ele fosse mau para ti.
-E num foi só isso -contrapôs Lucrécia Bórgia. Sentia-se pouco à
vontade, não sabendo como seria acolhida a sua acusação.-E num é



só isso. Eu tinha que chamá àqueles malandro "Patrão, siô". Sim, siô,
patrão, siô, eu tinha que chamá "patrão, siô" àqueles nêgo. Eu num
vai chamá "patrão, siô" a nego ninhum, e inda mêno àqueles dois
qu'eu mêrna teve e que eu criou e qu'eu fez serem criados de casa
pró patrão. Eu num vai.
0 velho abanou a cabeça, desaprovadoramente, e Hammond disse:
-Penso que se o teu patrão, o teu patrão branco, te manda chamar
àqueles negrinhos "patrão, siô", nada mais podes fazer. Eles
tratavam-te bem?
-Sim, siô, patrão -disse Lucrécia Bórgia, lamentando a necessidade
de responder. -Eles tratava bem eu, acha eu. Só tava sempre a dizê
qu'eles ia chicoteá eu. Sempre a dizê isto, a ameaçá eu. Inda num
fizeram isso, mas ta o sempre a dizê e a rir, a dizê qu'eu ficava
cómica, a dançá toda nua debaixo do chicote, e qu'eu ia guinchá
quando eles esfregasse eu cum pimenta.
-0 teu patrão não deixava, a menos que tu fizesses alguma coisa disse
Hammond.
-Deixa eles dá bofetada a eu, e dá beliscão, e mordê quando eles tão
a chupá eu. Ele vê eles fazê isso e num diz nada.
-Quando eles estão a chupar-te? -perguntou Maxweli. -Para que é
que eles te chupam?
-0 leite das minhas mama-declarou Lucrécia Bórgia. -0 patrão acha
qu'o leite das minhas mama vai conservá eles novos e bonitos.
Obriga eles a mamá de manhã, ao meio-dia e à tarde e faz eles secá
eu todas as vezes.
-Já tinhas ouvido falar de uma coisa destas? -disse o pai, olhando
para Hammond. -Para os manter novos. julgava que ele queria que
eles crescessem. E tens leite que chegue para a tua filha, também?
-Oh, ele tirou a Clarabelle de mim logo que chegou à plantação, pra
eu tê leite prós machinho. Eu nunca mais viu a Clarabelle, desde
que chegou a Nova Orleães. Acho que eu vai vendê ela, ou dá ela,
ou qualquê coisa. Quando eu pergunta a ele, diz qu'ela tá bem.


Num s'importa cum coisa ninhuma, só c'os macho. Não, siô, patrão,
siô, mais nada de nada.
-E os gêmeos continuavam a mamar? -Maxwell sentía-se incapaz
de acreditar na declaração dela.
Lucrécia Bórgia mostrou um seio inchado.
-Olha -disse ela. -Aqui tá as marca dos dentes deles quando eles tá
a mamá. 0 patrão obriga eu a ajoelhá quando eles mama, um de
cada lado.
Hammond levantou o seio cheio de cicatrizes e examinou as lesões
que efectivamente pareciam marcas de dentes. Lucrécia Bórgia
podia alterar um pouco a verdade, mas não mentia propriamente.
Acreditou na história dela. A sua sorte pareceu-lhe um pouco
desagradável, mas não demasiado pesada. 0 seu leite secaria em
breve. Se o seu dono lhe mandava dar de mamar aos filhos, na
crença de que isso prolongaria a juventude deles, Hammond não
tinha o direito de objectar. Talvez os rapazes a tivessem esbofeteado
e mordido, mas não lhe tinham batido propriamente, e, apesar de se
divertirem a ameaçá-la, era pouco provável que o fizessem. Talvez
se recordassem dos açoites que ela lhes dava todas as manhãs. 0 que
Hammond não conseguia compreender era a agonia que a mulher
sofria por ter perdido a sua posição; parecia-lhe fácil para ela, uma
vez que os rapazes não abusavam da situação, aceitar as ordens
deles e chamar-lhes patrões. É certo que os Maxwell nunca fariam
presente de um negro a outro negro, mas Hammond sabia que não
era invulgar, na Luisiana, os patrões darem escravos aos seus
escravos favoritos, e, ao que parece, os escravos não tinham grande
consideração pelos seus escravos.
-Que tal estão eles, os teus gémeos? -perguntou Maxwell sem
grande interesse.
-Tão bons, patrão, siô. Só tão é maus; tão muito maus, siô -disse a
mãe. -Parece que ficam mais mau a todo o minuto.
-0 novo patrão deles ainda gosta deles? -perguntou o branco, um
pouco mais interessado na resposta.


-Sim, siô! Gosta muito. -Lucrécia Bórgia teve um riso de troça. -É
isso que faz eles tão mau. Nunca castiga eles, nem uma vez só, nem
lhes dá bofetada, nem pontapé. Deixa eles fazê o que eles quê. É
muito mau, Num deixa eles fazê coisa ninhuma, só tá ao pé dele
quando ele tá a comê e dá comida pra eles do prato dele e deixa eles
bebé vinho do copo dele. Sim ' siô. Eles fica bêbado todas as noite.
Tão ali nus, mêrno nus, ao lado do patrão, só c'os brinco e os anel
nos dedo, cum pedrinhas branca a brilhá, como o anel da miss
Blanche.
-Diamantes! -exclamou Hammond. -Diamantes em negros, em
negros machos!
-Sim, siô, é verdade, patrão, siô. É assim qu'eles chama às pedra. Eu
tem que dizê qu'eles fica bonitos, os machinho, ali de pé, co'as pedra
a brilhá à luz das vela. Jasão serve à mesa pró patrão, e faz tudo pra
ele, lava ele, despe ele, mete ele na cama, levanta ele de manhã,
veste ele; tudo. E o patrão num s'importa cum o que os macho faz
ao Jasão. Não, siô, num s'importa nada. Só ri quando eles dá
beliscão ó Jasão, ou dá bofetada nele, ou faz ele entorná as coisas.
-Deviam ser castigados, acho eu -disse Hammond. -Deviam ser
pendurados pelos tornozelos e levar com o chicote.
-Sim, siô, patrão. Devia mêrno -prosseguiu a mulher. -Claro, é
diferente quando o patrão leva eles na carruagem pra mostrá eles
aos cavalheiro na Bolsa de Maspero, ou leva eles à missa ...
-Um papista. Está a fazer daqueles negros papistas -disse MaxwelI,
interrompendo a descrição, com um aparte, para o filho.
-E eles tem fatos -disse Lucrécia Bórgia. -Fatos bonito, todos
elegante e macio, e meias fina e sapatos.
-De seda? -perguntou Hammond.
-Sim, siô, é assim que se chama ou coisa parecida. Mas vestir eles,
enfiá os fatos neles! Deus Todo Poderoso! Eu? 0 patrão manda eu
lavá eles, lavá eles todo e vestir aqueles diabo. São diabos, siô. Dão
coices como burro, arranham eu e mordem eu, e dão bofetada a eu
com toda a força que eles tem, num fica quieto nem nada, só diz que


eu é deles, pra fazê o que eles quisé. Mas quando eles tá vestido,
cum as roupas bonita e os brincos e anéis a brilhá, eles são bom, tão
bom que nem fazia derretê manteiga, e anda tão bem que parece
anjinhos, ou gatinhos, ou parece que são de melaço. Mas quando
eles volta pra casa e eu despe eles outra vez, ficam inda pió, saltam,
arreliam eu só fazem asneira, bate em toda agente, em toda a gente
mêno no patrão. Nunca fazem nada pra ele, só pra fazê ele rir e pra
pedir uma dentado do garfo dele.
-Que é que tu achas que aquele idiota quer, a portar-se da maneira
que a Lucrécia Bórgia diz? -perguntou MaxwelI, voltando-se para o
filho. -Sete mil e quinhentos dólares de boa carne negra a
desperdiçarem-se!
-Ele faz mêrno, patrão, ele faz mêrno isso. E eu num tá a mentir, eu
nem contou metade. 0 patrão contratou um siô branco, branco,
contratou ele e paga dinheiro a ele, pra ensiná aos machos a falá
aquela fala dele. Aquele branco bateu na cabeça do Alph porque ele
num aprendia e ele contou pró patrão. Eu num sei o que o patrão
disse pró branco, lá na língua deles, mas o patrão tava furioso,
furioso, e o branco disse que num batia mais. Ele tem medo do
patrão, aquele branco, eu acho que é por isso.
-Os machos sabem falar, falam tão bem como eu ou tu -disse
Maxwell a Hammond. -E aquele homem compreende o americano.
Nem precisam de aprender, aqueles negros.
-É verdade, patrão, siô. Eles sabe falá. Eles até fala de mais. E
dorme, aqueles nêgo dorme c'o patrão numa cama grande, mêrno
na cama do branco, c'o mosquiteiro pendurado por cima. 0 patrão
quer eles sempre limpo pra dormir cum ele -explicou Lucrécia
Bórgia.
-Bom, talvez ele tenha reumatismmo como eu e esteja a passá-lo
para eles.
0 patrão aceitava aquela razão como válida.


-Ná, siô, patrão, siô, num é ós pés da cama -corrigiu a escrava. -É
mêrno ao lado do patrão, mêrno por baixo das coberta cum ele,
co'as cabeça na almofada, ao lado dele, e ele no meio entre os dois.
-Com machos! -disse Hammond, mordendo as palavras, com
desprezo. -A dormir com machos!
-Os franceses de Nova Orleães não têm mesmo vergonha nenhuma!
-disse o pai, enojado.
-0 Jasão leva chocolate pra eles, todas as manhã, corno pró patrão.
Num podem sair, num podem pô os pé no chão, antes de bebé
aquele chocolate -disse Lucrécia Bórgia, acrescentando pormenor
após pormenor à sua narrativa.
-já chega. Não quero ouvir mais, Lucrécia Bórgia -disse Maxwell,
fazendo calar a mulher.
-Mas vais voltar para donde vieste -disse Harrimond. -Tu és dele,
foste comprada e paga. Tens de voltar.
Lucrécia Bórgia tomou a sua pose teimosa, de pernas abertas e mãos
na cintura, e desafiou o seu antigo patrão.
-Não, siô, por favô, siô, patrão, siô, eu num vai. Eu fica aqui mêrno.
-Vais. Vais fazer o que eu te digo -disse Hammond, com firmeza,
mas sem cólera.
-Num faz -afirmou a mulher.
-Sabes o que sucede se o teu patrão te vier buscar, não sabes? És
uma fugitiva, uma fugitiva ordinária, e já sabes o que ele te faz.
Pendura-te pelos pés e chicoteia-te. Se voltares por ti própria, talvez
ele não te faça nada -argumentou Hammond.
-Eu num vai voltá pra chamá "patrão, siô" àqueles nêgo. Eu num
vai voltou a afirmar Lucrécia Bórgía. -Pode mandá eu imbora, mas
eu volta aquela mula velha e vai pra outro lado.
-Qual mula velha? Não te vamos dar nenhuma mula-disse
Maxwe11.
-A minha mula -explicou Lucrécia Bórgia. -A minha velha mula
aleijada, que eu trouxe de Nova Orleães.
-Onde é que arranjaste a mula? -perguntou o velho.



