[Daumload] [Livro/video] É preciso lutar - livro paradidático - Márcia Kupstas

É
PRECISO


LUTAR!


MÁRCIA KUPSTAS


ILUSTRAÇÕES

AVELINO GUEDES

Prêmio Orígenes Lessa - FNLIJ/1988
Altamente recomendável para jovens


É preciso lutar!, de Mareia Kupstas,
aborda dois temas muito próximos: o amor e a ecologia.
Para que ambos sejam preservados é preciso carinho,
atenção, descobertas e conquistas diárias.
Tanto uma árvore como um amor podem contar
histórias seculares de encontros e desencontros.
Uma velha tipuana conseguirá sensibilizar
pessoas muito ocupadas com o seu dia-a-dia?
Criança tem capacidade para mobilizar a opinião
pública? Zizi, com sua timidez, conquistará César,
o loiro de cabelos cacheados?
A união das pessoas será mais forte que
o mesquinho interesse dos políticos?



Para
Roberto dos Santos


Uma hora da tarde de ter-j
ça-feira. Margarida esperava o
marido sair do banheiro, ia pedir
que ele ajudasse a colocar a me-j
sa. Olhou para o relógio, pensou |
consigo mesma que os filhos deviam
estar "estourando", do jeito
que uma garota de 14 e um menino
de 10 anos fazem quando voltam
da escola: livros de um lado, mochila de outro,
blusa amarrada na cintura, a fome selvagem
de quem está em fase de crescimento. Margarida
apagou o fogo do arroz, experimentou o feijão,
aprovou o gosto...

Coisas de todo dia, na casa de Margarida,

o marido Juca, os filhos Zizi e Salviano. Tranqüilidade
e sossego?... Não era bem assim. Margarida
começou a ouvir a discussão, parece que vinda
da rua. Então tirou o avental, jogou na cadeira
e foi até a sala, uma discreta sala do apartamento
onde moravam, no 2.° andar do edifício
Cisne Azul.
Margarida abriu a janela.

— Boa tarde — falou o homem que estava
amarrado à árvore, na altura da janela do apartamento
de Margarida.
— Boa tarde — respondeu uma calma
Margarida. Para arregalar os olhos e gritar para
dentro da casa: — JUCAAAAAAAA!
O marido ouviu, mesmo do banheiro, e
também gritou:

— O QUE ÉÉÉÉÉÉ?

— Tem um homem pendurado na janela!
E o homem, tranqüilamente, cuidando
apenas para não se esfolar no tronco da árvore
ou se esborrachar no chão:

— Não, minha senhora. Não é pendurado
na janela. É pendurado na árvore.
* * *


Minutos antes, se alguém
passasse pela rua Marcelina, presenciaria
um acontecimento absolutamente
normal: um cami-

K9E~j nhão de carroceria aberta ia atra"
palhando o já difícil trânsito da



quela rua. Dois homens estavam
na carroceria, mais dois na cabine
do caminhão.

— É aqui — falou o acompanhante do motorista,
mulato e calvo, apenas com tufos de cabelo
acima das orelhas. — Rua Marcelina, número
156.
— Vai ser difícil estacionar, Betão — respondeu
o motorista, alto e barrigudo, pele avermelhada
de quem está sempre no sol.
— Deixa que eu vou arrumar uma vaga —
disse Betão.

Betão mostrou agilidade enquanto descia
rapidamente da cabine e chamava os dois ajudantes
na carroceria:

— Luís, vai nesse prédio aí. Tenta achar
os donos dos carros. E você, Tadeu, vai naquele

da frente.

Logo os funcionários pediam aos porteiros
dos edifícios que localizassem os donos dos
automóveis estacionados na rua, pois era preciso
estacionar o caminhão exatamente à frente
da tipuana que ficava na calçada da rua Marcelina,
número 156.

Kanassa de Moura morava na única casa
da rua Marcelina, no número 162. Era um sobrado
rosa, velha propriedade que havia herdado
do pai. Se Kanassa estava com 52 anos, o sobrado
tinha mais de 40, mas estava bem conservado.
Kanassa já havia morado em muitos lugares,
mas sua casa era seu quartel-general, o lugar
onde cultivava o jardim e mantinha um estúdio.


Kanassa estava se preparando para almoçar
quando tocaram a campainha.

— Pois não?
— Boa tarde — falou o funcionário de macacão
azul. — Por acaso aquele Monza preto é
seu?
— Monza? Não... — Kanassa
saiu porta afora, olhando para Wat
as manobras do caminhão. — O
que está havendo?
— Nada não. É só a árvore.
Kanassa ainda não havia
entendido:

— Árvore?

— É... A gente tem ordem de cortar a árvore.
Agora Kanassa havia mesmo se interessado
pela conversa. Trancou a porta e levou a
chave, caminhando em direção à sua vizinha, a
árvore.

— Não estou entendendo... — Kanassa andava
depressa, o funcionário quase corria atrás
dele. — Ei! — gritou ele para o motorista. — Que
papo é esse de cortar a árvore?
O motorista acendia um cigarro, com uma
expressão de profundo saco cheio. Baforou uma
nuvem branca, coçou a cabeça e se livrou do
abacaxi:

— Quem manda nisso aí é ele, o Betão. Eu
só dirijo o caminhão.
Kanassa foi direto ao mulato careca, que
apalpava o tronco da tipuana e olhava para os
galhos com jeito de conhecedor de árvores.

— O senhor pode me explicar o que está
acontecendo?
Para encarar Kanassa, Betão teve de
olhar para cima. Kanassa tinha quase 2 metros
de altura. Depois se virou para o Luís, com uma
expressão de quem pergunta: "O que esse cara
quer?

O "esse cara" repetiu a pergunta.

— Amigo, por que o senhor não cuida de
sua vida? — disse Betão.
— E o que é cuidar de minha vida? É me
trancar em casa?
— É não atrapalhar o serviço dos outros.

— Ah, bom. Agora começamos a nos entender.
E qual é o serviço que vocês têm de fazer
por aqui?
— O senhor não tá vendo? Olha pro caminhão!
— Betão apontou as letras azuis, que diziam:
"Prefeitura — urbanização e jardinagem".
— Bom, eu sei ler — falou Kanassa. — E
daí?
Kanassa falava alto. Mais alto do que o encarregado
gostaria que ele falasse, porque algumas
janelas se abriram e o porteiro do edifício
Cisne Azul olhava a cena com muita curiosidade.

— Daí que a ordem é pra derrubar a árvore.
Só isso.
O interfone do apartamen


to de dona Juanita tocou várias|
vezes, até que a empregada atendesse
e chamasse pela patroa.
Juanita reclamou, depois foi


atender com mil cuidados para

não estragar o esmalte fresco das

unhas.

— Sim, sim, eu já vou —
falou Juanita, sentindo-se muito bem consigo
mesma. Foi até a fruteira e pegou, com todos os
mil cuidados, as chaves do carro. Ia saindo
quando o telefone tocou. Era o marido.

— Oi, Greg. Estou com pressa... Tudo
bem? — ouviu alguma coisa que parecia mono

tona, cortou o assunto. — Tá, depois... Eu tenho
de tirar o carro da rua, vieram cortar a árvore...
É. Que bom, não? Liga pro Plínio, agradece...
Tchau. Um beijo.

Gregório ainda mandou o "beijinho, Juju"
com que sempre se despedia da mulher, mas
Juanita estava com pressa. O elevador também
nunca demorou tanto.

Juanita ia assoprando as unhas, era uma
pena. O esmalte ia secar e depois dar o dobro de
trabalho para limpar o excesso em volta das
unhas. Mas, pelo menos, tinha um bom motivo
para manobrar o carro, um Monza preto, presente
de aniversário. Pena que não conseguiram
a segunda vaga na garagem... Mas, com manobristas
daquele tipo, era melhor pagar seguro e
deixar o carro na rua. Só que as malditas flores
sujavam tudo... Agora ia ficar livre da árvore,
também.

O elevador chegou ao 4.° andar. Juanita
entrou e apertou o botão: 3?, 2º, 1.°, térreo. Empurrou
a porta com as palmas das mãos, evitando
tocar as unhas em qualquer lugar. Deu de cara
com o porteiro do edifício e com um funcionário
de uniforme azul.

— É pra tirar o carro. Vocês vão cortar a
árvore, não é?
— Agora eu já nem sei mais, dona... — falou
Tadeu, abaixando os olhos e apontando para
o outro lado da rua, onde estavam o caminhão,
os funcionários, a tipuana. E Kanassa de Moura,

amarrado num galho da árvore, a 5 metros do

chão.

* * *

— Escute, o senhor está
doido? — perguntou Juca, mangas
arregaçadas, apoiado na janela
de seu apartamento. — O que
está fazendo na minha janela?
— Eu não estou na sua janela,
meu senhor. Estou na
nossa arvore.
— Que nossa? — Juca quase gritou.
Margarida estava um pouco atrás dele, como
se usasse o corpo do marido para se proteger
do louco.

Kanassa havia conseguido um bom lugar,
com as pernas abraçando o tronco da tipuana.
Havia passado uma corda de náilon em torno da
cintura, para dificultar sua queda. Estava suado,
mas feliz. Para alguém do seu peso e idade,
continuava bastante ágil: subiu no tronco com
rapidez e decisão, deixando os funcionários de
boca aberta, gritando com ele e conversando entre
si.

— Desce daí, seu moço... — gritou Betão,
erguendo o punho num gesto de ameaça. — Isso
aqui não é brincadeira!
Kanassa respondeu ao funcionário e a
Juca ao mesmo tempo:

— Brincadeira é esse prefeitozinho cortar

a árvore! Quem vocês pensam que são? Esta tipuana
é nossa, é da cidade. — Aí se virou para
Juca, em tom de voz mais baixo: — Querem cortar
a árvore. Comigo aqui em cima fica mais difícil...


Nunca em sua vida Juca se sentiu tão confuso.
Passava a língua nos lábios, a mão no queixo
e não conseguia falar. Margarida se colocou
mais à frente para falar com Kanassa:

— O senhor deve ser louco! Por que não
deixa eles...
— Nós vamos chamar a polícia! — gritou
Betão, sempre apontando o punho para cima,
para Kanassa. — Ouviu? A polícia!
Kanassa gritou para baixo:

— Podem chamar! Que venham me prender!
É o único jeito de me tirarem daqui!
Muita gente estava em volta da árvore, na
calçada. Zizi e Salviano se destacavam, com os
uniformes de escola. Sorriram e acenaram para
os pais, debruçados na janela do apartamento.

— Zizi! Salviano! Venham pra casa, já!
Essas crianças... — berrou Juca para os filhos.
Depois, voltando-se para Kanassa: — Pelo amor
de Deus, homem, isso lá é coisa que se faça? Faz
um... — mexia as mãos, como se os gestos pudessem
ajudar a encontrar as palavras. — Faz um
abaixo-assinado, uma queixa...
Kanassa tinha um sorriso muito tranqüilo
no rosto.


— Até fazer tudo isso a árvore já virou lenha.
O senhor não sabe que isto aqui é Brasil?
Juanita se esqueceu com- «
pletamente das unhas pintadas e
apertava a chave do carro nas "
mãos. Falou tão alto — e tão dej
perto — com Betão que uma gota
de saliva ficou brilhando no nariz
do mulato.

— Que palhaçada é essa?
Por que vocês não cortaram a árvore
?
— E quem a senhora pensa que é pra gritar
comigo? — gritou Betão, louco pra encontrar
alguém em quem desabafar a raiva.
— Eu sou esposa do diretor de uma estatal!
Tenho um monte de amigos na prefeitura,
sou... — ia falar mais uma série de nomes e títulos,
mas preferiu gritar para Kanassa ouvir: — E
quem você pensa que é?
— Uma andorinha! — respondeu Kanassa
lá do alto. — E é melhor a senhora sair de baixo
que eu boto ovo!
— Esse cara está bêbado! — falou a mulher
para as pessoas em volta. — Só pode ser
isso.
— Por que ele tá na árvore? — perguntou
Zizi, cutucando André, o porteiro de seu prédio.
André sorria. Ele havia presenciado todo


o bate-boca, depois tinha até se decepcionado
com a volta de Kanassa para sua casa. Mas voltou
a se divertir com a decisão do senhor grisalho
e um tanto gordo, de retornar para a árvore
com sua corda de náilon, trepando galhos acima
com a rapidez de um moleque de rua. Kanassa
havia ganho um aliado.
— A prefeitura quer cortar a árvore. Aí esse
cara subiu lá em cima pra não deixar eles fazerem
isso.
— Cortar a árvore? — quis saber Zizi. —
Mas por quê?
Salviano já havia se antecipado, e puxava

o funcionário Luís pela manga do uniforme:
— Moço, por que vocês vão cortar a árvore?
A pergunta do garoto chamou a atenção
de outros moradores e xeretas que estavam por
ali. Luís falou baixinho. Um dos xeretas ainda
exigiu o "repete".

— É que são ordens — falou o funcionário,
mais alto.
— Ordens pra cortar a árvore? Mas por
quê? — insistiu o menino.
— Ordens são ordens!
— falou o funcionário
em voz ainda mais alta, afastando-se
dali e indo para perto do chefe.
Betão suava. A careca lustrosa tinha
muitos pontos de suor, enquanto
enfrentava a fúria de dona Juanita, já
com o esmalte vermelho totalmente
borrado.


— Você ouviu isso, Zizi? "Ordens são ordens"...
— imitou o menino. — Eles não sabem
nem o que estão fazendo!
— E, mesmo assim, querem cortar a árvore
— falou o porteiro, sorrindo para Kanassa.
Kanassa continuava conversando com o
pai dos garotos, e Margarida gritava de novo para
seus filhos entrarem no prédio.

•k * *
— Olha aqui, meu senhor...
Como é o seu nome, por favor?
— Jurandir, ou melhor,
Juca.
— Juca, muito prazer. Kanassa.
— Foi uma luta Kanassa se
esticar sobre o tronco para estender
a mão. Juca mal tocou em
seus dedos, talvez com medo do
que o maluco poderia fazer. — O senhor deve estar
achando estranho o que estou fazendo, mas
esta tipuana significa muito para mim. Ela tem
quase a minha idade!
Juca suspirou, interrompendo:

— Olha, seu Nakassa...
— Kanassa. É nome indígena.
— Kanassa, vá lá. Não me interessa o que
essa árvore significa para o senhor. O que eu
acho um absurdo é o senhor se pendurar nela
desse jeito, assustar a minha mulher...
— Oh, desculpe — falou Kanassa, acenan1
T



do para Margarida, que preferia não encará-lo,
mas "caçar" os filhos pela calçada. Mais e mais
gente se aproximava, olhando para eles.

— Senhor, assim não dá. Olha, se o seu negócio
era chamar a atenção, já conseguiu. Agora
por que não desce e...
— Não! — dessa vez, os olhos de Kanassa
tinham uma expressão dura. Definitiva. —
Quem não entende nada é você, Jurandir... ou
Juca. Daqui eu só saio quando a ordem de derrubar
for cancelada. Só assim. Pode fechar sua janela
e vai cuidar da vida, porque daqui eu não
saio.
As últimas palavras vieram calmas e definitivas.


— Ah, isso é um absurdo! — Margarida
puxou o vitrô com tanta força que se ouviu barulho
de vidro estalando. — Vamos chamar a polícia.
— Acho que já fizeram isso, querida... —
Juca não gostava de se envolver em problemas.
E talvez tivesse também uma ponta de simpatia
pelo "louco".

