Os AVENTUREIROS DA TERRA ENCANTADA
Luiz Antonio Aguiar
Ilustrações de Lielzo Azambuja
Terra Encantada, lugar de grandes aventuras.
Afra e Xereta, garotos da cidade, e Yetê, a indiazinha linda como um rio
que canta, ajudam a deusa Kiara a defender seu Reino. De um lado, a
magia da natureza. Do outro, o diabólico Ravoc, suas máquinas de
guerra e seu exército de escravos. Você vai tomar parte nesta briga. Você
vai se tornar um dos aventureiros da Terra Encantada.
Antes o mundo não era assim
.A.ntes, muito antes da descoberta da América, existiu ao sul do
Equador uma civilização tropical. A natureza era acolhedora, fértil,
generosa. A vida entre eles era boa e feliz. Tanto que a região e o
seu povo eram conhecidos como a Terra Encantada.
Possuíam três pedras mágicas, cada qual simbolizando uma parte
do ser. O corpo era simbolizado pela pedra azul, o intelecto, pela
vermelha, o espírito, pela amarela. E havia um xamã guardando
cada pedra. Freqüentemente, os xamãs reuniam-se num templo,
para meditar e também para, valendo-se de seus poderes,
observarem o mundo exterior.
Foi assim que o Xamã do Intelecto entusiasmou-se pelas
descobertas de além-mar -a cura das doenças, as grandes invenções
etc. Foi esse entusiasmo que o levou a sugerir que a Terra
Encantada se abrisse para aqueles povos, dotados de tanto conhecimento.
Mesmo receando que o homem branco viesse perturbar
o equilíbrio da Terra Encantada, decidiram-se acolhê-lo -e a
magia dos xamãs tornou-a visível também aos que viessem de fora.
Certo dia, chegaram os europeus, de fato, e surprenderam-se
bastante ao descobrir que a terra que esperavam ter toda para si já
era habitada. Assim, apesar de a Terra Encantada tê-los recebido em
paz, e com muita festa, começaram os problemas. Os europeus
chegaram a tentar escravizar os povos da Terra Encantada, que
foram se afastando aos poucos, para proteger-se. Então, utilizando a
força de suas armas, os europeus trouxeram um terceiro povo, lá da
África. Um povo abençoado por muita força espiritual que se
expressava, entre outras maneiras, através de uma
desenvolvidíssima musicalidade. Um povo que, por aqui, foi
escravizado, mas que jamais perdeu a dignidade, a esperança e o
ânimo de luta.
Os xamãs da Terra Encantada perceberam que seu continente havia
se transformado. Era agora muito mais complexo e instável. Era
agora uma terra chamada Brasil. Assim, decidiram ocultar a Terra
Encantada, para que seus valores fossem preservados -até porque o
novo país poderia precisar desses valores algum dia. Assim,
escolheram uma região, que ninguém jamais havia alcançado, e a
selaram magicamente. Ali dentro, seria a Terra Encantada. Lá, só
entrariam os puros de coração e os que precisassem de abrigo,
contra a destruição da natureza.
No centro daquela terra mágica, ergueram o Castelo das Aguas, no
qual ficariam guardadas as sementes dos elementos fundamentais a
água e o fogo -, para que o mistério da vida fosse continuamente
celebrado. Quanto às pedras mágicas, decidiram que deveriam
permanecer no mundo exterior, para que os valores da Terra
Encantada não fossem esquecidos. Essas pedras seriam repassadas
de geração em geração, até que um dia, quando se tornasse
necessário, se reuniriam outra vez na Terra Encantada.
Aos poucos, no Castelo das Águas, os elementos fundamentais
corporificaram-se em deuses, encarregados de reger as forças
mágicas da Terra Encantada. Surgiram a Kiara, deusa das águas, e
Hetá, deus do fogo. No início, reinavam em paz e viveram uma
lindíssima história de amor. Mas Hetá deixou-se fascinar por seus
próprios poderes. Começou a querer mais e mais, ameaçando a
natureza, não hesitando em sacrificar fosse o que fosse, para tornar-
se mais forte.
O conflito entre Hetá e a Kiara foi inevitável. A Deusa das Águas
saiu em defesa da Terra Encantada. Já Hetá, vendo-se desafiado,
tomou-se de ira, a ponto de perder totalmente o controle sobre seus
atos. Hetá espalhou o fogo pela Terra Encantada, causando enorme
sofrimento. Mas ele também seria uma de suas próprias vítimas.
O fogo que antes aquecia e iluminava passou a destruir. Nem
mesmo Hetá era mais capaz de detê-lo. Hetá foi pego pelo grande
incêndio. Mutilado, com o espírito e a mente destruídos, e mesmo
assim ainda possuído pelo ódio, foi expulso, e passou a vagar pelos
arredores da Terra Encantada. Agora, um coração mecânico, imune
aos sentimentos humanos, sustentava seu corpo. E a obsessão por
retornar à Terra Encantada, invadi-la e submetê-la ao seu poder
tomou conta dele -para isso, chegou a reunir um exército de símios,
privando-os de vontade própria. A frustração, o desejo de vingança
e a raiva tornaram-no um novo ser... com um novo nome: Ravoc!
Ravoc, o grande predador, aquele que destrói, o inimigo maior da
Terra Encantada.
Enquanto isso, na Terra Encantada, a Kiara ganhava valiosos
aliados. Tunhã, o sábio mico-leão, Jágua, a jaguatirica de muitas
batalhas, e diversos outros... E dispunha ainda da magia de seu
manto d'água e da proteção permanente do arco-íris que cercava
seu reino. Mas a Kiara sabia que, para defender a Terra Encantada
da ira de Ravoc, precisava de mais ajuda... E ela veio. Yetê, a
indiazinha, chegou um dia, trazendo de volta a pedra azul. Anos
depois, viriam Xereta e Afra, dois garotos da cidade grande,
trazendo a pedra vermelha e a amarela.
Enfim, o poder da Terra Encantada estava completo outra vez.
Enfim, a Terra Encantada poderia de novo mostrar ao mundo
exterior como se convive com a magia da natureza.
Silvana Gontijo
O Povo
das Aguas
O pedido de socorro
Quico quem avistou a pequena embarcação inflável, descendo o rio,
trazida pela correnteza. Ainda estava um pouco longe. Mas o
botinho cor-de-rosa nem pensou em chegar mais perto primeiro, e
com cuidado verificar do que se tratava. Pelo contrário. Quico
mergulhou bem fundo e nadou velozmente por baixo d agua, rindo
sozinho:
"Que susto vão levar!"..., imaginou Quico, planejando dar um dos
seus saltos mais caprichados, espalhando água para todos os lados,
bem em cima do bote. Só que ele é que iria levar um grande susto.
Ou melhor, antes, iria ter uma surpresa... No que surgiu da água e
projetou-se no ar, soltando aquela risada debochada dos botos,
percebeu...
"Ué! Não tem ninguém no bote!"
No instante seguinte -e só então -reconheceu o tipo de embarcação.
E foi o bastante para nadar mais depressa ainda até penetrar no
igarapé que dava entrada ao Castelo da Kiara.
-Ataque do Ravoc! Ataque do Ravoc! -foi gritando, assim que
chegou.
A Kiara abriu os braços para receber o botinho cor-de-rosa. Seu
manto de água pareceu brilhar, para tranqüilizá-lo, enquanto ela
caminhava magicamente sobre a superfície líquida do igarapé, para
junto de Quico...
-Calma, Quico! O que foi que aconteceu?
Com dois pulos ágeis sobre as pedras, Tunhã, o sábio mico-leão,
aproximou-se da margem. Quico aos poucos recuperou o fôlego e
contou o que tinha visto.
-Você correu um risco desnecessário, menino! -repreendeu
Tunhã. -Como é que se aproxima assim de uma embarcação, sem
nenhuma precaução?
Quico ficou ainda mais rosado, de vergonha. A Kiara, no entanto,
acariciou-o...
-Ah, meu querido Quico... você não tem maldade nenhuma! Mas
isso faz parte da sua alegria, não é?
-Por favor, Kiara! -insistiu Tunhã. -Não é apenas Ravoc que
devemos temer. Quico nasceu num laboratório e sempre foi bem
tratado pelos humanos. Mas existem outros tipos de pessoas no
mundo lá fora. Caçadores, por exemplo! -E Tunhã fez questão de
encarar Quico, amedrontando-o. -Muitos deles, ansiosos por
capturar um espécime raro... assim como um botinho cor-de-rosa
imprudente!
Quico sentiu um arrepio. Mas logo a seguir foi de novo tomado pela
agitação:
-Um bote do Ravoc! Eu vi! Eu vi! Deve estar quase alcançando a
cachoeira!
A Kiara emitiu um breve canto e o manto d'água, atendendo ao seu
chamado, mostrou o bote inflável descendo o rio.
-Aurora vai morrer de inveja quando souber que dessa vez fui eu
que trouxe a novidade! -disse Quico, dando saltos ligeiros na água,
já esquecido do susto e da bronca que levara.
A Kiara sorriu para o botinho, carinhosamente. Tunhã, no entanto,
estava totalmente absorvido, examinando a imagem. Depois de
alguns instantes, falou...
-E um dos botes que os soldados do Ravoc usam, sem dúvida.
Muito estranho, um bote assim, abandonado...
-Espere, Tunhã... -pediu a Kiara.
A deusa permaneceu um momento em silêncio, olhando fixamente
para dentro do seu manto d'água. Algo no brilho mágico do manto
pedia sua atenção...
-Esse bote precisa ser trazido para a Terra Encantada.
-Mas não tem ninguém nele! Eu vi! Eu vi...-protestou Quico. -E se
Ravoc tiver escondido nele uma... coisa ruim?
-Não sei o que é, Quico. Mas sinto que precisamos... descobrir! -E,
com um gesto, a deusa da Terra Encantada avivou as forças mágicas
do manto...
No rio, a embarcação acabara de atingir o ponto em que as
corredeiras tornavam-se praticamente invencíveis. O bote ia sendo
arrastado, de um lado para o outro. Ondas brotavam do choque da
água com as pedras e o rumor da cachoeira crescia, fazendo a
própria floresta vibrar. Mais um pouco e o bote foi lançado no
vazio. A cachoeira era uma imensa massa líquida despencando por
metros e metros, sobre o espelho do rio, abaixo. Uma coluna de
espuma se erguia, com o impacto, preenchendo o ar como se fosse
uma nuvem muito densa, feita de grossos respingos. E, recortando
essa nuvem úmida, estava o arco-íris que cerca e protege a Terra
Encantada.
O bote ficou suspenso por menos do que um instante -então,
pareceu que iria perder altura, precipitar-se e ser engolido. Foi
quando o manto mágico surgiu, como se uma fatia da queda d'água
ganhasse vida própria, mas aparecendo de dentro do arco-íris, de
repente. Com delicadeza, o manto sustentou o bote no ar, para logo
a seguir vir baixando-o, atravessando o arco-íris e depositando-o
mais adiante, onde a correnteza se abrandava. Brilhos de várias
cores envolveram a embarcação inflável, conduzindo-a pelo
labirinto de igarapés.
Quando Quico viu o bote chegando, instintivamente, afastou-se.
Tudo o que dizia respeito a Ravoc o amedrontava demais. Era mais
forte do que ele, mesmo com a Kiara garantindo que não havia
perigo imediato. A essa altura, Aurora, como sempre, farejara
novidades. Chegara ao Castelo da Kiara já com mil perguntas na
ponta do bico, querendo saber o que estava acontecendo.
-Mas a gente ainda não sabe, Aurora! Vê se sossega! -pediu Tunhã,
já sabendo que não adiantava pedir uma coisa dessas para a arara
azul, que revoava excitadíssima acima dele.
Tunhã esperou o bote encostar na margem do igarapé e pulou para
o seu interior. Com seus olhos agudos, em instantes vasculhou a
embarcação...
-É um bote do exército de Ravoc, sim... E aqui está o que você
pressentiu, Kiara! -disse-lhe Tunhã, desprendendo um colar de
contas dos cordames da embarcação. -Este colar foi fixado aqui por
alguém que sabia que o bote ia sacudir um bocado, antes de chegar
até nós...
A Kiara assentiu, silenciosamente. Aurora pousou ao lado de
Tunhã, e Quico, finalmente, ganhou coragem para aproximar-se
outra vez. O mico-leão examinava o colar sem pressa.
-Mas o que é isso? Diga logo, Tunhã! -matraqueou Aurora, sem
conseguir se conter.
Tunhã respirou profundamente. Suas feições estavam contraídas, de
tanta preocupação...
-Uma mensagem... As contas deste colar são...um pedido de
socorro!
-Mas de quem? -berrou Aurora, esganiçada. -De quem?
-De uma tribo que todos nós achávamos que não existia mais... -E
o mico-leão entregou o colar nas mãos da Kiara.
A mesma preocupação estampou-se no rosto da deusa da Terra
Encantada. Aurora já estava pronta para disparar mais uma fileira
de perguntas, mas a Kiara a interrompeu meigamente com um
gesto e pediu:
-Aurora! Vá chamar a Yetê. Diga a ela que precisa vir para cá
imediatamente!
Yetê, a que veio
pelas águas
Fazia doze anos, então...
Naquele tempo, na cabeceira do rio que ia dar na Terra Encantada,
existia uma tribo orgulhosa de seu jeito de viver e das muitas
histórias que tinham para contar. Eram os yetomani e a maioria das
suas histórias tinha a ver com aquele rio.
Eles acreditavam que era um rio sagrado, habitado por muitos
deuses que, no passado distante, haviam ensinado aos yetomani a
pescar e a viver em paz. Graças a isso, os yetomani não dependiam
de ninguém, a não ser deles próprios, para sua sobrevivência. Eles
amavam a floresta, sentiam-se parte dela.
Um dia, algo aconteceu. Foi logo depois de um grupo de
garimpeiros atravessar suas terras. Os yetomani evitavam o contato
com o homem branco. Mas sabiam que não conseguiriam impedir
que, assim como outras tribos, também eles fossem ameaçados. Só
que nunca podiam prever que tudo ocorresse tão subitamente e de
maneira tão devastadora.
Os garimpeiros foram seguidos à distância pelos yetomani.
Pareciam estar apenas de passagem. Caminhavam o dia inteiro,
sempre com suas armas engatilhadas -e disparavam em tudo o que
se movesse na floresta. Os yetomani não conseguiam compreender
por que os brancos matavam daquela maneira, que parecia
totalmente enlouquecida aos índios. Os garimpeiros atiravam pelo
prazer de ferir -às vezes sequer recolhiam os animais que abatiam;
simplesmente prosseguiam andando, dando gargalhadas.
A noite, acampavam, bebiam — divertiam-se disparando suas
armas contra os ruídos da mata -e caíam num sono profundo. Pela
manhã, retomavam a marcha. Todo acampamento que deixavam
para trás era cuidadosamente examinado pelos yetomani.
Os índios procuravam compreender os garimpeiros por aquilo que
iam jogando fora. Latas vazias, garrafas quebradas, cartuchos
queimados e outros objetos que, para os yetomani, faziam pouco
sentido, ou melhor, faziam um único sentido... eram coisas que
envenenavam a floresta e seus rios.
Finalmente, os garimpeiros afastaram-se das terras dos yetomani e a
tribo pensou que, pelo menos dessa vez, estava livre do perigo. E foi
então que o primeiro yetomani apareceu doente. Era um dos
guerreiros que seguira os garimpeiros. Queixava-se de muitas dores
no peito, sua testa ardia, perdeu o apetite e foi tomado de absoluta
tristeza... O pajé fez o que pôde, mas em uma semana o guerreiro
estava morto. E, quando ele morreu, já boa parte da tribo
encontrava-se doente também. Um a um, os yetomani iam
sucumbindo. Compreenderam que estavam condenados, que em
breve iriam desaparecer da sua floresta querida. Alguns chegaram a
pensar que seus deuses os haviam abandonado...
Mas não todos. Sobravam poucos yetomani -um deles era aquele
chefe, já velho, carregando a dor em seu espírito. Ele acabara de
entregar seu filho aos deuses, um guerreiro forte e valente, mas que
não tivera como lutar contra a inimiga que o corroeu por dentro. O
velho sentia-se enfraquecido, ao retornar à beira do rio, onde
deixara a mulher do seu filho. Chorando, ela lhe entregou o bebê
que abraçava e o velho o colocou numa pequena canoa.
-Que os deuses do rio a abriguem, minha neta! -abençoou o velho.
A seguir, retirou do pescoço um colar com uma pedra azul e o
colocou no pescoço do bebê. -Essa é a Itaobi. Para nosso povo, ela é
uma pedra sagrada. Eu deveria, daqui a alguns anos, contar a você
a história dessa pedra, e como os deuses que nos trouxeram à luz a
deram de presente a nossa tribo. Não vou poder fazer isso. A4as
quem sabe um dia você descobrirá tudo sozinha... Que pelo menos
você se salve, minha netinha.
A seguir, o velho índio empurrou a canoa para o leito do rio.
A mãe do bebê abraçou-se nele, procurando consolo, e os dois
assistiram à canoa ir embora.
Já bem distante, rio abaixo, a canoa foi pega pelas corredeiras e
lançada na cachoeira. Despertado pelo coração puro da criança, o
manto d'água recolheu a canoa e a levou até a Kiara. A deusa já
aguardava por aquela que traria a Itaobi para a Terra Encantada.
-Você se chamará Yetê, a que veio das águas. -disse a deusa. Foi
Tunhã quem cuidou de sua educação. E, de cada habitante
da Terra Encantada, Yetê aprendeu uma habilidade especial. Com o
passar dos anos, ela se transformaria numa linda indiazinha...
No momento em que a esbaforida Aurora deixava o Castelo da
Kiara, com a missão de encontrar e trazer Yetê, ela estava num de
seus locais favoritos da floresta, onde os galhos das árvores quase se
entrelaçavam, a grande altura.
-Vou fazer de novo... é fácil! -gritou ela para Afra e Xereta que, do
chão, arregalavam os olhos.
-Meu irmão -suspirou Afra —, não dava pelo menos para ela botar
uma rede embaixo, que nem trapezista de circo?
-Nem quero ver... -sussurrou Xereta, em resposta, desviando o
rosto. Mas não conseguiu se conter. Era um espetáculo...
Yetê projetou-se graciosamente do galho onde estava pendurada.