-Eu comprou ela, eu comprou ela c'o dinheiro que eu tirou da caixa
do Meg, siô -confessou Lucrécia Bórgia ingenuamente. -Eles tem
muito dinheiro qu'o patrão dá pra eles. E eu pagou a um rapaz claro
que sabe escrevê, um rapaz claro que já foi o favorito do patrão
antes d'ele tê os gêmeo, pra escrevê um passe pra eu, prós guarda.
-Uma fugitiva em tudo -disse Maxwell, acenando com a cabeça. Vais
escrever uma carta àquele filho da puta branco para ele vir
buscá-la. Não me interessa o que ele é nem o que ele faz, ele
comprou-a e pagou-a. E não se pode confiar nela para ir sozinha,
com mula ou sem mula. É tão teimosa como se a mula fosse ela.
Não havia outra maneira honrosa de resolver o assunto. Mandaram
Lucrécia Bórgia para a cozinha, para retomar as suas antigas tarefas,
até o patrão a vir buscar ou mandar buscar.

Terminado o pequeno-almoço, Hammond escreveu a carta, Era
difícil, porque não estava habituado a escrever. As letras não saíam
bem, a tinta espirrava, e Hammond fartou-se de afiar a pena de
ganso. Ao fim de uma hora de agonia, a breve nota estava
terminada e pronta para a aprovação do pai. _ Como é que eu vou
endereçar esta carta? -perguntou. -Não sei o nome dele, Ele nunca

o disse.
-Disse, disse, antes de tu chegares, mas eu é que não me lembro.
Era qualquer coisa como Roach. Ele há-de recebê-la. Roach chega-
disse o pai.
-Primeiro pergunta à Lucrécia Bõrgia. Ela deve saber.
Mernnon foi mandado chamar a fugitiva à sala. Quando ela chegou,
Hammond disse-lhe:
-Qual é o nome do teu patrão? Como é que ele se chama?
-Qualquer coisa parecida com Roach -sugeriu o pai.
-Parece que sim, é qualqué coisa parecida -concordou ela.
-Não sabes como é que se escreve? -perguntou Hammond,
esperançado.

-Isso era sabê lê. Eu num sabe lê, patrão, siô. Tu sabe isso. Embora
preocupado por não ter um primeiro nome para pôr no endereço,
Hammond dirigiu a carta simplesmente a "Senhor Roach, Nova
Orleães". Não tinha a certeza de que a carta fosse entregue, na
realidade não queria admitir para si próprio a esperança que sentia
de que ela nunca fosse entregue. Tinha feito tudo o que podia, e a
sua consciência estava salva. Contudo, sentia relutância em perder
de novo a mulher, além de não ver qualquer motivo para ela
regressar.
-Vou mandar o Mem levara carta ao correio -disse Hammond ao
pai.
-Este negro não é capaz de mandar cartas -respondeu o pai. Preciso
dele para me preparar os toddies. Espera até ires a Benson e
manda-a tu mesmo. Não há pressa.
Hammond agarrou-se à desculpa para o atraso, mas no sábado
seguinte foi a Benson e expediu a carta; em seguida foi à taberna de
Pérola, para ver os combates. Não esperava receber resposta dentro
de menos de uma semana, mas passaram uma, duas semanas, um
mês, e nada veio, e a carta não lhe foi devolvida. Concluiu que tinha
sido entregue. Lucrécia Bórgia continuava a trabalhar, mais receosa
sempre que o seu antigo patrão ia à cidade, do que ele próprio,
temendo que ele tivesse resposta para a sua carta. Mas esta não
vinha. Nunca veio. Lucrécia Bórgia era de novo escrava dos
Maxwell. Não podia ser vendida, claro, mas os Maxwell não
sentiam desejo algum de a vender. Ela voltara a ser a mesma,
obsequiosa para com os brancos, ditatorial para com os escravos,
eficiente, prestável, indispensável.
Hammond sentia-se satisfeito por ela estar de volta e receava o dia
em que o seu dono pudesse aparecer para a levar. Mas este nunca
apareceu.
A pronúncia de roach em inglês assemelha-se à de Roche. (N. do T.)


Capitulo qüinquagésimo

Blanche encontrava-se muito perto da hora do parto. Estava cada
vez maior e a mãe começava a preocupar-se com o atraso e a sua
prolongada ausência de casa. Beatríz era aceite corno fazendo parte
da família Maxwell, caminhava pela casa como num sonho; nada
ouvindo, e a sua voz vazia, se não podia deixar de ser ouvida, era,
pelo menos, ignorada.

Em janeiro, Blanche começou a sentir dores no ventre e todos
julgaram que a sua hora tinha chegado, mas recuperou-se e nada
sucedeu. Andava satisfeita. Os seus seios aumentaram de tamanho
e ela sentia dentro do ventre a criança aos pontapés, mas deixava-se
invadir por uma lânguida euforia. Via o seu sogro beber os seus
toddies e sabia que, se a mãe não estivesse lá, poderia beber com
ele, mas não desejava uísque. Sentia-se satisfeita.

Chegou a altura de plantar o algodão e Hammond arou os seus
campos e preparou a colheita. 0 mandingo continou a treinar-se e
Lucy ia-o esfregando com a banha de cobra; ele comia bem e ia-se
desenvolvendo. Hammond observava-o de vez em quando e
pensava que era um desperdício manter um luxo tão inútil, mas o
mais velho dos Maxwell insistia em conservá-lo como garanhão. A
sua prole, que ia nascendo, era forte e saudável. Continuavam a não
chegar notícias do proprietário de Lucrécia Bórgia e esta continuava
a executar as suas tarefas. Hammond tencionava, quando fosse a
Nova Orleães, no Outono seguinte, levar a fugitiva consigo,
descobrir o seu dono e devolvê-la.


Hammond estava tacitamente impaciente com a prolongada
gravidez de Blanche, mas a sua impaciência cessou. 0 bebé chegaria
no momento devido. Sentia-se aborrecido por ela não saber calcular
a data, mas a sua irritação era inútil. Andava feliz com Ellen.
Março, com as suas rajadas de vento, aguaceiros e dias de sol, com
os seus cornisos e rosas silvestres, chegou e partiu. No primeiro dia
de Abril, Blanche acordou com as dores do parto. A casa tinha um
ar solene. Lucrécia Bórgia era a única pessoa útil. Tense desejava
ajudar, mas não sabia que fazer. Beatriz andava de um lado para o
outro, a fazer perguntas, cujas respostas não podia ouvir. Maxwell
engolia toddies impacientemente. Hammond mandou Merririon a
Benson, chamar o Dr. Murrey que provavelmente estaria bêbedo
quando chegasse, mas que era o único médico da comunidade e
cuja experiência daqueles assuntos era suficientemente grande para
lhe permitir fazer um parto bêbedo ou sóbrio.

As dores intermitentes de Blanche obrigavam-na a gemer, enquanto
esperava, estendida na cama, que o médico chegasse, mas não
soltava gritos de terror com que anunciara o nascimento do
primeiro filho. A mãe, sentada na cama e balouçando-se, com
ansiedade, não podia ouvir os gemidos da filha, mas sofria mais do
que Blanche, na sua luta para expulsar o bebé. Lucrécia Bórgia
andava para trás e para diante entre a cozinha e o quarto, trazendo
papas de aveia quentes com pimenta, para estimular o parto e
inclinando-se sobre a cama para massagear o ventre de Blanche,
numa tentativa para forçar o feto a descer. Tense estava aos pés da
cama, num inútil desejo de ajudar, mas nada mais podia fazer além
de ir buscar as coisas de que Lucrécia Bórgia necessitava, de
diversos pontos da casa.

Mermion já partira havia horas, e Maxwell ia bebendo os toddies
quando Lucrécia Bórgia arranjava tempo para lhe preparar entre as
suas idas ao quarto, e Hammond andava de um lado para o outro, a


coxear, amaldiçoando Meninon pelo seu atraso. Só três horas mais
tarde o bater dos cascos da mula na álea anunciou o regresso do
mensageiro. Hammond foi buscá-lo à porta, enquanto ele descia da
mula.
-Aquele patrão doutô num pode vir. Tá doente, tá cum febre dos
pulmão, diz a sinhora -informou o negro.
-Que disse ele? Falaste com ele? Disseste-lhe quem o chamava e
para o que era? -inquiriu Hammond.
-Ná, siô, patrão. Eu nunca viu ele. A sinhora nunca deixou eu intrá
-explicou Meirmon. -Mas ela disse.
-Maldito negro inútil e preguiçoso! Não devia ter-te mandado,
devia lá ter ido eu -murmurou Hammond e foi dar a notícia ao pai
e consultá-lo sobre o que devia fazer.
-Febre dos pulmões? Deve estar é bêbedo! -foi o comentário do
velho.
-Bem, talvez a ervanária, a viúva do doutor Redfleld, a possa
ajudar. Penso que ela vale tanto como qualquer médico; já ajudou
muitas mulheres, brancas ou pretas; deve saber aparar uma criança.
Hammond suspirou, aquiescendo.
-Mas o que pensará a prima Beatriz? Como hei-de explicar-lhe que
não vem cá um médico?
-Não tentes. Não há mais nada a fazer -disse o pai. Hammond
subiu para dizer a Blanche que o doutor Murrey não podia vir e que
ela teria que sofrer enquanto ele mandava chamar a mulher de
Redfield. Ele iria a toda a velocidade de que Eclipse fosse capaz,
prometeu-lhe.
-Porque não -vem o outro médico, em vez do Murrey? -inquiriu
Blanche.
-Qual outro?
-Aquele médico novo. 0 doutor Smith -disse Blanche. -É muito
simpático. Antes o quero a ele do que à senhora Redfield.
-Aquele canalha! Aquele malandro! Aquele miserável! -gritou
Hammond tão alto que a corneta de Beatriz apanhou o som e ela