* * *

— Derruba a árvore com ele lá em cima!
Que é que tem? — berrava Juanita, falando com
o cada vez mais suado Betão.
— Mas eu não posso, dona!
— Por que não pode? Por quê? Ele é doi

do, vocês não estão vendo? Não é
mesmo? — Juanita falou e olhou
em volta, vendo se algum dos rostos
confirmavam sua opinião. Só
percebeu risadas ou curiosidade
neutra. A maioria estava ali pra
"ver no que ia dar".

— E pra que cortar a árvore,
afinal de contas? — gritou
Kanassa, lá de cima. — Hem?
Isso sim conseguiu mais efeito. Um gaiato
berrou, fazendo concha com as mãos:

— Isso aí!... Pra que cortar a árvore?
— É mesmo, pra quê? — gritou Zizi.
— É, CORTAR, PRA QUÊ, O QUÊ... — e se
ouviu o zunzum de muitas pessoas falando coisas
parecidas.
— A árvore não está podre... — gritou Kanassa.
— Não está caindo... Não ameaça ninguém...
Pra que cortar?
O zunzum das pessoas ficou mais alto. E
mais vozes confirmavam a solidariedade com
Kanassa.

Betão teve de falar alto também:

— São ordens! São ordens! Eu não sei.
— Mas como vocês cortam uma árvore
sem saber por quê? — Zizi falou diretamente
com o funcionário.
— Não se mete, menina! Você não entende!
Zizi e Salviano estavam ouriçadíssimos
com a confusão. Os irmãos não aceitavam res



postas tortas, e aquela atitude do funcionário —
aceitando fazer uma coisa horrível, como cortar
uma árvore sem saber por quê — era uma das
respostas mais tortas que os dois já tinham ouvido
de um adulto.

— Essa árvore está velha. Tá podre, sim.
Atrapalha. Suja os carros... — Juanita tentava,
com seus gritos, conseguir apoio.
— Não tá não! Mulher chata! — gritou Kanassa,
para Juanita.
Algumas pessoas riram. E algumas também
fizeram coro com ele:

— Velha chata!
— Velha gorda!
— Vai cuidar da tua vida!
— Quem vocês pensam que são? Gentinha!
Baianada! Bando de preto miserável! —
Juanita gritava contra a multidão.
Aí recebeu a vaia:

— UUUUUUUUUUUUU!
E foi debaixo de vaia e gargalhadas que
Juanita voltou ao apartamento, rebolando o
bundão apertado na calça jeans.

* * *

O "uuuuuuuuuu" da vaia
se uniu ao "uuuuuuuuó" do carro
de polícia. Betão limpou o suor
da testa, ficou mais aliviado.
Aquelas pessoas bem que podiam
se voltar contra os funcionários,
e então...


O policial chegou até Betão, afas-j
tando as pessoas, ao mesmo tempo em'
que Margarida alcançava os filhos.

— Zizi! Salviano! Vocês não me
ouviram chamar? — agarrou o braço de
cada filho como para ter certeza de que
eles não iam escapar.
— Ah, mãe. Tá legal! — falou Salviano. —
Deixa a gente ver...

— Não tem nada que ver aqui. Esse cara é
doido. Isso pode ficar perigoso.
— Perigoso é um babaca da prefeitura
cortar a árvore sem saber por quê! — respondeu
Zizi, fazendo careta.
— Não se meta nisso.
Zizi não conseguiu mais ouvir o que a mãe
estava dizendo. O policial usava um megafone e
sua voz abafava outros ruídos.

— O senhor tem um minuto pra descer da
árvore.
— E se eu não descer? Vocês vão atirar?
— gritou Kanassa para o policial.
— A gente vai usar a força — respondeu o
policial, enquanto se ouvia o "uóóóó" de outra
viatura.
Agora, a rua Marcelina, altura do número
156, estava congestionada. De gente e de carros
que não conseguiam passar.

— Só desço daqui se não cortarem a árvore.
— É ordem da prefeitura. O senhor tem
de descer — disse o policial.

jj
— Por que eu tenho de descer? O que eu
estou fazendo de mal? — gritou Kanassa, olhando
com prazer a multidão que havia atraído.
Gente, opinião pública. Pessoas se questionando.
Agindo. Conseguindo se unir, impedir uma
ação. Kanassa nunca tinha sido líder, mas nunca
se sentiu tão absolutamente certo como naquele
instante.
— O senhor é que pediu — falou o policial
e se dirigiu para a árvore. Pediu a um colega que
o ajudasse a subir no tronco.
Nesse momento chegaram duas Kombis:
uma de um jornal e outra de televisão.


— O homem me insultou,
Greg! Aquele bando de imbecis
I me... me xingou! — falava Juani-
L ta ao telefone, apertando o lenço

nos dedos e tentando controlar os
soluços. — E-ele me chamou de
velha cha-chata. E-ele não quer
sair de cima da árvore.

Gregório ia ouvindo a esposa e tamborilava
a caneta na mesa do escritório. Um escritório
luxuoso, com carpete, móveis estofados... Tinha
duas secretárias, um office-boy apenas para sua
seção, verba mensal de milhões de cruzados,
verba de representação que era o dobro do salário
declarado — tudo muito bem pago pelos im



postos dos contribuintes, pelo povo.

— Juju, pode deixar, meu bem. Vou ligar
a-go-ra, já! Para o Plínio. Esse caso tá resolvido,
Juju. Confia em mim, benzinho. Não chore.
— E-eu ainda es-traguei minha unha! —
chorava Juanita. — A u-unha quebrooooou...

— Não fica preocupada com unha, Juju!
Não chora, Juju! Vou ligar agora para o Plínio...
Gregório dos Santos Almeida Cavalcanti
desligou o fone antes que a esposa pudesse se
lastimar mais um pouco. Bem que achava a implicância
da mulher com a árvore um tanto exagerada.
Não estavam até pensando em mudar?
Para um edifício com duas garagens? Mas Juju
gostava do bairro, era perto dos shoppings, da
casa das amigas. Se tinham seguro, bem que o
Monza podia ficar na rua. O único problema
eram as flores que caíam sobre o carro e manchavam
a reluzente pintura negra.

— Lúcia, complete a ligação para o escritório
do Plínio.
* * *

O câmera pediu que as pessoas se afastassem
para colocar o material de tevê no chão. A
repórter sorria para as pessoas, que já a conheciam
pelo vídeo. Ficou séria, porém, quando ouviu
o comentário de uma velha de que ela era
"mais bonita na televisão".


— Bem que agora você
quer ficar, né, mãe?— falou Salviano
para Margarida, interessada
pela agitação que a televisão
havia trazido.
— Psiu, deixa eu ouvir a
moça.
Juca havia descido à rua.
Eram 14h20 e ele já estava atrasado
para o serviço. Só falou "vou
indo" para Margarida e não deu beijo nenhum.
Como se a culpa de não ter almoçado também
fosse da esposa, pela tarde atrapalhada.

Com a chegada da tevê e da imprensa, o
policial não subiu na árvore. Preferiu responder
à jornalista e fazer cara séria para as fotos. Kanassa
acenava alegremente para os fotógrafos.

Finalmente, estava tudo pronto para a
gravação. A moça fez cara séria e falou para a
câmera:

— Hoje à tarde, funcionários da prefeitura
se dirigiram para a rua Marcelina com a ordem
de derrubar esta árvore, esta tipuana, que
vocês estão vendo aqui.
A câmera apontou para o tronco da árvore.
Depois voltou para o rosto da moça.

— Porém um morador da rua, Kanassa de
Moura, subiu na árvore e está impedindo que ela
seja cortada. Como Kanassa se recusa a descer,
vamos conversar com ele a distância.
A moça olhou para cima. A câmera focalizou
o alto.


— Senhor Kanassa, por que não quer descer?
A câmera filmou um rosto falando um
monte de coisas, depois voltou para a repórter.

— Está difícil ouvir o que ele disse, mas
Kanassa falou que só desce quando a prefeitura
voltar atrás em sua ordem e não cortar mais a
árvore. Agora vamos entrevistar o funcionário
da prefeitura, Roberto Mendonça. Senhor Roberto...
A câmera focalizou um mulato que passava
a mão pela cabeça, como se quisesse esconder
a careca da televisão.

* * *

— Gregório, eu sei... É. Recebi minutos
atrás o telefonema do funcionário. 0 maluco subiu
na árvore.
Plínio Fernando da Costa respondia ao telefonema
enquanto assinava papéis que sua secretária
lhe estendia. Era uma moça bonita e
olhava muito sorridente para o chefe. O escritório
era acarpetado, com três mesas amplas, música
ambiente e quadros bonitos pelas paredes.


Havia uma geladeira num canto, serviço
de copa das 8 às 20 horas, verba de
representação de alguns milhões de
cruzados. Plínio, aos 46 anos, era o que
se poderia chamar um homem bem de
vida. Tudo pago — e conseguido — através
de muitos anos de serviço público.


— Eu sei, Gregório. Recebi também um
telefonema da imprensa. Eles vêm aqui... Está
bem.
Plínio terminou de assinar os papéis, a secretária
se afastou. Os olhos de Plínio acompanharam
aquele "se afastar" com muito interesse
numa certa parte da anatomia feminina. "Boa
moça", ele pensou. Boa mesmo. O interfone estava
tocando e ele encerrou a conversa com o
amigo:

— Gregório, se o maluco tá lá hoje enchendo
o saco, não esquenta. Amanhã de manhã
ou de noite eu mando uns funcionários cortarem
a árvore. Esse problema está resolvido. Boa tarde...
Lembranças a Juanita... Tchau.
* * *

Agora não só à frente do número 156 se
ajuntava uma multidão. A rua Marcelina inteira,
nos seus 800 metros, estava tomada pelas pessoas,
nenhum carro conseguiria passar. Kanassa,
do alto da árvore, espichava o pescoço e sorria
por ver o que havia conseguido com sua "molecagem".


"Não, nada de molecagem", pensou Kanassa.
Era o impulso de fazer o que achasse importante.
Alguma coisa muito entranhada nele,
uma necessidade. Desde o dia da caçada, ele
lembrou. E estremeceu. Há 18 anos, se tivesse
feito o que estava fazendo agora... Se tivesse tido
essa coragem... Ah, por que é tão difícil as


pessoas agirem na hora certa, de acordo com
sua consciência?

— Escuta aqui, ô maluco... — gritou Betão
para o alto da árvore. — Recebemos ordens
de voltar... Ninguém vai cortar a árvore.
Para surpresa do mulato, muitas pessoas
aplaudiram e deram vivas. Betão sorriu e ajeitou
a postura. A televisão continuava gravando.

— A gente vai embora... Você ganhou!
De novo, vivas e aplausos. Kanassa começou
lentamente a se desamarrar. Quando seus
pés tocaram a calçada, os aplausos foram mais
intensos.

* * *

REPÓRTER 1 Por que o senhor resolveu tomar
essa atitude?
KANASSA Porque era o jeito mais rápido
de impedir a derrubada da árvore.
REPÓRTER 2 O senhor fez isso para defender
a ecologia?
KANASSA Olha, eu nem pensei na ecologia.
(RISOS.) Eu pensei, na
hora, só em defender a árvore.
É uma tipuana de mais de
40 anos, quando eu me mudei
para cá ela já existia. Isso
nem é uma árvore, é um monumento!
REPÓRTER 1 — O senhor pertence a alguma


KANASSA

REPÓRTER 3

KANASSA


entidade ecológica?


Eu?Nãããão... Sou free lance.
Protetor da natureza sem partido
nem carteirinha.

Senhor Kanassa, o senhor foi
um artista plástico de renome
na década de 60, e de uns anos
para cá suas obras estão pouco
divulgadas. Com seu gesto,
o senhor não está querendo se
promover?

Isso não tem o menor fundamento.
Sua pergunta é de
uma maldade tão grande que
eu tenho vontade de dar um
murro no seu nariz.

A entrevista com Kanassa foi ao ar às
20h30, no grande canal de tevê. A notícia do homem
que se amarrou no galho pra salvar a árvore
chamava a atenção, e mais ainda dos moradores
da rua Marcelina.

Greg abraçava uma Juju de olhos inchados
e unhas sem esmalte. Juanita se recusou a
jantar, dispensou a empregada e, agora, devorava
uma dúzia de bombons, fora o maço de cigarros,
pois acendia um no outro. Gregório rolava o
copo de uísque entre os dedos, atento às respostas
de Kanassa. Mal o locutor anunciou outro
acontecimento, Juanita levantou depressa e des



ligou o aparelho.

— Eu falei que esse homem é louco... que
tinha alguma coisa de safado nele. Você ouviu,
não ouviu? Greg, o canalha só queria promoção.
É um pintorzinho idiota, "artista plástico" —
ela imitou o locutor. — Ah! Olha como mudaram
o nome de um maluco que mistura tinta e é um
filho-da-...
Juanita soltou uns dez palavrões, até que
Gregório se levantasse do sofá e a abraçasse. O
marido falava com ela como se falasse com uma
criança.

— Juju... Eu já falei que o Plínio cuida disso.
Hoje teve muita publicidade... Imprensa é
uma barra, eles começam a fazer perguntas, incomodam...
Deixa com ele. Amanhã ou depois...
— Mas eu fui derrotada!
Juanita fazia gestos teatrais: braços abertos,
rosto para cima, pernas afastadas. Gregório
não pôde deixar de sorrir. A esposa era ótima
pra fazer dramas diante de pequenos problemas.


— Isso não é derrota, Juju.
É como numa guerra: a gente perde
uma batalha, e ganha a guerra.
— Isso lá é guerra, Greg! É
só derrubar uma árvore. Será tão
difícil assim? Daqui a pouco, eu
mesma pego um machado e vou
botar abaixo essa árvore maldita.
Juanita andou até a janela, terminou de
falar isso encarando a própria maldita, que ba



lançava seus galhos embalada pelo suave vento

da noite.

* * *

— Tudo é bom quando termina
bem — falou Juca, repetindo
o lugar-comum e também a sobremesa,
diante do aparelho de
tevê.
— Não gostei dessa última
pergunta do jornalista — falou
Zizi. Ela estava espichada no tapete,
o cabelo comprido dividido
ao meio, em duas marias-chiquinhas.


A mãe vinha chegando com uma xícara de
café.

— E quem te garante, Zizi, que o tal Kanassa
não queria apenas promoção?
— É — completou o pai —, o cara é artista,
estava aí sendo pouco comentado, e vai ver...
— Pai, e por que uma árvore? — falou Salviano.
O garoto concordava com a irmã, pelo menos
nesse assunto. — Ele não podia, sei lá... pintar
alguma coisa na rua, se era pra chamar a
atenção?
— E tem mais uma coisa! — Zizi estava resolvida
a ser a "detetive" daquele caso, unindo

as evidências com a competência de
uma profissional. — Como é que ele podia
adivinhar que ia aparecer gente de
televisão? Jornalista?

— É mesmo! — completou Salviano.
— Como, hem?
— É... Parece que o tal pintor
conquistou mesmo vocês — falou o pai.
Juca sorriu para os filhos. Eram duas
crianças bonitas e saudáveis aqueles seus pirralhos.
Elisa — ou Zizi — era alta, estava virando
moça depressa. Salviano tinha também a mesma
cor dos cabelos da irmã, um castanho-claro
igual aos cabelos de Margarida. Nenhum dos
dois havia puxado o azul dos olhos de Juca, ambos
tinham olhos castanhos e cílios longos, escuros.
"Olhos inteligentes", como dizia tia Anastácia.