Atravessou cinco ou seis metros pelos ares, então suas mãos se
prenderam a outro galho e ela rodopiou -sempre rindo -e emendou
o salto para o galho seguinte.
O espanto dos dois garotos divertiu Jágua. A jaguatirica disfarçou
um leve sorriso. Xereta soltou um assovio...
-Cara! Gente não faz dessas coisas...
-Mas é claro que faz! -provocou Jágua. -Só precisa de um pouco de
treino... Olhem ali aqueles galhos bem baixinhos. Vocês podem
alcançar um deles apenas se esticando na ponta dos pés. Quem sabe
um dos aventureiros da cidade grande gostaria de experimentar?
Lá do alto, Yetê continuava a se balançar, como se chamasse os
garotos...
-E mesmo, Xereta. O que é que a menina vai ficar pensando da
gente?
-Que estamos com medo!
-Bem, você está?
-Eu?... Quer dizer... E você?
Os dois garotos encheram o peito, decididos...
-Eu vou primeiro! -falou Afra.
Jágua disfarçou mais um sorriso.
Sem dificuldade, Afra alcançou o galho com um pulo e ergueu-se,
equilibrando-se sobre ele. Bem mais acima, Yetê bateu palmas,
animada. Afra abriu os braços, triunfalmente, comemorando a
proeza. No chão, Xereta remoeu uma ponta de ciúme, invejando o
entusiasmo de Yetê para com o amigo:
-Ainda falta pular para o galho da outra árvore, ô cara. Isso é o que
eu quero ver!
-Deixa comigo! -berrou Afra, e, sem mais aquela, tomou impulso e
saltou, cheio de confiança...
O galho em questão estava a pouco mais de um metro de distância.
Afra conseguiu tocar nele. Apenas tocar. No que tentou agarrar-se,
seus dedos cederam ao peso, abriram-se, e a confiança transformou
se num grito assustado. Xereta estava logo abaixo dele. Naquela
fração de segundo em que via Afra caindo, ainda chegou a pensar
se o melhor era tentar segurar o amigo ou sair de baixo. Na
hesitação não fez nem uma coisa nem outra e Afra atingiu-o em
cheio.
Os dois ficaram gemendo e reclamando um do outro, estirados no
chão. Em dois giros no ar, Yetê aterrissou juntos deles, aflita. Jágua
percebeu logo que não estavam machucados... a não ser no amor-
próprio... e caiu numa gostosa gargalhada.
-Se querem mesmo sair pulando pelos galhos das árvores debochou
Jágua. -, é melhor aprenderem isso com um macaco,
como fez a Yetê!
-Não tem graça, Jágua. -zangou-se a indiazinha. -Eles poderiam
ter se ferido. E ia ser minha culpa!
-Ora, até um filhote pula daquele galho para o chão, sem nem se
dar conta do que está fazendo.
Xereta e Afra levantaram-se, resmungando. Os dois pareciam tão
amarrotados, que Yetê não resistiu e também soltou uma risada. E
foi então que Aurora chegou, já tagarelando à toda, para desespero
de Jágua...
-Vejam só como são as coisas... Não querem me dizer o que está
acontecendo. Como é que eu posso contar as notícias para os outros,
se não querem me dizer? Como, hem? Como?
-Aurora... -grunhiu Jágua. -Dá para apenas dizer o que você está
querendo?
-A Yetê... A Kiara está chamando a Yetê imediatamente ao seu
Castelo.
-Por quê? -perguntou a indiazinha, intrigada.
-E eu sei? E me disseram alguma coisa? Apenas me mandaram
chamar você, mas ninguém me contou nada. É possível isso? É...
Yetê percebeu que não ia conseguir saber mais nada da arara azul,
naquele momento. Então, pôs-se a correr para o Castelo da Kiara,
com Jágua acompanhando-a, Xereta e Afra seguindo um pouco
mais atrás e, revoando sobre eles, a incansável Aurora, com a língua
absolutamente descontrolada.
Prisioneiros de Ravoc
N o Castelo da Kiara, até mesmo Aurora compreendeu que era
momento de guardar silêncio. Abraçada à Kiara, Yetê chorava,
mansamente. O colar de contas que tinha nas mãos reavivou uma
tristeza que seu coração jamais foi capaz de vencer. Algo que a
levava, às vezes, a se afastar de todos, percorrer recantos da floresta
que eram só seus, sentar à beira dos igarapés, buscando murmúrios
que lhe fossem familiares e a pensar no seu povo -o povo que
nunca conheceu.
Criada na Terra Encantada, Yetê viveu sempre protegida. Mas,
desde cedo, a Kiara eTunhã haviam decidido que Yetê precisava
saber o que acontecera aos yetomani e o que vinha acontecendo
também a muitas outras tribos.
-É algo que faz parte de você, Yetê! -dissera-lhe certa vez Tunhã. Eu
também vi minha espécie quase desaparecer. Outros habitantes
da Terra Encantada passaram por sofrimento semelhante. Essa é
uma dor que você tem o direito de sentir... Não podíamos escondêla
de você. Até porque, um dia, talvez você seja chamada a ajudar os
povos da floresta, e vai ter que decidir se deve ou não atender a esse
chamado.
Tunhã, que conhecia as histórias e os segredos da floresta, contou-
lhe as lendas dos yetomani, descreveu o modo de vida da tribo e
muitas outras coisas. E Yetê sentia-se ligada àquele pedaço do seu
passado, ora como se houvesse sido uma espécie de sonho, ora
como se, no seu íntimo, escutasse os lamentos das tribos indígenas,
algumas desaparecidas, tal qual os yetomani, outras lutando para
sobreviver.
-Você tem certeza, Tunhã...? -perguntou Yetê, ansiosa. -Este colar
foi mesmo feito por alguém da minha tribo?
O mico-leão refletiu um pouco, antes de responder:
-Tenho certeza de que o tipo de artesanato é o mesmo que o dos
yetomani. E que as cores e a arrumação das contas no colar são uma
linguagem que a sua tribo usava... Você sabe disso, também. Eu lhe
ensinei tudo a respeito.
Tunhã e Kiara trocaram um olhar preocupado. Havia mais uma
coisa a dizer. Algo que estavam certos de que iria abalar muito Yetê.
E sabiam que a indiazinha estava começando a compreender o que
era... Yetê enxugou as lágrimas. Fixou o olhar em Tunhã, como a
pedir que ele lhe contasse o resto...
-Bem... -Tunhã procurava medir suas palavras. -É possível, sim,
que alguns yetomani tenham sobrevivido, afinal. Talvez tenham
deixado a região, fugindo da doença, e tenham retornado agora...
Por outro lado...
-O colar chegou num bote de Ravoc. Um pedido de socorro. O que
isso quer dizer? -insistiu Yetê.
-Você sabe a resposta para essa pergunta, Yetê! -, interviu a Kiara. Na
verdade, há duas possibilidades. Pode ser que Ravoc tenha
aprisionado um yetomani... ou um grupo de yetomanis...
Yetê já havia chegado a essa conclusão. Mesmo assim, a idéia a
sobressaltou:
-Então, vai ver que eles conseguiram mandar uma mensagem para
nós, pelo rio... Foi assim que eu cheguei à Terra Encantada, não foi?
Meu povo acredita nos deuses do rio. Eles estão pedindo ajuda. Mas
o que o Ravoc quer com eles? Que maldade pode estar fazendo com
eles, agora mesmo? Nós precisamos...
-Calma, Yetê... -retomou Tunhã. -O que nós precisamos é pensar...
Como a Kiara disse, há uma segunda possibilidade... Pode ser um
truque do Ravoc. Talvez não haja nenhum yetomani com ele. Pode
ser uma armadilha!
-Mas a gente não vai saber, se não for até lá, não é? Tunhã soltou
um suspiro. Ele e a Kiara já haviam conversado
a respeito. O mico-leão sabia que Yetê tinha razão. Só que enfrentar
o maior inimigo da Terra Encantada, em seu próprio território,
estava longe de ser uma brincadeira.
-Eu vou! -disse Yetê, depois de alguma hesitação...
-Yetê -falou a Kiara. -, você jamais saiu da Terra Encantada. E creio
que este não é o melhor momento.
Yetê lançou um olhar aflito na direção de Afra e Xereta. Do seu
canto, a até então tranqüila Jagua soltou um rugido, pronta para a
luta.
-Essa briga é nossa também, Yetê! -disse Xereta.
-Deixa com a gente! -reforçou Afra.
Até o pequeno Tatu, muito encabulado, ofereceu-se:
-E-eu também q-quero a-ajudar! Posso?
Estava formada a equipe de resgate. Em poucas horas, depois de
estudar mapas e de ouvir muitos conselhos de Tunhã, Afra, Xereta
(estes especialmente estimulados por um beijo de despedida de
Yetê), Jágua e Tatu partiriam para o território devastado, para a
terra da destruição e da maldade, para o lugar onde a natureza
havia praticamente deixado de existir... O reino de Ra-voc, o grande
predador.
A magia das pedras
Mesmo com a noite fechada, a natureza na Terra Encantada
continuava em festa. Eram outros habitantes, diferentes dos que
ocupavam a mata durante o dia. Eram olhos faiscantes, destacando-
se no meio das moitas. Eram riscos no ar, marcando o vôo ondulado
de insetos luminosos. Era uma multidão de cantos e de trinados, de
piados, de grunhidos. Era um cheiro de coisa viva, desprendendo-se
das folhas e da terra -mais forte ainda onde ela se encontrava com a
margem dos igarapés. Havia permanentemente algo brotando,
nascendo, sendo criado, na Terra Encantada.
Nossos aventureiros remavam rio acima, procurando fazer o
mínimo de ruídos. Logo que atravessaram as fronteiras da Terra
Encantada, as feições de Jágua transformaram-se. Algo sombrio
recobriu seus olhos. Seus músculos se tensionaram. A jaguatirica
observava as margens, atenta a qualquer movimento ameaçador.
Não era mais a Jágua bem-humorada, com seus rompantes
expansivos. Seus instintos haviam sido despertados -era Jágua, a
guerreira de muitas batalhas... algumas, dolorosamente perdidas.
Encolhido num canto do bote, Tatu evitava se mexer. Intimamente,
entretanto, tremia sem parar, de puro medo. E até mesmo os dois
garotos, apesar de toda a excitação de estarem entrando numa nova
aventura, vez por outra trocavam um olhar apreensivo. Naquele
momento, a cidade grande, onde moravam, parecia um mundo
muito distante -quase como se nem existisse.
Já fazia algum tempo que haviam descoberto a Terra Encantada. Ou
então foi a Terra Encantada que sempre esteve à espera deles, para
completar sua magia. Quando Afra nasceu, era um bebê tão alegre,
tão cheio de vida, que sua mãe lembrou-se de uma antiga crença
familiar -um talismã que vinha sendo guardado de geração em
geração, desde o tempo em que seus antepassados viviam num
quilombo. Era uma pedra amarela que chamavam de Iê-iê-otá.
Segundo as histórias do bisavô de Afra, o guardião da pedra
deveria ser alguém capaz de trazer felicidade para seu povo. O
ancião previra também que, um dia, Iê-iê-otá se reuniria a duas
outras pedras... "e aí, uma grande mágica vai acontecer!". Desde que
recebera a pedra, ainda criança, Afra jamais separou-se dela -traziaa
sempre presa a um bracelete, em seu pulso.
Certa vez, no colégio, Afra cruzou com um garoto da sua idade e a
primeira coisa que percebeu foi que ele possuía uma pedra -num
colarzinho, no pescoço -muito parecida com a sua. Uma pedra
vermelha. Era o Xereta. Ele e Afra tornaram-se grandes amigos.
Xereta era fanático por histórias de aventuras. E seu avô -um
senhor português bastante vivido -tinha muitas dessas histórias
para contar. Elas falavam dos tempos dos grandes descobrimentos,
quando marinheiros corajosos atravessavam um oceano que,
segundo acreditavam, era povoado de monstros, submetendo-se ao
capricho dos ventos, achando que a qualquer momento despencariam
no abismo do fim do mundo, ou, na melhor das
hipóteses, que atingiriam terras fantásticas, onde tudo era diferente
daquilo que conheciam.
Foi o avô de Xereta quem lhe deu a pedra mágica. Nunca deixou
muito claro se ela brotara da espuma das ondas, num dia em que os
deuses dos mares estavam especialmente raivosos, se foi retirada da
goela de um monstro de milhares de anos de idade, ou encontrada
no fundo de uma caverna, numa das ilhas que os navegadores
alcançavam, em meio ao nevoeiro, e que depois desapareceria como
se nunca houvesse existido. Disse-lhe apenas que a guardasse,
porque um dia iria precisar dela. Foi o que fez o Xereta...
Ele e Afra viviam se metendo em viagens, em que exploravam
cavernas, escalavam morros, desciam rios. E foi numa dessas, certo
dia, que foram pegos nas correntezas do rio que ia dar na Terra
Encantada. Quando avistaram a cachoeira e perceberam que iriam
ser tragados por ela, acharam que estavam perdidos. De repente, no
entanto, o manto d'água os recolheu. Sim, a Kia-ra esperava por
eles, esperava pelo momento em que as pedras mágicas de Afra e
Xereta iriam se reunir à Itaobi de Yetê, para completar o poder
mágico da Terra Encantada.
No bote, Jágua subitamente ergueu-se, com os pêlos da sua nuca
eriçados...
-O que foi, Jágua? -sussurrou Xereta.
Com um movimento de cabeça, a jaguatirica indicou a margem do
rio. Afra e Xereta encostaram o bote, camuflaram-no com folhagens
e aguardaram, enquanto Jágua farejava o ar...
-Pelo menos, estamos com sorte numa coisa... Não teremos que ir
até a caverna de Ravoc! Naquele antro, tudo seria muito mais difícil.
-Qjquer...d-d-dizer...? -gaguejou Tatu.
-Eles estão perto! -respondeu Jágua. -Meia hora de caminhada...
Mal deixaram de escutar os murmúrios do rio, foram percebendo a
mudança em torno deles. A terra úmida e fresca sob seus pés aos
poucos foi se tornando pegajosa... era lama. Uma lama escura,
apodrecida. Não havia mais a floresta para acobertá-los -mesmo
com a escuridão, dava para perceber que os poucos troncos ainda
de pé estavam secos e retorcidos. O cheiro de queimado, misturado
a um odor ácido no ar, era quase sufocante...
-Estamos entrando no reino de Ravoc, aquele que destrói! anunciou
Jágua. Mas o aviso era desnecessário. Havia algo morto,
parado e estéril pairando em torno, que todos podiam sentir. Algo
opressivo e amedrontador.
Jágua estava certa. A alguma distância de onde nossos aventureiros
deixaram o rio, estava o acampamento de Ravoc, iluminado por
fogueiras. Numa correria febril, bandos de macacos -os soldados escravos
de Ravoc -iam de um lado para o outro, receando sempre
desagradar ao seu amo, por qualquer motivo. Ao centro, de pé, com
um sorriso gélido estampado no rosto, Ravoc aguardava...
Seu coração mecânico parecia acelerar a pulsação, de vez em
quando, emitindo faíscas do seu peito. Ravoc aguardava...
-Tratem de não fazer nenhuma besteira dessa vez! -rugiu Ravoc,
repentinamente. E todos os macacos se detiveram, como que
paralisados. Nenhum deles tinha vontade própria. Suas mentes
eram ocupadas por névoas, por estranhos malefícios que os
forçavam a obedecer Ravoc. -Parem de se portar como estúpidos! berrou
Ravoc outra vez, agora desfechando um jato de fogo de seu
bastão em cima de um símio, que morreu no ato... -Pronto... Já tenho
a minha ceia, seus malditos... Sirvam-me!
Novamente, a agitação tomou conta dos macacos, que apressaram-
se em recolher o companheiro morto, atirar sobre ele sal e outros
temperos e colocá-lo numa travessa.
Ravoc olhou para a iguaria com ar de nojo... Chutou a bandeja para
longe, irritado.
-Perdi o apetite! Além do mais, amanhã à noite, serei o novo senhor
da Terra Encantada. E lá... comerei do bom e do melhor. Aqueles
idiotas não vão me impedir dessa vez! Ravoc triunfará! Ravoc, o
grande predador!
À medida que falava, e que crescia sua raiva, acontecia nele uma
transformação. Ravoc soltou um urro, que percorreu as veias dos
símios... Já haviam assistido inúmeras vezes àquela cena, que, no
entanto, sempre lhes infundia enorme pavor. A transformação de
Ravoc... Seu crânio se inflamando, de puro ódio. Sua figura se
tornando maior e mais perversa, em meio à sua gargalhada...
-Amanhã, Ravoc estará no Castelo da Kiara! Amanhã, a vingança,
afinal!
Então, Ravoc dirigiu-se até um dos extremos do acampamento. Os
símios davam-lhe passagem, sabendo que Ravoc não perdoava
quem ficasse em seu caminho. Ravoc parou diante do casal de
adolescentes indígenas, amarrado ao toco do que fora uma árvore.
Examinou-os por alguns instantes...
-Bem, parece que vocês não precisam de nenhuma dose extra de
raio estonteante... estão prontos... Estamos todos prontos! -berrou
ele, voltando-se para os macacos que, mais uma vez, como se fosse
uma revoada de pássaros, movimentaram-se de um lado para o
outro desordenadamente. -Vamos, espalhem-se! Vigiem o
acampamento! -ordenou.
A seguir, Ravoc encaminhou-se para seu trono metálico, junto à
fogueira. Aos poucos, as chamas de sua cabeça se apagaram -ele
pareceu ressonar...
Perto dos adolescentes indígenas, um assustado Tatu, protegido
pela escuridão, enfiava-se de volta no buraco que cavara para
chegar ao acampamento, por debaixo da terra. Já tinha cumprido
sua missão. Devia agora retornar e contar tudo o que vira aos seus
companheiros.
O ataque ao acampamento
As labaredas das fogueiras acesas, no acampamento de Ravoc,
faziam as sombras dos soldados-escravos dançarem ainda mais
desengonçadas do que seus donos. Talvez por isso, acontecia de um
ou outro assustar-se e soltar um guincho aflito, quando acontecia de
um companheiro aproximar-se por trás, sem aviso. No mais, havia
um inquietante silêncio na noite. Apesar de permanecerem sempre
tensos, na expectativa de alguma explosão do gênio imprevisível do
seu amo, os símios começaram a ficar sonolentos. Estavam reunidos
em pequenos bandos, em diferentes pontos da borda do
acampamento, montando guarda. Desconheciam os planos de
Ravoc. Haviam apenas recebido ordens para armar o acampamento
e aguardar -não sabiam o quê.