dirigiu-a para ele. -Ainda não é um médico, esse Willis Smith, não o
será nunca. Andar por aí a espalhar doenças pelos negros,
provocando mais doenças do que aquelas que cura. Antes queria
que o Medes te ajudasse, antes aquele mandingo que o Willis Smith!
Um espasmo de dor dominou Blanche e impediu qualquer resposta.
0 marido, ignorando o seu sofrimento, tão indignado se sentia, saiu
do quarto em passos largos, desceu as escadas e dirigiu-se ao
estábulo.
Maxwell reconheceu o bater dos cascos de Eclipse quando partiu e
compreendeu que o seu filho tinha ido buscar a senhora Redfield. A
casa ficou em silêncio, apenas se ouvia o ranger das escadas quando
Lucrécia Bórgia saía de junto da cama de Blanche para descer,
pesadamente, à cozinha, e regressava depois ao quarto, e o forte
tiquetaque do relógio louco, por cima da lareira. Tomou dois
toddies, arrefecidos e lentamente sorvidos, depois ouviu o trote do
cavalo cansado da senhora Redfield, sob as pancadas da varinha de
chicória que ela usava como chicote, e o rodar das rodas do seu
carro, e concluiu que a ervanária chegara. Ergueu-se rigidamente,
dirigiu-se à janela, e viu-a descer do assento inclinado, pegar no seu
saco de ervas e dirigir-separa a casa, com enérgica importância. Sem
esperar que lhe abrissem a porta, entrou, e Maxwell ouviu ranger as
escadas sob o seu passo firme, enquanto ela subia. Maxwell sentiu-
se mais tranquilo, agora que chegara ajuda.

Hammond, em companhia do doutor Redfleld montado no seu
cavalo castanho, seguia a mulher, cerca de meia milha atrás do
carro. Redfield, nada mais tendo que fazer, viera para fazer uma
visita, enquanto a mulher desempenhava as suas funções
profissionais. Estava orgulhoso por ela ter sido convocada para uma
missão tão importante e tentava partilhar, embora em sua
delegação, uma tal distinção. Maxwell sentiu-se satisfeito por ter
alguém com quem conversar, durante a sua vigília impotente.


Após os cumprimentos, o anfitrião ordenou a Merimori. que
trouxesse bebidas e insistiu com Hammond para que tomasse uma,
a fim de aliviar a sua ansiedade em relação ao que se estava a passar
no andar de cima.
-Não tem que se preocupar, agora que ela já cá está-opinou o
marido da ervanária. -A viúva é muito boa, muito jeitosa para estas
coisas.
-Tem a obrigação de ser. Há trinta anos, que eu saiba, põe ela no
mundo crianças brancas e pretas -ripostou MaxwelI, tentando
acalmar os receios de Hammond.
-Acha que vai nascer outra rapariga? -disse Hammond, pedindo
que o tranquilizassem.
-Não pode ser -disse o pai. -Ela está muito grande. Vê-se logo pelo
tamanho da barriga. Este é rapaz, de certeza.
-Tirá-lo cá para fora é que é o problema, seja ele o que for -disse
Redfield, para sublinhar a importância da mulher. -Mas, a viúva,
tira-os a todos, inteiros e sem os estragar. É um dom.

A conversa generalizada aflorou diversos assuntos -o mandingo, a
sua capacidade para lutar, o tamanho e o vigor dos seus filhos, o
algodão, o mercado actual de escravos e os preços que eram
pedidos, Madison Church e a sua boa sorte, uma dieta adequada
para os escravos jovens, as diferenças tríbais, as virtudes e os
perigos da infusão de sangue branco nos negros, tudo para evitar a
conversa sobre o que verdadeiramente os preocupava, isto é, o que
se passava no andar superior. Ninguém estava interessado no que
se dizia. Hammond, entre golos do seu toddy, ia, a coxear, de janela
a janela, observava a paisagem e avaliava o tempo. Não que isso lhe
interessasse.
-Redfield! Redfield! Anda cá acima! Depressa! -gritou a mulher do
médico, do hall superior.
Não tinha um tom de excitação ou de aflição, porque a senhora
Redfield era uma mulher calma, habituada às emergências e capaz


de as resolver. Contudo, Redfield detectou uma implicação de terror
no chamamento.
Pousou o seu copo, ergueu-se e foi até ao hall.
-Chamaste-me? Precisas de mim, viúva? Que achas tu que eu posso
fazer? -perguntou, enquanto subia.
-Anda cá! -repetiu a mulher. -Vem cá depressa! Redfield apressou-
se o mais que podia.
-já nasceu? -perguntou, ao chegar ao cimo das escadas.
-já nasceu! -disse a parteira, num murmúrio alto. -Nasceu! Mas não
é branco! É um ... um negro! Que vamos nó s fazer?
0 homem, aturdido, ficou perplexo. Não podia acreditar.
-Um negro! Estás enganada; não pode ser um negro! -contradisse


a.
-Dizes que eu não reconheço um negro, eu que já ajudei a nascer
mais de cem negros, nos meus tempos? -perguntou a mulher, com
indignação.
-Onde está ele?
-Na cama. Deixei-o em cima da cama, para te vir chamar. Que
vamos nós fazer dele?
-Se é um negro, como tu dizes, corta o cordão curto e deixa-o
sangrar.
0 senhor Maxwell não quer um filho negro, que não é dele, nascido
da sua mulher, isso não!
Redfield estava decidido. Ao destruir a criança, calculava poupar a
Hammond a necessidade de o fazer. Quando seguiu atrás da
mulher para o quarto, cruzou-se com Beatriz Woodford que saía, a
chorar, mas de cabeça levantada e passo firme, em direcção ao seu
próprio quarto.
Blanche estava exausta, mas calma e confortável, aliviada agora do
seu longo fardo. A criança já não estava ao pé dela, onde a ervanária
a deixara. Blanche abriu os olhos, quando ouviu a porta abrir-se.
-Onde está ele? Que fez com ele, com o seu filho? -perguntou a
senhora Redfield.

-A mamã enlouqueceu! Pegou nele, esmagou-o contra a cómoda e
atirou-o para aquele canto -respondeu Blanche, imperturbável. -Diz
que é um negro. Não percebo como.
A criança nua estava caída ao canto do quarto, por baixo da janela,
com o crânio esmagado. A senhora Redfield ergueu-a nos braços e
estendeu ao marido o corpinho quente da criança morta.
Redfield olhou para o rapazinho de belas formas, e espetou o dedo
na barriga macia.
-0 mandingo, o mandingo do Ham -disse, sem fôlego. -É tal e qual
ele; e grande, deve pesar umas quinze libras. Tal e qual o mandingo.
-E é um rapaz -declarou a mulher. -0 que eles queriam.
-Mas não um rapaz negro -disse Redfield. -A sogra do Ham, ao
fazer isto, livrou-me de o fazer. Odiava ter de matá-lo, é tão grande
e bonito, e parecia tão saudável.
-É um negro, de certeza? -perguntou Blanche, embora indiferente à
resposta.
Redfield suspirou, ao descer as escadas, enquanto tentava decidir o
que havia de dizer a Maxwe11.
Ao entrar na sala, Hammond olhou para ele, na expectativa, e o
velho perguntou:


-Então?
-Morto. Nasceu morto -disse Redfield.
-Morto -suspirou Hammond. -Um rapaz?
-Um rapaz. Bem bonito -respondeu Redfield.
-Como está a Blanche? Posso subir? Está tudo acabado? -perguntou


o marido.
-Está boa. Isto é, vai ficar boa -disse Redfield. -Mas não, não! Não
suba. Não há-de querer ver. Deixe os negros enterrá-lo. Onde está a
cozinheira, aquela Lucrécia Bórgia? Ela enterra-o.
-Gostava de o ver. Um rapaz! Morto! -disse Hammond, dirigindo-
se para as escadas.

-Ainda não! Ainda não! -disse Redfield, agarrando-o por um braço,
tentando retê-lo, mas o jovem escapou-se-lhe.

Na confusão emocional, o carro dos Woodford, com o velho Wash
no assento da frente e Beatriz atrás passou despercebido, ao dirigir-
se para a álea. Beatriz fizera o seu dever, como uma Hammond e
não queria ficar para responder às perguntas. Mais tarde,
encontraram sobre a cama de Beatriz o vestido de lã estampada que
Blanche dera a sua mãe.
Redfield ficou junto da porta até Harrimond se encontrar a meio das
escadas, após o que se voltou e se dirigiu ao velho Maxwe11.
-Um negro! -disse, num murmúrio trágico. -A criança era negra!
-0 quê? Um negro? -Maxwell não conseguia compreender.
-Era um negro, estou a dizer-lhe. Tal e qual o mandingo. Um
negro!
-Não! Não! Não pode ser!
É verdade! Uma senhora branca ter um negro? A Blanche é branca,
é a mulher do Ham! 0 filho é dele! Se algum macaco negro a
violasse, ela dizia, ela contava-lhe. Não, não! Está enganado! -
Maxwell pôs de lado o copo de toddy, que, de súbito, se tornara
amargo. -Não podia ser o mandingo!
-Julga que não conheço um negro? -perguntou Redfield
retoricamente, sem esperar resposta. -Tentei impedir o Ham de
subir, por isso. Não valia a pena que ele visse e soubesse.
-E matou-o? Era isso que a viúva queria, foi para isso que o
chamou, para matar o negro? -Maxwell não tinha dúvidas. -Fez
bem, fez bem.
-A senhora Woodford, antes de eu lá chegar, esmagou-lhe a cabeça.
Eu teria antes cortado o cordão para o deixar sangrar. Disse isso à
viúva, mas já não foi preciso. A senhora Woodford adiantou-se explicou
Redfield.


Hammond voltou, muito pálido, mal se notando que coxeava, com
um andar decidido. Deixou-se cair numa cadeira e ficou a olhar
para o vazio, com o olhar perdido.
-Doutor Redfield -disse -aquele pó? Aquele pó venenoso? Aquele
que usou na velha cega da viúva Johnson, antes de se casar? Disse
que lhe pedisse, se precisasse dele. Ainda tem algum?
-Acho que sim; tenho-o no alforje da sela -disse o médico. -Mas é
bom de mais para ele. Devia era queimá-lo. Cortá-lo com uma faca
mal afiada e depois queimá-lo. É a única maneira de o ensinar.
-Medes? Refere-se a ele? Ao meu mandingo? -perguntou
Hammond, aturdido.
-Foi ele, de certeza. Era tal e qual ele -testemunhou Redfield.
-0 pó não é para ele. Tenho outra pessoa a tratar. Do mandingo
encarrego-me eu. Eu trato dele, não se preocupe -prometeu
Hammond.
A senhor Redfield desceu pesadamente as escadas e atravessou o
hall.
-Acho que ela está bem -disse, da portada sala. -Aquela negra
grande pode fazer o mesmo que eu. Ela sabe bem o que faz.
A despreocupação com que Hammond respondeu "penso que sim",
revelou a Redfield a quem se destinava o veneno. Quem poderia
culpar o jovem esposo?