— Vocês podem achar o que ele fez uma
grande coisa, mas pra mim o cara tem mesmo é
um parafuso a menos — completou Margarida,
assoprando a fumaça que saía de sua xícara.
— Onde já se viu, se pendurar em árvore?
— Mas era o único jeito, mãe! Você queria
que ele fizesse o que, que desse uns tapas nos caras
da prefeitura?
Salviano ficou imitando uma briga, com
socos e pontapés. Margarida sorriu:

— Tamanho para isso, pelo menos, ele tinha.
Não sei como a árvore não despencou com
aquele gordo em cima dela.

— Gordo... O Kanassa não é gordo — falou
Zizi.
— Ai, agora ele virou herói mesmo. É barrigudo,
né, Zizi. Ou o super-Kanassa já virou
santo ?
* * *

Não, o super-Kanassa não havia virado
santo. Estava exausto, com o corpo dolorido por
ficar tanto tempo agarrado à árvore. Havia gravado
em videocassete a sua entrevista na tevê. A
ênfase que o câmera havia dado em seu rosto,
quando ele ameaçou o repórter com um murro.
Um murro! Kanassa sorriu, usou o controle remoto
para fazer a fita voltar, de novo se reprisou.
O que ele era? Um homem de 52 anos, grisalho.
Barrigudo, cansado. Ainda não havia descoberto,
dentro de si mesmo, o motivo de defender
a árvore. Talvez nem existisse um motivo mais
nobre, talvez fosse apenas o pavor de que mexessem
em suas memórias, em coisas dele, sua propriedade.
A tipuana não deixava de lhe pertencer,
como um pedaço da infância, quando um
Kanassa ágil brincava nos seus galhos, a rua
Marcelina tinha paralelepípedos e não havia um
único edifício, apenas sobrados. Kanassa podia
fechar os olhos e lembrar do jeito das casas que
existiam em frente à sua: sobrados com varanda,
de janelas largas, com jardim florido... Num
deles moravam os Souza. Lembrou do menino
que brincava com ele, um garoto dois anos mais
novo, saindo do sobrado com a bola, os dois cor



rendo pela rua, havia tão poucos carros naquela
época...
Ao lado do sobrado, a casa de Marina. Kanassa
sorriu, a imagem de Marina era tão nítida.
Kanassa com 15 anos, Marina com 13. Uma menina
de longos cabelos castanhos, divididos em
dois rabos-de-cavalo, caindo sobre as orelhas.
Lembrava do jeito atrevido da menina, um jeito
que incomodava seu machismo juvenil, mas era
profundamente atraente. Marina ficava apoiada
no muro baixo de sua casa e olhava os garotos
brincarem. Havia uma intensidade em seu
olhar, como se desejasse correr com os garotos
pela rua, mas também se sentisse superior a
eles, mais "mulher" do que os moleques chutando
bola ou usando a tipuana como pique ou recolhendo
flores amarelas do chão para fazer a
safadeza: puxar o calção de algum menino e encher
a bunda dele com flores murchas...


Kanassa sorriu.
Lembranças. De um tempo
feliz, de um garoto
que gostava de pintar
mas também gostava de
brincar e correr. Lembrava
daquela sua atração
distante por Marina,
de ver seus olhos perseguindo
os meninos, aqueles
profundos olhos escuros...



Primeiro, Kanassa pensou que era um sonho.
Via, de um jeito diluído pela sombra, o rosto
de uma garota. Uma garota de cabelos longos,
divididos em duas marias-chiquinhas. Uma menina
com olhos escuros e profundos, e a garota
fazia sinais e batia contra o vidro da janela...

Depois, Kanassa sentiu que os braços estavam
no apoio do sofá. Sentiu isso, e veio a pergunta
sobre onde estava, até que lentamente
saísse do sono e se descobrisse sentado em sua
sala, diante do televisor apagado. E se tinha dormido
sentado, e se estava agora desperto, havia
mesmo uma menina batendo no vidro de sua janela.


Sentindo dores pelo corpo, Kanassa andou
até a janela e ergueu a persiana.
A menina era real. E muito apressada.

— Kanassa, eles voltaram!
— O quê?
— É, Kanassa, depressa! Eles voltaram,
os caras da prefeitura... Estão com o caminhão,
vão cortar a árvore!
No meio do sono, as palavras "árvore",
"prefeitura", "caminhão" pareceram flutuar
acima dos outros sons. Foi o bastante para que o
homem despertasse de vez.

— Como você soube disso, menina
? Quem é você ?
— Eu sou Zizi, moro no prédio ao
lado... Mas vamos logo, senão eles derrubam
a árvore!
— Como você entrou aqui?

I I
Zizi estava irritada com
tanta pergunta. Diacho, queria
saber tudo? Havia levantado pra
fazer xixi, ouviu barulho na rua, f?
foi olhar pela janela. Aí viu o ca-F
minhão. Não quis acordar os pais

— eles não iam ajudar, ela tinha í
certeza — e foi até a rua, procu-1
rar pelo Kanassa.
— Eu toquei a campainha, mas acho que
você não ouviu.
Kanassa já havia trocado o pijama pelo
jeans e pela camisa, amarrava o tênis.

— Eu desliguei a campainha... Os jornalistas
estavam me enchendo. Mas como você entrou?
Zizi sorriu. Um bonito sorriso de garota:

— Não é só você que é bom pra pular muro
ou subir em árvore.
E lá estava Kanassa, às 3h da manhã, de
novo amarrado no galho da árvore. Dessa vez, as
coisas se resolveram de um jeito mais tranqüilo.
Kanassa chegou, pediu licença, se apresentou
como o "maluco da árvore". Dos funcionários
do outro dia, estava apenas Betão. Os outros tentaram
protestar e gritar e ameaçar, mas o mulato
sabia muito bem no que ia dar aquela briga.
Deram de ombros e foram embora, sem maiores
problemas. Mas, para garantir, Kanassa deu um


tempo na árvore.

Zizi não havia acordado ninguém. Havia
aberto a janela da sala e conversava com Kanassa,
que permanecia no galho da tipuana.

— O repórter perguntou se você fazia isso
pra se promover, e você ficou bravo com ele.
— É, foi bobagem. Não devia ter ficado
zangado. — Kanassa tentava arrumar uma pose
melhor, as costas doíam.
— Quer uma almofada?
— Seria bom.
Zizi pegou a almofada que sua mãe havia
bordado dois anos antes. Se sujasse, era bronca
na certa. Mas, naquele momento, a garota não se
preocupou com isso.

— Obrigado. — Kanassa alcançou a almofada,
ajeitou-a em suas costas. — Hum, assim
melhorou.
— Eu não acredito que você fez isso pra
promoção.
— É? E por que não?
— Não tem ninguém agora. E você continua
na árvore.
Kanassa riu.

— Tem você. Já é uma grande companhia.
Zizi sorriu. Estava apoiada na janela, de
joelhos sobre um pufe. Usava os braços como almofada
e encarava Kanassa como se ele fosse
mesmo um ser especial.

— Por que você fez isso, Kanassa?
Silêncio.

— Não sei. Não é estranho
eu dizer isso? Mas eu não sei. Talvez
porque a burrice humana é
uma coisa que me irrite muito.
Talvez eu esteja numa idade em
que a gente se obriga a repensar
muitas coisas. E esta tipuana...
Ela sempre esteve aqui, perto de
casa. Já faz parte da minha vida,
não acha?
Zizi mordeu o lábio, ficou em silêncio.

— Eu não acho que seja só isso, Kanassa.
Acho que é porque você ama a natureza, que
você...
— Ah, Zizi. Você é muito romântica!
A garota ficou vermelha. "Romântica" podia
parecer criancice.

— Escute, Zizi. Não quero parecer melhor
do que eu sou. Eu não planejei nada... Ou você
pensa que eu virei assim... um "herói"? — ele falou,
exagerando a palavra "herói". — Não sou
nenhum santo. Aliás, essa foi a primeira vez que
eu fiz alguma coisa pra defender a natureza. E já
deixei acontecerem coisas bem piores...
Zizi quis perguntar que coisa "pior" poderia
ser aquela. Mas preferiu deixar o próprio Kanassa
resolver se ia contar ou não. Ele ficou em
silêncio. O barulho distante de sirene chegou
aos seus ouvidos.

— Teve um negócio que sempre me incomodou...
Foi logo no começo da minha carreira.
Eu já era rico, dinheiro da família, mas queria

muito provar que era um grande pintor,
aparecer nos jornais, abafar. — Kanassa
olhava para o céu, depois virou-se para
Zizi. — Não sei se você entende o que
eu estou falando. Você é tão novinha.

— Tenho 14 anos. Eu sei sim, Kanassa. O
que é que foi?
Kanassa se ajeitou melhor no tronco. A almofada
quase caiu.

— Bem, eu tinha um grande cliente. Um
homem muito poderoso, dono de jornais, lojas...
Milionário. O tipo do cara que fazia um artista
virar um gênio ou podia acabar com uma carreira.
Eu detestava o cara, mas ficava bajulando
ele, porque, afinal de contas, era a minha chance
de ficar famoso. É gozado isso, mas o cara gostava
de mim. Me convidava pra jantar, elogiava
minhas pinturas...
Kanassa ficou quieto. Zizi o encarava com
seus grandes olhos escuros, muito interessada.

— Uma vez, ele me convidou pra um fim
de semana na fazenda dele, e eu fui. Tinha mais
uns amigos dele lá. E aí eu não sei bem quem foi,
mas sugeriram uma caçada. Eu nunca participei
de caçadas, sempre achei nojenta a idéia de matar
um animal, mas não falei nada. Fui junto
com eles.
— E o que aconteceu? — Zizi se ergueu
mais na janela.
Kanassa continuou olhando para cima,
como se estivesse falando não com uma garota
de 14 anos, mas consigo próprio.


— Nós andamos um bom tempo, até um
lugar descampado, uma espécie de lagoa no
meio da floresta. Era muito bonito. Uma coisa
de paraíso, Zizi. Aquele verde muito claro, a madrugada...
O zumbido de abelhas, as cores que a
natureza sabe colocar melhor que qualquer artista.
E havia uma corça, um veadinho, bebendo
água. Foi um massacre. Eles apontaram as armas
contra o bicho de um jeito... Dispararam
tanto que só restou carne arrebentada, nem a cabeça
do bicho ficou inteira.
— Nossa... — foi só isso que uma assustada
Zizi conseguiu dizer.
— E eu não falei nada. Entende? Eu achei
a caçada uma coisa... monstruosa, mas não discuti.
Agüentei aqueles escrotos sorridentes, a
fanfarronice daqueles idiotas, até ri com eles...
E por quê? Porque eu dependia deles? Porque
eles é que faziam meus quadros serem caros, famosos?
Eles é que me faziam conhecido?
— Você não falou nada, nada?
— Não, Zizi. Não falei nada. Isso foi há
muito tempo, e até hoje... — Kanassa
fez um gesto com as mãos,
como se existisse um objeto muito
pesado sobre elas. — Mas em
muitos dos meus quadros eu coloquei
um pouco desse horror. É
estranho, mas tenho várias telas
sobre caçadas, com bichos estourados.
Vai ver ficou inconsciente
— ele sorriu para a garota.

— Eu queria ver um quadro seu.
— Claro, qualquer hora dessas. Agora é
melhor você ir dormir.
— Está legal a gente conversar.
— Daqui a pouco amanhece. Hoje eles não
voltam mais. Eu vou descer da árvore, e você vai
dormir. Está bem?
Zizi fez uma careta. Mas acabou obedecendo
a Kanassa. Na hora de dormir é que se
lembrou que devia ter perguntado por que ele tinha
um nome tão estranho.

* * *

Quando o despertador tocou, 15 pras 7, Zizi
achou que seria impossível levantar. Margarida
precisou chamar a filha umas dez vezes, coisa
que nunca havia acontecido.

Salviano brincava com a maionese, tentando
escrever suas iniciais no pão. Zizi bocejou
muitas vezes, mesmo tentando prender o ar, para
evitar que a mãe desconfiasse de tanto sono
fora de hora. Tanto ela como o irmão já estavam
de uniforme, o azul-marinho de calça e saia e camisas
brancas. Zizi brincava com um dos lados
da maria-chiquinha, o cabelo sobre as orelhas.
Enroscava e desenroscava o cabelo no dedo,
pensativa. O pai terminava de se aprontar e Margarida
trazia coisas da geladeira para a mesa.

— Salviano... — Zizi falou para o irmão,
em voz baixa e atenta para que os pais não ouvissem.
— Tenho uma coisa pra te contar.

— É? O que é?
— Fala baixo...
Aí o irmão murmurou um "o que é" tão
careteiro que era "dar bandeira" com tanto mistério.


— Disfarça melhor, pô!... Ontem quiseram
cortar a árvore...
— Nãããão! E cortaram? — Salviano ia
correr até a janela, Zizi segurou no seu braço.
— Não, porque o Kanassa...
— Eeeeeh, lá vem esse Kanassa de novo!
— O pai havia chegado por trás deles, sentou à
mesa. — Não me diz que ele vai se amarrar de
novo na árvore! Virou passarinho agora?
Zizi piscou o olho para o irmão e desconversou.
Teriam tempo pra colocar o plano em
ação. Zizi tinha grandes idéias para aquela manhã
de quarta-feira.

* * *

Na casa de Gregório e Juanita
o dia também começou cedo,
uma raridade. Juanita mal conseguira
dormir e fez questão de
acordar o marido para lhe fazer
companhia.

Maria teve pouco tempo
para colocar a mesa, estranhando
que os patrões já estivessem de
pé. Uma Juanita mal-humorada


conseguiu implicar três vezes com a empregada:
por uma xícara trincada, o leite quente demais e
a ausência de frutas. E estava também implicando
com o marido porque ele se recusava a ligar
para o Plínio.

— Juju... ele nem levantou. É muito cedo.
— Eu vi na revista aquela reportagem...
Ele não chega no serviço antes dos funcionários?
— Juju, até parece que você não conhece
político! Isso foi coisa pra mostrar a jornalistas...
Juanita suspirou, se serviu de mais café
com leite. Maria trouxe as torradas para a mesa,
e ela devorou com prazer.

Gregório pegou o jornal e começou a ler.
Juanita pediu o segundo caderno. Fingiram estar
interessados nas notícias, mas os olhos de
Juanita distraíam-se sempre, indo até o relógio.
Bastou o cuco cantar oito vezes e ela interrompeu
a leitura do marido:

— Agora já são oito horas. Pode ligar.
* 4c 4c
Juca já havia chegado ao portão da escola.
Como estava difícil estacionar bem em frente, beijou
os filhos e soltou-os na esquina mais acima.

Salviano ia correr para o portão, quando

Zizi o segurou pelo braço, falando em voz baixa:

— Fica aqui. Finge que está me esperando.
Zizi começou a amarrar o tênis. E nunca
foi tão demorado amarrar o tênis.


Quando o carro do pai virou
a esquina e ele não poderia
mais vê-los, a garota agarrou o
braço do irmão e correram em direção
oposta à escola. Só pararam
na pracinha, a três quadras


dali.
— O que foi, Zizi? Pra que
tanto mistério?