No extremo oposto àquele em que fora deixado o casal de
adolescentes indígenas, a vigília era mantida por um bando um
pouco maior. Havia pelo menos uma dúzia de símios ali que, a
exemplo dos demais, começavam a encostar-se uns nos outros, para
manterem-se de pé. Suas armas pesavam, era um custo ficar de
olhos abertos...
Quando Jágua saltou da escuridão para cima deles, emitindo
seu rugido de guerra, levaram um segundo ou dois para compreender
o que estava acontecendo. A reação seguinte foi a mais
instintiva -atropelando-se, pisoteando-se, dispersaram-se pelo
acampamento, emitindo alarmes desconexos. Quase no mesmo
instante, a balbúrdia se espalhou, com os símios correndo em
todas as direções, sem saber o que fazer. Jágua divertia-se
perseguindo-os, aumentando mais ainda a confusão. Quando
alcançava algum deles, atingia-o com uma leve patada – apenas o
bastante para fazê-lo rodopiar no ar.
E foi então que a voz trovejante de Ravoc se ergueu, acima de todos
os ruídos. Com o crânio novamente em chamas, ordenou:
-Reúnam-se, desgraçados! Estamos sendo atacados pelo lado norte!
Pelo norte! É apenas aquela gata pintada, metida a valente! Temos
quase cem soldados aqui! Quero a pele dela decorando meu trono,
ainda esta noite!
O comando de Ravoc penetrou na mente obscurecida dos símios
instantaneamente. Os que haviam deixado caírem suas armas
recolheram-nas, de pronto...
-Atacar! -berrou Ravoc. E seu bastão emitiu um jato de chamas
contra Jágua. Mesmo à distância, seu disparo foi na direção certa.
O fogo era um velho conhecido de Jágua. Muitos anos antes de
chegar à Terra Encantada, ela o assistira consumir florestas inteiras,
sem poupar animais adultos ou ninhadas de filhotes. Tudo isso veio
à sua mente, num relance, quando enxergou a língua avermelhada
cortando a escuridão. O fogo era a morte, um dos poucos inimigos
que nunca conseguira vencer. Era seu terror, seus pesadelos, aquilo
que tinha o poder de prendê-la ao chão, esperando pelo fim. Só no
último instante, foi capaz de reagir, saltando de lado. O jato de fogo
ainda tostou seu dorso, fazendo-a rugir de dor e de ódio.
Os símios já quase a cercavam. E Ravoc apurava a visão, tentando
fazer mira, novamente, com o bastão lança-chamas pronto para
disparar.
"É hora do segundo movimento...", raciocinou Jágua. Suas patas
abriram caminho por entre os macacos, agora em fúria. Sua
experiência em batalhas lhe dizia que, em instantes, eles a
cobririam, e ela estaria perdida. Com dois poderosos saltos, colocou-
se a vários metros de vantagem e escapou para o abrigo da
noite. "Tem que funcionar!", pensou Jágua, e alegrou-se intimamente
quando escutou a ordem de Ravoc:
-Atrás dela!
mento, Afra, Xereta e Tatu aproveitavam a confusão para chegar até
onde estavam os adolescentes indígenas.
-Ei, vocês! -sussurrou Afra, aflito. -Que hora para tirar uma
soneca, hem? Acordem! Viemos salvar vocês.
-O R-Ravoc-c fez alguma coisa com eles... um raio... eu escutei!
-Droga! Eles nem sabem o que está acontecendo! -resmungou
Xereta, cortando as cordas que prendiam os dois. -Vamos ter que
carregá-los. Tomara que a Jágua adivinhe que vamos precisar de
um bocado de tempo para dar a volta e chegar ao bote...
-Vamos embora logo! -pediu Afra.
Esgueiraram-se para fora do acampamento tão silenciosamente
quanto chegaram, levando os dois índios que mal podiam andar.
Percorrendo velozmente a escuridão, Jágua sentia-se como se
houvesse retornado aos seus tempos selvagens. Seus sentidos
aguçados lhe diziam exatamente onde encontravam-se os bandos de
símios que a perseguiam... Ou melhor, que pensavam ser os
perseguidores. Na verdade, Jágua brincava com eles. Surgia de
repente, para um breve combate, e desaparecia, desorientando-os
totalmente. Quando finalmente decidiu que era hora de ir para onde
haviam escondido o bote, os soldados-escravos de Ravoc já seguiam
pistas que não levavam a lugar nenhum, caçavam-se uns aos outros,
e alguns estavam até mesmo perdidos, guinchando loucamente,
chamando por seus companheiros.
"Ravoc ganhou a obediência cega desses pobres macacos, mas para
isso precisou apagar toda a inteligência que possuíam!" -raciocinou
Jágua. Mesmo assim, ela sabia que cedo ou tarde algum deles se
lembraria de procurar na margem do rio. Por isso, a espera pela
chegada de Afra, Xereta, Tatu e do casal indígena foi longa e
agoniada.
-Depressa! -grunhiu Jágua, quando percebeu que seus amigos se
aproximavam. -Estou farejando os soldados de Ravoc cada vez
mais perto!
Rapidamente, entraram no bote e afastaram-se da margem -agora
podiam escutar a barulheira dos símios, junto ao rio.
-Será que eles vêm atrás de nós? -receou Afra.
-Isso só deve nos preocupar se esse seu muque de garoto da cidade
for de mentira! -bafejou Jágua. -Mais força nos remos! Temos uma
boa dianteira.
-Quer dizer... -comemorou Xereta -que nós conseguimos!
Salvamos os índios da tribo da Yetê! Puxa... ela vai ficar contente à
beça!
-E isso quer dizer que vocês podem até ganhar um outro beijo, de
recompensa.
Não era necessária a luz do dia para saber que as faces de Afra e
Xereta coraram com a brincadeira de Jágua. Pouco antes do
amanhecer, o manto d'água os estariam carregando para a Terra
Encantada. No acampamento de Ravoc, à mesma hora, os soldados-
escravos começavam a retornar, temerosos sobre qual seria seu
castigo por terem deixado Jágua escapar. E não apenas Jágua...
Encontraram Ravoc junto ao toco, onde haviam amarrado os
prisioneiros, viram as cordas cortadas, e esperaram pelo pior...
Para surpresa deles, Ravoc apenas olhou-os com desprezo, dizendo:
-Vocês foram enganados, estúpidos!
E começou a rir. Uma risada convulsiva, entrecortando suas
palavras...
-Sim, vocês... e os outros! Todos foram enganados por Ravoc, esta
noite! Levantar acampamento! Vamos voltar para a Caverna. Hoje
terei, enfim, meu grande triunfo!
O inimigo aguarda
-Vocês precisavam ver... -descrevia pela quinta vez Xereta,
agitadíssimo. -Passamos a um metro do idiota do Ravoc, e ele nem
nos viu!
-E depois -reforçou Afra, para não ficar atrás diante de uma
embevecida Yetê, que absorvia cada palavra de seus heróis. -, os
soldados dele estavam por toda parte. Tinha hora que eu pensava
que eles iam nos pegar... Mas que nada!
-E se pegassem, a gente estava pronto para a briga! Não é Tatu?
O jovem Tatu não conseguiu responder. Ainda não havia se
recuperado de todas as emoções da noite. Num canto, Jágua permanecia
silenciosa. Até então não fizera nenhum comentário sobre a
aventura. Tunhã estranhou:
-Por que está tão quieta, Jágua?
A jaguatirica hesitou um pouco antes de responder...
-Tivemos sorte esta noite. Muita sorte!
-Mas que sorte que nada! -protestou Xereta. -Foi um plano
perfeito! Vencemos o Ravoc em seu próprio território!
-Do que é que você está falando, Jágua? -insistiu Tunhã,
preocupado.
-Só estou dizendo... que se o próprio Ravoc tivesse comandado a
perseguição, talvez não tivesse sido tão fácil resgatar os
prisioneiros. A gente sabe como os escravos dele ficam desorientados
quando não recebem ordens diretas... Talvez ele tenha
pensado que eu estava sozinha, e que os macacos logo me alcançariam.
Pode ter me subestimado... Mas por que não levou os
prisioneiros para a caverna dele, onde estariam mais bem guardados?
Lá, além dos seus soldados-escravos, ele dispõe de uma
porção de engenhocas que poderia usar contra nós...
-O que importa é que salvamos os yetomani! -contestou Afra,
provocando em Yetê mais um arrepio de admiração.
-Mas ainda não sabemos o que Ravoc queria com eles... -alertou
Tunhã... — Enfim, se todos estão bem... Quer dizer...
A expressão de Yetê sofreu uma mudança súbita. Todos se calaram,
entendendo a apreensão da indiazinha... No interior do Castelo da
Kiara, a deusa da Terra Encantada derramava suas bênçãos sobre o
casal de adolescentes indígenas. Ao serem trazidos para o Castelo
da Kiara, pareceram mergulhar mais profundamente ainda no
estado de inconsciência em que se encontravam. Ao mesmo tempo,
debatiam-se, como se tentassem despertar de um pesadelo. Quando
conseguiu tranqüilizar o sono deles, a Kiara chamou Tunhã e Yetê.
-Eles estão... dormindo? -indagou Yetê.
-Algo próximo disso, minha filha. -respondeu a Kiara.
-Que estranho malefício Ravoc terá lançado contra eles? -refletiu
Tunhã, em voz alta. -E por quê?
-Eles são mesmo da minha tribo, não são? Tunhã examinou os dois,
mais uma vez...
-O tipo físico é idêntico ao do seu povo. Os enfeites que usam,
também... Sim, Yetê... Podem ser yetomani. Mas, agora, devemos
pensar em curá-los.
-Cuide deles, Tunhã. -pediu a Kiara.
-Isso, Tunhã! Salve os dois... Por favor!
O sábio mico-leão soltou um suspiro, mas a seguir sorriu,
reconfortando Yetê. Logo estaria percorrendo a mata, em busca de
ervas, cujo poder de cura só ele conhecia. Depois, passaria algumas
horas amassando-as, em seu cadinho, até se transformarem numa
pasta, que ele misturaria à água mais pura da Terra Encantada.
Filtrada, a poção seria ministrada ao casal indígena, em pequenos
goles. Mas Tunhã sabia que qualquer remédio precisava de tempo
para fazer efeito, e que dependia também da energia que restava
aos enfermos. Por todo o tempo, Tunhã repetia-se a pergunta: "O
que Ravoc pretendia com eles?"...
Fora da Terra Encantada, no interior lúgubre de sua caverna, o ser
que conhecia a resposta para a indagação de Tunhã exasperava-se
com a lentidão das horas. E quem pagava por isso eram seus
escravos. Em acessos de fúria, Ravoc já havia esturricado meia
dúzia deles com seu bastão lança-chamas. Alguns desses devorara
vorazmente, sem que isso diminuísse sua ira. Amontoados, em
meio às sombras da caverna, os símios cuidavam de manter
distância de seu amo. Estavam como que paralisados, imóveis e em
absoluto silêncio, de tanto medo -o que contrariava totalmente sua
natureza.
Mais uma vez naquele dia, Ravoc instalava-se em sua ilha
computadorizada, e fazia uma tentativa para sintonizar os domínios
da Terra Encantada, através de suas engenhocas-espiãs. Seu coração
mecânico pulsou do mais maciço ódio, ao receber em resposta
apenas estática.
-A maldita magia da Kiara ainda os está protegendo! -vociferou.
Mas a seguir, fez um esforço para controlar-se... -Ainda não é
noite... Já esperei tanto, tanto tempo... Somente um pouco mais, e
todos eles serão meus escravos! -E saudou a idéia com uma
gargalhada que estremeceu as rochas de uma ponta à outra da
caverna.
O veneno de Ravoc
Era noite de Lua-Grávida, na Terra Encantada, a lua mais luminosa
e a mais alegre, aquela que quase encostava nas águas, dirigindo
com seus sussurros de prata a cheia e a vazante dos rios. A Kiara
estava num dos terraços do seu castelo, conversando com a Lua:
-Irmã da noite, o que você tem a me dizer? -perguntou a Kiara.
E quem a visse, naquele instante, flutuando a dois palmos do chão,
com seu manto mágico refletindo cada gota do luar, não teria
dúvidas de que ela, a Kiara, e a Lua, fossem, no mínimo,
aparentadas.
O que a Lua-Grávida respondeu, e em que linguagem, não se sabe.
Mas foi algo que deixou a Kiara preocupada. Podem ter sido apenas
presságios, já que afinal a fala dos astros é muito incerta -contam as
lendas que, lá do céu, eles têm um jeito diferente de ver as coisas.
Por isso poucos compreendem o que dizem.
Com um ar pesaroso, a Kiara retornou ao salão de baixo do seu
castelo. Seu manto continuava a envolvê-la de uma forma especial,
como se pressentisse a necessidade de protegê-la, naquela noite.
A mesma Lua -que talvez tenha procurado alertar a Kiara do risco
que corria -iluminou o casal de indígenas adolescentes,
atravessando a trilha, desde o leito de folhas onde Tunhã os deixara,
depois da última dose da poção de cura, até a entrada do Castelo da
Kiara. Da mesma forma, quem os visse ia reparar algo diferente.
Nada parecido com a fascinante magia que desprendia-se da Kiara.
Algo perturbador no jeito deles andarem, arrastando os pés como se
não fosse a vontade deles que direcionasse o caminho. E os olhos...
Olhos da morte, sem brilho, apagados -olhos de quem não está
presente neste mundo. Mesmo assim, seus corpos se moviam, passo
a passo. Cada um tinham nas mãos algumas contas, que haviam
arrancado de seus colares.
A Lua não se permitia a visitar o antro de Ravoc. Nem ele haveria
de estar ciente de que no céu, acima dele, o astro havia alcançado
sua imagem mais festiva. Para Ravoc, que transbordava de
excitação, sabendo que o momento de seu plano entrar em
funcionamento havia chegado, nenhuma lua do universo
interessava. A não ser que fosse capaz de conquistá-la.
No salão de seu Castelo, a Kiara voltou-se, de repente, pressentindo
a entrada dos índios, transformados em zumbis. Ela os viu
aparecerem, portanto, sem surpresa, e entoou um canto, pedindo
ajuda... Foi só o que teve tempo de fazer. Quase imediatamente, os
dois lançaram sobre a Kiara e seu manto as contas que tinham nas
mãos -o veneno radiativo em cápsulas, disfarçadas em contas
yetomani por Ravoc -e caíram, desacordados. A missão que
receberam havia sido cumprida...
As contas se romperam, assim que tocaram o manto d'água,
espalhando o veneno. A Kiara sentiu logo as primeiras pontadas de
dor, enquanto seu canto voava por entre as árvores da floresta,
procurando quem o escutasse.
Na caverna de Ravoc, os monitores de sua ilha computadorizada
deram os primeiros sinais de estarem recebendo alguma coisa...
Aquele que já fora um deus, companheiro da Kiara, antes de se
deixar dominar pelo desejo de mais e mais poder, segurou a
respiração, em trêmula expectativa, cravando os olhos na tela.
-Eles conseguiram... -murmurou Ravoc. -A Kiara... está
morrendo...!
O canto da Kiara despertou Jágua. Foi como se algo invadisse seus
sonhos -a jaguatirica acordou como se o inimigo estivesse junto
dela, prestes a desfechar o golpe. Abriu os olhos, já rolando para o
lado, soltando um rugido, pronta para o combate. Quando viu que
estava sozinha, ocorreu-lhe no mesmo instante correr até o Castelo
da Kiara. Tunhã não dormia. Também tinha lá seus
pressentimentos. Escutou o chamado da deusa e, em instantes,
como se os anos de sua vida não fossem tantos, saltava pela trilha
dos galhos, a caminho do Castelo. Foi Yetê quem despertou, quando
o canto da Kiara atingiu seu refúgio noturno. Ela saiu em disparada,
berrando para Afra e Xereta que dormiam ali perto acordarem
também e seguirem-na. Aterrorizada, levava gravada na mente a
última imagem que lhe ficara dos sonhos: a Kiara caída no chão de
rocha e seu manto d'água sendo tomado por uma luminosidade
mortífera...
A mesma imagem que começava a se definir nos monitores de
Ravoc...
-As defesas da Terra Encantada estão cedendo! -comemorou
Ravoc. -Finalmente! Ah, minha Kiara... Você vai se arrepender por
não ter ficado comigo!
Ainda a Lua, com um brilho urgente, lá de cima, transmitia a cada
um que partia em socorro da Kiara a necessidade de ir mais e mais
depressa. Praticamente todos chegaram ao mesmo tempo. E não
precisaram trocar palavras. Todos sabiam o que iriam ver. Yetê
disparou para dentro da caverna, chamando pela Kiara.
A deusa da Terra Encantada estava imóvel no chão.
-O manto d'água... -exclamou Yetê horrorizada.
-Não toque nele! -gritou Tunhã, detendo-a. -Está envenenado!
Como os rios que são atacados por manchas de óleo lançado pelos
barcos avariados, pela espuma de detergentes nocivos, pelos dejetos
industriais mais variados, o manto dágua tivera sua limpidez
encantada substituída pelo que parecia ser uma substância pastosa,
de cor indefinível.
-A Kiara... -murmurou desesperada Yetê. -...ela está morta?
Tunhã...
O mico-leão não tinha como responder.
Já Ravoc, em sua caverna, vibrava:
-Sim, sim! Ela está morta. A Kiara e sua magia estão mortos, e
chegou a minha vez de ser o senhor da Terra Encantada...
A seguir, em passos largos, percorreu rapidamente os corredores da
caverna, acordando seus escravos aos berros e à custa de lambidas
de fogo, desfechadas pelo seu bastão lança-chamas:
-De pé, todos vocês! Formação de combate. Peguem o armamento
mais pesado! Que tudo esteja pronto rapidamente. Vamos marchar!
Hoje, invadiremos a Terra Encantada. E não se preocupem em fazer
prisioneiros. Matem todos os que resistirem. Vamos, vamos!