-Podes ir andando para casa, viúva-disse Redfield à mulher. -Eu
vou já, logo que dê ao Hammond uma coisa que tenho no alforje.
Apanho-te antes de lá chegares.
A mulher ajeitou a touca na cabeça e o marido seguiu-a, para a
ajudar a subir para o carro, após o que voltou para junto do seu
cavalo, abriu o alforje e meteu a mão entre os pós, comprimidos e
frasquinhos que o enchiam. Finalmente descobriu o veneno que
procurava, embrulhado num papel sujo, sem etiqueta. Dividiu o seu
conteúdo e embrulhou uma parte num pedaço de papel rasgado do


maior. Depois, voltando a arrumar o variado conteúdo do alforje,
entrou de novo na casa, com o embrulhinho na mão.
Os Maxwell não se tinham movido. Nem tinham falado, na sua
ausência.
-Aqui está -disse o médico. -Não sabe a nada. Misture com café ou
com um toddy e deixe-a beber. Não sentirá nada. Adormece e fica
rígida. É esplêndido.
-Ponha-o ali, em cima da lareira, por favor -conseguiu Hammond
dizer.
A sua voz não tinha ressonância. Redfield fez o que lhe pedia e saiu,
sem se despedir. Compreendendo a agonia do jovem, sabia que não
devia tentar consolá-lo.
Quando o médico partiu, Hammond pôs-se de pé, com esforço, e foi
até à cozinha. Voltou com um toddy, dentro do qual despejou o
conteúdo do papelinho que estava sobre a lareira.
-Vais dar-lho? -perguntou o pai.
-Tenho de o fazer. Não há outra possibilidade -disse o filho,
dirigindo-se resolutamente para o hall.
Maxwell ouviu-o subir a escada. Memnon trouxe-lhe um toddy que
ele provou mas não bebeu. Doiam-lhe os joelhos e esfregou as
articulações, sem conseguir aliviar a dor.
Hammond entrou no quarto onde Blanche jazia na cama. A rapariga
estava acordada e Tense, que estava sentada aos pés da cama,
ergueu-se. Hammond, com o copo de toddy na mão, sentou-se na
cadeira junto do leito, onde Beatriz estivera sentada.
-Senta-te e bebe isto. Vais sentir-te melhor -disse ele, sem mostrar
rancor na voz. -Ajuda-a a sentar-se, Tense.
0 odor da poção atraiu a rapariga, que estendeu a mão para o copo.
Hamniond viu-a beber lentamente, enquanto Tense a amparava.
-Não foi por mal, Hammond -declarou Blanche com voz fraca. -Não
foi por mal. Mas tu e aquela Ellen! Tu não me ligavas importância,
absolutamente nenhuma, e eu pensei... não sabia que a criança ia
nascer negra.



Hammond ficou em silêncio.
-Isto é bom. Sabe muito bem -disse Blanche, entre dois golos de
toddy.
-Vai pôr-me forte. Mas tem qualquer coisa, qualquer coisa branca
no fundo.
-É o remédio que o doutor Redfield deixou para ti. Vai fazer-te
dormir tranquila -disse o marido.
Blanche esvaziou o copo e Hammond pegou nele. Tense ajudou a
ama a estender-se de novo. Hammond ficou sentado, em silêncio,
durante alguns minutos, depois levantou-se e, levando consigo o
copo vazio, desceu e foi à cozinha, onde passou o copo por água e o
pôs de lado, para ser lavado.
Dirigiu-se, aturdido, mas cheio de resolução, para a cabana de Lucy,
onde entrou sem bater.
-0 Medes está cá? -perguntou.
0 mandingo levantou-se da cama.
-Conheces aquele caldeirão grande -disse o patrão ao escravo. Enche-
o com água e acende o fogo por baixo, até ficar bem quente.
Vai buscar fogo à cozinha. Vou salgar-te outra vez, salgar-te bem.
Medes sabia que ser mergulhado na salmoura quente não era uma
experiência agradável, mas não havia maneira de escapar às ordens
do patrão. Cumpriria. Sabia que nem valia a pena protestar.
Harrimond parecia sombrio e determinado, mas não traia a sua ira.
0 escravo estranhou, contudo, que ele não o examinasse nem
criticasse a sua forma, como era habitual.
Medes saiu da cabana e foi até ao extremo do varandim onde estava


o enorme caldeirão e colocou-lhe por baixo toros de madeira.
Depois começou a carregar mais madeira da pilha de toros e dispôs
os pedaços por forma a poder aquecer a água mais rapidamente.
Em seguida foi à cozinha buscar um tição para acender a fogueira.
Verificou se a madeira seca estava a arder bem, à volta do caldeirão,
antes de ir ao poço buscar água para o encher. Prendeu o balde na
roldana do poço e puxou a água para a superfície. Encheu dois

baldes que carregou para junto do caldeirão. Quando a primeira
quantidade de água atingiu o fundo do caldeirão, ouviu-se um som
efervescente, mas o vapor que se formou desapareceu
imediatamente, corri o aditamento de mais água. Voltou várias
vezes até ao poço e, finalmente, o caldeirão ficou cheio. Estremecia à
ideia de se meter dentro da salmoura quente e aí ficar até ela lhe
endurecer apele. Porque iria o patrão fazer aquilo ao anoitecer?
Nunca se podiam prever os caprichos de um branco. Medes nada
sabia sobre o que acontecera na casa grande, naquele dia e, mesmo
que soubesse, nunca o teria relacionado com a salmoura.
Depois de Medes sair da cabana, Hammond voltou-se para Lucy e
disse-lhe:
-Tu vais levar mais lenha para manter a fogueira acesa, depois de o
Medes se meter dentro de água.
Enquanto voltava para casa, parou para ver se Medes continuava a
preparar o banho.
Embora acompanhasse o pai à casa de jantar, Hammond não
conseguiu comer e o velho, compreendendo a angústia do filho, não
insistiu em falar nem em aconselhá-lo. Sabia que o rapaz
envenenara a mulher, mas não conseguia imaginar nada de melhor
que ele pudesse ter feito. Sentia-se mesmo grato pela contenção do
jovem, pela ausência duma violência explosiva, de maldições e de
pancadas. Sabia, evidentemente, que era preciso destruir o
mandingo, mas deixava ao filho a decisão quanto à altura e à
maneira de o fazer. Hammond não lhe divulgou os seus planos.
Maxwell teria gostado de ter mais algumas mulheres grávidas do
garanhão negro, antes do seu desaparecimento, mas achava melhor
não falar nisso, com medo que Hammond não suportasse mais
negros com o sangue do mandingo. Na realidade, temia mesmo que

o jovem desejasse exterminá-lo, destruindo todas as crianças que
Medes gerara.

Terminada a ceia, Hammond subiu as escadas, para ver se o veneno
já tinha actuado. Blanche ainda não estava morta. Estava estendida
na cama, respirando fracamente, mas o bater do seu coração era
ainda detectável. 0 marido sentia-se impaciente pelo fim, mas viu
que ela não podia sobreviver por muito mais tempo. Pegou no
corpo do filho dela, levantando-o do chão, e colocou-o sobre a cama,
ao lado da mãe.


Lá fora a noite estava negra, apenas iluminada pelas estrelas -pelas
estrelas e pelas chamas por baixo do caldeirão dos porcos. Medes
não estava lá. Hammond meteu a mão na água, que estava quente,
mas ainda não fervia, e depois dirigiu-se, a coxear, para o estábulo,
onde agarrou numa forquilha enferrujada. Talvez precisasse dela.
Quando voltou, viu Medes a reavivar o fogo, com novos toros. A
água começara a borbulhar. Entrou em casa e foi até à sala, onde o
pai bebia um toddy.
-Ponha a manta azul nos ombros. A noite está fria. Não quero que
apanhe qualquer coisa. Mas venha -disse o rapaz. -Quero que veja.
-Seja o que for que vais fazer, filho, é bem feito -declarou o pai. Não
é preciso que eu veja.
-Venha -insistiu o filho, ajeitando-lhe a manta sobre os ombros.
0 velho ergueu-se, rigidamente, e Hammond pegou-lhe no braço,
para o guiar. Ficou, porém, no varandim, donde podia ver tudo.


A água dentro do caldeirão já se agitava. 0 fogo em volta brilhava,
na escuridão, crepitando e espalhando faúlhas, enquanto a lenha
ardia.
-Despe-te -ordenou Ham ao escravo, que retirou as roupas e ficou
nu. A pele cor de cobre reflectia o brilho do fogo, quando o negro se
postou, com uma dignidade quase majestosa, em frente do amo.
Ham passou a mão pelos fiancos do rapaz, avaliando a propriedade
que o orgulho e o dever o obrigavam a destruir. Apertou com



firmeza a forquilha, para desanimar qualquer demonstração de
desobediência.
-Entra -ordenou.
-Está quente. Está a ferver -objectou Medes.
-Não te perguntei se estava quente. Disse-te para entrares -repetiu
Hammond.
0 negro avançou para o caldeirão e meteu a mão na água para
avaliar a temperatura.
-Não posso -disse. -Por favor, siô, patrão, siô, aquela água vai
queimar-me. Não posso.
-Não me interessa que te queimes -ordenou Hammond. 0
mandingo sabia que, quando lhe diziam que qualquer coisa não
interessava, as ordens não admitiam contradição.