— Tem uma coisa... muito importante...
— Zizi estava sem fôlego, mas logo se recuperou
enquanto contava ao irmão sobre a aventura noturna.
Salviano escutou a irmã com profundo interesse
— e irritação: por que a chata não o havia
acordado? Por que não havia dado a ele a
chance de também participar da aventura?

Zizi resolveu aquilo que poderia ser uma
discussão de maneira definitiva:

— Num dava tempo, pô! Por muito pouco,
a árvore já era.
— Zizi... e se eles estiverem lá agora? E se
os caras já voltaram e a árvore...
— Agora você descobriu! Hoje nós não podemos
ir pra escola... porque se a gente não ajudar
o Kanassa, ele sozinho não vai dar conta...
Os caras da prefeitura vão insistir e aparecer e...
— Eu mato eles! — gritou o garoto, dando
um murro no ar. — Eu cato eles, eu chuto eles,
eu...
— Você não vai fazer nada disso, Salviano.
Eu tenho uma idéia muito melhor do que

essa. Primeiro, temos de telefonar.

— Pra quem?
— Quem estuda de tarde e mora perto da
gente?
— Hum...
— Tem a Débora, e ela tem três irmãos. E
todo mundo estuda de tarde. E a mãe dela trabalha
fora, e eles só têm a empregada na casa... Tá
sacando?
— Hummmm... — o garoto mordeu o lábio
superior, confirmando com um gesto de cabeça
que havia entendido.
Zizi sabia de cor o número do telefone de
Débora. Era só acharem um orelhão.

4c 4c 4c

— Gregório? Ah, sim... Bom dia.
A voz rouca de Plínio mostrava claramente
que ainda estava na cama. Gregório se sentiu
um idiota por acordar o amigo tão cedo e por
um motivo... Bem, eram as manias de Juanita.

— Desculpe te acordar, Plínio. Mas sabe...
Sim, é sobre a árvore.
Plínio olhava irritado para o despertador,
marcado para tocar só dali a uma hora. Se não
fosse o Gregório, talvez soltasse um palavrão e
desligasse. Mas já que estava acordado mesmo...

— Mandei cortar ontem. Vocês não viram?
— Plínio... Acho que aconteceu alguma
coisa... A árvore ainda está lá.
— Mas isso não é possível! Eu pessoal

mente dei ordem para os funcionários. Desloquei
um caminhão, dei ordem para quatro pessoas
fazerem hora extra. Eles deviam ter trabalhado
de madrugada.

— Nessa madrugada não foi. A árvore está
do jeito de antes.
Aí Plínio acordou definitivamente. Sentou
na cama e calçou os chinelos.

— Mas EU DEI ORDEM! O que é que tem
essa árvore? É de ferro, éj^quê? Se estou falando...
Tá, tá bom. Vou cuidar disso agora mesmo.
Plínio desligou o telefone, e ainda de pijama
e cabelo desgrenhado ligou para sua secretária.
Ela já devia ter chegado à repartição. Não,
ainda não. Tentou chamar outro funcionário.
Também não estava. E o assistente de sua secretária?
Ah! Esse já havia chegado, assinado o
ponto e saído para tomar café.

— E quem atendeu o telefone? — gritou
Plínio.
— Eu.
— E quem é você? — gritou Plínio outra
vez, mas nem precisou da resposta para reconhecer
o sotaque.
— É eu, seu dotô. A
Tatá, a faxineira.
Plínio bateu o telefone
com raiva, uma pancada
que deve ter doído nas orelhas
da faxineira por muitos
minutos.

I

* * * I



Zizi e seu irmão logo estavam na casa de
Débora, que era vizinha deles na rua Marcelina.
Morava no edifício Mota Neves. Débora era um
ano mais velha que Zizi, baixinha, com cabelos
castanhos, curtos, e aparelho nos dentes. Aliás,
aquela parecia ser a família dos dentuços: os
dois irmãos menores também usavam aparelho.
Só o caçula, com quatro anos, estava dispensado
dos ferrinhos.

— Nossa, mas o que foi de tão sério assim?
— perguntou ela, logo após os três beijinhos
no rosto da amiga.
— Nós nem fomos na escola — falou Salviano.
— É superimportante, só a gente pode fazer
alguma coisa.
Valério, de 13 anos, se interessou pela novidade,
sentou no chão para ouvir. Pedro, de 9
anos, também estava interessado. Só o caçula, o
Ígor, preferiu ver televisão.

— Vocês ficaram sabendo do Kanassa?
— O japonês da quitanda? — perguntou
Pedro.
— Não, o cara que se amarrou na árvore...
— O japonês se amarrou na árvore? — de
novo, o Pedro.
Zizi já estava se irritando com a brincadeira
do garoto.

— Que raio de japonês, não tem japonês
nenhum, o Kanassa de Moura. Ele mora naquele
sobrado, ao lado de nosso prédio... Vocês não viram
na tevê ? Ele se amarrou na tipuana porque
a prefeitura queria derrubar a árvore.

/ ^ / ^
— Aaaaaah, sim — falou Débora. — A gente
viu na tevê, mamãe comentou comigo... só
que a árvore não foi derrubada...
— Não foi por enquanto — interrompeu
Salviano. — E sabem por quê? Porque a Zizi não
deixou.
— Você? — perguntou Valério, que ficou
mais espantado ainda quando a garota contou a
aventura noturna. Parecia muito heroísmo por
parte de "apenas" uma menina.
— Agora, o que a gente não pode é deixar
a prefeitura atacar de surpresa, como já fez —
falava Zizi. — E também não dá pra ficar botando
o Kanassa na árvore a toda hora, poxa!
— Ele qualquer hora despenca de lá e paf!
Adeus Kanassa — gozou o Pedro, mas Zizi não
achou a menor graça.
— O negócio é fazer um mutirão. Que horas
são agora?
Eram 8h45.

— Vamos juntar gente, reunir os amigos.
Quem vocês conhecem que não estuda de manhã?


— Tem o Filipe, tem o Martim,
tem o César...
Quando Valério tocou no
nome do César, Zizi estremeceu.
César tinha 15 anos, era loiro e de
cabelo crespo. Bem mais alto que |/
os outros garotos, já estava um
rapaz. E era bonito. Zizi poucas
vezes tivera a chance de conver




sar com ele, e, nessas poucas vezes, tinha se
achado uma idiota completa, gaguejando e falando
bobagens, com o coração batendo apressado.
Tão depressa como naquele momento em
que Valério ligava para o amigo e ela ficava sabendo
que logo o rapaz estaria lá.

* * *

Foi um liga-liga e o encontro de muitas vozes
sonolentas, até Plínio conseguir que Betão, o
encarregado daquela terrível tarefa "bota-abaixo",
ficasse na linha. Plínio não podia ver o homem,
mas se o visse saberia que sua sensível careca
estava com muitas gotas de suor — essa parecia
sua marca registrada quando ficava nervoso
ou enfrentava problemas.

— Mas doutor... O raio do homem apareceu
de novo... Foi. A gente foi lá de madrugada,
eram 3 horas da manhã... Doutor, nem dormi
esta noite... O homem tá doido mesmo.
Plínio já estava de calça e camisa, só que
ainda sem gravata e paletó. Tomava um cafezinho
e ligava da sala de sua casa. Suas ordens
nunca eram desobedecidas, era um homem há

longos anos acostumado ao poder. Gostava
do poder. E por que agora, por causa
de uma maldita árvore, tudo parecia
voltar-se contra ele?

— Não me interessa se o maluco
voltou lá! Não me interessa. É uma ordem.
Vocês vão lá esta tarde. Ou me

lhor, de tarde acaba trazendo muita gente, e gente
traz jornalistas, e começa tudo de novo. Esta
noite. De madrugada. E nem que o maluco se enforque
na árvore, não me interessa. Nem que vocês
derrubem o cara a bala, mas de hoje essa árvore
não passa. Entendeu?

Betão limpou o suor da testa com a mão,
suspirou tão fundo que o suspiro passou pelo
fone.

— Está certo, doutor. Para que hora eu
convoco o pessoal?
— Convoque pra meia-noite. Assim vocês
começam a trabalhar lá pela 1 hora, ou 2. É melhor
às 2 horas. Pode deixar que a essa hora eu
também vou pedir reforço policial, pra que a ordem
seja cumprida.
* * *

A campainha e o coração de Zizi se agitaram
no mesmo momento. Ela sabia quem era:
César.

E era ele mesmo, mas não estava sozinho:
no elevador, havia topado com os outros colegas,
Filipe e Martim. Filipe era loiro, de pele
muito branca. Odiava que seus colegas o chamassem
de "bicho de goiaba", e sua maior vingança
era encontrar os apelidos mais estranhos
para os outros — e normalmente os apelidos que
ele punha "pegavam", para desespero do "apelidado".
Martim era bem moreno, de cabelos lisos
e pretíssimos. Tinha um jeito de índio ou de me



xicano, mas na verdade sua família vinha de
uma mistura danada, existia até uma avó chinesa.
E César... era a paixão.

Valério logo colocou os amigos por dentro
das novidades.

— Você fez tudo isso? — falou César, encarando
Zizi. Ele era tão alto que a garota se
achou uma menininha, como se diante dele retornasse
aos 9, 10 anos. — Que coragem! Como é
seu nome, mesmo?
— Elisa — falou Valério.
— Zizi — falou Zizi.
— Babá de madeira — falou Filipe, mas
ninguém riu. Aquele foi um dos raros apelidos
que não "pegou".
— Eu tinha visto na tevê — continuou César.
— Mas nem lembrei que a rua Marcelina é
perto de casa...
— Onde você mora? — perguntou Zizi,
apenas para puxar assunto. Ela sabia muito bem
onde ele morava: era na rua Inácio, terceira paralela
da Marcelina. Quantas vezes não espichava
o trajeto, só para ver a fachada do edifício...
Só para ver se, "por acaso", não topava com o
rapaz.
César ia responder, mas Martim, muito
ouriçado, interrompeu a conversa:

— A gente veio aqui pra beber ou pra conversar?
— ele gozou com o slogan da propaganda
de cerveja. — Poxa, o que nós temos de fazer?
— Sabe o que eu acho? — disse Zizi, um
pouco mais à vontade por estar à frente de seu

"paquera". — Precisamos conversar com o Kanassa.
Bolar um plano junto com ele.

— Então vamos — disse Pedro.
— Eu também vou! — gritou Ígor, começando
a gostar da bagunça.
Estavam saindo quando tocou o telefone.
Era uma amiga da Débora: conversaram e acertaram
que ela se incorporaria ao plano.

— Bom, então já somos... — Salviano foi
contando — eu, Zizi, Martim, Débora e seus irmãos,
Filipe, essa amiga aí... nove.
Na verdade, foram dez. A amiga de Débora
conchavou mais uma, e toda a garotada se encontrou
à porta do edifício Mota Neves, antes de
seguirem para a casa de Kanassa.

* * *

André era o porteiro da
manhã no edifício Cisne Azul. Ele
não havia acompanhado a aventura
noturna de Kanassa e sua jovem
aliada, mas o colega de trabalho
da noite o informou logo
cedo. Por isso, quando ele viu Zizi
e seu irmão na calçada, correndo
junto com outros garotos, ele


sorriu. Só podia ser alguma coisa relacionada
com a árvore e com o estranho vizinho artista, o
Kanassa.

Foi por isso que levou um susto quando
viu Margarida aparecer à porta do elevador. Salviano
estava bem visível, mesmo se escondendo

si


atrás de um poste...

— Bom dia. A senhora tem um minuto, dona
Margarida? Eu queria mostrar aqui uma nova
circular que o síndico pediu para mostrar...
Olha aqui, na porta do elevador...
— Mas eu já li...
— Ah, sim, mas a senhora reparou... — E
André pegou suavemente no braço da mãe dos
garotos, torcendo para que eles se afastassem
logo. — Aqui na porta do elevador, são novas regras
para o uso do salão de festas, a senhora
sabe...
E o porteiro apontava para um parágrafo
qualquer da informação, enfrentando com um
blablablá apressado as muitas tentativas de
Margarida sair dali.

— Eu já li, André. O que é
que tem? Eu nem uso o salão de
festas!
— Mas veja aqui: é para
não pendurar nada nas janelas, a
senhora sabe, prejudica a fachada
do prédio e...
— André! Eu já li isso!
— E tem também aqui,
olhe, é uma informação sobre...
Margarida saiu do elevador,
achando que o porteiro estava
ficando maluco. Para alegria
de André, nenhum sinal de garotada
na calçada. Ufa!



E toda a garotada na casa do Kanassa.

Ele não acreditou quando tocaram a campainha
e aquele bando invadiu seu quintal. Adolescentes,
crianças, meninos... Zizi ele já conhecia,
mas não os seus amigos.

— Voltaram pra derrubar a árvore? —
perguntou Kanassa, já saindo pra rua.

— Não — falou Zizi. — Ainda não. Mas
acho que eles não vão desistir.
— Nem eu — falou Salviano, estendendo a
mão para Kanassa. — Oi. Sou o irmão da Zizi.
Não sei por que essa tonta não me acordou... Eu
achei um barato o que vocês fizeram ontem.
— Garanto que minhas costas não acharam...
— Kanassa se divertia, olhando de um para
outro. — E você, quem é?
— Débora — respondeu a garota, com seu
sorriso aparelhado. — Estes são meus irmãos:
Valério, Pedro... O baixinho aqui é o Ígor.
Kanassa recebeu outros sorrisos com aparelhos,
tanto de Valério como de Pedro.

— Oi — disse César — estendendo a mão
para Kanassa.
E as duas outras amigas de Débora também
se apresentaram: a Fátima, ou "Fafá de Belém"
— não porque tivesse busto grande, mas
porque já tinha algum busto, com 11 anos, e até
usava sutiã. A outra era a Hebe, com seus imensos
olhos esverdeados e um nariz tão pequeno e
delicado que, se ficasse muito quieta tentando
não respirar, poderia ser confundida com uma
boneca.


Kanassa ficou olhando seus amigos-
mirins, bastante surpreso ao saber que todos
queriam ajudar. Ajudar como?

Estavam na sala do sobrado, sentados pelo
chão e sofá. Ígor era o único que não ficava
quieto, fuçando nos potes, abrindo gavetas, até
receber um tranco de Pedro, pra aprender a se
comportar.

— É divertido ver vocês aqui, eu... Bem,
não esperava que a tipuana acabasse sendo tão
importante para vocês também.
— Eu acho que árvore é importante para
todo mundo — falou César. — Eu li no jornal o
que o senhor fez e...
— Nada de senhor. Me chame de você,
mesmo.
— É — ajudou Zizi. — Ele é o Kanassa.
Zizi lembrou que ainda não sabia por que
ele tinha um nome tão estranho, mas concluiu
que aquele não era o momento adequado para
perguntar uma coisa que não interessava para
salvar a árvore.

César continuou, depois de dar uma piscada
de olho para Zizi, que ficou vermelha.

— Quando li sobre o que você fez, fiquei
muito contente. Quer dizer, eu nem moro aqui,
mas não é um negócio que interesse só pra esta
rua... Não sei, eu acho que tem de ser uma coisa
mais ampla... um papo de ecologia. A cidade tem
tão pouca árvore. Derrubam uma aqui, outra lá,
isso aqui já tem tão pouco verde, então...
— Então fica sem nenhuma plantinha... Aí

não tem fotossíntese, e todo mundo
morre porque o gás carbônico
vem e aaaaaaargh... — falou Pedro,
querendo se mostrar inteligente,
mas exagerando na cena
do sufoco mortal, apertando a
garganta e se jogando no tapete.