Lá fora, lá no céu, a Lua-Grávida chorava sem parar. E jurou que, se
não pudesse mais visitar sua irmã, a Kiara, e se a Terra Encantada se
tornasse tão triste e morta quanto o reino devastado de Ravoc,
nunca mais se descobriria dos lençóis da noite, nunca mais
derramaria seu luar sobre a copa das árvores, nem sobre os rios.
Nunca mais percorreria os mares, nem acompanharia o andar das
pessoas. Nunca mais inspiraria sonhos nem paixões, nunca mais.
Nunca mais a veriam.
Nunca mais.
O azul, o amarelo, o vermelho
_ A Kiara está morta, Tunhã? Está?... Tunhã balançou a cabeça,
negativamente. Seus olhos agudos, capazes de captar movimentos
mínimos, e seus próprios instintos lhe diziam que a Kiara ainda
resistia. No entanto, não se mostrava nada animado.
-Ela está sofrendo muito.
-Você não pode fazer alguma coisa?
A essa altura, os habitantes da Terra Encantada já haviam acorrido
ao Castelo. Na superfície do igarapé, Quico, o botinho cor-de-rosa,
de costume tão agitado, boiava apenas, junto da margem. Aurora
estava emudecida. Tatu e Sal também vieram. Um até podia
implicar com o outro, de vez em quando. Mas, naquele momento,
estavam de mãos dadas. Jágua, sem um inimigo contra quem
pudesse dar seu bote guerreiro, sentia-se como o mais indefeso dos
gatinhos.
Afra e Xereta ajoelharam-se alguns instantes junto ao casal de
índios, examinando-os. A seguir, voltaram-se a reunir-se a Yetê.
-Eles parecem bem. Mas estão dormindo de um jeito, que acho que
ninguém vai conseguir acordar. Se pelo menos a gente conseguisse
descobrir o que eles fizeram com a Kiara...
-Eles não devem saber... Deixe... agora compreendo tudo. Como fui
imbecil. A mente deles estava dominada por Ravoc.
Nesse instante, a Kiara remexeu-se e gemeu. Tunhã chegou perto
dela e murmurou...
-Vamos tentar salvá-la, senhora das águas. Por favor, lute
também... Toda a Terra Encantada depende de você!
Depois, sem dizer mais nada, correu aos saltos para a floresta lá
fora. Por sua cabeça repassava rapidamente as ervas que precisava
colher, os cantos ancestrais que deveria pronunciar para reforçálas...
e uma preocupação: "O que estará fazendo Ravoc, neste exato
instante?".
Agora atormentado pela demora dos preparativos para a marcha,
Ravoc não conseguia ficar quieto um instante sequer. Também ele
tinha com que preocupar. A imagem em seus monitores mostrava a
Kiara caída ao chão, em agonia. Mas era ainda uma imagem cheia
de chuviscos. Vez por outra, rajadas de estática a cortavam e
distorciam -e Ravoc compreendia muito bem seu significado.
-Ela ainda não está vencida, a maldita. Pelo contrário... Está lutando
contra mim, com todo o poder que lhe resta. Com sua... vontade!
Deve estar sofrendo dores incríveis e sua maior preocupação
continua sendo proteger a Terra Encantada. Mas não vai adiantar
nada, Kiara! -berrou em fúria, com o crânio em chamas, para a
imagem na tela. -Nada!
E, como se fosse em resposta a Ravoc, um intervalo mais intenso e
prolongado de estática interrompeu a transmissão. O inimigo da
Terra Encantada assentou-se, enfim, em meio aos seus aparelhos. A
ilha computadorizada era uma espécie de concha, repleta de
monitores e consoles de botões. Dali, Ravoc controlava desde
engenhocas espiãs, que espalhara pelo seu território e ao redor das
fronteiras da Terra Encantada, até os equipamentos de defesa de
sua caverna. Totalmente cercado de telas, botões e fios, Ravoc
tentava melhorar a imagem.
A Kiara remexeu-se novamente, em sua dor. Logo Tunhã estava de
volta, arrastando grandes ramas de palmeira, com que envolveu a
Kiara. Yetê ajudava-o como podia. Tunhã abriu um embrulho de
folhas do qual tirou outros embrulhos, menores. De um deles, tirou
minúsculas pétalas, de uma flor que nem mesmo Yetê -que
conhecia a Terra Encantada como ninguém
-conseguiu identificar. O mico-leão atirou as petalazinhas para o
alto, e elas caíram sobre a Kiara como se fossem chuva.
-Isso vai ajudá-la a respirar... e nos dar um pouco de tempo! —
explicou Tunhã.
A imagem nos monitores de Ravoc ia e vinha. Às vezes, tornava-se
tão nítida que ele sentia impulsos de agarrar alguma das figuras e
torcê-la entre as mãos, para descarregar um pouco do ódio que
acumulava há tanto tempo. Ia fazendo planos, em sua mente, de
como mataria um por um os habitantes da Terra Encantada, nas
torturas que imporia a Tunhã, a Jágua, em como sentiria prazer em
reduzir Yetê e os dois garotos a escravos sem vontade, como seus
símios, em como as pedras mágicas que possuíam aumentariam seu
próprio poder...
-O tempo corre contra eles... -sentenciou Ravoc. -Meu veneno
penetra mais e mais nas células da Kiara. Em breve, seu sangue e
seu próprio espírito estarão tomados... em breve, muito breve!
No salão do Castelo, Tunhã molhava os lábios da Kiara com a poção
que preparara.
-Fiz o que pude! -suspirou, enfim, o mico-leão. -Mas é preciso
esperar para que o remédio possa fazer algum efeito. Enquanto
isso... -e suas feições traíram o que Tunhã não queria dizer. Mas
Yetê havia compreendido muito bem.
-Enquanto isso, ela pode não resistir, não é?
Tunhã assentiu, silenciosamente, segurando as mãos da indiazinha.
-Yetê... Tudo o que está no universo surge, um dia, por obra e graça
da natureza, e desaparece, em outro dia abençoado, deixando parte
de si para trás, a parte que cria e recria o mundo. Isso, a Kiara nos
ensinou.
-Tunhã! Eu não quero que ela morra...
No seu leito de ramas de palmeiras, a Kiara remexeu-se mais uma
vez. A dor contraía seu rosto. Era nítido que seu padecimento
estava aumentando e que suas forças iam sendo rapidamente
consumidas.
Na sua caverna, Ravoc observava avidamente a mesma cena:
-Eu queria estar aí, ao seu lado, neste momento, minha querida...
Depois de tudo o que passei, eu queria lhe dizer, na hora de seu
último suspiro... Que eu a odeio! E que meu ódio... venceu, no final.
Eu queria estar certo de que você morreria com consciência disso...
Que eu e o meu ódio destruiremos sua amada Terra Encantada. Está
escutando, minha ex-amada? Será que seus poderes podem
pressentir minha presença? Minha... aproximação?
Depois de muita correria, os soldados de Ravoc estavam finalmente
perfilados, aguardando o comando de seu amo. Os preparativos
para a invasão estavam terminados. No entanto, Ravoc já não
conseguia desgrudar-se dos monitores da ilha computadorizada.
Assistir à morte da Kiara parecia estar deliciando-o mais do que
qualquer coisa no mundo seria capaz.
-Ela não está reagindo, Tunhã... O veneno é rápido demais! compreendeu
Yetê. Algo dentro dela sentia a luz da Kiara se
apagando.
-Deuses da floresta! -, exclamou Tunhã.
Yetê voltou-se para ele, espantada. Na voz do mico-leão havia uma
centelha de esperança, que ela ainda não havia escutado, naquela
noite.
-Há uma energia mágica, na Terra Encantada, que não pensamos
em usar. Nunca tentamos utilizá-la assim antes, mas... Por que não?
Pela direção do olhar de Tunhã, Yetê compreendeu imediatamente
ao que o mico-leão estava se referindo. Tunhã fixava-se em sua
Itaobi e no brilho azul que a pedra desprendia...
-Xereta, Afra! -chamou Yetê. -Vamos nos dar as mãos... Agora,
vamos ficar em torno da Kiara.
Um súbito zumbido mais forte da estática irritou Ravoc:
-O que está acontecendo? -resmungou, mexendo nos controles...
No Castelo, Tunhã entoou um canto encantatório. Yetê, Afra
e Xereta, de olhos fechados, acariciavam suas pedras mágicas,
avivando-as. Intimamente, faziam seu pedido... A Kiara remexeu-se
novamente. O ricto de dor em sua face denunciou uma pontada
mais aguda...
-Mas que maldição está acontecendo? -repetiu Ravoc,
levantando-se... Lá fora, a Lua-Grávida animou-se a pôr sua cara
enorme, redonda e luminosa para fora de uma nuvem... Os soldados-
escravos estavam começando a ficar nervosos. A demora
para Ravoc assumir o comando do seu exército, e a repentina
agitação dele, na ilha, que podiam ver por entre as sombras da
caverna, eram mal sinal...
No Castelo da Kiara, como se fosse uma chispa de luz, um finíssimo
raio azul brotou da Itaobi de Yetê. Alegre, quase infantil, o fio de
luz correu em volta dos três garotos, e deteve-se logo acima da
Kiara, concentrando-se, assumindo a forma de uma fruta ou de uma
bola de árvore de Natal... aguardando...
Na Caverna do Mal, Ravoc esmurrou um dos monitores,
destroçando-o. A imagem nos outros estava cheia de chuviscos.
-O que eles estão fazendo em torno da Kiara? A não ser... As
pedras! As pedras mágicas... Mas eu não sabia que elas podiam ser
usadas dessa maneira, para curar. Não... não vai funcionar. Utilizei
o mais forte dos venenos! O mais poderoso dos malefícios! A Kiara
não vai resistir!
A Kiara soltou um gemido, como se o veneno tivesse alcançado
algum ponto vital, corroendo-o. Yetê e os garotos dirigiram os
pensamentos com mais fervor ainda para suas pedras mágicas. Uma
chispa amarela brotou da iê-iê-otá de Afra. A ela, uma chispa
vermelha, da pedra de Xereta, logo veio se reunir. A fruta luminosa
pairando sobre a Kiara cresceu, como se estivesse tão grávida
quanto a Lua lá fora, que também esperava, e enviava suas energias.
E estava, de fato, porque abriu-se, como os frutos se abrem para
lançar suas sementes. Cada semente era um finíssimo fio de luz, o
resultado das três cores combinadas, que desceram sobre a Kiara,
envolvendo-a num arco-íris mágico.
Um instante, dois, e já se podia ver o manto d'água tornando-se um
pouco menos sujo. Mais um pouco, recobraria parte de sua
limpidez. E foi então que a Kiara reabriu os olhos.
O salão do Castelo explodiu, num berro de alegria.
Na Caverna do Mal, algo também explodiria... Como se o malefício
de Ravoc retornasse sobre ele próprio, primeiro foram os monitores,
soltando fagulhas, depois, a ilha de controles inteira, convulsionada
por uma sobrecarga de curtos-circuitos, que era pulverizada, com
grande estrondo. Sem acreditar na derrota que estava sofrendo, até
o último segundo, Ravoc foi pego pela explosão e lançado contra as
paredes da Caverna, enquanto o barulho, a fumaça e o fogo que se
desprenderam das suas engenhocas dispersava seu exército, em
pânico.
Suspirando aliviada, a Lua-Grávida ajeitou-se no céu, pedindo
espaço e afastando as nuvens. Não admitiria que ninguém a
tapasse, naquela noite. Queria mergulhar como nunca seus raios
nos rios e igarapés, e comemorar com eles. Estava feliz. Queria
brilhar e brilhar.
O fogo e o trovão
Marauiá e Curica despertaram na manhã seguinte rodeados pelos
cuidados do pessoal da Terra Encantada. Isso os deixou ainda mais
confusos. Principalmente quando Tunhã, logo que escutou as
primeiras palavras amedrontadas dos dois adolescentes, começou a
conversar com eles, para tranqüilizá-los, em sua língua -a língua
dos waikas.
-Você é um deus? -lhe perguntaram.
E Tunhã sorriu, imaginando que, surpresos de verdade, ficariam
quando fossem levados para conhecer a Kiara, ela, sim, uma deusa,
a deusa da Terra Encantada, que já se encontrava praticamente
restabelecida.
Para decepção de Yetê, o rapaz chamado Marauiá e a moça de nome
Curica não eram yetomani.
-Foi tudo um plano de Ravoc... -disse Tunhã à indiazinha. -Ele
também conhece a história dos yetomani e tentou nos enganar. Você
está muito triste, Yetê?
Yetê assentiu com a cabeça. Mas, ao voltar-se para Marauiá e Curica
e perceber toda a desorientação dos dois, suas feições foram
tomadas de uma meiguice sem tamanho...
-Bem, eles precisam de nós, não é, Tunhã?
Yetê foi sentar-se junto deles. Em pouco, através de sinais e com a
ajuda de Tunhã, já estavam se entendendo.
Marauiá e Curica passeavam pela floresta, perto de sua aldeia, na
região dos waikas, quando foram capturados. O próprio Ravoc
comandara a ação e Tunhã compreendeu que o inimigo da Terra
Encantada havia escolhido a dedo o jovem casal. Com o físico
semelhante ao do povo de Yetê e sua aparência inocente, eram
perfeitos para os propósitos de Ravoc. Lembravam-se de terem sido
arrastados por um longo caminho, atravessando o assustador
território devastado, e de terem sido aprisionados na caverna, onde
um "feitiço", como diziam, aos poucos, apagou sua consciência.
Ainda sentiam-se exaustos, sonolentos...
-O coração de vocês lutou o tempo todo para libertar-se do Mal. explicou
Tunhã. -Devem descansar, agora. Depois, se lembrarão de
outras coisas. O que importa é que o pesadelo acabou, vocês estão
entre amigos e a salvo.
Despertar de fato desagradável teve Ravoc, em meio aos escombros
do que sobrou da sua ilha computadorizada.
-Maldição! -urrou o grande predador, quando sua mente clareou-
se o suficiente para recordar que, mais uma vez, fora derrotado.
Seus escravos não ousavam chegar perto. Fizeram bem. A fúria de
Ravoc foi tão intensa, que ele começou a desfechar jatos de chamas
contra as paredes rochosas. Quando conseguiu descarregar pelo
menos parte da sua frustração, arriou em seu trono. Continuava,
entretanto, a remoer pensamentos:
-Eles ainda me pagam! -prometeu... -Ravoc possui mais um
trunfo, do qual eles sequer desconfiam. Juro que me tornarei um dia
o senhor da Terra Encantada! E esse dia está mais perto do que
aqueles miseráveis são capazes de imaginar!
Ravoc esmurrou os braços do trono e ergueu-se. Sentia fome. E,
mais do que fome, vontade de destruir. Empunhou de novo seu
bastão lança-chamas e, com um sorriso cruel, ordenou:
-Venham a mim, escravos! Alguns de vocês devem agora servir de
alimento para Ravoc!
Mesmo sabendo o que os aguardava, os símios não conseguiram
resistir ao comando do seu amo. Foram chegando amontoados,
soltando guinchos de lamento. Ravoc apontou o bastão contra um
grupo deles e disparou uma forte labareda...
Ao final da tarde, Marauiá e Curica foram levados à presença da
Kiara. A deslumbrante figura da deusa da Terra Encantada fez com
que os jovem casal caísse de joelhos.
-Por favor! -pediu a Kiara. -Levantem-se... Nada disso é
necessário. Estão me deixando sem graça!
Yetê morreu de rir, com a atrapalhação dos dois. Praticamente, teve
que empurrá-los, para que ousassem chegar junto à Kiara.
-Não tenham medo. -insistia...
-Algumas das lendas de nossa tribo... -explicou hesitante a moça,
Curica ... -falavam de um lugar de magia poderosa, onde a vida
não tinha o que temer. Um lugar que nem as doenças, nem as
queimadas nem as armas de fogo poderiam jamais alcançar. Um
lugar onde os bichos tinham o poder da palavra... -E Curica lançou
um olhar intrigado para Tunhã. -, defendido e habitado pelos
deuses. Aqui é esse lugar, senhora das águas?
-Pode ser! -respondeu com suavidade a Kiara. -Para vocês, se
quiserem, pode tornar-se... um lar.
Curica e Marauiá ficaram alguns instantes em silêncio, de cabeça
baixa... O jovem guerreiro segurou a mão da moça wai-kai, como se
estivesse tomando coragem para responder. Afinal de contas, temia
contrariar a deusa.
-Gostaríamos muito, senhora das águas... Mas, como deve saber,
nosso povo vive sob ameaça... E luta para continuar existindo. As
lendas que falam desse nosso lugar sagrado... são uma das poucas
coisas que nos dão força para continuar lutando. Só que muitos
deixaram de acreditar. Outros já não conseguem mais... não são
mais capazes de acreditar que exista qualquer lugar no mundo onde
um waikas pode viver em paz. Então... eu e Curica conversamos...
queríamos ficar aqui... Mas, agora que sabemos que o lugar sagrado
existe, precisamos retornar ao nosso povo e lhes contar. Isso vai dar
esperança de novo a eles...
A Kiara assentiu. Era nobre o gesto dos dois adolescentes. Pediu à
Yetê que os ajudasse a tomar as providências para a viagem.
Quando a indiazinha e os dois waikas se afastavam, Tunhã
provocou a Kiara...
-O lugar sagrado dos waikas pode não ser exatamente a Terra
Encantada...
-Talvez, não... -respondeu a Kiara. -E talvez, sim... se é um lugar
que existe para dar esperança... Talvez, sim.
Tunhã assentiu, satisfeito. No entanto, trazia uma preocupação, que
ele precisava dividir com a Kiara...
-Os jovens waikas lembram de pouca coisa sobre os dias em que
estiveram prisioneiros na caverna de Ravoc... Foram submetidos a
algum tipo de tratamento. Tatu diz que escutou falar num raio, que
lhes teria apagado a consciência. No entanto...
-Disseram-lhe algo que preocupou você, não foi, Tunhã?
-Sim... Ainda bem no começo, quando não estavam totalmente
dominados pelo tal raio, escutaram um zum-zum entre os macacos
de Ravoc, que eles acham que conseguiram entender... Ou talvez
tenha sido alguma coisa que o próprio Ravoc tenha dito... Algo
como o ronco do trovão...
-O que seria isso, uma nova arma de Ravoc?