Meteu uma perna no caldeirão, agarrou-se ao rebordo de ferro para
se segurar, enquanto levantava a outra perna, e queimou a palma
da mão. Ficou de pé, dentro da água borbulhante que lhe chegava
aos joelhos, pousando um pé e levantando o outro sucessivamente
por não poder suportar o calor do fundo do caldeirão.
-Pára de te balançares e senta-te -ordenou o patrão. -Senta-te,
digo-te eu.
-Eu, eu não posso -disse o negro, começando a chorar, devido às
dores ou à sua incapacidade de obedecer.
Hammond avançou, ergueu a forquilha e apontou-a ao ventre do
negro.
-Estou a dizer-te que te sentes. Quanto eu te digo para fazeres uma
coisa... -disse ele, mas interrompeu a frase quando o negro caiu
para trás.
-Oh, patrão, patrão! Está a matar-me, está a matar-rne! Eu não
suporto isto! -gritou o rapaz, aterrorizado.
-Que é que tu esperavas? -respondeu-lhe Hammond. -Só queria
poder voltar a matar-te de novo, todos os dias. Agora mete a cabeça
debaixo de água e deixa-a lá ficar -disse, mergulhando a forquilha



no rosto erguido para ele, distorcido pelas dores e pelo terror,
forçando-o a mergulhar na água e mantendo-o nessa posição.
A água abafou os gritos de raiva e angústia do rapaz enquanto estes
duraram, mas finalmente ele deixou de lutar. 0 tegumento negro
tornou-se cinzento e separou-se da carne. Hammond ficou ainda
durante algum tempo junto do caldeirão, com o rosto iluminado
pelo fogo, até ter a certeza de que o negro estava morto. Escaldado
ou afogado, não lhe interessava, desde que estivesse morto.
A lua apareceu no horizonte e iluminou a noite negra. Hammond
chamou Lucy e ordenou-lhe que voltasse a abastecer a fogueira e a
mantivesse acesa durante toda a noite.
-Vamos cozê-lo até a carne se separar, vamos fazer uma sopa dele,
até só restarem os ossos -disse.
-Patrão, patrão! -disse a mulher a chorar, retorcendo as mãos. -Tu
matou Medes, tu matou ele! Ele num fez nada. Porque matou ele,
patrão, siô? Porque matou ele?
Não esperava qualquer resposta, mas Hammond disse:
-Teve o que merecia. Não deixes apagar aquela fogueira. MaxwelI,
quando verificou que do mandingo já nada restava, voltou-se para
entrar em casa, mas, antes de chegar à porta, o filho veio ter com ele
e pegou-lhe no braço.
-Tens de procurar bastante, agora; se queres comprar outro lutador
-disse o pai. -Não consegues encontrar outro mandingo. Era um
perfeito rapaz -disse, suspirando, enquanto entrava em casa.


-Acho que já não quero mais nenhum. Não vale a pena-respondeu


o rapaz. -Se é bom, não se arranja ninguém que queira lutar com
ele, e se é mau, está sempre a perder. De qualquer modo não se
pode confiar num lutador.
Hammond ficou só, nessa noite. Quando Ellen lhe veio descalçar as
botas, mandou-a embora. Deixou-se ficar estendido na cama, mas
não conseguiu dormir. Olhava pela janela, para o luar. Ouviu Lucy


deitar mais lenha na fogueira e, de vez em quando, via as faúlhas
que subiam no ar, provenientes dos toros a arder lá em baixo.
Sentiu-se corar de vergonha, vergonha não pelo que fizera, que era
apenas o seu dever, mas sim porque a sua mulher, uma branca e
uma Hammond, tivesse tido uma criança negra. Porque havia ele de
ter casado com ela? Que noite interminável! Quando chegaria a
manhã?
Na primeira sugestão da madrugada, ergueu-se, vestiu-se, calçou as
botas sem ajuda, e dirigiu-se ao quarto onde Blanche jazia, na
rigidez da morte. Passou por cima do corpo de Tense, que dormia
no chão do ha11, do lado de fora do quarto da ama, mas não a
acordou. 0 quarto tinha pertencido a sua mãe e Hammond sentia
que fora profanado pelo nascimento de uma criança negra e talvez
por ela ter sido gerada ali mesmo. Aproximou-se da cama e colocou
a mão sobre a fronte de Blanche. Estava gelada. Ela estava
realmente morta. Tentou alterar a posição de um dos braços,
voltado para fora, mas concluiu que estava rígido. Ela devia ter
morrido ao princípio da noite.
0 seu rosto estava calmo e não havia qualquer indício de ter lutado
contra a morte.
A criança nua estava em cima da coberta, ao lado da mãe, com uma
das frontes amachucada pela pancada que a matara. Nua como
estava, deu a Hammond a sensação de que sentiria o frio da
madrugada e levantou o corpinho, colocando-o sob a coberta, junto
ao peito da mãe. Pegou numa colcha para embrulhar os dois corpos,
para serem enterrados, mas resolveu deixar essa tarefa para
Lucrécia Bórgia. Saiu, fechou a porta, passou de novo sobre o corpo
de Tense adormecida, e desceu a escada.
Lucy ocupava-se ainda da fogueira por baixo do caldeirão, dentro
do qual fervia o corpo do mandingo. Hammond disse-lhe que
trouxesse mais água para substituir a que se evaporara, a fim de
conservar o caldeirão cheio, e que se fosse deitar. Ele arranjaria um
rapaz para se ocupar do fogo.


Era ainda cedo, mas os negros começavam a movimentar-se.
Encontrou dois rapazes fortes, Bruto e Tesouro, e ordenou-lhes que
pegassem em pás e o acompanhassem. Foi caminhando, enquanto
os rapazes iam buscar as pás, mas eles vieram rapidamente ao seu
encontro. Avançou, enquanto o dia ia clareando, com os escravos
atrás, ao longo das filas onde o algodão ia rebentando, até à cerca
em volta da área cheia de ervas daninhas, reservada para enterrar
os membros da família. Em vez de ir até ao portão de entrada,
saltou a cerca e os escravos atiraram as pás lá para dentro e
seguiram-no. Parou em frente das pranchas de madeira onde se
encontravam inscritos os nomes, meio apagados, dos seus familiares
ali enterrados, e inclinou-se para arrancar as ervas mais altas do
túmulo da mãe. Os membros da família encontravam-se dispostos,
lado a lado, mesmo no meio do vasto terreno, suficientemente
grande para nele caberem dez gerações numerosas. Havia uma
outra cerca que atravessava o terreno para lá da qual se
encontravam diversas campas sem identificação, sob cada uma das
quais jazia o corpo de um negro morto. Hammond recordava-se de
alguns desses criados e sabia exactamente onde haviam sido
enterrados. Era uma tranquila faixa de terreno elevado, com um
grupo de grandes ulmeiros, cujas folhas novas começavam a passar
do verde-amarelado para o tom mais escuro do Verão. Raramente
perturbada por seres humanos e nunca utilizada para caçadas,
aquela área constituía um refúgio para as codornizes, gaíos e
cardeais, que dentro dela se sentiam seguros. Ali cresciam cobras
listradas, sem que as incomodassem e, à passagem dos humanos,
outros animaizinhos corriam a refugiar-se entre as ervas.
Hammond observou o cenário que o rodeava, enquanto os negros
esperavam que ele lhes dissesse o que haviam de fazer. Bruto
encostou-se à pá, enquanto Tesouro se estendia numa clareira entre
as ervas. Era costume enterrar os membros da família, à medida que
iam morrendo, em linha, ficando o último a morrer ao lado da
campa anterior, mas Hammond, ao escolher um local para enterrar


a mulher, achou que seria uma profanação colocá-la ao lado da sua
mãe. Aquele local, pensou ele, devia ser reservado para o pai.
Avançou até à cerca e olhou para o terreno dos negros, quase
decidido a enterrá-la ali. Afinal não tivera ela um filho negro, que ia
ser enterrado com ela? Mas não conseguia decidir-se a fazer isso a
uma branca, por muito culpada que fosse.

Finalmente escolheu um local, do lado dos brancos, mas quase junto
à cerca, bem afastado dos outros, embora do lado deles, mas não
entre eles. Mediu o local, a passos, e ordenou aos negros que
abrissem a sepultura, avisando-os de que deveriam empilhar a terra
contra a cerca. Esperou enquanto eles limpavam a superfície de
ervas, certificando-se de que os cantos ficavam bem quadrados.
-Agora cavem por aí abaixo, a direito, bem fundo -disse aos
rapazes.
-Queremos que fiquem bem enterrados.
Vendo a cova iniciada, Hammond deixou os negros entregues à sua
tarefa e voltou para casa. Parou junto do celeiro e escolheu um dos
caixões já preparados, de vários tamanhos, que ali se encontravam,
à espera de corpos. Os Maxwell enterravam os seus escravos em
caixões, em vez de simplesmente os embrulharem em lençóis e os
lançarem dentro da sepultura, e havia um sortido de caixões à
espera das mortes que, felizmente, raramente ocorriam entre a
população da plantação. Tendo escolhido o mais resistente e o mais
perfeito, Hammond olhou em volta, à procura de dois rapazes
fortes que o transportassem para casa. Assim fizeram, agarrando-o
pelas cordas passadas através dos orifícios laterais do caixão, às
quais haviam dado um nó no interior.
-Isto num dá praquela sopa que tá a fazê c'o Medes, patrão, siô
objectou o mais claro dos dois rapazes, supondo que o caixão era
para o mandingo.


-Isso não te interessa. Agarra-o e trá-lo -respondeu o patrão.
Ordenou aos carregadores que colocassem o caixão no extremo do
varandim, e mandou-os embora.
Ao entrar em casa, encontrou o pai a tomar o pequeno-almoço e
juntou-se a ele, comendo com apetite, devido à falta da ceia da noite
anterior.
-Acho que era preciso fazeres isto -suspirou o velho, com pena.
-Não havia outra alternativa. Não me sentiria bem, cá por dentro,
se o não fizesse -disse Hammond. -Não gostei de o fazer, não mais
do que o pai, mas o pai também sabe que nenhum cavalheiro pode
ter uma mulher que se porta assim, o pai sabe, com um negro. Não
havia outra coisa a fazer.
-Creio que assim se acabamos nossos mandingos. Claro, temos os
dois miúdos. A filha de Lucy e o da Pérola Grande, o Velho Senhor
Wilson. Estou satisfeito por termos aproveitado qualquer coisa do
Medes, mas vã o levar muito tempo a crescer.
Maxwell parecia deplorar mais o mandingo do que Blanche.
-Esse! Fiz-lhe o que ele merecia! Não quero mais mandingos! São
traiçoeiros!
-Não são traiçoeiros, se forem vigiados; não são mais traiçoeiros do
que qualquer outro negro. Não se lhes pode voltar as costas, a
qualquer macho, quando há senhoras em casa. São todos muito
sensuais -opinou o velho. -São assim mesmo, Não os culpo. É o
macaco dentro deles, são meio-macacos. Não sabem comportar-se
como deve ser, se não os obrigarmos.
-Eu devia era matar todos os filhos do Medes, acabar-lhe com a
raça! -disse Hammond, com um ar determinado.
-Não! Não! -protestou o velho. -As crianças não fizeram nada. Não
se pode dar cabo de toda a plantação só por causa de um negro.
Hammond empurrou a cadeira e levantou-se, não totalmente
convencido. Chamou Lucrécia Bórgia e Tense para o ajudarem e,
entre todos, envolveram os corpos de Blanche e da criança numa
colcha, levaram-nos para o ha11, escada abaixo, até ao varandim,


onde os depositaram no caixão aberto. Apenas Tense chorou, não
por ter amado a patroa ou por ter sido bem tratada por ela, mas por
autocompaixão e dúvida quanto ao seu futuro. Hammond tinha um
ar sombrio e estava decidido a levar até ao fim o dever que
impusera a si próprio. Tinha amado, pensava ele, a rapariga que
matara pela honra dela e pela sua honra e, apesar das faltas da
mulher, protegera-a e tratara-a bem, mas não tinha lágrimas para
derramar por aquela mulher. Ajoelhou junto do caixão e pregou a
tampa.