Era engraçado, mas não deixaram Pedro
continuar o "sufocamento" por mais tempo.
Martim quis saber de Kanassa como podiam
ajudar.

— Pessoal, eu fico... até comovido com esse
interesse. Quando subi na árvore, ontem,
bem... eu me perguntei se valia a pena, se eu não
era um idiota...
— Isso não! — reclamou Zizi, interrompendo
Kanassa. Outros "nãos" também se ouviram.
— Obrigado pela defesa deste "coroa"
aqui. — Kanassa se levantou, ficou andando por
entre as crianças sentadas no chão e em almofadas.
— O que estou tentando dizer pra vocês é
que me senti assim... sozinho. Eu me perguntava
se valia a pena, ou melhor, de que vale a atitude
de um só cara, pra salvar uma árvore, um bicho...
Mas de noite, quando a Zizi apareceu e a
gente de novo impediu que a árvore fosse cortada,
eu comecei a achar algum sentido, a gente
podia mudar alguma coisa... Mas desse jeito. Como
vocês estão agora, unidos. Todos juntos.
Uma emoção intensa foi tomando conta
de Kanassa, enquanto ele falava. Ele nunca ha



via se interessado muito por crianças, era uma
mistura de sentimentos contraditórios que surgia,
um calor subindo pelo peito. Como se visse

o filho em todos eles, um filho que morava em
outro país, como se pudesse encontrar o filho
Roger no brilho dos olhos daqueles garotos. E
Kanassa começou a falar, a falar depressa, no
meio de um silêncio profundo. A turma estava,
sim, entendendo.
— Olha, eu... Não sei muito bem como
se conversa com gente da idade de vocês. Não
sei nem o que a gente pode fazer pra salvar a árvore,
se é que se consegue isso. (Pedro ia reagir,
mas um "pssssiu" decidido da sua irmã fez o garoto
calar.) Bom, acho que temos de tentar.
— A gente vai conseguir, não vai? — perguntou
Pedro, que teve como resposta um "vamos
conseguir" gritado pelos amigos.
O próprio Plínio fez questão
de discar para a casa do amigo
Gregório, para falar com Juanita.


— Alô?
— Juanita, aqui é o Plínio.
Tudo bem? Quero avisar que de
hoje a árvore não passa. Eles vão
cortar a tipuana de madrugada...
Juanita sorriu de um jeito tão sedutor que
até parecia que o amigo podia vê-la. Ajeitou o ca



belo com a mão e se sentou no sofá.

— Ah, Plínio, eu sabia que podíamos contar
com você. — Juanita estalou os dedos para
Maria, que estava ali perto lustrando os móveis.
Com um gesto, pediu que a empregada alcançasse
o maço de cigarros, um pouco mais longe do
sofá. — Essa maldita árvore vai pro chão, eu sabia
que você ia conseguir. Vai ser a que horas?
De madrugada?
— Por favor, Juanita. Não comente sobre
isso. Você já viu a publicidade que aquele idiota
conseguiu ontem. Isso não é bom para mim.
— Claro. É melhor de madrugada, senão o
doido arma seu show de noite. — Juanita pegou
um cigarro. — Eu não vou falar para ninguém,
fique sossegado.
Desligou o telefone. Estava feliz. Acendeu

o cigarro e depois moveu os braços numa ginástica
improvisada. Andou até a janela. Naquela
hora, a rua Marcelina estava sossegada, com
poucos automóveis. A enorme tipuana alcançava
até o 3.° andar do edifício Cisne Azul. Sua
sombra ia até o outro lado da rua. Mas no dia seguinte
não ia estar mais ali. O tal do Kanassa ia
descobrir que não se pode ir contra o governo.
— Maria, eu vou até o clube. Se alguém ligar,
fala que volto à tardinha. Eu não venho almoçar.
Só prepare o jantar.
Era uma Juanita muito contente consigo
mesma que foi se aprontar para sair.

* * *


Haviam se dividido em grupos. Cada grupo
tinha uma missão e precisava dar conta dela

o mais rápido possível.
Edifício Mota Neves, número 187 da rua
Marcelina. Era o prédio onde Pedro morava; então
não teve dificuldade em entrar. Resolveram,
Pedro e César, começar o trabalho do 1.° ao 6.°
andar.

— Toca campainha daquele lado, eu toco
desse
— falou César para Pedro.
Apartamento 1:

CÉSAR — Minha senhora, bom dia.
Não sei se a senhora acompanhou
ontem pela tevê,
mas a prefeitura quer derrubar
a árvore aí da frente e
nós não estamos querendo
deixar. Isso é um abaixo-assinado
e...

MULHER DO 1 — Deixa eu ver... (Leitura. Sorriso.)
Está bem. Eu gosto de
planta. Me dê a caneta.

Apartamento 4:

PEDRO — Oi. Sua mãe está?
GAROTO DO 4 - Manhêêêê!
MULHER DO 4 — O que você quer?
PEDRO — Blablablá, árvore... Prefeitu


ra... Abaixo-assinado, blablablá...



MULHER DO 4 — Desculpe, garoto, mas eu
não assino nenhum tipo de
abaixo-assinado.

PEDRO — Por quê? A senhora não acha
uma besteira a prefeitura...
MULHER DO 4 — Desculpe, mas só meus problemas
já bastam. Bom dia.

* * *

Padaria Flor do Bairro, esquina da rua
Marcelina com a alameda Santo Onório. Débora
e Fafá conversavam com o dono.

— Ah! Eu vi sim toda a bagunça que aquele
gajo esquisito arrumou, trepando na árvore.
Foi um rebuliço e tanto, ora pois...
— Então, seu José... A gente não pode deixar
que derrubem a árvore.
— Ah, meninas. Pra mim, o gajo é doido...
— Seu José fez um gesto com a mão, rodando-a
na altura da orelha, pra marcar a "doidice". Tinha
um sorriso divertido para o entusiasmo das
garotas.
— O senhor quer que derrubem a árvore?
— perguntou Fafá.
— Não, e por que iria querer? — Seu José
cobrava um maço de cigarros de um homem,
que ficou prestando atenção na conversa.
— Então. O Kanassa fez uma loucura, tá
certo, mas foi um jeito de não deixar que cortassem
a árvore ontem. Hoje, a gente pode conseguir
de outro jeito — falou Débora, passando o

abaixo-assinado para o comerciante, que começou
a ler.

— Posso ver isso? — perguntou o freguês,
pegando a folha da mão do padeiro.
— Eh, meninas... tá bom. Podem deixar
aqui o papel, eu falo com os fregueses.
— Deixa que eu assino. — O freguês colocou
seu nome e endereço na folha em branco.
Depois, seu José assinou a folha, e os funcionários
da padaria fizeram o mesmo.

— De noite a gente vem buscar o papel.
Obrigada, seu José!
* * *

— Alô? É da Faculdade de Botânica? —
perguntou Zizi.

— Não, aqui é do setor de Botânica da Faculdade
de Biologia.
— Eu queria falar com um botânico.
— Ah, é? E pra quê?
A moça que atendeu tinha uma voz azeda,
daquelas que parecem proteger o papa. Zizi não
tinha a menor vontade de ficar repetindo histórias.
Piscou o olho para Kanassa, que a ouvia
atento, com a lista telefônica no colo.

— Olha, é um assunto particular e científico,
que só pode ser discutido com quem entende
de plantas... Tem algum botânico aí?

— Escute, aqui é uma faculdade
e se você acha que botânico
é igual planta, engraçadinha,
você...
— Acho que não vai dar —
falou Zizi para Kanassa, tapando
o bocal do fone. Kanassa pegou o
telefone.


— Bom dia, minha senhora... — falou ele
com seu vozeirão. — Eu sou o artista plástico
Kanassa de Moura e minha secretária parece
que não está conseguindo completar a ligação...
Sim... É fundamental eu conversar com algum
cientista que possa me esclarecer uma dúvida a
respeito de uma espécie vegetal...
— Bom, deixa eu ver se o doutor Clóvis está
na sala dele. Um momento.
— Ela vai ver se acha um tal de Clóvis —
falou Kanassa para a garota, tapando o bocal.
Alguns instantes depois:

— Aqui é o professor Clóvis... Que é que
vocês estão pensando que esta faculdade é? Lugar
de passar trote?
— Senhor Clóvis, não é uma piada... Eu
sou...
— O senhor é aquele pintorzinho querendo
publicidade. Eu sei, sim. Não me interessa o
que você está querendo, e passar bem.
Pelo fio do telefone, apenas o "zzzzzzim"
de desligado.

— Droga! — Kanassa bateu o fone, irritado.

Apenas Zizi e Kanassa estavam na sala naquele
momento. O resto da turma tinha ido arranjar
assinaturas.

— Vamos tentar em outra faculdade...
Talvez numa faculdade particular...
— Isso não está adiantando nada, Zizi. Esses
caras pensam que eu sou doido, e pronto.
— Eu não acho que você é doido. Eu gosto
de você.
Zizi olhava para Kanassa com seus olhos
grandes e profundos. O artista acabou sorrindo
para ela. Aproximou-se da garota e estendeu a
mão. Deram um aperto forte, com as mãos abraçadas,
num gesto de força transmitir força.

— Eu fiz café. Você quer?
— Quero.
Os dois foram até a cozinha. Era um sobrado
muito bonito aquele. Muitas pinturas pelas
paredes, desenhos do Kanassa. Zizi não entendia
muito bem aqueles traços e rostos diluídos
pelas cores escuras. Era arte moderna, mas


ela não gostava daquilo — não
por serem modernos. Os desenhos
lhe passavam a idéia de tristeza.
Falou isso para Kanassa.

— Talvez você entenda
mais de pintura do que os críticos
de arte... — Ele passou uma xícara
para Zizi. Andou até uma pintura
em azul-escuro, com apenas
o contorno de um rosto de homem
e dois olhos brilhante brancos. — Este


aqui, por exemplo. Lembro que eu estava muito
deprimido quando pintei. Tinha tido uma briga
terrível com... — parou de falar.

— Com a sua esposa, é isso?
— É, foi com uma garota.
— Você é casado, Kanassa?
— Já fui. Algumas vezes.
— E tem filhos?
— Um só. Do primeiro casamento, mas foi
há tanto tempo... Hoje ele é moço. Está na Europa.
Mora na França.
Kanassa colocou pouco açúcar em sua xícara,
mexeu devagar. Zizi estava sentada à mesa,
encarando o "enigma Kanassa". Gostava dele.
Parecia alguém diferente, alguém que podia
fazer coisas maravilhosas, mas agia como se tivesse
muitos mistérios. Muitos medos.

— Como é o nome dele?
— Roger. Por que você quer saber?
— Não sei... Eu só queria conhecer mais
sobre você.
— Conhecer mais sobrp mim? Para quê?
— ele respirou fundo, passou os dedos pelo cabelo
grisalho. — Nem sei por que estou aqui, me
envolvendo com um bando de crianças... Tudo
por causa de uma árvore! E eu nem gosto de
crianças!
— Isso não é verdade!
— E o que é verdade? Hem? O que é? —
Kanassa largou a xícara com força sobre a pia,
ela se partiu.


Ele começou a andar pela cozinha,
falando alto. Nos olhos, a mesma
expressão da noite anterior, quando
contou à garota sobre a caçada. Um jei



to de falar consigo mesmo, fazer um discurso
sobre Kanassa, como se fossem
duas pessoas diferentes.

— Você não passa de uma pirralhinha. O
que entende da vida?
Zizi pensou em dizer, como na véspera,
que já tinha 14 anos. Mas preferiu ficar quieta,
apenas ouvir — tentar entender aquele homem
cheio de histórias.

— Conheci Adele quando ela estava com
16 anos. Eu tinha uma bolsa de estudos, estava
na França. Foi um caso de paixão. Nós nos casamos
contra a vontade da família dela, e depois
do casamento... Bem, nada deu certo. A gente
brigava pra diabo... Mesmo depois que o Roger
nasceu as coisas não melhoraram. Ela ficou na
Europa com o garoto, eu voltei. Sabe quantas vezes
eu vi o Roger? Sabe quantas? Umas... dez vezes.
Só. Você ainda acredita no titio bonzinho?
Hem? No Kanassa maravilha?
Ele andava pela cozinha e passava os dedos
pelos cabelos, deixando-os desarrumados.
Zizi o olhava fixamente. Não entendia bem a mudança
de comportamento, mas tinha absoluta
certeza de que aquilo era uma espécie de teatro,
como se Kanassa não quisesse que as pessoas
gostassem dele. Como se a amizade de Zizi pudesse
incomodá-lo, e ele agora quisesse se mos



trar mau, para afastá-la.

— Kanassa, você está com medo.
— Eu, medo? E do quê?
— De descobrir que você gosta de crianças.
Que está gostando da gente.
Kanassa suspirou, sentou-se também à
mesa. Pegou uma colher e ficou dando pancadinhas
distraídas na toalha.

— Eu acho que estou é louco, isso sim. Levando
a sério uma doidice dessas.
— Não é isso. Não é doidice, e você sabe
muito bem, Kanassa, como é importante o que a
gente está fazendo.
Kanassa não teve tempo de responder. César
e Pedro invadiram a cozinha. Estavam suados
e muito, muito eufóricos.

— Olhem! Nós conseguimos! As duas listas
estão cheias! — gritou Pedro.
— Só no edifício Mota Neves a gente recolheu
30 assinaturas!
Kanassa olhava os nomes das pessoas,
tanta gente que também acreditava nele... tam


bém se preocupava em salvar a
árvore... Ergueu os olhos dos papéis,
encarou bem dentro dos J i_
olhos escuros de Zizi, depois
olhou o rosto vermelho de César,

o sorriso com ferrinhos nos dentes
de Pedro. Os sentimentos de
dúvida dentro dele, de medo (e
como Zizi tinha adivinhado seus
medos...) foram diminuindo.



Havia motivos para lutar.
Sorriu para Zizi.

— É... Vamos comprar mais papel almaço
e cartolina. O negócio é conseguir muitas assinaturas.
— Vivaaaa! — gritaram os três, enquanto
Kanassa ia buscar dinheiro.
— Pode deixar que eu vou à papelaria —
falou Zizi, pegando o dinheiro.

— E eu vou com você — disse César.
Zizi sentiu de novo o rosto ficando vermelho.


* * *

Edifício George Washington, rua Marcelina,
número 20, apartamento 21. Salviano e Valério
tocaram a campainha.

— Pois não?
— Sabe o que é, a gente...
Mas não continuaram. Salviano conhecia
muito bem aquela pessoa. E aquela pessoa também
o conhecia. Quem atendeu foi o professor
Osmar, que lecionava na escola dele.

— Salviano! O que você está fazendo
aqui? Você não tem aula? — perguntou Osmar,
reparando no uniforme do aluno "cabulador".
— Iiiiih, professor. É uma longa história.
Osmar pediu que os garotos entrassem.
Era um apartamento simples, com estantes
cheias de livros em todas as paredes. Um bebê
brincava no tapete, uma moça simpática sorriu


para eles e depois voltou à cozinha.