-Creio que sim, deusa das águas... Curica lembra de ter visto certa
vez um desenho, nas mãos de Ravoc. Talvez, um projeto, para algo
que estavam montando... Ela desenhou para mim o que viu...
Tunhã desdobrou o pedaço de folha de palmeira no qual Curica
havia feito o desenho. A Kiara sentiu um sobressalto...
-Mostrei isso para os meninos. -prosseguiu Tunhã. -Eles
identificaram a tal coisa... O ronco do trovão pode ser... um míssil!
-Ravoc não desiste.
-Mas é estranho... Ele sabe que energia tecnológica nenhuma
conseguiria vencer as defesas da Terra Encantada. Míssil, ou não, do
que adianta disparar essa coisa contra nós. E há outra pergunta...
Ravoc não dispõe de uma reserva muito grande de energia. Sobra
bem pouca coisa, para ele usar, em seu reino. Vai alimentar esse
míssil com o quê?
-Nem que seja com sua própria maldade. Essa, sim, é infinita. Não,
Tunhã. Precisamos ficar em alerta e, de alguma maneira, descobrir o
que Ravoc tem para usar contra nós.
-Será feito da melhor forma possível, Kiara... -disse Tunhã,
respeitosamente.
E sabido que a Terra Encantada fica mais feliz quando chegam
novos personagens -seja gente ou animais -do que quando eles vão
embora. O manto d'água canta, ao trazê-los para a Kiara, o arco-íris,
desde lá de longe, se faz mais colorido e sedutor. No entanto,
naquela tarde, quando Marauiá e Curica partiam -com Quico
acompanhando o bote, pelo rio, e Jágua, pela margem, para evitar
imprevistos -não havia sequer uma folha, uma flor, um igarapé,
que não tivesse se esforçado para realçar ao máximo suas belezas.
Foi porque, a essa altura, Aurora já havia espalhado para tudo e
todos a história dos waikas. Ao acenar a despedida para Marauiá e
Curica, desejando-lhes boa sorte, nossos amigos e a Terra Encantada
como que transmitiam aos dois jovens, com toda a intensidade de
que eram capazes, a imagem da esperança que desejavam levar de
volta ao seu povo.
O Ronco
do Trovão
A árvore de tantos centos anos
Era uma árvore que parecia quase um mundo.
Já suas raízes espalhavam-se por muitos e muitos metros, à volta,
criando morros, túneis, nós enormes onde se apinhavam de repente
e desenhos difíceis de imaginar: só vendo para crer. Seu grosso
tronco subia, abrigando populações sem conta de insetos e
bromélias. Em seus galhos, gerações e gerações de macacos e de
pássaros haviam procriado. Sua copa, muito alta, via de cima a
floresta compacta -era uma das que o Sol visitava.
E agora esse gigante de tempo e de vida estava doente.
Muito doente...
Suas raízes, já sem força, falhavam em sugar da terra a energia que
precisava para manter-se de pé.
-Essa árvore -contou Tunhã a Yetê e aos garotos, chamados por
ele. -assistiu quando os xamãs escolheram esta região para ser a
Terra Encantada e a selaram, com sua magia. Mas ela já estava aqui
muito, muito antes disso ...
-Desde quando? -indagou Yetê, morrendo de pena da imensa
árvore ameaçada.
-Isso, poucos sabem. Somente aqueles que conhecerem a linguagem
dos vegetais gigantes.
-E a gente não pode salvar a companheirona aí, Seu Tunhã? perguntou
malandramente Afra, no seu jeito musical de falar.
-Podemos tentar... Na verdade, foi para isso que chamei vocês,
para me dar uma ajuda! Mas, vejam, tudo na natureza brota, cresce,
morre... Tudo! A morte é apenas o reinício do ciclo da vida.
-Mas ela tem que morrer agora, Tunhã? -lamentou Yetê. .-Bem, é
uma árvore muito, muito antiga. E está doente.
Talvez esteja cansada, também. Primeiro temos que perguntar a ela
se ainda deseja viver.
Era uma dessas manhãs gloriosas, na Terra Encantada, O labirinto
de igarapés que recortavam o pequeno mundo protegido pela Kiara
cantava, alegremente, festejando a limpidez de suas águas, cheias
de peixes. Havia pássaros de todas as cores e espécies esvoaçando à
procura de comida ou indo e voltando, no trabalho de modelar seus
ninhos. Bichos subindo e descendo, correndo ou dormindo
preguiçosamente, ao Sol. Lá no céu, pelas nesgas das árvores, dava
para se enxergar o arco-íris mágico que protegia a Terra Encantada.
E vez por outra, quem colasse a orelha à terra, podia escutar o
rugido da cachoeira, na qual despencava o rio que, vindo desde
montanhas, do outro lado do Continente, circundava a Terra
Encantada.
A terra que recobria as raízes da imensa árvore como que captava
toda essa magia. Era úmida, repleta de odores, pronta para receber
sementes e para cuidar que germinassem com força, com vontade
de participar do imenso, do permanente espetáculo de vida da
Terra Encantada.
-Como assim, Tunhã... perguntar à árvore se ela quer continuar a
viver? -estranhou Xereta.
-Sim, claro! -confirmou o sábio mico-leão, ele também, apesar do
olhar atilado e do corpo ágil, um ancião cuja idade precisa ninguém
conhecia. -Sem isso, para quê tratá-la? Para desrespeitar o muito
que ela já nos deu, durante sua longa vida? E, além do mais, não há
remédio nem encantamento que possa curar quem já se entregou à
morte, ainda mais de boa vontade.
-Bom, tá certo! -cortou Afra, impaciente. -O que é que a gente faz,
então?
Tunhã sorriu. Apesar de ralhar com ele, de vez em quando,
simpatizava com o jeitão brusco do garoto. O mico-leão começou a
inspirar profundamente. Uma, duas... várias vezes seguidas encheu
seus pulmões de ar e exalou-o, a seguir, com muito barulho... Ao
mesmo tempo, murmurava um antigo encantamento, desses que só
os deuses da floresta conhecem a origem:
-Ar que esta grande irmã respira e produz... entra em mim, para
que eu possa penetrar no espírito dela... Ar que esta minha grande
irmã purifica... limpa meus pensamentos, para que os pensamentos
dela possam me alcançar...
Afra e Xereta se cutucaram, misturando no rosto estranheza e
alguma incredulidade. Mas, quando viram Yetê de olhos fechados,
totalmente concentrada, como se dando força ao canto encantatório
de Tunhã, começaram a levar a história mais a sério. Afra coçou
instintivamente a cabeça e Xereta deu de ombros, conformado,
como quem diz: "Sabe-se lá?..."
-Sim... ela quer viver mais algum tempo... -disse Tunhã, no mesmo
tom de voz em que proferia há pouco seu canto mágico. -Diz que
teria pena de deixar sem abrigo os animais e as outras plantas que
habitam seu imenso corpo... Que bom que seja assim, grande irmã!
Nós sentiríamos muito também a sua falta. Vamos tentar ajudar
você a satisfazer seu desejo.
E, a seguir, como se despertasse, chamou os garotos...
-Que tal darem um abraço nela, crianças?
Yetê, animada, saltou para junto da árvore e envolveu-a tão
carinhosamente com seus braços que quase foi possível sentir os
imensos galhos lá em cima se remexerem de contentamento.
Algumas gotas se desprenderam das folhas, o que, em se tratando
de uma copa tão imensa, pareceu mais uma garoa, caindo sobre o
terra, logo abaixo. Tunhã imaginou se seriam mesmo gotas de
orvalho, retidas nas folhas, ou se, emocionada com o abraço de Yetê,
e sentindo-se tão amada, eram lágrimas que a árvore derramava...
Afra e Xereta demoraram um pouco mais a atender o chamado de
Tunhã. Aquele crianças do mico-leão caiu mal aos ouvidos da dupla
de aventureiros da Terra Encantada.
"Afinal de contas... Hum! Crianças..."-reclamaram, lá por dentro.
Mas logo reuniam-se a Yetê. Mesmo dando-se as mãos, não
conseguiam abraçar sequer metade do imenso tronco. Enquanto
isso, Tunhã saltitava em volta, atirando sobre a terra uma mistura
de ervas que, misturadas à água pura e amassadas até tornarem-se
uma espessa pasta, era o melhor dos adubos, com poderoso efeito
medicinal.
-Epa! -gritou de repente Yetê, descolando o rosto da árvore,
assustada.
Tunhã já havia espalhado todo o adubo que trouxera. E agora fitava
Yetê sorridente. Sabia exatamente o que havia acontecido. Logo a
seguir, foi a vez de Afra e Xereta darem um salto para trás,
amedrontados. Afra chegou a cair sentado. Trêmulo, o garoto
apontou para o tronco:
-Ela... falou com a gente! -disse.
-Sim, é claro. -retrucou Tunhã. -Está espantado por quê?
-Peraí, Seu Tunhã. Não vem, não... nunca soube que eu conhecesse
linguagem de árvore.
-Conhece agora. E o que foi que ela disse?
-Eu... não sei. Xereta...?
-Também não entendi direito... saltei logo fora. Yetê, meigamente,
encostou o rosto novamente no tronco. Seu rosto se iluminou de
alegria...
-Ela está dizendo ... que o remédio de Tunhã chegou a suas raízes e
já está funcionando. E também... esta pedindo que a gente a visite
sempre... sempre!
-Então -aproximou-se Afra...
-Ela está salva! -gritou Yetê, abraçando-se com Afra. E saíram os
dois dançando, agarradinhos, acompanhados pelo olhar espantado
de Xereta, que ainda tentou entrar na festa:
-Que bom, né?... Ei, gente... eu disse... Ora, que coisa!
Por um instante, Afra e Yetê se esqueceram de tudo em volta, de tão
contentes. Quando se deram conta, viram Tunhã, totalmente
absorto, contemplando a copa da imensa árvore e... mais ninguém.
-Ué, onde foi parar o Xereta? -, estranhou Afra.
Um aventureiro enciumado
Muito mal-humorado, Xereta embrenhou-se na mata, afastando-se
dos amigos...
-Amigos, é? Eles tão namorando! Só pode ser! E nem vieram me
contar. Tavam me enganando... traidores!
Já estava caminhando há alguns minutos, quando uma pequena
clareira relvada lhe pareceu na medida para abrigar suas mágoas:
um pequeno espaço solitário, uma elevaçãozinha de terra vermelha,
para recostar-se, e teria a floresta, apenas ela, para confidenciar seu
desapontamento. Já podia até imaginar quando Afra e Yetê dessem
por sua falta, e saíssem preocupados à sua procura. Demorariam a
encontrá-lo, talvez ...
-Quem sabe vão pensar que Ravoc descobriu um jeito de entrar na
Terra Encantada, então eu, Xereta, teria surpreendido seu exército,
quando estivessem nos invadindo. E teria lutado contra eles sozinho
e... e...
Nesse momento, já sentado, sentiu a primeira picada, em sua perna.
Uma picada aguda e dolorosa. Levou a mão imediatamente ao local.
Mas outra ferroada o feria nas costas, no braço, na barriga, por
dentro das calças, em seu bumbum!
-É uma invasão! -berrou Xereta, levantando-se assustado. Uma
invasão, sim. E de um exército. Mas não o de Ravoc. A essa altura, a
pequena elevação de terra vermelha havia mudado de cor. Levas de
formigas graúdas e negras, desciam do topo do morrote, avançando
sobre Xereta. O garoto de pronto percebeu, assustado, que seu
inimigo era, virtualmente, invencível. E, dando uma pausa
conveniente à valentia com que enfrentaria os símios de Ravoc,
bateu em retirada, em direção à margem do igarapé, estapeando o
corpo, para desgrudar as formigas.
Por pouco, por muito pouco, e apenas por que a cena que vira entre
Afra e Yetê não lhe saía da cabeça, seu orgulho conseguiu evitar
que, na corrida, saísse gritando por socorro.
O aventureiro da Terra Encantada mergulhou de cabeça no igarapé.
Em segundos, as ferroadas cessavam e ele podia de novo raciocinar:
-Ora, bem... se alguém perguntar, não tem nada demais eu ter
resolvido tomar um banho de rio, tem?...
E, no entanto, ao sair do rio com as roupas coladas ao corpo e
pingando, a humilhação reacendeu seu ressentimento:
-Alguém, o quê! Não quero nunca mais ver aqueles traidores...
Melhor! Eles assim não ficam sabendo do que me aconteceu... Iam
morrer de rir, os dois... de mãozinha dada e morrendo de rir de
mim!
Xereta estava tão zangado que, sem perceber, disse as últimas
palavras em voz muito alta. Ou melhor, percebeu isso, no que escutou
uma risadinha chegar perto dele pelas costas:
-Ri-ri-ri! O garrroto da cidade está com ciúmes... Quem dirrria... a
Yetê, tão selvagenzinha, destrrruindo corrrações. Ah, sim... ela é
muito bonita, non nego... Muito, mesmo... Mas Xerrretá sabe disso
melhorrr do que eu, non?
-Não me enche, tá, Sal! -e Xereta fechou a cara. De todas as
criaturas da Terra Encantada, logo a mais reparadeira de todas tinha
que encontrá-lo naquele estado.
-Bon... Xerrretá não gostar de Sal, enton... -e a salamandra, com
uma carinha triste, voltou as costas, fazendo menção de se afastar...
Mas com o rabo do olho alerta para qualquer vacilação de Xereta.
"Afinal, uma história de amorrr... Sal pode muito bem ajudar a
todos, para que ela terrrmine com um final feliz... Ahhh!", e a
salamandrazinha suspirou, imaginando cenas românticas.
-Não é isso, Sal... não é que eu não goste de você. É só... bem,
desculpe, ter me irritado, tá?
-Non terr imporrrtância. -e Sal girou, toda serelepe, na ponta dos
pés, chegando junto Xereta numa corridinha só.
-Os apaixonados, ah, os apaixonados... fazem cada coisa...
-Pare de dizer isso, Sal. Puxa, parece... ridículo!
-Mas non é... O amorrr é elegante, é fino, é... chique! Porrr
exemplo... -e Sal apontou uma enorme orquídea, que despontava
do tronco de uma árvore... -Você já experimentou dar flor-rres para
sua amada... ?
-Me deixa, Sal! -irritou-se Xereta, novamente. -Que flor que nada.
Vou lá com uma flor pra frente da Yetê... com que cara? Nem vou
conseguir dizer coisa nenhuma! Mas Sal já não estava escutando o
garoto.
-E perrrfumes... Eu faço perrrfumes deliciosos, com essências
naturrrais... Garrrotas adorram receber perrrfumes de prrre-sente.
Ou quem sabe você deve levar Yetê para um jantarrr à luz de
velas... Eu posso ajeitarrr tudo parrra vocês, e...
-Até parece! -gritou Xereta, perdendo a paciência de vez. -Você
não entendeu nada. A Yetê e o Afra é que estão namorando. Vá dar
essas idéias para eles dois... E eu vou embora da Terra Encantada...
para sempre!
Xereta saiu correndo, deixando Sal absolutamente espantada. A
salamandra levou alguns instantes para recuperar-se:
-Ai, ai... serrrá que eu... piorrrei as coisas? Mas eu só quer-rria
ajudarrr... Ai, ai, Sal, o que é que você foi fazer?
Afra e Yetê já estavam procurando por Xereta. A medida que
percorriam os locais favoritos dos três, sem encontrá-lo, foram
ficando preocupados. Pediram a Quico que desse uma busca pela
margem dos igarapés, e a Aurora que voasse de uma ponta à outra
da Terra Encantada para ver se o avistava lá do alto. Pediram
também à Jágua e ao Tatu, cada um ao seu modo, que ajudassem... e
nada. Ao cair da noite, finalmente, cruzaram com Sal...
-Estava mesmo querrrendo falarrr com vocês. Mas quando eu
chegava num lugarrr, já me diziam que vocês haviam ido para
outrrro... Non parrararm quietos hoje, não foi?
-A gente está procurando o Xereta, Sal. -explicou Yetê, exausta.
-Sim, sim... é dele mesmo que eu querro falar... o Xerrretá.
-Você viu o Xereta? -agitou-se Afra.
-Como non?... O Xerrretá, clarro! Eu estava passeando ali junto de
um dos igarrrapés, justamente pensando que se a Kiarrra quisesse
que eu, vamos dizerrr... dirigisse o pessoal daqui para plantam uns
canteiros, na margem de todos os igarrrapés, ia ficar-rr muito mais
bonito, non ia? Ia ser a única florrresta do mundo...
-Sa-al!... -cantarolou Yetê impaciente. -E o Xerrretá? ... Quer dizer,
o Xereta!
-Ah, sim, sim... -ainda custou umas tantas voltas, mas, finalmente,
a salamandra contou tudo que tinha acontecido entre ela e Xereta.
Afra ficou agoniado:
-Tudo culpa minha!
-Culpa daquele bobo! Quem manda ficar imaginando coisa! replicou
a Yetê, que não gostou nada dessa história de ficarem
dizendo que ela estava namorando. -Mas acho... que a gente tem
que ir falar com a Kiara e o Tunhã.
Um pressentimento ruim acabara de atravessar a mente da
indiazinha. Ela e Afra dispararam correndo para o Castelo da Kiara.
A princípio, Tunhã e a deusa da Terra Encantada sorriram, com a
história de ciúmes entre os três amigos. Mas, quando contaram à
Kiara que Xereta desapareceu, dizendo que ia embora da Terra
Encantada, ela também ficou preocupada.
A Kiara entoou um canto, chamando seu manto d'água a abrir-se.
Examinou-o por instantes, e depois disse...
-Xereta foi mesmo embora.
-Pronto! -resmungou Afra. -Vou atrás dele. Que sujeito mais
cismado...
-Espere, Afra! -avisou a Kiara, enquanto o manto lhe mostrava
imagens do território fora da Terra Encantada... -Seu amigo está em
perigo... Uma coisa muito grave está para acontecer com ele.
Adeus à Terra Encantada
Ern seu manto mágico, a Kiara logo visualizou Xereta, com a
mochila às costas e a cara amarrada, deixando para trás a proteção
do arco-íris e a Terra Encantada. Mas viu também um batalhão de
símios de Ravoc, oculto na mata, seguindo o garoto, prontos para
dar o bote.