0 caldeirão burbulhava ainda e elevava-se dele um odor de carne
cozida que enchia tudo. Com a forquilha, Hammond mexeu a sopa
e viu que a carne se separava dos ossos. Depois voltou à colina onde
ficava o cemitério, para ver em que ponto se encontrava o trabalho
de Tesouro e Bruto. Não esperava que eles cavassem tão
rapidamente e ficou satisfeito com os seus progressos. Os lados da
cova não estavam muito rectos e avisou os negros para que os
endireitassem. Depois afastou-se e ficou a vê-los tirar terra do
buraco, mais rapidamente ainda, sob a vigilância do patrão.
Finalmente, cansou-se de observar os escravos e foi até aos campos
de algodão e depois voltou a casa. Exceptuando os rapazes que
cavavam a sepultura e o que estava encarregado da fogueira sob o
caldeirão, o trabalho na plantação estava suspenso e os escravos que
sabiam do martírio de Medes, mas desconheciam o que motivara,
conservavam-se nas suas cabanas, sem saber qual seria a próxima
vítima. Embora aterrorizados, nenhum deles punha em dúvida o
direito de o patrão fazer o que fizera a Medes ou de dispor de
qualquer deles como lhe apetecesse. Hammond subiu as escadas e
atirou-se para cima da cama. Contudo, apesar de não ter dormido
durante a noite, não conseguiu adormecer. Estava obcecado. Toda a
sua imaginação lhe trazia visões da sua mulher branca entre os
braços bestiais do mandingo. A sua vingança tinha sido pronta, mas


não bastava. Vingança alguma lhe bastaria. Pensou no que poderia
fazer para a tornar mais terrível e mais justa.

Ficou ali durante horas, de olhos abertos, a pensar. Depois ergueu-
se. A cova já devia estar terminada. Caminhando mecanicamente,
como em transe, desceu as escadas, atravessou o terreiro e chegou
às cabanas. Chamou os dois primeiros rapazes fortes que encontrou
e levou-os consigo até ao varandim, onde lhes disse que esperassem
por ele. Entrou em casa, atravessou o hall e dirigiu-se à sala, onde a
cadeira do seu pai se encontrava junto da janela. 0 velho bebera
mais do que era habitual, tentando afogar o seu desgosto perante a
angústia que sabia que o filho estava a suportar e que ele não podia
aliviar.
-Vamos agora -anunciou o rapaz. -Quer vir?
-Onde vais? -perguntou o pai.
-Enterrá-la, a ela e ao filho -disse Hammond, com um ar de falsa
despreocupação. -Quer vir? 0 pai gostava muito dela, quer dizer,
dantes gostava dela.
-Sabes que eu não posso andar tanto.
-Bom, podíamos ir buscar aquela liteira que eu trouxe de Natchez.
Eu sabia que algum dia havia de servir -propôs Hammond.
-Não ando naquela engenhoca -recusou o pai. -Parecia que me iam
enterrar também. Contudo ergueu-se e acompanhou o filho até ao
varandim, onde ficou a ver os dois escravos, um de cada lado do
caixão, erguerem-no pelas pegas de cânhamo e iniciaram a
procissão em direcção ao cemitério, com o filho atrás. Lembrou-se
de que fora ele a sugerir Blanche Woodford para consorte de
Hammond e culpou-se a si próprio pelo que sucedera. Se tivesse
estado mais vigilante durante a ausência do filho, o que sucedera
teria sido impossível. Partia do princípio de que o mandingo tinha
emboscado a rapariga e a tinha violentado, mas considerava-a tão
culpada por não ter falado do ataque, como Medes por o ter
perpetrado. Toda a gente sabia do desejo que os pretos sentiam


pelas brancas, desejo esse que os brancos deviam mais impedir do
que censurar, pois era tão impossível ao etíope dominar as suas
paixões como mudar a cor da pele. Maxwell ficou ali a olhar. Viu os
escravos pousarem o caixão e trocar as posições, transferindo o peso
para o outro braço. Depois viu-os levantar de novo o seu fardo e
desaparecer por trás das cabanas, e deixou de os ver.

Ao chegar à cerca do cemitério, Hammond chamou Bruto e Tesouro
para lhe arrancarem uma parte, a fim de deixar passar o caixão. Eles
tinham parado de cavar, mas o fundo da sepultura não estava liso, e
Hammond ordenou aos dois escravos que pousassem o caixão no
chão, enquanto os outros dois nivelavam a cova, Quando tudo ficou
pronto, ordenou a Tesouro que ficasse dentro da cova, para receber

o caixão, que os outros baixavam. Durante a descida, o caixão
voltou-se de lado e caiu sobre um pé de Tesouro, e ele gritou tanto e
queixou-se de tal modo que o patrão o mandou subir e delegou
Bruto para descer à cova e endireitar o caixão. Quando ficou
colocado à sua vontade, Bruto saiu e Hammond, agarrando num
pouco de terra solta e húmida, lançou alguns torrões sobre o caixão.
Depois ordenou a Bruto que enchesse a sepultura com a terra que
cavara, enquanto ele se ajoelhava no chão para observar o pé de
Tesouro e se assegurar de que não estava partido.
Não esperou até a cova estar tapada. Explicando a Bruto como
queria que ficasse, mandou embora os escravos e regressou
lentamente a casa. Ao passar pelo caldeirão ainda a ferver, sentiu-se
impelido a agarrar na forquilha, que estava encostada a uma árvore,
e a remexer o seu conteúdo. Os dentes prenderam-se na caveira
meio descoberta de Medes, que Hammond trouxe à superfície e
voltou a introduzir na água para continuar a ferver. Deu ordens
para que o líquido que já se evaporara fosse substituído por mais
água e que não deixassem o fogo morrer.


Terminada a ceia Hammond sentou-se junto do pai, que bebia o seu
toddy. Hammond nada bebeu. Quando Meiririon veio encher de
novo o copo do velho, Hammond disse ao escravo:


-Diz à Lucrécia Bórgia que venha cá. Mermion notou o tom severo
e peremptório e, em breve Lucrécia Bórgia, alisando o avental,
estava em frente do patrão, à luz do crepúsculo.
-Lucrécia Bórgia -começou Hammond.
-Sim, patrão, siô -disse ela.
-Lucrécia Bórgia, tu sabias, tu sabias disto?
0 tom do patrão era mais acusador do que interrogativo.
-Sabia? Sabia quê, siô? -retorquiu a mulher, para ganhar tempo,
sabendo a que se referia ele.
-Da miss Blanche e daquele mandingo. Tu sabias -disse ele.
Lucrécia Bórgia hesitou, enervada, sem saber se era mais
conveniente admitir ou negar a acusação, duvidando de que ele
acreditasse na negação. Finalmente, com a sugestão dum riso
nervoso na voz, reconheceu em parte que sabia.
-Eu sabia que Medes veio à casa e qu'ele subiu as escada. Tense diz
que a patroa mandou chamá ele -disse ela. -Num sei o qu'ele fez.
-Lucrécia Bórgia não estava cá nessa altura. Estava em Nova
Orleães -disse o pai, procurando defender a mulher.
-Nessa altura? Enquanto eu estive no Termessee? Foi antes de ela
ser vendida -respondeu o filho.
-Sim, siô, patrão; foi quando o patrão num tava cá -admitiu a
cozinheira.
-Porque é que não disseste? Porque não me contaste? Porque não
chamaste o meu pai? Sabias que o Medes não tinha nada afazer cá
em casa-censurou o jovem.
-Tense disse...-retorquiu Lucrécia Bórgia.
-Não interessa o que a Tense diz -disse Hammond.



-Tense disse que miss Blanche mandou chamá ele, siô -prosseguiu
a mulher, -Diz que miss Blanche disse pr'ó Medes vir cá. A Tense
tava a chora. Sempre a chorá.
-Deixa lá a Tense, digo-te eu. Porque não disseste tu mesma ao meu
pai? --interrogou o rapaz. -Porque não tomaste conta das coisas,
como devias>
-Era coisas de branco -disse Lucrécia Bórgia, encolhendo os
ombros.
-Eu nunca se mete nas coisa dos branco. Tu disse a eu, tu mêmo,
patrão, siô, coisa dos branco é coisa dos branco, e eu não tem nada
que metê.
-Pois disse. Mas levar um macho negro a uma senhora branca.
Sabes que não é seguro, nunca é seguro.
-Se a sinhora branca queria aquele macho grande, eu não ia fazê
nada
-e Lucrécia Bórgia encolheu de novo os ombros. -As sinhora branca
sabe o que elas quê.
-A miss Blanche não queria aquele macho negro. Sabes bem que
não. Ela chamou-o para lhe dar aqueles brincos encarnados e ele
violentou-a -raciocinou Hammond, em voz alta.
-Porque é qu'ela chamou ele p'la segunda vez e p'la terceira vez,
atão? -retorquiu a mulher.
-Mais do que uma vez? Não é verdade -declarou Hammond.
-Quatro dias ao todo, enquanto tu não tava cá, siô -disse Lucrécia
Bórgia, contando pelos dedos. Apenas tolerara Blanche, nunca
gostara dela, e sentia-se satisfeita por poder acusar. -Aquele Medes
tentava as mulhé. Tu viu ele despido.


-Tentava uma negra. Mas não uma senhora branca.
-Eu num sabe cumo é p'rás sinhora branca, siô -suspirou a negra.
-Apetece-me bastante pegar em ti e levar-te àquele cavalheiro de
Nova Orleães que te comprou -ameaçou Hammond.
-Sim, siô, patrão, siô, tá a ouvir -respondeu a mulher.