— Bom, o que é tão importante que vocês
fugiram da aula hoje?
Salviano mostrou o abaixo-assinado, já
com algumas assinaturas.

— Hummmmm... Eu vi na tevê. Gostei do
Kanassa, é amigo de vocês?
— É — falou Valério, decidido.
— A idéia do abaixo-assinado é muito boa.
É uma forma de pressionar o prefeito... Clarice,
venha cá. Venha ver o que esses danados estão
aprontando.
— A moça se aproximou, leu o cabeçalho
do abaixo-assinado, sorriu. O bebê engatinhou
para ela e acabou no seu colo.
— Legal... Deixa eu assinar — falou ela,
pegando a caneta.
— E quem está ajudando vocês?
Os garotos explicaram o esquema, o mutirão.


— Por que você também não ajuda os meninos,
Osmar? Você ficou tão entusiasmado, ontem,
com a atitude do artista... E hoje você não
tem mais aulas.
— Vocês querem um ajudante? — perguntou
o professor.
— Claro que sim!
* * *

Zizi sempre achou que há algo de ridículo
nos uniformes. Aquilo de querer transformar to



do mundo em uma coisa só, a multidão
de camisas brancas e saias azuis. Mas
ao lado de César não se mostrava constrangida.
César era o tipo de rapaz que
sabia o que queria. Saíram da casa de
Kanassa de mãos dadas, e parecia tão
absolutamente natural que os dois se


dessem as mãos, como seria natural falar "bom
dia" a uma pessoa conhecida. Eles se conheciam,
muito. De um jeito mágico e saboroso...

— O Kanassa é mesmo um cara legal — falou
César.
Zizi concordou com ele, mas não sorriu.
César reparou nisso:

— O que foi? Vocês brigaram?
Zizi contou sobre a reação de Kanassa, o
que ele havia dito sobre o filho, suas dúvidas.
César diminuiu o passo. Os dois continuavam de
mãos dadas. O calor das palmas, para Zizi, era
um doce mormaço.

— Eu acho que ele está com medo de gostar
de nós — concluiu a garota. — Ele tem uma
vida muito solitária...
— É, eu até entendo esse medo dele. É
muita responsabilidade liderar alguma coisa,
um movimento. E depois, Zizi, eu acho que ele
também tem medo de que a gente... Bem, fique
endeusando o Kanassa. Ele quer que a gente perceba
que ele é um cara normal, comum.
— Mas claro! Só que ele tem de perceber
também que podemos gostar dele sem transformar
o Kanassa num super-herói.
Haviam chegado à loja. Ficaram conten



tes quando a balconista contou que já havia assinado
uma lista. César ia separando muitas folhas
de papel almaço e conversando com Zizi:

— As pessoas ficam nessa de "isso não me
interessa", "aquilo não me diz respeito" — imitou
César, debochado. — E isso não é legal. Porque
hoje derrubam uma árvore, amanhã põem
uma lei nova, depois propõem mais uma coisa...
e ninguém faz nada, porque "não diz respeito".
Se a gente, que é jovem, não começa a mudar
isso, não muda nunca.
— Você fala de um jeito legal, César.
Os olhos claros do rapaz olharam bem
dentro dos olhos de Zizi. Ela ficou vermelha e virou
o rosto. Que droga de ficar vermelha! Ele
ainda ia rir dela, achar que era uma garota boba.
Mas César não riu nem continuou a discutir
sobre a participação das pessoas. Ficou sério.
Passou os dedos pelo seu cabelo loiro, depois ia
encostar nos cabelos de Zizi, mas abaixou a mão
e falou, muito, muito baixo, só para ela ouvir:

— Gosto de você, Zizi.
* * *

Edifício Mayflower, rua Marcelina, número
151, 4? andar, apartamento 4. Filipe e Hebe
esperaram muito tempo. Chegaram até a tocar a
campainha de novo. Estavam desistindo quando
a porta foi entreaberta, porque um trinco de
ferro a impedia de abrir completamente. Eles só
viram o rosto moreno de uma moça usando uniforme.



TILJÊÊ^ jf^ TILJÊÊ^ jf^
— Pois não?
Explicaram do abaixo-assinado, da árvore
e coisa e tal. A empregada ficou em silêncio durante
a explicação, como se estivesse vendo dois
malucos-mirins. Quando eles pararam de falar,
ela ainda ficou quieta um bom tempo. Depois
suspirou:

— O raio dessa árvore tá dando mais rolo
que num sei o quê... A patroa num tá não. Mas se
eu fosse vocês largava mão dessa bobagem.
— E por que bobagem? Dona, se a gente...
— Num adianta não, menino. A patroa tava
falando com os amigos dela, falou que hoje de
madrugada vão botar a árvore abaixo.
— Mas como é que sua patroa podia saber
disso? — Filipe estava ainda mais pálido, como
se isso ainda fosse possível para ele, mas era
verdade. O papel tremia em sua mão.
— Ah, dona Juanita é casada com político,
menino. Foi ela que pediu pra cortar a árvore.
— Cortar a árvore? Ela pediu
uma coisa dessas? — Hebe
não conseguia compreender que
motivo uma pessoa teria para
fazer uma maldade dessas. — E
por quê? O que ela tem contra a
árvore?
— É que as flores sujam o
carro dela.

— É melhor você levar as coisas
pra casa do Kanassa — falou Zizi para
César, parando à porta do edifício Cisne
Azul. — É a hora que a gente costuma
voltar da escola, eu tenho de entrar.
Zizi abaixou os olhos e não precisou dizer
nada para que César percebesse que ela estava
preocupada.

— O que foi, Zizi? — Ela segurava os rolos
de cartolina mal-embrulhados com dificuldade.
— É minha mãe. Não sei se ela vai topar
essa luta da gente... Ela não gosta do Kanassa.
Fala que ele é doido.
— Você tem de conversar com ela.
— E se eu contar a verdade e ela não me
deixar sair de casa?
Os dois ficaram em silêncio. O rapaz alto,
segurando um monte de papéis, e a garota de
uniforme escolar, parados na frente do edifício.

— Eu não quero ficar em casa! Eu não
quero ficar longe de você... — ela falou antes de
pensar, e depois corrigiu, mais vermelha do que
nunca — de vocês. De todos vocês.
Mas não adiantou disfarçar. César segurou
seu queixo, quase derrubando a papelada.

— Zizi... de vocês? Quer dizer, do Kanassa,
do seu irmão... ou de mim?
O vermelho estava tão intenso no rosto da
garota, o calor subia pelo rosto, vindo do estômago,
do coração... Zizi não tinha a menor idéia
do que dizer. César continuou tocando o queixo
da garota. E suavemente pressionou para que


ela erguesse os olhos para ele. O rosto de César
foi-se aproximando, devagar. Era um jeito de sonho.
Ela fechou os olhos, porque seria um beijo,
ela queria o beijo, queria sentir os lábios de César
tocando os seus. Foi um instante de magia,
segundos de tempo que pararam de andar, aquele
flash de tempo, quando César se aproximava
de Zizi, e eles só enxergavam os próprios rostos
e só ouviam as batidas dos próprios corações...
até ouvirem os gritos de Débora, quebrando a
magia.

— Como vocês demoraram! A gente precisa
fazer mais listas — falou Débora, ajudando
César rapidamente a carregar os papéis, sem
perceber que havia interrompido alguma coisa
muito importante. Enfiou uma lista nas mãos de
Zizi e continuou falando: — Tó, Zizi. Pede pro
pessoal de sua casa assinar. Já enchemos várias
listas, até o português da padaria está colaborando.
E vambora, César! Tem muito trabalho
pela frente... — e foi falando sobre as listas assinadas,
a colaboração do português da padaria...
César piscou o olho para Zizi e seguiu a
apressada Débora até a casa do artista. Zizi ficou
ainda parada na calçada, hipnotizada pelo
vulto do rapaz, olhando fixamente seus ombros
fortes se afastarem ao lado de Débora.

* * *

Valério e Salviano "passavam bem" na casa
do professor Osmar. Clarice fez questão de


que almoçassem todos juntos e
havia caprichado na comida.

— Já liguei para um amigo
meu. Ele ficou de se encontrar
com a gente na casa do Kanassa!
à
à
1

— falou Osmar, sentando-semesa.
— Ele vai ajudar? — perguntou
Salviano, de boca cheia.
Clarice ia dando a sopa para a filhinha, que insistia
em cuspir tudo.
— Ele é filiado a um grupo ecológico. Pode
crer que sabe brigar pela natureza.
— Grupo ecológico protege as árvores? —
perguntou Valério, repetindo a porção de purê.

— Não só as árvores — Osmar ia se servindo
e falando. — Esse grupo de meu amigo já
conseguiu coisas muito importantes, como impedir
que se usassem pombos vivos numa competição
de tiro.
— Pombos VIVOS? — espantou-se Valério.
— Como assim?
— É, existem clubes de tiro que fazem
competição com pombos. Um menino joga o
pombo para o alto e o atirador dispara. Se matar
o pombo, ganha pontos, e por aí vai.
— Nossa, que horror! — Aquilo tirou um
pouco o apetite de Salviano, que começou a comer
mais devagar. — Mas isso não é proibido?
— Existem alguns absurdos... Vocês
vêem, a legislação protege a fauna selvagem. Como
pombo não é selvagem, o governo não estava

conseguindo impedir a matança. O grupo a que
meu amigo pertence conseguiu impedir um
campeonato se baseando numa lei sobre crueldade
contra animais. Mas foi uma briga e tanto...

— Por muito pouco os homens do clube de
tiro não atiraram na gente — falou Clarice. — Só
quando chegaram jornalistas é que eles pararam
de fazer ameaças.
— Você também estava lá? — Salviano estava
surpreso. Não imaginava que o professor
sério, de voz rouca e com fama de "durão", fosse
alguém tão envolvido com uma causa ecológica.
— Nem eu nem a Clarice somos filiados,
mas sempre participamos, quando a gente pode
ajudar.
— Até a Gabi já participou de passeata —
brincou Clarice, erguendo a rechonchuda Gabi,
que insistia em cuspir metade do almoço. — Ela
ficou uma graça com a camiseta de "Salvem as
Baleias"...

— Puxa! Como tem coisa pra gente participar...
— suspirou Salviano, olhando para Valério,
que concordou, acenando com a cabeça. —
Osmar, você tem de contar
mais dessas coisas nas salas
de aula. Lá no colégio o
pessoal nem imagina que
aconteça isso.

— Vou falar, sim.
Agora é bom vocês irem co\
mendo logo, pra gente sair.
* *


Zizi continuou parada na porta1
do edifício Cisne Azul. Estava bastante
dividida: ou mentia à mãe, inventando
que o irmão tinha ido estudar na casa
de um amigo, e também inventava um
pretexto pra continuar agindo, ou falava
a verdade. E se dissesse a verdade e a
mãe a proibisse de sair?

André chamou por ela. Tinha visto César e
Zizi à porta. Tinha visto bastante coisa.

— Escute, Zizi... O que vocês estão aprontando,
hem?
— Como assim?
O porteiro sorriu para a garota.
— Foi uma luta eu esconder de sua mãe
que você e o Salviano estavam na rua. Gazeteando
aula...
Zizi suspirou.

— André, eu sei que isso tá complicado,
mas... a gente só quer salvar a árvore. Olhe! —
mostrou o abaixo-assinado para ele. — Se muita
gente ficar contra, a prefeitura desiste. Entendeu?
— Huuuuummm... — André foi lendo o
cabeçalho. — Olha, eu também tô do lado do Kanassa.
Faz o seguinte. Deixa essa lista aqui. Meu
horário termina daqui a pouco, eu vou pros
apartamentos, vejo se alguém assina. E tem um
amigo meu, que é porteiro de um edifício no
bairro, ele quebra esse galho.
— André, você é bárbaro! — Zizi abraçou
o porteiro, que sorria para ela.

— Mas tem uma coisa, Zizi. Conta pra sua
mãe, tá bem?
— E se ela...
— Vai ser pior se ela descobre depois.
Não acha?
É, ele tinha razão. Como César também tivera.
Zizi suspirou e nem esperou o elevador,
preferiu subir os dois andares pela escada. Como
Margarida iria reagir?

* * *

O professor Osmar chegou à casa de Kanassa
acompanhado de Salviano e Valério. Seu
amigo, o também professor Sílvio, já esperava
por eles, sentado em seu automóvel. Sílvio era
biólogo, além de participante do grupo ecológico.


— Parece que vocês adivinharam nosso
problema — falou um sorridente Kanassa, estendendo
a mão para os dois homens. Sílvio era
alto, mas, mesmo assim, ficava uma cabeça mais
baixo que Kanassa. — Parece que todos os botânicos
do mundo estão fugindo de mim! — falou
Kanassa, tão logo foi apresentado aos dois professores.
Entraram na sala do sobrado, transformada
em "operação de guerra": crianças escreviam
cartazes de protesto contra a prefeitura.
Crianças telefonavam. Nas mãos de meninos e
meninas, listas de abaixo-assinados chegavam e
saíam. O portão do sobrado estava escancarado,


e se algum desinformado passasse
por ali certamente ia pensar
que a casa de Kanassa era uma
escola infantil. Até o Ígor ajudava.
Ele não sabia escrever, mas
era o "botador" de pingos nos is
dos cartazes contra a derrubada
da árvore.


— Vai ser um prazer ajudar. O Osmar
aqui já me contou mais ou menos o que vocês estão
tramando...
— Nunca pensei que me amarrar numa
árvore fosse dar nessa maluquice! — sorriu Kanassa,
apontando para a dezena de crianças trabalhando.
Fora as que estavam na rua, coletando
assinaturas.
— Eu acabei de observar a árvore — falou
Sílvio. É uma tipuana absolutamente saudável.
Se alguém da prefeitura está alegando que a árvore
ameaça cair logo, isso é mentira.
— Puxa, é bom ouvir um especialista dizer
isso — falou Kanassa. — Ninguém disse que
a árvore pode cair, mas não duvido que a prefeitura
invente alguma coisa assim.
— Eles não alegaram nenhum motivo! —
exclamou Osmar. — É isso que me intriga. A prefeitura
não sai por aí botando árvores abaixo,
sem justificativa.

— A árvore não atrapalha nenhuma garagem
— completou Sílvio. — Não oferece risco de
cair. Pra que cortar?
— Kanassa! Kanassa! — Filipe gritava e

corria. Hebe estava logo atrás dele. — A gente...

— pegou fôlego — a gente descobriu por que
querem derrubar a árvore!
— É! — falou Hebe, também sem fôlego.
— E a gente descobriu quem é que quer botar a
árvore pra baixo! E vai ser hoje.
* * *

Mesa posta, panelas tampadas. O prato
vazio no lugar onde Salviano deveria estar sentado.
Margarida tinha se servido, mas não comia.
Zizi tinha fome, mas também mal tocava na
comida, ouvindo a lengalenga da mãe.

— Isso passou dos limites, Zizi! Você fugir
de casa à noite...
— Eu não fugi — falou a garota, mas a
mãe não queria interrupções.
— FUGIU, sim! Senão, por que não acordou
a gente? Por que não contou, hoje de manhã,
sobre a árvore? E que coisa mais doida, você
dando minha almofada pra aquele louco se encostar
melhor.
Zizi suspirou e deixou Margarida continuar
o desabafo. Conhecia a mãe. Era bem de
seu temperamento estourar, gritar, falar depressa.
Mas, geralmente, quando tinha desabafado
tudo o que queria, era boa ouvinte. E, muitas
vezes, aceitava a crítica. Zizi confiava que
dessa vez também acontecesse isso.