Quando Yetê aproximou-se da Kiara e viu a cena, no manto d'água,
quase perdeu a respiração:
-Xereta! -gritou, como se pudesse avisá-lo para olhar para trás.
Mesmo que ele a escutasse, era tarde demais. O bando de símios
caiu sobre o garoto, cobrindo-o como se fosse um cipoal de pernas,
braços e rabos. Na imagem do manto d'água, ainda viram Xereta se
debater, tentando safar-se. A seguir, o garoto ficou imóvel, e a
imagem começou a se desfazer.
-O que aconteceu com o Xereta? -perguntou Yetê aflita. Tunhã
refletiu um pouco antes de responder:
-É possível que ele seja levado para a caverna de Ravoc. Sinto
muito, Yetê.
-Minha nossa! -gemeu Afra. Ele e Yetê se abraçaram, no instante
em que, coincidentemente, Quico chegava saltitando, pelo igarapé,
e Aurora, nervosíssima, adentrava esvoaçante o Castelo da Kiara.
-A Terra Encantada está cercada! -berrou Aurora esganiçada. Nunca
vi tanto soldado do Ravoc na floresta.
-Eu também vi! -reforçou Quico. -Eles estão patrulhando até a
margem do rio, de cima para baixo. Parece que vai ter confusão.
-Já teve... -disse Tunhã. -É estranho...
-O que você acha, Tunhã? -perguntou a Kiara...
-Bem, tenho estado preocupado desde que os waikas que passaram
por aqui nos contaram da tal arma secreta do Ravoc... o ronco do
trovão!
-O míssil! -emendou Afra.
-Sim... -assentiu Tunhã. -Talvez essa movimentação toda das
tropas de Ravoc tenha algo a ver com isso. Talvez ele esteja pronto
para lançar o míssil.
-Mas você disse que não ia adiantar, que as defesas da Terra
Encantada podiam parar qualquer porcaria que ele mandasse contra
nós! -reclamou Afra.
-Eu disse... bem... eu disse que não compreendia de onde, naquele
reino devastado dele, Ravoc arrumaria energia para tornar uma
arma forte o suficiente para vencer as defesas da Terra Encantada...
Foi isso que eu disse! Não podia ser uma tecnologia comum, dessas
que vocês estão acostumados a ver funcionar na cidade...
-Mas e se fosse algo totalmente fora do comum? -sugeriu a Kiara.
-Como o quê? -quis saber Yetê...
-Ei, pessoal! -reclamou Afra... -Vocês não estão esquecendo o mais
sério? O Xereta foi aprisionado. O que é que a gente vai fazer?
-Ninguém esqueceu seu amigo... -sorriu Tunhã. -Ele é um dos
nossos. Mas talvez a gente deva pensar um pouco, antes de tomar
alguma atitude.
-De jeito nenhum! -disse Afra, revoltado. -A gente vai lá pegar o
Xereta de volta. E antes que os soldados entreguem meu amigo pro
bobão do Ravoc, na caverna do Mal.
-Ele tem razão, Tunhã! -concordou a Kiara. -É uma emergência. E
se a gente conseguir salvar o garoto antes que Ravoc ponha as mãos
nele, melhor...
-É só chamar a Jágua! -garantiu Afra, fazendo até pose. -Ela e eu
pegamos aqueles macacos do Ravoc num instante.
-Não, Afra. Pense no que Aurora e Quico vieram nos dizer...
-raciocinou Tunhã. — Dessa vez a coisa é um bocado mais complicada.
Alguns minutos depois de ser atacado, Xereta despertaria, com
muitas dores no corpo. Havia apanhado um bocado, na luta. E a dor
de cabeça que sentia lhe dizia onde tinha levado a pancada que o
deixara fora de combate. Estava amarrado por uma montoeira de
nós cegos. E vinha sendo arrastado com maus modos, pela mata, de
forma que vez ou outra ou sua cabeça batia contra uma raiz ou seus
braços e pernas raspavam em alguma planta mais espinhenta.
-Me soltem! Meus amigos logo vão alcançar a gente e aí vocês vão
ver! -berrou.
Os símios detiveram-se por um instante, em confusas confabulações.
Xereta, apesar de andar aprendendo com Tunhã algumas
das linguagens da floresta, não entendeu o que diziam, a não ser
quando um deles, com o olhar menos idiotizado, encarapitou-se
sobre o peito do garoto, com um pulo, e grunhiu, com o focinho
colado ao rosto de Xereta:
-A floresta está ocupada por nossos irmãos, hoje... Se eles, lá de
trás, derem sinal de que estão sendo atacados, matamos você... e
matamos quem estiver nos perseguindo, também!
Xereta remexeu-se, bruscamente, lançando o símio no chão.
-Macaco estúpido! -gritou o garoto. -Como é que você pode
continuar obedecendo ao Ravoc?... Ele usa vocês até como comida!
Vocês estão aqui, hoje, mas amanhã ele torra vocês e come! Idiotas...
Um zum-zum atordoado percorreu os símios. Nada os assustava
mais do que lembrar a fome de Ravoc. Mas sobrava tão pouca
inteligência em seus cérebros, que a maioria não fez mais do que se
coçar nervosamente, para espantar o medo. Haviam recebido uma
ordem de Ravoc... capturar e trazer qualquer um que tentasse
deixar a Terra Encantada. E estavam cumprindo essa ordem.
-Quem sabe hoje... -grunhiu de novo o símio menos apalermado. ...
Ravoc come você no jantar, em vez de um de nós.
Xereta engoliu em seco e os símios retomaram o caminho, rumo à
Caverna de Ravoc, o destruidor.
O encantamento
_ Vocês estão querendo dizer que não tem jeito de salvar o Xereta?
Nem vem! -protestou Afra, inconformado. -E aí? A gente vai
deixar aqueles macacos entregarem ele pro Ravoc?
Jágua havia chegado à caverna. Com um rugido, colocou-se ao lado
de Afra.
-Isso nunca! Ele é nosso amigo... meio sem cabeça, para ter ido
embora desse jeito... -percebendo a contrariedade de Yetê com seu
comentário, Jágua emendou-se. -Mas é nosso amigo, seja como for.
Eu vou lá trazer o Xereta!
-Pensem, vocês dois... -pediu Tunhã. -A floresta em torno da
Terra Encantada está cheia de vigias de Ravoc. No momento em que
você atacar um dos bandos, Jágua, o outro, o que está levando
Xereta prisioneiro, mais à frente, vai ouvir o barulho da luta. E
então...
Jágua coçou os bigodes, sem jeito... Havia acabado de entender o
raciocínio do mico-leão. Sabia que ele tinha razão. Tunhã
continuou...
-Pelo mesmo motivo, com todos esses escravos de Ravoc circulando
lá fora, é muito arriscado tentar passar, ainda que sorrateiramente.
Há sempre a chance de sermos surpreendidos, e da
mesma forma seria dado um alarme que...
-... poderia acabar com a vida do Xereta! -concluiu Jágua
desanimada.
-Então...? -indagou Yetê aflita...
E foi quando a Kiara aproximou-se de Afra...
-Ele é seu amigo, não é, Afra?
-Claro!
-E você quer salvá-lo?
-Uééé... Kiara, que pergunta é essa?
-Quero saber se você está disposto a correr um risco, um risco
muito grande para salvá-lo.
-Bem...s-sim... Que risco? A Kiara sorriu...
-Posso lhe dar uma proteção... em encantamento. Só ia funcionar
com você, porque você é o guardião de uma das pedras mágicas.
Portanto, teria que ir sozinho...
-E precisaria tentar alcançar o pelotão que leva Xereta, antes que
alcancem a Caverna de Ravoc... -completou Tunhã.
-Mas o que eu vou ter que fazer? -preocupou-se Afra.
-Peraí! -protestou Yetê. -Os soldados do Ravoc já levaram o Xereta
e agora... Vocês não vão fazer o Afra correr perigo, quer dizer...
perigo de verdade... vão?
O olhar de Tunhã e da Kiara respondia a pergunta. Afra respirou
fundo. Muitas vezes, Xereta havia se arriscado para livrar a pele
dele. Devia isso ao amigo. Mas era mais do que uma dívida...
Gostava demais do Xereta. E nunca se perdoaria se acontecesse
qualquer coisa ao Xereta, que ele pudesse ter impedido.
-Eu vou nessa...! -decidiu-se o garoto. A Kiara abriu
seu manto d'água...
-Venha, Afra... entre em meu manto... deixe que o poder da água o
abrace... não tenha medo. Você não vai se afogar... Ouça apenas a
minha voz e mergulhe... venha... venha...
Afra entrou no manto d'água. Sentiu-se exatamente como se tivesse
mergulhado num rio e começou a se debater. Mas, então... de
repente, deu-se conta de que estava respirando... dentro d'água... e
de que não sentia frio, como se a água não o estivesse molhando de
fato... Podia enxergar perfeitamente à sua volta. Tanto que avistou
Quico, de longe. O botinho vinha se aproximando alegremente.
Logo que chegou junto dele, pôde entender perfeitamente quando
Quico, emitindo sons próprios dos botos, lhe disse:
-Puxa, Afra! Você precisava ver a sua cara num espelho... Pra quê
todo esse espanto, rapaz?
-O que é que está acontecendo? -Nova surpresa. Afra conseguia
falar e ser ouvido por Quico, debaixo d'água.
-Você está no fundo do rio, já fora da Terra Encantada. A Kiara me
pediu que o guiasse rio acima... por debaixo d'água.
-Como assim, por debaixo d'água?
-Aí fora está cheio de guardas do Ravoc... Bem, você já percebeu
que pode respirar aqui embaixo, né?... Melhor do que eu, que
preciso pegar ar, na superfície, de instante em instante.
-Eu acho que tô sonhando! -disse um estonteado Afra.
-Vamos... Nade comigo. Depressa.
Por aproximadamente meia-hora, Afra e Quico enfrentaram a
correnteza. O garoto já estava morrendo de ansiedade, quando
Quico, ao passar por uma tartaruga que lhe deu informações
recentes, indicou a direção da margem, explicando:
-Eles estão sendo seguidos por um papagaio, que deixou um
recado com um macaco-de-cheiro, que por sua vez mandou
mensagem por uma garça, que mandou a tartaruga esperar por
mim e dizer...
-Quer fazer o favor de desembuchar logo, Quico!
-Você vai ter que deixar o rio, bem aqui. Eles começaram a se
distanciar da margem. Vão pegar a trilha pro Reino de Ravoc.
Afra engoliu em seco. Em poucos instantes, emergia na margem do
rio. Quico apontou uma direção, com seu nariz achatado.
-Está vendo aquela trilha? Eles seguiram por ela. Corra, e tente
alcançá-los. O Tunhã me mandou lembrar a você que se não
conseguir salvar o Xereta, antes que cheguem na Caverna, é pra
você voltar, que a gente vai ter que bolar outro plano. E mais...
-Chega de falatório! -reclamou Afra... -Os macacos do Ravoc já
devem estar muito na minha frente.
-É, mas o tal papagaio mandou uma aranha transmitir o recado,
que ela passou para uma cobra d'água, que veio me dizer, há pouco,
que...
-Quico! Fala de uma vez!
-Também tem uns bandos de macacos vigiando o caminho, até a
entrada do território de Ravoc... Cuidado, hem?
E, com uma pirueta para trás, que o fez rodopiar duas vezes no ar,
antes de mergulhar, Quico desapareceu nas águas do rio. Afra
apertou os olhos, para enxergar a trilha, na escuridão. Logo que
conseguiu, disparou por ela.
Nem tinha percorrido duzentos metros quando, de repente, deu de
cara com um bando de macacos de Ravoc.
"Estou perdido!", pensou, paralisado de medo. "Que idiota... me
avisaram para tomar cuidado." Estavam passando quase junto dele.
Para surpresa de Afra, no entanto, sua chegada não causou entre os
símios nenhuma espécie de reação. Continuaram em seu vagaroso
passo, descendo a trilha em sentido contrário ao do garoto, como se
não o vissem... "Mas o que é que está acontecendo?", perguntou-se
Afra.
Os símios só não esbarraram em Afra porque ele encostou-se a um
tronco seco de árvore. E seguiram em frente, não tomando
conhecimento do garoto. Afra estava estonteado, quando um
formigamento percorreu sua pele. Olhando mais atentamente,
minúsculas faíscas coloridas ejetavam-se de seus poros, em
tonalidades e com um jeito de brilhar em tudo semelhantes a...
-O manto da Kiara... o encantamento... eles não podem me ver! O
manto continua me cobrindo... ou uma parte dele... Que máximo!
Assim, vai ser mole enrolar todos os macacos do Ravoc e soltar o
Xereta!
Sem fazer barulho, Afra afastou-se. Ainda haveria de cruzar com
mais duas patrulhas de símios que, a exemplo da primeira, não o
enxergaram. A brincadeira estava divertindo Afra. O garoto chegou
a fazer caretas, quase roçando seu nariz no focinho de um símio,
que passou por ele tão abobalhado quanto os demais, sem sequer
pressentir a presença de Afra.
Um pouco mais à frente, e a trilha terminaria. Mas, quando Afra
alcançasse esse ponto, não precisaria mais de trilha alguma, para
orientar-se porque, mesmo à distância, já era possível enxergar o
clarão das fogueiras que cercavam a entrada da caverna de Ravoc.
Poderia se dizer que estava em pleno coração do reino do grande
predador, se alguma coisa ali ainda possuísse coração. Os galhos
retorcidos assombravam a noite. O cheiro ácido era de atordoar. A
lama que recobria todo o solo -que um dia, antes de privado de
suas árvores e incinerado, fora uma terra fértil e vigorosa -em tudo
se parecia com massa morta.
O bando de símios que levava Xereta já havia chegado à Caverna do
Mal. Muito confiante, Afra observava o antro de Ravoc, de longe, já
decidido a não cumprir a orientação que recebera de Tunhã e a
entrar na Caverna, por sua própria conta.
O antro de Ravoc
Ao ser carregado para dentro da Caverna de Ravoc, o estómago de
Xereta como que sofreu uma cãibra. Seu primeiro impulso foi cerrar
os olhos e rezar para que, como nos pesadelos, algo viesse despertálo.
Perdeu as forças para espernear, não era mais capaz de se
debater. Então, deixou-se arrastar pelos símios. Sua boca quedou
paralisada e seus olhos não acreditavam no espetáculo à sua volta.
O primeiro ambiente da caverna era um enorme salão, iluminado
meio que lugubremente com fogueiras. Para manter aquelas
fogueiras queimando, os escravos de Ravoc derrubavam árvores algumas
já muito raras, madeiras nobres -o tempo todo; iam cada
vez mais longe, na mata, em busca de lenha, expandindo mais e
mais o reino desertificado de Ravoc. As fogueiras desprendiam
muita fumaça, empesteando o ambiente. Logo, Xereta sentiu os
olhos começarem a arder terrivelmente, mas os símios ou já estavam
acostumados, ou suas mentes encontravam-se anestesiadas demais
para sentirem-se incomodados com a fumaça.
Os soldados de Ravoc receberam seus companheiros em festa.
Dançavam -se é que seus pulos desencontrados pudessem ser
comparados a uma dança -e guinchavam histericamente. De
qualquer forma, pareciam bastante contentes. Xereta olhou em
torno -o salão possuía várias saídas -arcadas de pedra, dando para
corredores que pareciam afundar-se na escuridão.
Junto à parede do fundo, um trono metálico, rodeado de fogueiras
menores, esperava pelo seu dono. Xereta percebeu que havia uma
nervosa expectativa entre os símios, que não perdiam aquele trono
de vista. Grandes bandejas foram trazidas. Sobre elas, símios
torrados, desprendendo um odor que desagrava profundamente ao
olfato de Xereta. As bandejas foram depositadas ao pé do trono,
enquanto a agitação dos macacos crescia assustadoramente. Nem
em seus pesadelos, ou em filmes de terror, Xereta havia visto um
algo tão medonho.
De repente, uma sombra muito escura foi se formando, por trás do
trono. Os símios, numa corrida só, concentraram-se, logo à sua
frente, uivando, agora, e remexendo-se inquietos.
A sombra continuava a crescer. De repente, uma coroa de chamas
explodiu, ainda de detrás do trono, ofuscando a todos. Os símios
emitiram um último uivo, abafado, e se calaram todos.
E só então surgiu Ravoc, o grande predador.
Ravoc não dirigiu o olhar para seus escravos, que recuaram,
abrindo caminho, ao pressentirem que seu amo desejava passar.
Havia um estranho brilho em sua face, um tipo de felicidade cruel
que Xereta teve dificuldade em reconhecer... Mas o garoto, todo
encolhido, percebeu que era o alvo da excitação febril que tomou
conta do inimigo da Terra Encantada, daquilo que, ao mesmo
tempo o levava a sorrir e a dilatar as narinas, numa respiração
alimentada de ódio.
Ravoc deteve-se, com Xereta amarrado aos seus pés. Não disse
sequer uma palavra -apenas examinou-o por alguns instantes e, a
seguir, fez um sinal para que alguns dos escravos erguessem o
garoto. Ravoc saiu caminhando em rápidas passadas e desapareceu
por uma das arcadas de pedra. Seu bastão inflamou-se na ponta,
iluminando o corredor estreito, por onde os símios, seguindo seu
amo, arrastaram Xereta.
Mais à frente, Xereta percebeu que o corredor se abria para outro
salão, com uma luminosidade diferente do anterior... Logo ao entrar
nesse salão, Xereta deu-se conta de que, na verdade, estavam a céu
aberto, novamente -era um imenso rochedo, bastante elevado.
Recantos escavados na pedra protegiam consoles com diversos tipos
de monitores, controles, telas de cristal líquido, botões. E, ao
centro... havia algo que fez Xereta arregalar os olhos, de espanto.
-Então, que tal conhecer aquilo que vai destruir a Terra Encantada,
pirralho? -falou Ravoc, enfim, triunfante, soltando uma gargalhada.
Era um míssil de aproximadamente dezesseis metros de comprimento.
Ainda estava apoiado nos trilhos de lançamento e
apontado para a direção do Reino da Kiara. Em seu bojo, havia uma
comporta, que permitiria a passagem de uma pessoa -através dela,
Xereta pôde enxergar um compartimento, repleto de controles
eletrônicos.