-Quando saíres, manda-me cá a Tense. Ouviste? -disse, mandando-
a embora, confundido com a sua taciturnidade.
Caminhou até à porta, impacientemente, enquanto Hortense não
chegava.
Quando finalmente ela veio, não sabia bem o que queria perguntar-
lhe.
-Tense -disse -tu eras a negra de miss Blanche, tornavas conta dela
e servía-la?
-Sim, siô, patrão -murmurou Tense, estremecendo, com medo dele.
-Sabias que aquele mandingo violentou a tua senhora?
-Medes, siô. Sim, siô, eu sabia.
-Porque não disseste? Porque não me disseste? -perguntou. -Se eu
soubesse, matava-o.
-Sim, siô, patrão, mas a miss dizia pra eu num contá. Ela tava
furiosa c'o patrão, diz que qu'ria pagã na mêma moeda. Eu dizia pra
ela, o mais que eu podia, pra ela não fazê isso; tu ficava zangado disse
a rapariga, absolvendo-se. -Ela disse pra eu ir buscá ele.
-E tu foste? Foste buscá-lo? E depois?
-Eu num sabe, siô, patrão, siô. Eu num sabe nada. Tense começou a
chorar, assustada.
-Que fazias tu enquanto, enquanto ele estava lá, enquanto ele
estava com a tua senhora? -insistiu o patrão.
-Eu tava sentada nas escada, só tava sentada.
-E não disseste nada? Não disseste nada ao patrão velho?
-Não, siô. Só tava sentada a chorá. Eu disse à miss Lucrécia Bórgia,
depois.
-Ela sempre soube do que se estava a passar? Hammond tentava
incriminar alguém.
-Ela sabia. Todos sabia. Todo os nêgo sabia -admitiu ela,
levantando a saia para limpar os olhos.
-Os negros da casa ou todos eles?



-Pelo menos os nêgo da casa, menos a Ellen. Ela num tava cá nessa
altura, foi c'o patrão. Ninguém contou prá miss Ellen. Tavam cum
medo.
-Quantas vezes? Quantas vezes foste buscar aquele macaco para a
miss Blanche?
-Tá a falar do Medes? -perguntou Tense. Contou os dedos e
levantou a mão, com o polegar esquerdo. -Estes -disse ela, incapaz
de contar até quatro. -Estes, acho eu.
-Todos os negros sabiam e nenhum me contou, nenhum deles me
contou?
Hammond abanou a cabeça, descrente.
-0-, gémeo, que o patrão vendeu, um deles, nuin sabe qual era,
nunca consegui sabê, um deles ia dizê, disse qu'ia dizê, só se miss
Blanche, só se a miss Blanche ...
Tense não conseguia prosseguir.
-Só se miss Blanche fizesse o quê? -ajudou o patrão.
-Só se ela fizesse cum ele cumo tinha feito c'o Medes -disse ela.
Hammond, erguendo-se, dirigiu-se à rapariga, ergueu o braço e
esbofeteou-a com tal força que a fez cambalear.
-É mentira! É uma maldita mentira! -exclamou ele.
0 mais velho dos MaxwelI, que se conservava em silêncio
murmurou:
-Conversa de negros. Sabes que não é verdade, filho. Os gêmeos
não tinham tamanho suficiente para isso.
0 filho duvidou da validade daquela observação.
-Eram tão grandes como eu, da primeira vez, quando me deu
aquela fêmea.
Apesar de ter esbofeteado Tense e a acusar de mentir, acreditara na
história dela, sabia que ela dissera a verdade.


-Aquele Meg, pelo menos, estava bem aparelhado, era já grande
como um carneiro.



-Demasiado tarde, demasiado tarde, agora. Nada podes fazer,
Ham, mesmo que ela esteja a dizer a verdade -disse o velho,
esvaziando o copo.
Hammond encolheu os ombros.
-Quantas vezes? Quantas vezes é que aquele Meg violou a tua
patroa? Quantas vezes?
Tense manteve-se sombria e não respondeu.
-Quantas vezes, estou a perguntar-te, negra? -inquiriu Hammond.
-Eu num sabe, siô, por favô, siô, patrão, siô -respondeu ela,
finalmente. Depois acrescentou. -Quase todos os dia até tu vendê os
gêmeo. Quase todos os dia, quando ele escapava lá pra cima, e às
vezes à noite quando tu tava a dormi com a miss Ellen.
-Então foi o Meg, porque o Alph estava sempre a dormir consigo,
pai disse Hammond.
-Às veze era os dois, de dia, um depois do outro -disseTense. -Mas
só um é que ia dizê a ti.
Hammond sentia-se revoltado, desolado, impotente para se vingar
dos gémeos.
-Chega -disse, mandando Tense embora, mas depois voltou a
chamá-la.
-Tu ainda és virgem, não és? -perguntou-lhe. Sabendo que ele
desejava uma resposta afirmativa, ela deu-lha.
-Sim, siô -disse um tanto duvidosa, e acrescentou -, eu num sabe o
qu'é isso, virgem. Penso que eu é.
-Nunca tiveste nenhum macho, sei que nunca tiveste.
-Não siô, patrão, siô, fora aquele gêmeo, eu nunca teve. A sinhora
diz que enquanto ela tava cum um, eu tinha que tar c'o outro. E eu
tava. Acho que eu tava -confessou Tense.
-Nesse caso-disse o patrão. -Sabes o que é que eu vou fazer
contigo?
Vou escolher o macho maior, mais preto e mais feio da plantação e
vou dar-te a ele. Percebeste? Dou-te para ele. Pensava fazer negros
de casa dos teus filhos, mas já não; vais criar negros de campo,



grandes, pretos, sujos. Não posso confiar em ti, mas és perfeita e boa
para teres negros para o campo. Agora vai-te embora!

Hammond, na sua ira, era sincero na decisão de cumprir a ameaça.
Nem pensava quanto mais valioso era um criado de casa do que um
trabalhador do campo, embora viesse a pensar quando a sua cólera
desaparecesse. Queria vingança. 0 pecado de Tense fora o de não
lhe falar da má conduta da sua mulher, na qual não teria acreditado
decerto. Tense tinha pertencido a Blanche e a sua lealdade era para
com a sua ama, não para com o patrão e, além disso, o testemunho
de uma escrava contra o de urna branca era tão inútil como
censurável. Tense sabia isso tão bem como Hammond. Ele não
podia decidir-se a chicotear a rapariga por ela ter aderido aos
costumes, mas podia castigá-la, forçando-a a viver numa cabana
com um negro brutal e a dar-lhe filhos grosseiros, destinados às
tarefas árduas do algodão ou da cana-do-açúcar.

A resposta de Tense à sua ameaça foi apenas um quiescente "Sim,
siô, patrão". Sem lágrimas. Ele esperava lágrimas, contrição, uma
súplica de perdão.

Na realidade, Tense não estava assustada com o destino prometido.
Gostava de homens grandes e a cor não lhe interessava. Para ela não
havia machos feios, apenas homens de maior ou menor donaire.
Além disso, o casamento, se assim se podia chamar, visto que a
rapariga não tinha qualquer conceito da permanência de tais
relações, tirá-la-ia daquela casa, afastá-la-ía da necessidade de se
preocupar com tantos caprichos, cumprir tantas formalidades,
observar tantos "efes e erres". Receava apenas a falta da comida dos
brancos a que estava habituada, mas as rações das cabanas não a
aterrorizavam. Sabia que aquilo era um castigo, mas não percebia
bem em que consistia. Sentia-se satisfeita, quando saiu da sala,


como lhe ordenaram. Só pensava em qual seria o escravo a quem
iam dá-la.

0 caldeirão continuava a borbulhar lentamente sobre o fogo que não
haviam deixado de apagar. Na manhã seguinte, Hammond mexeu o
líquido espesso e viscoso, com a sua forquilha, e levantou alguns
dos grandes ossos, já soltos da carne. Eram tudo o que restava do
mandingo. Chamou Lucy.
-Arranja baldes -disse-lhe ele. -E enche-os. Vamos levar este rapaz
para o cemitério. Enche-os e vem comigo.

Lucy sem um protesto audível, desapareceu na cozinha de Lucrécia
Bórgia e voltou com três baldes de madeira, rodeados de aduelas de
cobre, e uma grande concha. Colocou-os em fila, ao lado do
caldeirão e encheu-os com o caldo feito da carne do mandingo, seu
filho e companheiro. 0 patrão observava-a, impaciente. Quando os
baldes estavam cheios, Lucy inclinou e colocou o balde do meio
sobre a cabeça, equilibrando-o, enquanto se punha de joelhos para
levantar os outros que levou nas mãos.
-Este tá a vertê -foi o único comentário da mulher.
-Não faz mal -disse o patrão. -Se entornares um bocado dele pelo
caminho, não têm importância. Ainda ficamos com muito. Foi à
frente e a preta seguiu-o, com um passo majestoso, com os dois
baldes nos extremos dos braços poderosos, e o balde sobre a cabeça
tão firme como se fizesse parte da sua anatomia. 0 homem avançou
lentamente, consciente do fardo que ela carregava. Atravessaram o
largo, passaram pelo celeiro, pela casa de reuniões usada como
dormitório, por entre as filas de algodão, já pela altura dos joelhos, e
chegaram à abertura feita na cerca do cemitério. Aí ele apressou o
passo e parou junto da sepultura ainda fresca, cuja terra secava ao
sol, esperando pela mulher.
-Dá cá -disse ele, tirando-lhe da mão o balde que vertia. Despejou o
seu conteúdo lentamente sobre a terra da sepultura, esperando que


o líquido quente fosse absorvido pela terra. Depois tirou-lhe da mão
o segundo balde e despejou-o também. Lucy estava erecta e
silenciosa com o terceiro balde sobre a cabeça. Ele estendeu o braço
e ela ergueu o balde e deu-lho.
Depois de vazios, ele enfiou os três baldes uns nos outros e deu-os a
Lucy.
-Traz mais -ordenou-lhe. Depois de ela partir, dirigiu-se à cerca e
encostou-se a ela, aguardando o seu regresso.
Lucy fez cinco viagens com os seus três baldes entre o caldeirão e o
cemitério, antes de anunciar, apresentando um balde meio cheio.
-Foi tudo, patrão, siô, só lá tá os ossos, siô. Quando Hammond
esvaziou o balde final sobre a sepultura já bem ensopada, reparou
num pedaço de carne ainda não desintegrado. Dois abutres
esvoaçavam no céu e ele compreendeu que a carne não estaria lá
por muito tempo.
-Bem, ele aí está-disse ele, endireitando-se. -Ela queria-o tanto,
acho que agora já o tem todo. Ele deve escorrer e ir ao encontro
dela. Podes ir-te embora Lucy. Não preciso mais de ti.
A mulher pegou nos três baldes, enfiou uns nos outros, e colocou-os
sobre a cabeça. Começou a andar, mas, ao chegar à cerca, voltou-se.
-Patrão, siô, patrão, eu pode ficá c'os ossos do Medes? -perguntou,
em tom lamentoso. -São tudo o que tem dele. 0 Medes num queria
fazê mal, patrão. Ele num queria.
0 homem não lhe respondeu. Ela começou a dirigir-se para casa e
ele seguiu-a, cinquenta passos atrás, parando de vez em quando
para observar o algodão para fingir, mesmo para si próprio, que a
tragédia que caíra sobre ele não o afectara. Quando Lucy chegou ao
local onde devia virar para ir para a sua cabana, o patrã o chamou-a:
-Leva os ossos que quiseres -disse. -Mas limpa aquele caldeirão,
bem limpo. Esfrega-o com areia. Vamos precisar dele, quando
matarmos os porcos.
0 Maxwell mais velho aliviou a ansiedade que sentia pelo desgosto
do filho, bebendo cada vez mais toddies, até ficar entorpecido.