— Mãe... — falou Zizi, quando Margarida
fez uma pausa na conversa e se serviu de uma

colherada de arroz. — Tá bom, eu errei. Você tem
razão, eu não devia ter escondido. Também não
foi legal ter faltado na aula. Eu concordo com
você. Mas mãe... pense bem. Se a gente fica sempre
nessa coisa de "não me diz respeito"... "eu
não tenho nada com isso"... — imitou um jeito
debochado de falar. Num estalo, lembrou que
usava o mesmo argumento de César. O querido
César. — Poxa, mãe... A árvore é derrubada, cada
um pode fazer o que quiser porque ninguém
faz nada contra... Hoje é uma árvore, amanhã é
um imposto, depois de amanhã é o aumento de
um negócio ou outro. A gente precisa agir junto,
se unir.

— Isso é coisa daquele tal Kanassa, não é?
O que ele é, comunista?
— MÃE! Não fala bobagem! Não é coisa
do Kanassa, é coisa da gente — do César, principalmente.
Zizi pensou nisso, mas não falou. —
Ele só se amarrou na árvore, mas quem foi procurar
por ele, quem foi sacando que não podia
deixar as coisas assim, fomos nós. Eu, a Débora,
os irmãos dela. E tem lá na casa dele um montão
de crianças, mãe. Todo mundo está
ajudando... Até o dono da padaria
botou um abaixo-assinado na
padaria dele.

— O seu José? Aquele português
fominha?
Margarida não gostava do
comerciante, desconfiava que ele
roubava no troco. Era um precon




ceito dela contra comerciantes; e, agora, saber
que mesmo o "fominha" estava dando uma força...
Ele podia ser menos interesseiro do que parecia.


— É, mãe. A Débora foi lá e ele topou assinar,
está dando a maior força. Você não entende?
A gente está conseguindo que todo mundo
participe. Não é só um problema com a árvore, é
muito mais.
Margarida deu uma garfada na comida,
agora morna. Zizi acompanhou o gesto da mãe,
mas como a fome era grande deu várias garfadas
apressadas.

— Ah, eu não sei se isso vai dar certo. Se
isso não é arrumar sarna pra se coçar...
A campainha tocou, não daquele jeito normal,
um plim-plom educado. Não. Alguém se
pendurava na campainha, numa sinfonia maluca,
com os pliiii-plim-plim-plom-plom e mais notas
musicais, a ponto de ensurdecer o dono do
apartamento.

— JÁ VOU! — gritou Margarida, indo depressa
até a porta.
Salviano e Valério invadiram o apartamento,
suados e vermelhos, sem falar oi, sem pedir
licença nem nada, passaram pela sala, encontraram
Zizi ainda à mesa e já a estavam puxando
pelo braço:

— Depressa, tem uma reunião na casa do
Kanassa!
— A gente descobriu, entendeu? — gritava
Valério.

— Vai ser hoje, de madrugada!
— gritou Salviano.
— PAREM! — foi preciso
Margarida dar um grito para os
meninos calarem. — Contem direito
essa história.
— Mãe, o pessoal descobriu...
Quem mandou cortar a árvore
foi a vizinha da frente, a dona
Juanita. Ela é amiga de uns caras da prefeitura,
uns caras importantes — falou Salviano.

— E sabe por que ela quer cortar a árvore?
— Valério fez um segundo de silêncio, "curtindo"
o suspense e os rostos curiosos de Margarida
e Zizi. — Porque a tipuana solta flor. E as
flores sujam o carro dela. O Monza preto.
— Nããããão... —A expressão de Margarida
era de profundo espanto. Para ela, até agora,
a derrubada da árvore só se explicaria por algum
motivo correto: ameaçava cair, era perigosa...
Imaginar que a tipuana viria abaixo só por
capricho de uma madame sem garagem...
— O Kanassa convocou uma reunião geral
— falou Salviano. — A gente tem de encontrar o
resto da turma. Vamos, Zizi!
Os três já estavam na porta do apartamento,
ameaçando sair, quando Margarida deu o
grito:

— PAREM!
Três pares de olhos a encararam do jeito
mais desiludido do mundo. O suspense era tão
grande que se poderia ler a aflição deles no bri



lho dos olhos. Margarida se pôs à frente da
porta.

— Primeiro, vocês três vão comer alguma
coisa. — Salviano tentou protestar, dizendo que
já havia almoçado, mas o gesto de mão de Margarida
impediu. — Segundo: Zizi vai tirar o uniforme,
que é pra não sujar, e você também, Salviano.
Não adianta mais me tapear, fingindo que
foram pra escola. E terceiro: esperem eu me trocar
que também vou nessa reunião — Margarida
sorriu. — Estou curiosa pra ver o que o Kanassa
tem a dizer.
O abraço que Margarida recebeu dos três
foi tão forte que ela teve de se apoiar na porta.

* * *

Juanita voltou pra casa às 17 horas. Tinha
feito sauna, e o rosto normalmente corado da
mulher estava um tanto mais vermelho. Sua expressão
era feliz.

— Alguma novidade, Maria?
— Não, senhora. Só uns meninos, passando
abaixo-assinado.
— Abaixo-assinado, é? — Juanita jogou a
bolsa sobre o sofá, já pegando o telefone. Queria
falar com o marido. — E sobre o que era? — Mas
antes de Maria responder, Juanita se preocupou
com outra possibilidade: — Você não assinou,
Maria?
— Não, não, senhora.
— Isso, Maria. Essas coisas de abaixo-as

sinado, essa coisa de fazer bagunça... Não se mete
nisso, é um perigo. Política é só pra quem entende,
isso pode ser coisa de maluco, de comunista...
Nunca assine nada... Já temperou o frango?

— Sim, senhora.
— Então pode ir.
Talvez Maria não entendesse mesmo de
política ou de abaixo-assinados. Talvez tivesse
realmente esquecido de contar que os garotos
protegiam a árvore. Talvez mesmo desse de ombros
— o assunto nada tinha a ver com ela. O
mais importante, entretanto, é que ela nada contou
à patroa. Naquele momento, na casa de Kanassa,
na reunião, eles contavam com um grande
aliado: o fato de saberem a hora em que a prefeitura
ia agir.

* * *

Na sala do sobrado, uma multidão de gente.
Na maioria, crianças, mas estavam lá também
alguns adultos: o professor Osmar e seu
amigo Sílvio; Margarida; o porteiro André e seu
amigo do outro edifício; um representante de entidade
ecológica, que tinha sido avisado por Sílvio.
E a garotada. Aquele mundo de rostos de
muitas idades e jeitos: Débora, Valério, Pedro,
Hebe, Martim, Fafá, Salviano, César, Zizi... e todos
os outros, amigos de amigos, conhecidos distantes
ou vizinhos, gente que havia descoberto
uma causa nova, um motivo pra brigar, ou que
aderia há muito tempo a uma idéia de união, de


defesa do verde.

Eram olhos castanhos, azuis, eram risadinhas
nervosas de quem está se divertindo, era
rosto sério de quem esperava enfrentar uma
guerra. Era gente, muita gente, sentada em almofadas,
poltronas, de pé. Maiores que seguravam
menores no colo, alguns com os dedos manchados
de tinta, outros com o cabelo suarento
de tanto correr atrás de assinaturas. Papéis que
se amontoavam pelos cantos, assinados por
mais e mais gente: gente que se encontrava na
sala, sob a forma de nomes, rubricas e endereços.
Pessoas que uniam sua caneta e sua esperança
na vitória contra a derrubada de uma árvore,
uma tipuana que tinha feito um crime terrível,
crime a ser punido com a derrubada: o de
parir flores amarelas. Flores amarelas que sujavam
o Monza preto de uma madame.

— Vocês entenderam? — Apesar de tanta
gente, o silêncio era quase completo enquanto
Kanassa falava. — Nossa chance de vitória é ficarmos
quietos. Até agora, todo o barulho que
vocês fizeram, toda a participação de vocês foi
muito importante. Mas, agora, nossa arma é o silêncio.
Cada um tem de ir para casa e esperar.
Saber esperar é tão importante quanto saber
brigar...
Eles sabiam o que deviam fazer. E sorriam,
curtindo o prazer da vitória. Zizi se sentia
feliz. Dentro do peito, havia uma felicidade tranqüila.
Estava ao lado de César, e não ficava como
nas outras vezes, agitada e nervosa, sentin



do-se uma idiota. Sabia também que os olhos do
rapaz não se fixavam unicamente em Kanassa.
César ouvia as palavras do artista, mas virava-se
para Zizi, sorria para ela. E Zizi também fazia isso,
sentia-se dentro dos olhos claros de César.
Era como se entre eles houvesse uma cumplicidade
que a multidão não conseguia interromper.
Como se eles pudessem estar na arquibancada
do Maracanã, com milhares de pessoas em volta,
e ainda assim sozinhos. Como se uma eletricidade
envolvesse os dois e os isolasse do resto do
mundo; e também não havia pressa, porque eles
sabiam uma coisa que ninguém mais poderia saber,
e sabiam disso sem precisar de palavras.

— Ninguém tem dúvida? Tudo certo? —
perguntou Kanassa.

"Sins", "okays" e bastante barulho foi a
resposta. O pessoal foi se levantando e falando e
rindo. Era a hora da despedida. Precisavam esperar.


* * *

Juca chegou à hora de sempre.
E, como sempre, esperava
que Margarida já estivesse com o
jantar pronto. Normalmente encontraria
o filho vendo tevê num
volume altíssimo, às vezes com
um ou dois colegas. E também seria
normal se Zizi estivesse discutindo
com o irmão ou no telefone,

\j£

nas longuíssimas conversas com as amigas.


Nada disso acontecia.

O apartamento estava escuro, o
mais completo silêncio o recebia. Apenas
o barulho do motor da geladeira, o
eco marcando o final da frase: "Tem alguém
em casa?". Só isso.

Estranhando profundamente o silêncio e
a ausência de gente, Juca foi à cozinha. Deveria
haver um bilhete, mas não encontrou nada. Ou
melhor, encontrou sim: a louça suja do almoço,
as panelas de comida sobre a mesa. E isso era
ainda mais estranho. Margarida detestava largar
serviço por fazer.

Depois, Juca foi ao quarto, achou melhor
tomar um banho, quem sabe a família aparecia...
Depois do banho, vestiu o short e a camiseta,
ligou a tevê, andou de novo pela casa. Diacho!
Estava com fome, estava curioso. Acabou catando
uma maçã da fruteira, comeu. Estava jogando
o miolo da maçã fora, quando ouviu a chave
virando na fechadura.

— Estava preocupado. Onde vocês... O
que é isso?
Margarida e Salviano entraram, carregados
de cartazes feitos em cartolina. O nome KANASSA
aparecia em muitos deles.

— MARGARIDA! O que deu em vocês?
Juca pegou um dos cartazes, leu:
— KANASSA TEM RAZÃO! VAMOS DIZER
NAO!... Margarida, você enlouqueceu?
o ^

Agora você também, Margarida?... E o jantar?
Margarida foi direto à cozinha. Juca veio
atrás dela, apressado:

— Hoje não tem jantar. É melhor você ligar
e encomendar uma pizza.
— Margarida! E a Zizi?
Margarida parou na porta da cozinha, respondeu
e entrou:

— Está lá embaixo com um rapaz.
— Com O QUÊ??? Um RAPAZ, Margarida?
— Juca viu que a esposa não o ajudava muito,
virou para o filho. — Salviano, o que está
acontecendo?
— Iiiiiih, pai. É melhor você sentar que a
história vai looooonge...
•k -k -k
Eram 8 horas da noite, a rua Marcelina estava
em silêncio. Uma tranqüila quarta-feira, poderia
pensar qualquer pessoa que não soubesse
dos acontecimentos. Uma noite estrelada — na
medida em que a gente pode enxergar estrelas
numa cidade poluída e cheia de prédios. Mas para
Zizi e César era possível ver, sim, um
céu estrelado. Os dois ficavam de mãos
dadas, na porta do edifício. Talvez estivessem
se sentindo daquele jeito que só
os apaixonados ficam, com um zumbido
nos ouvidos e um sorriso bobo nos lábios.
De um jeito que não precisa falar
muito, parece que os pensamentos po




dem ser lidos. Apenas pelo outro, é claro. Estavam
encostados na grade do prédio, e ambos
olhavam para a tipuana.

— Será que ela sabe que está sendo a causa
de tanta bagunça?
— Talvez — falou César. — Tem gente que
fala com planta. Diz que elas crescem mais, ficam
mais bonitas, se você conversar com elas.
— Vamos tentar?
Ainda e sempre de mãos dadas, César e
Zizi se aproximaram da árvore. Zizi encostou a
mão no tronco, um tronco cheio de riscos e pequenos
buracos, caminhos para as formigas e
para a água da chuva. Com uma mão apoiada na
árvore e outra grudada na de César, Zizi começou
a falar:

— Dona Tipuana, a senhora talvez não saiba
do perigo que está correndo. Se não fosse por
um homem chamado Kanassa de Moura, a senhora
ontem mesmo já teria virado madeira.
César interrompeu:

— E se não fosse também pela coragem de
uma garota chamada Zizi, a senhora teria morrido.
César sorriu para Zizi, ela abaixou os
olhos e continuou falando:

— Eu nunca pensei muito sobre as árvores,
sobre a natureza. Mas sempre gostei da senhora,
mesmo sem dar muita atenção a isso. É
porque a senhora tem flores amarelas, que sujam
o carro de uma madame. Ela pensa que pode
matar uma árvore só por causa disso. E eu

sei, dona Tipuana, é importante a senhora continuar
viva. Sabe, a senhora é dona da rua, e não
nós. A gente não pode derrubar tudo só porque a
gente quer. Então, dona Tipuana, olha... Um
abraço, viu?

Zizi quis soltar a mão da mão de César,
mas ele não deixou. Os dois continuaram de
mãos dadas e uniram seus corpos ao corpo da
árvore, dando um abraço em seu tronco. De um
jeito apertado, feliz. Depois, se desprenderam
do tronco. E estavam um diante do outro. César
passou os braços em torno do corpo de Zizi, como
ambos haviam feito com a árvore. Um abraço
apertado, o encontro de dois corpos que começavam
a se entender e a se gostar. Depois, César
segurou o queixo da garota. Nunca os olhos
grandes de Zizi pareceram tão grandes e tão iluminados.
E os lábios de César se aproximaram
dos de Zizi, finalmente se tocando.

E como testemunha e cúmplice dessa magia,
a árvore. A grande tipuana.

Existem duas cidades
dentro de uma.

Existe aquela que
desperta às 6 ou 7 horas da
manhã, com os olhos cheios
de sono e as pernas cheias
de pressa. Aquela que se
aperta nos ônibus e trens,



que boceja no volante dos automóveis, que tem
um horário para o serviço, tem uma aula ou uma
prova, que vive dentro de milhares de pessoas
pelas ruas, comprando e vendendo, marcando
compromissos e virando multidão.