Nunca antes, Xereta havia estado na presença de Ravoc. Já o vira à
distância. Mas o tirano do território devastado, desta vez, cravava
no garoto seus olhos impiedosos, como se o medo de Xereta
estivesse lhe dando prazer.
-V-você não vai conseguir!...-balbuciou Xereta. -Nenhuma das
suas máquinas b-bobas tem energia ... para vencer as defesas da
Terra Encantada!
-Mas que gracinha! -escarneceu Ravoc, com outra gargalhada. Vejo
que decorou direitinho a lição daquele mico-leão estúpido, tido
por sábio, entre outros estúpidos... Ou foi a Kiara quem lhe contou
essa história, para você conseguir dormir sem medo do bichopapão?
Imagino que, depois, vocês tenham cantado, em coro...
"Quem tem medo do Ravoc Mau? Muito mau, mau, mau!"... RáááRá-
Rá!Rá-rá-rá!
A risada de Ravoc fez Xereta sentir-se enregelado... e pior... era
como se estivesse inteiramente abandonado no mundo...
-Mas digamos... -prosseguiu Ravoc... Xereta já não conseguia dizer
coisa alguma... -Que essas famosas defesas da Terra Encantada não
possam ser utilizadas, para deter meu míssil. E, digamos também...
que energia não seja um problema para mim. Então...
Xereta viu Ravoc fazer um sinal, percebeu de soslaio, atrás de si, um
símio apertando um botão. E depois sentiu-se como que atingido
por uma luz roxa, algo que entrava dentro dele, queimando. O
garoto ouviu-se berrar de dor... e foi a última coisa que escutou.
Um aventureiro invisível
Ao alcançar a entrada da Caverna, Afra sentiu o formigamento em
sua pele aumentar de intensidade como se, com a proximidade do
Mal, a magia do manto d'água se alarmasse. Um pensamento
preocupante passou pela mente do garoto...
"E se o que eu estou sentindo é essa cobertura do manto que ficou
na minha pele se desfazer? E se foi isso que o Tunhã e a Kiara
quiseram dizer, quando falaram para eu não entrar nessa porcaria
dessa caverna? Vai ver que a magia da Kiara não funciona aí dentro
e, aí, o Ravoc e a macacada dele vão fazer a festa comigo...brrr!"...
Só que, ao contrário de seus temores, os símios que povoavam a
entrada não enxergaram a passagem de Afra, que caminhou bem
pelo meio deles, pondo a língua para fora, debochadamente. Isso
fez o garoto sentir-se superconfiante até que...
Até que se viu dentro da Caverna do Mal.
E só então compreendeu o sentido do aviso de Tunhã...
Ali, com proteção mágica e tudo, a atmosfera de maldade atingiu
em cheio o espírito do garoto. Aquelas paredes estavam carregadas
de sentimentos ruins, de ódio, de rancor, de planos de destruição,
da dor e do sofrimento dos prisioneiros que por ali passaram e,
principalmente, da aura que o espírito atormentado de Ravoc
desprendia. Mesmo querendo manter a pose, Afra sentiu uma
tontura, uma zoada na nuca, bem na medula, e precisou se apoiar
na parede mais próxima:
"Meu Deus... E o Xereta foi trazido para cá... como prisioneiro! Ficou
aqui sozinho, achando que estava perdido... Será que ele agüentou o
tranco? Grande Xereta... 'Guenta, que o Afrinha aqui tá
chegando!"...
Havia símios por todo o lado. E não paravam quietos um instante
sequer. Afra tinha que fazer malabarismos, para evitar levar um
encontrão de algum deles.
Ao mesmo tempo, o ar do salão da caverna começava a provocar
um violento enjôo no garoto. A fumaça atrapalhava sua respiração e
o cheiro de macaco torrado lhe dava engulhos. A cabeça de Afra
começou a rodopiar...
"Epa, garotão! Você não vai desmaiar, vai?"
Afra esticou o pescoço, sacudiu a cabeça, teve imediatamente a
compreensão do perigo que corria. Mesmo que a magia da Kiara o
estivesse ocultando da vista dos macacos, se cedesse ali ao clima de
opressão da caverna e perdesse os sentidos, com toda aquela
circulação de escravos, fatalmente, terminaria por ser descoberto...
Afra sentiu as pernas falharem, como se o chão ondulasse de um
lado para o outro.
"Se segura, garoto...", exigiu de si mesmo.
Resistindo sempre, Afra logo se deu conta de que Xereta não estava
no salão. De todas as arcadas que davam para outros ambientes,
havia apenas uma iluminada. Afra arriscou o palpite, e seguiu por
ela...
Uma brisa de ar fresco, vinda do final daquele corredor, reanimou-
o. Mais adiante, começou a distinguir a claridade, até que,
finalmente, para seu alívio, foi dar no rochedo a céu aberto. Só que o
alívio em segundos transformou-se em espanto. Levou alguns
instantes mais para se convencer do que tinha à sua frente, e a
expressão usada por Tunhã veio imediatamente aos seus
pensamentos:
"O ronco do trovão... minha nossa! O bicharoco existe mesmo .
Afra olhou em volta. Havia pelo menos vinte macacos guardando o
míssil. Os consoles de instrumentos, incrustados na pedra,
trabalhavam loucamente, piscando luzes e emitindo sinais sonoros.
O míssil estava iluminado com fachos de holofotes. Naquele terraço
de rocha, a atmosfera sobrenatural do salão principal da caverna
fora substituída por um impressionante cenário tecnológico.
"Puxa... Acho que tudo que é equipamento que eu ando vendo nas
fotos das revistas de ciência está aqui... e na mão do Ravoc! Só de
computador, dá para concorrer com qualquer filme de ficção
científica...Só tá faltando uma coisa... Cadê o mandão dessa porcaria
infernal toda?"
Era de fato uma pergunta preocupante. Mas, Afra voltou
novamente sua atenção para o míssil. Era impressionante demais.
Ameaçador demais. Sua carcaça estremecia, como se uma corrente
elétrica percorresse seus fios internos, aquecendo-o, preparando-o
para destruir. Ao distinguir a comporta, no bojo do projétil, Afra
como que teve um pressentimento...
Por via das dúvidas, ressabiado com a possibilidade de alguns
daqueles equipamentos que via serem alarmes anti-invasores, com
proteção mágica ou não, Afra avançou cuidadosamente para o
projétil. Havia uma verdadeira muralha de símios, na frente da
escada que, subindo até os trilhos de lançamento, ia dar na
comporta. Assim como Xereta, minutos antes, Afra também reparou
que o míssil estava apontado para a Terra Encantada. Mas, no
momento, tinha uma problema mais imediato para resolver: afastar
alguns dos macacos, para poder passar por entre os que ficassem de
vigia e alcançar a comporta.
"O truque que todo mundo usa, certo, Afra? Não é hora de querer
ser muito original!"
Afra apanhou uma pedrinha do chão e a lançou com força, contra
um console de controles, no outro extremo do terraço. O barulho, a
princípio, sobressaltou os símios, que pularam de um lado para o
outro, guinchando, muito desordenadamente, até que três ou
quatro deles resolveram verificar do que se tratava.
Afra aproveitou e passou pelo meio deles -dessa vez, não lhe
ocorreu fazer caretas ou qualquer outra brincadeira. O garoto sentia
uma estranha apreensão dentro de si, uma coisa qualquer no ar,
ameaçadora o bastante para abalar sua costumeira autoconfiança
debochada... Algo também lhe dizia que deveria ver o que havia
dentro daquela comporta... E que, o mais depressa possível, deveria
ir embora daquele lugar.
"Levando o Xereta junto...!", jurou para si mesmo, ganhando
coragem. E subiu os degraus da escada. Os símios haviam se tornado
estranhamente irrequietos, como se estivessem pressentindo
alguma coisa. Finalmente, Afra alcançou a comporta, e olhou para
dentro.
"Escuro demais! Não vai dar pra enxergar daqui de fora." ... resmungou,
intimamente. Mas deu para notar que havia mais
controles piscando, no interior da câmara, e que o compartimento
era pouco maior do que a boleia de um caminhão. "Vai nessa, Afra.
Já chegou até aqui, agora segue em frente!".
Afra deslizou para dentro da câmara. Uma vez ali dentro, aguardou
alguns instantes, receoso de que algum alarme tivesse sido
disparado. Mas não houve nenhuma alteração nas luzes que via se
alternando, na abóbada, nem escutou nenhuma movimentação
extraordinária, do lado de fora. Os olhos do garoto começavam a se
acostumar com a escuridão, a ponto de ele poder, agora, distinguir
um volume, largado num dos cantos. A princípio, não deu muita
atenção à coisa, mas, logo a seguir, estranhou... "Desde quando
jogam trouxa de roupa suja, assim, no chão de um lugar como
esse?".
Afra engatinhou até o volume, tocou-o e, para sua surpresa, a
trouxa gemeu:
-Xereta! -sussurrou Afra.
E, quase de pronto, uma minúscula lâmpada se acendeu num dos
painéis, acima dos dois garotos.
Disparar míssil!
Parecia que tudo havia acontecido no mesmo instante... Afra tocou
Xereta que, desacordado, remexeu-se ligeiramente e gemeu... A
pequena lâmpada acendeu-se, quase impercep-tivelmente, a
comporta rangeu atrás de Afra e fechou-se, antes que ele
conseguisse fazer um gesto sequer, e uma sirene lá fora despertou
gritando -um toque altíssimo, agudo, de paralisar os nervos.
-Minha nossa! -exclamou Afra.
O garoto saltou para a comporta, mas o painel metálico encontrava-
se solidamente lacrado. Afra não conseguiu movê-lo um milímetro
sequer. Arfante, olhou em volta. Parecia tudo calmo, novamente,
dentro da câmara. Xereta estava imóvel, nada se mexia, nem havia
nenhum barulho. O garoto não entendia o que tinha acontecido como
o alarme o havia detectado, vencendo a proteção mágica da
Kiara?...
-Talvez eu possa lhe explicar. -ressoou debochada, uma voz, atrás
dele, como se lhe adivinhasse os pensamentos.
Afra saltou de lado, com o susto. Viu então que um monitor se
acendera e ali, brilhante e cruel, aparecia a imagem de Ra-voc...
-Belo truquezinho esse, da Kiara! -admirou-se sinceramente Ravoc.
-Quem sabe, amanhã, se ela sobreviver à explosão do meu míssil,
possa lhe perguntar pessoalmente como fez para tornar um de seus
protegidos invisível. Bem, se ela não quiser me contar, sempre
posso torturá-la um pouco, não é mesmo? Assim, acabo
descobrindo de qualquer maneira e junto o útil ao agradável. Agora,
sobre você... está me escutando com atenção? Está olhando bem
para mim?... Está com medo, não está?
Estava... Mas ao perceber que Ravoc não o via, o medo diminuiu
um pouco. Então, a magia da Kiara ainda funcionava...
-Bem, agora que você está num lugar tão pequeno, meus sensores,
ajustados com toda precisão, podem fazer uma varredura,
eliminando o que for de fato espaço vazio e... Entenda, a magia da
Kiara pôde disfarçar os seus movimentos, a sua imagem... Mas você
tocou em seu amigo, ele se remexeu, os sensores detectaram o
movimento dele e... Ora, ora, foi o bastante para eu saber que
alguém havia invadido a câmara de força do meu míssil. Mas você
juro que pretendia entrar na minha caverna e sair a salvo, como se
qualquer um pudesse vir dar um passeio, por aqui?
-Eu quase consegui! -respondeu Afra, atrevido.
-É o que você acha, verdade mesmo? Mas desde aquela sua
brincadeirinha com uma pedra, para distrair meus escravos, eu já
sabia que algo estava acontecendo. Só faltava... Pronto! Ah, sim, está
aparecendo um vulto quase transparente na tela... Mas, é você, não
é mesmo? O fedelho que chamam de Afra! Que sorte... Meu palpite
estava certo! Aqueles estúpidos da Terra Encantada mandaram o
guardião de outras das pedras mágicas, para mim! Um amigo veio
salvar o outro... que comovente! Tão generoso! Tão... humano! Mas
você é justamente o que eu estava precisando. Não me diga que
achava mesmo que ia conseguir tirar um prisioneiro de mim,
aprendiz de herói? Bem, chega de brincadeiras. Vamos ver se a sua
pedra responde tão bem quanto a do seu amigo.
Nas telas de cristal líquido, começaram a aparecer linhas
ondulantes, elipses e seqüências luminosas em várias formas,
mostrando que todos os equipamentos da câmara de força do míssil
haviam sido ativados.
Fagulhas amareladas se desprenderam da pedra, na pulseira de
Afra. E também do colar de Xereta, ainda desacordado -fagulhas
num estranho tom de vermelho. Afra quase entrou em pânico. Não
apenas aquele não era o brilho normal da sua pedra -a luz pura que
continha a magia ancestral da Iê-iê-otá -como também algo mais
fora do comum ainda estava acontecendo. As fagulhas emitidas por
sua pedra e pela pedra de Xereta estavam sendo sugadas por uma
superfície absolutamente negra e lisa, num dos consoles embutidos,
na parede...
-Muito bem! -exclamou Ravoc, com satisfação. -Sabe, fedelho...
deu um bocado de trabalho construir esses acumuladores de
energia. E eu sabia que, numa dessas entradas e saídas de você e
desse seu amigo infecto, no reino da Kiara, eu iria acabar
conseguindo botar as mãos em vocês... Meus acumuladores podem
sugar qualquer fonte de energia, perto deles. E, caso você ainda não
saiba, o que você e seus amigos idiotas chamam de magia nada
mais é do que energia concentrada... Uma energia que hoje vai
servir a Ravoc.
-Não vai, não! -berrou Afra, tentando esconder a pedra, no peito. Me
deixa, seu monstro com coração de parafuso!
Na tela, o ódio de Ravoc cresceu a tal ponto, que seu crânio
explodiu em chamas.
-Você logo vai perder a vontade de me insultar, pirralho. Ainda
não sabe a outra parte dos meus planos.
-Eu sei é que você vai se dar mal de novo! Tá bem, seu míssil vai
estar carregado de energia, e daí? É diferente da magia da pedra, de
verdade. É outra coisa! Quem disse que vai dar para passar pelas
defesas da Terra Encantada?
-Mas, ora, que esperto... Imagine! -, debochou Ravoc... -Eu não
havia pensado nisso!
Afra se animou...
-Isso mesmo! No que esse míssil bater no arco-íris, explode, e
acabou-se o seu plano!
-Não me diga... explode mesmo? Meu míssil?
-Claro que sim! -berrou Afra, desafiante.
-Com vocês dentro...?
Afra engasgou. Mas não teve tempo de replicar. No instante
seguinte, um jato de luz arroxeada atingiu-o em cheio, fazendo o
garoto gemer de dor. A luz penetrava nele pela pele, causando uma
enorme ardência. Afra ainda tentou reagir... não contra a dor, mas
contra a sensação de que sua consciência estava sendo
apagada. Inútil. Em segundos, caía desacordado, junto a Xereta. No
terraço rochoso, a voz de Ravoc soava nos alto-falantes:
-Evacuar plataforma de lançamento! Evacuar! Evacuar!
O solo de pedra começou a tremer, levando os símios à completa
histeria. Eles lançaram-se pela passagem que conduzia de volta ao
salão central, passando por cima uns dos outros. Mas toda a caverna
estremecia, ao ronco dos motores que transportariam a carga
explosiva.
-Disparar Míssil! -berrou Ravoc, quase em êxtase. E apertou o
botão detonador.
Com um ronco ensurdecedor e muita fumaça, o projétil correu pelos
trilhos de lançamento e arremeteu-se no ar, riscando a noite com um
rastro de fogo. Na velocidade em que ia, em mais ou menos cinco
minutos atingiria a Terra Encantada.
Passageiros da destruição
Quase no mesmo instante em que o míssil ganhou os céus, uma
vibração do manto d'água alertou a Kiara. Junto dela estavam Yetê,
Tunhã e Jágua, em nervosa expectativa, aguardando notícias dos
garotos. A deusa da Terra Encantada entoou o canto que fez o
manto se abrir. Tunhã foi o primeiro a reagir à cena que surgiu:
-Aquele garoto... Eu pedi que não entrasse na Caverna do Mal. É
muito difícil surpreender Ravoc em seu próprio antro. Mas
também... meu conselho ia fazer pouca diferença. Agora, temos um
triste dilema para enfrentar...
Yetê adivinhou do que Tunhã estava falando. Mas não quis aceitar...
-Você vai salvar meus amigos, não vai, Kiara?
-Yetê... -disse Jágua meigamente, aproximando-se, com seu pêlo
macio, da indiazinha. Mas a jaguatirica sem medo não teve coragem
para prosseguir.
A Kiara meditava... E sabia que tinha pouco tempo para decidir o
que deveria fazer. Yetê voltou-se em desespero para Tunhã. O micoleão
suspirou profundamente, antes de falar...
-Se a Kiara mantiver nossas defesas, o míssil explode, matando os
garotos. Se ela não fizer isso, é o fim da Terra Encantada...
-De uma maneira ou de outra -completou Jágua, com tristeza, -... o
míssil explodiria e os garotos estariam perdidos. O plano de Ravoc
é... cruel, mas muito eficiente. Mas, Kiara... -apelou Jágua... -,
também os humanos dizem às vezes, ao dizimar as florestas e os
animais, que fazem isso para sobreviver, e isso parece que os
desculpa por matar... Eu vim para a Terra Encantada porque não
restava lugar para mim, num mundo assim. Não vim para cá para
matar, para não morrer. Eu... não quero viver, se para isso tiver que
deixar meus amigos morrerem!
-Nobre Jágua! -assentiu a Kiara. -Nobre e valente amiga...
-Temos pouco tempo, Kiara. — alertou Tunhã. — Precisamos agir
agora!
-Se pelo menos aqueles dois atrapalhados acordassem! -ralhou
Yetê, de puro nervoso. Mas arrependeu-se logo a seguir: —
Coitados... sabe-se lá o que o Ravoc fez com eles.
-Você descobriu a saída, Yetê! -exclamou a Kiara, resplandecente.
-Eu...?
-Sim... é o que temos que fazer... Temos que fazer Afra e Xereta
despertarem! Venha aqui junto de mim, Yetê! -chamou a Kiara.
Yetê achegou-se à Kiara, que a abraçou. A indiazinha sentiu-se tão
protegida, tão relaxada, que foi como se sua mente começasse a
flutuar para fora do corpo...