Serviam-lhe de anódino para o desgosto que sabia que Hammond
estava a suportar em silêncio, sem falar. Hammond regressou do
campo e a conversa recaiu apenas sobre a doença do velho, se o
reumatismo estava melhor ou pior, se doía muito, se as articulações
estavam inchadas. 0 velho sabia que apenas o tempo podia curar a
raiva, o orgulho ferido, a sensação de perda, possivelmente a
sensação de culpa, do seu filho. Os dias passaram, refeições sem
conversas, toddies ao crepúsculo sem nada se dizer. 0 algodão
crescia na Primavera suave e os trabalhadores sob a supervisão de
Hammond, iam arrancando as ervas. Um negro adoeceu, com dores
persistentes no baixo ventre, mas foi purgado, e não houve motivo
para alarmes. Duas mulheres tiveram filhos na mesma noite, sem
qualquer problema. Hammond contava, com brevidade, ao pai as
ocorrências da plantação, mas pouco conversavam. Toda a casa
estava silenciosa. Os escravos da casa falavam em voz baixa.
Maxwell sentia que Hammond continuava a fervilhar de emoções
tácitas.
Blanche estava morta havia dez dias, enterrada havia nove. A ceia
terminara e Maxwell bebia o seu toddy, Hammond colocou o seu,
sem o provar, no chão, ao lado da cadeira.
-Bem -disse o jovem -, penso que parto, que parto amanhã.
-Partes? Partes para onde? -perguntou o pai placidamente, sem
mostrar o alarme que sentia.
-Parto, apenas -respondeu o filho. -Primeiro para Nova Oricães.
Tenho de matar aqueles gêmeos.
-Não podes; não podes fazer isso -objectou Maxweli. Não são teus.
-Eu pago-os. Não deve ser muito, são dois rapazes pequenos. Se
necessário, dou-lhe o dinheiro todo, todo aquele por que lho
vendemos. Mas não deve ser preciso. -Os olhos azuis de Hammond
estavam focados no crepúsculo, copio num sonho. -Nenhum juiz
me vai condenar, pelo menos depois de saber porque o fiz.
-Não tens provas -protestou o velho.


-Ouviu o que a Tense disse? A Tense não estava a mentir. 0 que ela
possa dizer de Blanche não faz fé, mas um negro pode acusar outro
negro, se for verdade -disse Hammond, com determinação.
-Talvez -admitiu o pai. -Mas ...
-Matar aquele Meg e aquele Alph é a única maneira de me sentir
bem. Eu sei que é. Continua tudo a girar dentro de mim, Não
consigo dormir, não consigo comer, nem fornicar, nem pensar, não
consigo fazer nada enquanto eles estiverem vivos. Ver-me livre dela
e do mandingo não serviu de nada, depois de Tense falar dos
gémeos.
Hammond falava lentamente, mas com deliberação. Apenas parou
para suspirar.
-Depois de eles estarem mortos, sentir-te-ás satisfeito? -perguntou
Maxwell, com ar duvidoso.
-Não sei -admitiu Hammond. -Depois disso talvez dê uma volta
até ao oeste, talvez vá ao Texas, ver se há lá bom terreno para
plantar algodão, um sítio onde eu possa olhar para um branco sem
ele dizer para si próprio: "Lá vai o Hammond Maxwell cuja mulher
se divertia com os negros."
-Ninguém sabe disso -argumentou Maxwell.
-Sei eu e sabe o pai, e sabe o Redfield e a viúva. E quem sabe
quantos mais?
-Bom, já és um homem e sabes como te sentes. Não posso impedir-
te de ir -concordou Maxwe11. -Leva ouro, todo o que quiseres, e os
negros de que precisares. Falconhurst fica aqui à tua espera.
-Eu volto para o vir buscar, logo que me fixe, a si e à pequena
Sophy. Tome conta dela.
-Lucrécia Bórgia e Pérola Grande tomarão bem conta dela até tu
voltares. Quanto a mim, acho que não vou. Volta e leva negros,
todos os que quiseres. São teus. Mas deixa-me ficar, a mim, ao
Merimon, à Lucrécia Bórgia e aos mandingos, ao que resta deles.


-Pai! Pai! -Hammond atirou-se aos pés do pai e abraçou-se ás suas
pernas. -Isso não está certo, eu no Texas e o pai aqui.
-Falconhurst estará sempre aqui para quando tu voltares -disse o
pai. Fez uma pausa, antes de continuar. -Quanto a mim, eu
pertenço aqui. Os meus ossos e a carne que os cobre são feitos da
terra de Falconhurst. Nasci aqui, aqui cresci, aqui vivi toda a vida,
conheço toda a gente. Acho que devo morrer aqui e apodrecer na
terra de onde vim, e descansar ao lado da tua mãe, na colina.
Quando tu partires, filho, tenho que pôr de lado este reumatismo, e
tomar conta de tudo.


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Lançamento Livros Loureiro
   Mandingo - Kyle Onstott
 
(links no final da pág.)



   Digitalização: José
Formatação e revisão: M. Loureiro

Sinopse:


Por trás das saias rodadas e do conceito de hospitalidade, do xarope de hortelã-pimenta e das magnólias em flor do Velho Sul, havia um mundo de cuja existência poucas pessoas sabiam - um mundo de violência, de crueldade, cupidez e desejo.


Mandingo traz-nos à vida real os sons, os cheiros, a terrível realidade dos ranchos de criação humana e das plantações onde homens e mulheres eram acasalados e criados como gado. 


Podem adorar Mandingo ou podem odiá-lo, mas não conseguirão pô-lo de lado, porque é um romance terrível e maravilhoso!


Obs.

O livro Mandingo de Kyle Onstott deu origem ao filme Mandingo - O Fruto Da Vingança (1975), sobre um escravo Africano na década de 1840 nos Estados Unidos que é treinado como um lutador premiado por seu proprietário e mantem um caso com a filha deste.


O termo passou a ser usado como uma gíria para um relacionamento interracial.


Links:

Ziddu:

(.pdf):
http://www.ziddu.com/download/20233544/Mandingo-KyleOnstott.pdf.html

(.doc)
http://www.ziddu.com/download/20233546/Mandingo-KyleOnstott.doc.html

Mediafire:

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Este e-book representa uma contribuição do grupo Livros Loureiro para aqueles que necessitam de obras digitais,
como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras.


Foi o tempo que investiste em tua rosa que fez tua rosa tão importante.

(Antoine de Saint-Exupéry)




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2 comentários:

linda disse...

EU SOU Dora Sandy eu quero dar graças e eu vou sempre dar graças a drokojie que trouxe de volta o meu marido divórcio que me deixou de seis anos dentro de 48 horas, eu disse sobre esta última semana, mas eu prometi para sempre informar as pessoas sobre isso a cada fim de semana de modo que aqueles que não li sobre isso na semana passada vai ler sobre isso esta semana, i foram à procura de como engravidar e como obter o meu marido divórcio de volta para a minha vida, porque eu o amo com todo o meu coração, eu não poderia substituí-lo com todo o corpo, um dia eu estava assistindo a minha televisão quando vi uma senhora dando graças ao padre ina e dizer ao mundo como ele a ajudou fiquei tão chocada que eu não podia acreditar, porque eu nunca ensinou que existem poderes que pode trazer de volta o casamento perdido, então foi assim que eu decidi entrar em contato com ele também, porque eu realmente preciso do meu marido de volta o divórcio, quando entrei em contato com ele, eu disse-lhe tudo e ele me disse para não me preocupar que meu marido divórcio certamente estar de volta para mim, no prazo de 48 horas, em primeira i não podia acreditar, porque eu estava pensando como poderia alguém que passou por seis anos voltar dentro de 48 horas, por isso, então eu decidi assistir e ver, inacreditável no próximo 48 horas eu recebi um telefonema do número desconhecido assim que eu pegar a chamada a próxima coisa que eu ouvia era meu maridos voz que ele estava implorando e implorando-me ao telefone que eu deveria perdoá-lo que eu deveria esquecer tudo isso ter acontecido que não sei o que aconteceu, ele não prometeu para sair, por qualquer razão, que ele era realmente sinto muito pelo que ele fez, eu estava tão surpreso, porque eu nunca acreditei que isso pudesse acontecer, de modo que era como eu aceito seu pedido de desculpas e, na manhã seguinte, ele voltou para casa para me encontrar e ainda implorando para eu perdoá-lo eu disse-lhe que está tudo ok que eu o perdoei, foi assim que começou de novo e ele tem Chang, eu prometi a dizer este testemunho na estação de rádio, comentando este testemunho que agora estou grávida, mas ainda bem antes deste mês esgote eu prometo dizer isso em estação de rádio e eu vou senhor, muito obrigado much.World por favor estou implorando as pessoas a tentar ajudar-me agradecer a este homem para mim, ou se você precisar de sua ajuda aqui é o seu endereço de e-mail drokojiehealinghome@gmail.com

Anônimo disse...

Este é um anúncio público para todos que querem vender um rim, temos pacientes que precisam de um transplante de rim, por isso, se você estiver interessado em vender um rim, por favor entre em contato conosco em nosso e-mail em iowalutheranhospital@gmail.com
Você também pode ligar ou escrever para nós no whatsapp em +1 515 882 1607.

OBSERVAÇÃO: Sua segurança está garantida e nosso paciente concordou em pagar uma grande quantia de dinheiro para qualquer pessoa que concordar em doar um rim para salvá-lo. Esperamos ouvir de você, para que você possa salvar uma vida.

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