-Coloque Afra e Xereta em seus pensamentos, Yetê. -sussurrou a
Kiara. -Isso... dentro de você, com todo o carinho que você sente
por eles... Isso, assim... Carinho, amizade... E a união muito especial
que vocês três possuem... as pedras mágicas... Deixe a luz das
pedras guiar você, Yetê... deixe a luz da sua pedra se reunir à de
Afra e à de Xereta... deixe...
Dentro da câmara de força do míssil, a pequena lâmpada que havia
denunciado a presença de Afra deu uma piscadela. Uma só, depois
apagou-se... A seguir disparou a piscar loucamente, depois parou
de novo, hesitante. Em seus monitores, Ravoc começou a se irritar,
sem entender o que os sensores estavam captando. O equipamento
agia de forma tão estranha, que Ravoc, por instantes, ficou na
dúvida se estavam, de fato, detectando alguma coisa, até que viu a
imagem de Yetê surgir dentro da câmara.
-Mas o que é isso? -vociferou Ravoc, acionando os raios que
haviam derrubado Afra.
Yetê também sentiu-se confusa, a princípio. De repente, a voz da
Kiara havia ficado distante, a indiazinha abriu os olhos, e viu-se
dentro da câmara -com Afra e Xereta caídos no chão. "Depressa,
Yetê!", escutou, como se murmurassem ao seu ouvido.
-Kiara, onde está você?
"No Castelo. Mas não se preocupe com isso agora. Por favor, Yetê.
Temos muito pouco tempo. Desperte os garotos."
As diversas células incrustadas na abóbada da câmara encheram o
ambiente de raios atordoantes, disparando até descarregarem suas
baterias.
-Por que ela não cai? -berrava Ravoc. -O que está acontecendo?
Yetê atravessou os raios, sem sequer dar-se conta, e agachou-se
junto aos garotos. Mas, quando tentou sacudi-los, teve uma
surpresa...
-Kiara... minha mão atravessou o Xereta! Eu virei um fantasma.
"Mais ou menos! -e a Kiara não conseguiu conter um sorriso. -Mas
não se preocupe. Você está perfeitamente bem. Só não pode tocálos."
-E como vou acordar esses dois, sem dar umas sacudidas neles?
Eles sempre tiveram sono de pedra!
"Eles não estão dormindo, Yetê. Chame por eles... Do fundo do seu
coração, por favor. Chame por eles! E depressa!"
"Afra! Xereta!" -Yetê concentrou seus pensamentos nos dois, como
se fosse capaz de entrar nos sonhos que estivessem tendo. "Afra!
Xereta! Por favor... A Terra Encantada corre perigo. Todos nós
vamos desaparecer, se vocês não despertarem. Por favor..."
Na Caverna do Mal, debruçado sobre seus controles, Ravoc já havia
entendido toda a situação. Mesmo assim, estava animado:
-Faltam apenas dois minutos para meu míssil atingir o alvo! Já
posso me considerar o novo senhor da Terra Encantada... quer
dizer... do que sobrar dela! -e já ia soltando uma gargalhada em
comemoração... Quando viu os dois garotos abrirem os olhos
No mesmo instante, a imagem de Yetê desaparecia da câmara. Mas
seu lamento, implorando a Afra e Xereta que salvassem a Terra
Encantada, ainda ressoava na mente dos garotos. E as cenas que
afligiam os pensamentos da indiazinha ficaram gravadas na mente
deles: o míssil, a explosão, o fim de tudo... Por alguns segundos,
vacilaram. Afra foi o primeiro a reagir...
-Ravoc está dirigindo o míssil por controle remoto!
-Ali! -apontou Xereta, apontando para um console, depois de uma
rápida espiada em volta.
Xereta puxou a tampa para fora:
-Quais os fios que...?
-Arranca todos! -berrou Xereta.
Foi um festival de curtos-circuitos e de fagulhas dentro da câmara.
No ar, o míssil diminuiu a velocidade e começou a corcovear.
-Seus malditos! -urrava Ravoc, incapaz agora de controlar o
projétil. Seu rosto inflamado de cólera surgiu num dos monitores da
câmara. -Vocês vão morrer, desgraçados. E não vão conseguir
desviar o míssil. Ele vai cair na Terra Encantada, e vocês junto com
ele!
-Tchau, Ravoc! -falou Xereta, mandando um beijinho, antes de dar
um murro no monitor, que fez a imagem sumir.
-Só que ele está com a razão, xará.
-Afra... -disse Xereta, agachando-se por debaixo do console. -Já li
muito sobre essas engenhocas, em revistas de aventuras. Elas têm
um controle remoto e outro... Aqui! E só ligar esses fios direto no
painel, amigão, depois a gente dirige que nem joguinho de
computador.
-E mole! -exclamou Afra. -Mas dirige pra onde? Alguém vai
querer um míssil de presente?
-Não tinha pensado nisso... -refletiu Xereta.
"Para a cachoeira! Mandem o míssil para a cachoeira..."
-Yetê! -exclamou Afra assustado. -Onde é que você está? "Depois
eu explico tudo. A Kiara está dizendo para vocês jogarem o míssil
na cachoeira."
-E vai explodir lá? Esse troço aqui vai destruir tudo, em volta.
"Depressa, vocês dois... Ainda tem uma coisa! Antes do míssil
atingir a cachoeira, vocês vão ter que saltar."
-S-saltar? C-como assim? Saltar como? -tremeu o Afra. "Saltar...
saltando, ora!"
-Mas e aí? -quis saber Xereta. Yetê perdeu a paciência. "Será que
dá para os dois espertinhos confiarem na gente uma
vez na vida? Depressa! Essa coisa vai explodir!"
-Sim, senhora! -concordou Xereta, sem muita convicção. -Para a
cachoeira, né?...
Afra e Xereta completaram a ligação dos fios dos direcionadores do
míssil a um teclado do console. Digitando as teclas, assumiram
rapidamente o controle do projétil.
-Legal! -alegrou-se Xereta. -Parece mesmo meu computador.
-Só que agora não vai dar pra brincar. -preocupou-se Afra.
-Deixa comigo... Você, abre a comporta.
Em instantes, Afra descobria a placa metálica que ocultava os
circuitos da comporta. Mais alguns fios arrancados, fagulhas e
curto-circuitos, e o vento gelado da noite tomou conta da câmara.
No ar, o míssil sofreu um sutil desvio, em seu percurso.
-Tá no ponto! -gritou Xereta.
-Então, vamos nessa! -respondeu Afra, se agarrando na moldura
da porta para não ser expelido do projétil.
Os dois garotos espremeram-se um contra o outro, olhando para
fora. A escuridão parecia um abismo sem fundo.
-Não tô enxergando nada... a gente vai mesmo pular? -hesitou
Xereta.
-Tem outro jeito?
-É fácil para aquele pessoal lá no Castelo dizer... pula!
-É um, é dois...
Afra e Xereta mergulharam na noite. O frio e os rodopios da queda
os fez instantaneamente perder a consciência.
Um predador esturricado
No salão do Castelo da Kiara, Yetê gritou, assustada, quando perdeu
Afra e Xereta de vista, engolidos pela escuridão. A seguir, a imagem
do manto d'água mostrou o míssil perdendo altura, até nivelar seu
vôo, acima das árvores, quase em paralelo ao leito do rio. O ronco
do projétil era quase tão alto quanto o da grande cachoeira.
Subitamente, o projétil embicou de novo para baixo... A Kiara abriu
os braços, elevando ainda mais seu canto.
Das pregas coloridas de luz e cor do arco-íris, uma imensa massa de
água se desprendeu.
-O manto d'água...-murmurou Yetê.
O míssil arremeteu-se para dentro do manto d'água, como se uma
força superior a de seus motores o sugasse. Por um instante, o
manto manteve-se suspenso no ar. Aos poucos, como se um trovão
ressoasse num dos extremos mais longínquos da floresta, escutou-se
um rumor...
A Kiara cambaleou, zonza. Jágua pulou para junto dela,
amparando-a como pôde.
-Estou bem, valente amiga... O míssil... acaba de detonar... sem
problemas! As entranhas do manto foram suficientes para conter
sua ira e seu veneno. Eu estou bem... não se preocupem comigo!
-E o Xereta? E o Afra? -apressou-se a perguntar Yetê ...
Longe dali, no Reino Devastado, a Caverna do Mal estremeceu
novamente. Suas paredes e seu chão rochoso sofreram um abalo.
Em seu interior, os símios dispararam a correr de um lado para o
outro, entrechocando-se e soltando guinchos absurdamente
esganiçados, do mais puro pavor. Para além do salão principal, no
terraço de rocha, Ravoc descarregava sua fúria nas ilhas de
controles eletrônicas engastadas nas paredes. Seu bastão lança-
chamas já havia se tornado uma haste rubra, ardente, aquecida a
um ponto nunca visto. E o grande predador continuava urrando
contra o céu e a montanha, disparando labaredas cada vez mais
potentes.
Em dado momento, o bastão fugiu de vez ao controle e começou a
vomitar chamas indiscriminadamente. Ravoc foi atingido nas costas
-uma rajada de fogo que lhe arrancou grunhidos assustadores de
dor.
-Socorro, escravos! Socorro! Venham me tirar daqui!
Os símios estavam aterrorizados demais para compreender que
estavam sendo chamados. O bastão lança-chamas não resistiu ao
aquecimento, explodindo no ar. Línguas de fogo voaram em todas
as direções. Ravoc precisou arrastar-se até a arcada de saída do
terraço e proteger-se no corredor de pedra. Suas vestes haviam sido
consumidas, sua pele... esturricada.
-Mas, um dia... -ainda uivou, arfante eu juro que destruirei... a
Terra Encantada! -e então perdeu os sentidos.
Também desacordados, Afra e Xereta foram trazidos ao salão do
Castelo da Kiara. O manto d'água recebeu-os da escuridão da noite,
amparando-lhes gentilmente a queda. Conduziu-os, en-tão, pelo
labirinto de igarapés, até o interior do castelo da deusa da Terra
Encantada.
-Eles estão bem... -disse Tunhã, examinando-os. -Talvez o medo
da queda tenha sido demais, para que tenham vontade de acordar,
assim, de pronto... Mas, isso, eles não vão confessar, não é mesmo?
Yetê ajoelhou-se junto a eles. Com as mãos, começou a umedecer o
rosto dos dois garotos. Xereta foi o primeiro a abrir os olhos -na
verdade, um olho apenas, muito desconfiado, espiando tudo em
volta...
-Ih, cara! -e Xereta cutucou Afra que, ao seu lado, já se remexia. -A
gente já era. Acordamos no céu e tem um anjo para nos dar as boas-
vindas à vida eterna...
-O... quê? -resmungou Afra, ainda não totalmente desperto. Yetê
ficou corada de vergonha, com a gracinha de Xereta...
-Uau!... -exclamou Xereta, admirado... -Estamos inteiros.
Cem metros de queda livre no escuro e... Puxa, quando a gente
contar isso lá em casa...
-Contar pra quem, xará? ... Quem é que vai acreditar?
-E... -concordou Xereta desolado. Então, deu de cara com a
expressão preocupada de Yetê e foi a vez dele de corar de vergonha.
-Puxa, Yetê... A gente está bem, verdade!... Que confusão, hem? E
acho... que foi tudo minha culpa, né?
-Bem, já que você tocou no assunto... -caçoou Afra...
A Kiara fez um sinal, que Tunhã compreendeu perfeitamente.
Estava na hora de se retirarem. Yetê, Afra e Xereta precisavam se
entender a sós.
-Eu... -balbuciou Xereta, quase sem coragem. -Se você e o Afra
estiverem namorando, tudo bem, juro. Não vou me importar, não.
Dou até força...
-Mas o que é isso, cara!
-Juro! É que... Vocês estão namorando, não estão?... -Xereta estava
morrendo de medo da resposta. E Afra não conseguia mais dizer
nada, de tão sem-graça...
-Chega! -cortou Yetê, abraçando os dois. -Vocês já fizeram muita
besteira por hoje, não foi? Eu... adoro vocês dois! Vocês dois
ouviram?
Afra e Xereta sorriram, reconfortados, apertando ainda mais o
abraço, só para sentirem o calor e o perfume da pele de Yetê. O
igarapé soltou uma risadinha marota, e continuou correndo. O céu
já clareava, lá fora. E, para quem era capaz de escutar seus
murmúrios, a Terra Encantada confessava que, apesar da agitação
da noite, amanhecia ansiosa por abrigar ainda mais aventuras, no
dia que se iniciava.
A Terra Encantada
A partir de agora, e cada vez mais, você vai ficar conhecendo o
mundo mágico da TERRA ENCANTADA, seus cenários e seus
habitantes.
TERRA ENCANTADA foi criada especialmente para ambientar
aventuras e provocar emoções incríveis, um lugar bem parecido
com esse nosso Brasil, com personagens que só aqui, debaixo da
linha do equador, poderiam viver.
Existem duas maneiras de viajar nesta magia: o parque em si, que é
uma experiência física mais radical com seus brinquedos incríveis, e
o mundo ficcional criado especialmente para fazer sua imaginação
decolar.
Estar na TERRA ENCANTADA é reviver o olhar deslumbrado do
europeu quando chegou aqui. A idéia é mostrar o Brasil no
momento mágico do encontro dos povos que compuseram as
nossas características nacionais: o branco, o índio e o negro.
Esse encontro e essa mistura dotaram o nosso país de uma característica
única: a miscigenação. Isso explica algumas das peculiaridades
do povo brasileiro: a musicalidade, a afabilidade, o
misticismo e o dom de criar.
No Parque TERRA ENCANTADA você conhecerá a natureza
deslumbrante do nosso país, um pouco da Africa, a paisagem dos
portos europeus, e irá passear pela história da arquitetura brasileira,
num clima de diversão, emoção e -sobretudo -fascínio.
Bem-vindo! Descubra com a gente esse mundo de encantamento,
magia e diversão: A TERRA ENCANTADA!
Os bastidores
Apresentamos agora um pouco do que há por trás desse mundo
que você acaba de conhecer.
Nossos personagens foram criados com base em inúmeras
pesquisas realizadas com o público jovem e com crianças de
diferentes idades e classes sociais, para descobrir seus desejos e
como sonhavam que o Brasil lhes fosse mostrado.
Além disso, foi feito um longo estudo, que envolveu gente do mais
alto gabarito intelectual: a professora Heloísa Buarque de Hollanda,
responsável pela pesquisa sobre os brancos; o indigenista Edilson
Martins, que cuidou dos índios; e o antropólogo Raul Lodi, que
estudou os negros. Eles nos ajudaram a enxergar com clareza a
imagem que o brasileiro fazia de si próprio, e o que significava para
cada cultura que aqui chegou o conceito de herói e vilão, de certo e
de errado, de bem e de mal. Só depois de todo este trabalho nós nos
sentimos seguros para criar os personagens e toda a dramaturgia
que os faz agir, falar, sonhar, e, enfim, existir.
Daí, uma equipe de artistas ligados a teatro, literatura, desenho,
cinema, vídeo e música se reuniram para transformar nossos
personagens e suas histórias em livros, revistas, filmes, espetáculos
e canções que vão ao mesmo tempo encantar, informar e, acima de
tudo, divertir.
Conheça um pouco dessa turma que vai estar junto de você em suas
viagens pela TERRA ENCANTADA.
TUNHÃ
Tunhã é um mico-leão dourado. Um sábio que já viu tudo na vida.
Um professor bem-humorado, tolerante e muito simpático. Um
líder.
AURORA
Aurora é uma arara-azul, é a mensageira da Terra Encantada.
Fofoqueira e muito faladeira, mas simpaticíssima.
JÁGUA
Jágua é o bicho de maior força de toda a Terra Encantada. É uma
justiceira; fiel aos amigos, mas muito fácil de se irritar.
TATU
O Tatu é quem mais conhece a Terra Encantada por dentro. Detesta
ser o centro das atenções. É tão tímido e, além de tudo, é gago.
Quando fica envergonhado, vira bola.
QUICO
Quico é um boto cor-de-rosa. O mais jovem personagem. Uma
criança feliz, alegre e espontânea. Seduz a todos pela sua alegria,
descontração e irreverência.
SAL
Sal é uma salamandra amazônica muito rara. Por isso se sente muito
importante. É a "perua" da Terra Encantada. Tão exibida que
desenvolveu um sotaque francês.
YETÊ
É uma menina índia que veio de uma tribo miscigenada. Sempre se
destacou pela beleza e pela agilidade quase felina. Recebeu o
talismã da Pedra Azul, o Itaobi.
AFRA
Afra é um mulato extremamente musical, sensível e espiritualizado.
Uma criança muito especial. Recebeu o talismã da Pedra Amarela, o
Itajubá.
XERETA
Xereta é um menino de onze anos, branco, aventureiro e
apaixonado pelas histórias das navegações portuguesas e por ficção
científica. Tem como talismã a Pedra Vermelha, o Itapiranga.
KIARA
Kiara é o poder supremo da Terra Encantada. É uma síntese perfeita
de todas as divindades ligadas à água, das quais guarda todo o
conhecimento. Como as águas, é lindíssima e sensual.
RAVOC
Ravoc é o grande inimigo da Terra Encantada. Ele tem o poder do
fogo. Para mantê-lo, destrói tudo que pode ser fonte de energia.
Passa a vida querendo entrar na Terra Encantada.
JOÃO DO MATO
E o protetor das matas e florestas; um ser meio mato, meio bicho,
meio gente. Gosta de pregar peças nos outros e aparece como uma
moita falante. É o nosso contador de histórias.
Silvana Gontijo
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Os Aventureiros Da Terra Encantada - Luis Antonio Aguiar
Terra Encantada, lugar de grandes aventuras.
Afra e Xereta, garotos da cidade, e Yetê, a indiazinha linda como um rio que canta, ajudam a deusa Kiara a defender seu Reino. De um lado, a magia da natureza. Do outro, o diabólico Ravoc, suas máquinas de guerra e seu exército de escravos. Você vai tomar parte nesta briga. Você vai se tornar um dos aventureiros da Terra Encantada.
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Este e-book representa uma contribuição do grupo Livros Loureiro para aqueles que necessitam de obras digitais,
como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras.

Abraços.
M. Loureiro
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"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos."
(Henry Miller)
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