E existe a outra. Aquela que só começa a
existir depois que a multidão se vai, depois que
as luzes das casas e apartamentos começam a se
apagar e o silêncio do sono vai percorrendo as
ruas. Essa outra cidade tem ruas vazias de gente
e pouco barulho, poucos carros e um ou outro
morador, aqueles que se apertam nos bares e
nas boates, ali sim, locais onde a noite é alegre.
Mas, na maior parte, a cidade noturna está silenciosa
e escura.

A rua Marcelina fazia parte dessa cidade
noturna, na madrugada de quarta para quinta-
feira. Não havia vento, apenas o frio comum às
madrugadas. A iluminação fazia sombras azuladas
e ninguém caminhava pela pequena rua. Os
galhos da tipuana faziam a sombra ser ainda
mais acentuada naquele trecho.

Primeiro, um fusca estacionou bem em
frente do edifício Mayflower. Era cinza, e o luminoso
da capota, mesmo desligado, indicava
que era um carro da polícia. Era lh40.

O caminhão fez um pouco mais de barulho,
ainda mais porque o silêncio do local acentuava
o ronco do motor e do escapamento. Dois
homens na carrocería, dois homens na cabine. O
logotipo da prefeitura desenhado na porta.

— Vamos logo — falou Betão, ajeitando

um boné na careca. — Dessa vez a gente consegue.
Os outros dois homens desceram depressa.

— Se essa árvore hoje não for pro chão,
acho que cai é o emprego da gente — falou o mulato
para os ajudantes.
Serra elétrica, serrotes e cordas foram
descidos do caminhão. Eles pegavam as ferramentas
com cuidado — não pelo valor dos objetos,
mas para não fazer barulho.

Não conseguiram. De cima da árvore, a
voz forte de Kanassa se fez ouvir:

— SURPRESA! — falou para Betão. E depois
gritou para os edifícios da rua: — É agora,
pessoal!
E o que Betão viu, ele não esquece mais na
vida: as luzes se acenderam imediatamente, comandadas
pela voz de Kanassa. E as janelas se
abriram: havia dezenas, centenas de pessoas nas
janelas, balançando cartazes, soltando fogos,
iluminando a rua e a árvore com lanternas e velas.
E gritos, todos os gritos, em vozes de homens,
crianças, mulheres.

— KANASSA TEM RAZÃO! A ÁRVORE
NÃO CAI NÃO!
— VAMOS SALVAR A ÁRVORE!
— VIVA O VERDE!
Os funcionários se viram *
envolvidos por papéis, gritos, por
uma chuva de "nãos" e "vivas";
eram pessoas que gritavam das
janelas, que saíam dos prédios,


iluminavam e coloriam a rua
Marcelina, modificando o visual
noturno, deixando-a festiva em
plena madrugada. E logo o cami



nhão estava envolvido por aquela
multidão, e logo mais duas ou
três crianças subiram também na
árvore, sentaram-se ao lado de[
Kanassa.


Os policiais tentaram ajudar os funcionários,
mas nem conseguiam chegar à árvore. Sílvio
grudou num dos policiais, explicando sobre
tipuanas e botânica. Outro, mais nervoso e violento,
tentou abrir caminho ameaçando as pessoas
com uma arma, mas teve de guardá-la depois
que Juca gritou:

— Você está louco? Olha o que tem de
criança aqui!
Ninguém encostava a mão nos funcionários,
mas o medo deles era tão grande que os
quatro haviam subido na carroceria, espantadíssimos,
e assustados com tanta gritaria e papelada,
sem saber como o "louco" da árvore tinha
conseguido contagiar uma multidão.

Com tanto barulho, mesmo quem não havia
ficado sabendo dos abaixo-assinados ou da
reunião acabou acordando e abrindo janelas.
Foi o caso de Juanita e Gregório.

— Greg, pelo amor de Deus! O que é isso?
Bem diante do edifício Mayflower havia
cartazes: JUANITA, VENDE O CARRO; A ÁRVORE
É MAIS IMPORTANTE QUE O CARRO DA


JUANITA e outros que, mesmo sem citar o nome
da mulher, tinham tudo a ver: VIVA O VERDE!
ABAIXO OS CARROS!, A PREFEITURA ASSASSINA
O VERDE. E eram tantos e tanta gente,
que a mulher primeiro ficou histérica, gritando
contra as pessoas, ali mesmo de sua janela. Depois
começou a chorar enquanto gritava, e só
restou ao marido fechar a janela e ligar correndo
para um médico, para lhe dar um calmante.

E logo chegaram tevê, rádio e jornalistas,
porque era uma festa fora de hora, mas muito
importante. E as listas de assinaturas foram
mostradas, muitas crianças foram entrevistadas,
o Sílvio deu um depoimento botanicamente
importante. Mais gente, de outras ruas, acabou
chegando pra saber o que acontecia. E um dos
vizinhos colocou o som no máximo, tocando música
de carnaval. E gente que estava nos bares e
boates acabou aparecendo. E começaram a dançar.
Também a padaria abriu fora de hora e começou
a vender cerveja. Tinha gente que não sabia
mais se ali se comemorava um aniversário
ou se fazia um protesto, porque era muita alegria,
misturada com cartazes, gritos e risadas. O
grupo de músicos de uma boate resolveu
aderir. Subiram na carroceria do


caminhão da prefeitura, pediram licença
para os quatro apavoradíssimos funcionários
e foram — ao vivo — acompanhando
a música de carnaval que saía
da vitrola...


Kanassa, sentado na árvore ao lado de


Salviano e Pedro, sorria. Aqueles dois dias tinham
sido os mais intensos de toda sua vida,
muito mais do que quando fazia exposições ou
viajava ao exterior. Toda sua arte lhe parecia
menor diante da possibilidade de ser o detonador
de um movimento tão importante, tão verdadeiro.


Com tanto barulho, Kanassa não conseguia
ouvir o que Salviano dizia. Apenas abraçava
os garotos e ia olhando. Ia "caçando" aqueles
seus amigos recentes, tão importantes para a vitória:
localizou o porteiro André, sem camisa,
dançando no improvisado carnaval, abraçado a
uma garota. Viu Martim amarrando uma faixa
num poste, ajudado por Fafá e Débora. Viu Valério
e Hebe na janela de um apartamento, jogando
papel picado. Viu o professor Osmar, com dificuldade
para soltar um rojão. Viu Juca e Margarida,
à porta do edifício, abraçados de um jeito
muito feliz. E viu também Zizi e César, logo
ali, embaixo da árvore, se dando um beijo.

E Kanassa sorria. Apenas sorria. Pedro e
Salviano desceram da árvore para participar da
farra, mas ele ficou. Sabia que ainda não havia
vencido completamente, que no dia seguinte
eles precisariam ir até a prefeitura entregar as
assinaturas. Sabia que podiam ter vencido hoje,
mas que outros ataques poderiam acontecer —
não só contra aquela árvore, mas contra a natureza,
em qualquer outro lugar. Sabia que o entusiasmo
das pessoas precisaria ser renovado, que
a união conseguida precisaria prosseguir. E ali,


sentado no galho da tipuana, Kanassa de Moura
tomou uma decisão, uma decisão muito impor-
r tante...

— O MOVIMENTO EM TORNO DO ABAIXO-
ASSINADO SE DEU DEVIDO À FORTE
PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS EM DEFESA
DA TIPUANA DA RUA MARCELINA. A MENINA
ELISA RANGEL, DE 14 ANOS, LIDEROU O MOVIMENTO...
— leu Juca, em voz alta, para Margarida
ouvir a notícia de jornal. — A nossa Zizi
acabou virando líder...
— Psiu — falou Margarida,
ajeitando a tevê. — Vai começar o
noticiário.
Aquele acabou sendo um
feriado inesperado. Foram dormir
quando o sol já estava alto e
ninguém foi trabalhar ou à escola.
E agora, no noticiário das 16
horas, a orgulhosa mãe de Zizi
queria saber da filha. E de Salviano. E de Kanassa.


Primeiro, a jornalista relembrou os fatos:
falou sobre Kanassa amarrado à árvore, mostrou
cenas gravadas naquela ocasião. Depois,
apareceu uma entrevista com Plínio.

— Hum, então é esse o "mandante do crime"...
— falou Juca, ajeitando-se no sofá, para
ver a entrevista.

— INSISTO EM DIZER
QUE É UMA CALÚNIA AFIRMAREM
QUE DEI ORDEM DE CORTAR
A ÁRVORE APENAS POR
FAVOR PESSOAL... — dizia Plínio.
— MAS GREGÓRIO E JUANITA SÃO
SEUS AMIGOS... — insistia a repórter.
— SÃO, EU NÃO NEGO. MAS EU SOU
ADMINISTRADOR DE UMA ÁREA DA CIDADE,
SERIA INADMISSÍVEL QUE MANDASSE CORTAR
UMA ÁRVORE APENAS POR CAUSA DO
CAPRICHO DA ESPOSA DE UM AMIGO...
— Cínico! — falou Margarida, fazendo
uma careta.
A segunda parte da reportagem se passava
na porta do apartamento 4 do edifício Mayflower.
A repórter falou da porta, porque A EMPREGADA
DISSE QUE O CASAL GREGÓRIO E JUANITA
NÃO SE ENCONTRA E NÃO PRETENDE
DAR ENTREVISTAS.

— A maluca chata agora deu no pé — falou
Margarida. — Eu não cumprimento mais
essa mulher.
E depois veio a parte tão esperada pelos
pais dos garotos: a hora em que Kanassa, ao lado
de Zizi e Salviano, entregava pessoalmente ao
prefeito as milhares de assinaturas contra a derrubada
da árvore.

— ESSE É UM EXEMPLO CÍVICO QUE
DEVE SER RESPEITADO — falou o prefeito, fazendo
pose para a câmera.
— É outro safado — falou Juca. — Agora

^^
vem aí posar de bonzinho.
— O prefeito não sabia de nada, Juca. —
Margarida havia votado nele. E detestava imaginar
que tinha estragado seu voto. — Foi o administrador...


— Mas quem escolheu o administrador
foi ele.
— Bom, mas você...
— Psiu, olhe!
REPÓRTER — E por que você começou a ajudar
o Kanassa, Elisa?
ZIZI — Porque todo mundo falava que
ele era louco, era louco... Aí eu
me perguntei: Será que é louco
mesmo? Só porque não deixou
que cortassem a árvore? Então
eu acho isso muito importante,
porque se uma pessoa age de
um jeito diferente, a gente tem
de pensar se não é por um bom
motivo. O Kanassa só fez aquilo
pra proteger a tipuana, e depois
nós encontramos um outro
^ jeito, desde que juntasse bastante
gente.

Apareceu o comercial.

— A Zizi estava uma gracinha — falou a
orgulhosa Margarida.
* * *


— Pena que você vai viajar, Kanassa.
Zizi estava na casa do artista, ajudando-o
a cobrir os móveis com lençóis e a guardar os
objetos mais frágeis.

— Vai ser só por uns meses, Zizi.
— Meses! Se fosse só uma semana eu já
estava com saudade. E você fala "meses" como
se fosse assim, já!
— Zizi... é que, com 14 anos, o tempo parece
tão comprido... Depois de uma certa idade, a
gente pensa diferente.
Zizi ficou olhando pela janela, para o jardim
do sobrado. Tinha prometido regar as plantas
todos os dias. Sabia que a decisão de Kanassa
era importante, mas a saudade já incomodava.


— Durante um mês eu vou estar na França.
Quero ficar com meu filho, conversar com
ele... Eu te falei da carta, não?
— Falou.
Kanassa havia escrito para Roger, contado
sobre a árvore, explicado coisas que não se
explicam, a não ser quando alguém toma decisões
importantes. Falou que gostaria de conhecer
o filho, não como filho, mas como amigo. Roger
havia respondido de um jeito muito legal, e
agora vinha o encontro.

— Depois nós voltamos para o Brasil. Eu
falei com o Roger sobre isto. Conhecer o Brasil,
viajar. Estou sentindo que começa uma nova fase
pra mim, pra minha pintura. Quero ver, sen

tir este Brasil, suas cores... Colocar isso nas telas.
E depois...

— E depois vem a Fundação
Kanassa. — Zizi também sabia
dessa parte dos planos. O sobrado
ia ser reformado e iria virar
uma entidade de preservação
da natureza.
— Com você como presidenta
de honra — falou Kanassa,
mas viu que a garota continuava
triste e distante, olhando pela janela.
Aproximou-se dela.

— O que é? Brigou com o César?
— Não... seu tonto. É sobre você. Eu sei
que você está feliz, eu sei que está fazendo as
coisas certas, mas... diacho! Eu não consigo deixar
de ficar triste...
Duas lágrimas se penduravam nos olhos
da garota. Ela esfregava os olhos, mas logo outras
duas apareciam. Kanassa limpou uma das
lágrimas. Abraçou Zizi.

— Ah, Zizi... Você não imagina como ficou
importante para mim. Você é uma filha, sabe?
Por decisão minha.
— Nossa... — ela murmurou.
Zizi tentou sorrir, só que mesmo assim as
lágrimas continuaram molhando o peito do homem.


— Poxa, Kanassa... Se eu sei que você está
certo, por que eu fico triste? Por que eu penso

em mim, em vez de pensar no que é melhor para
você?

— Zizi... porque é assim mesmo. Gente é
muito complicada. Gente é essa contradição. —
Kanassa passava os dedos pelo cabelo comprido
da menina. Ela havia desistido de prendê-lo, e
agora deixava o cabelão solto nas costas. — Vai
ver, é isso que faz as pessoas interessantes.
Kanassa e Zizi continuaram abraçados,
até ouvirem a campainha. Da janela, deu pra ver
que era César.

— Vá passear com ele. Deixa que eu cuido
do resto — falou Kanassa.
— Tá bom.
Outro abraço, dessa vez menos triste. Zizi
caminhou até a porta, achando estranhamente
feia a casa esvaziada de objetos e com alguns
lençóis tapando móveis. Havia passado um mês
desde a "Guerra da Tipuana", como alguns jornais
chamaram o movimento.

Zizi estava virando a maçaneta, quando se
lembrou. Lembrou que, mesmo tendo conversado
tantas e tantas vezes com Kanassa, nunca havia
perguntado sobre aquilo.

— Kanassa...
— Sim?
— Sabe que eu nunca perguntei por que
você tem esse nome? Kanassa?
Ele largou o abajur que estava embrulhando
e olhou para ela.

— Meu pai gostava dos índios e me deu
um nome indígena. É uma espécie de deus, que

trouxe o fogo para os índios. Eu sempre associei
esse "trazer o fogo" com o fato de ser artista, e
me orgulhava de meu nome por isso... a "chama
da arte" — ele falou em tom brincalhão. — Mas
depois dessa briga pela árvore, eu acho que prefiro
"botar fogo" em outras coisas.

— Kanassa... deus do fogo. É bonito.
Tchau, guerreiro. Boa viagem.
— Tchau.
Zizi abriu a porta e recebeu o beijo delicado
de César, seu abraço. César sabia que a namorada
tinha motivos para ficar triste. Antes de
irem para a casa de Zizi, ainda ficaram olhando
a rua. No edifício Mayflower, a placa de "Vende-
se" indicava a derrota definitiva de Juanita. Pela
calçada, dezenas de flores amarelas pareciam
mostrar a alegria da tipuana, que nunca havia
florido tanto como naquela primavera.

Zizi depois olhou para o sobrado, viu Kanassa
na janela de cima, acenando para eles.
O casal acenou de volta, e Kanassa ficou um
bom tempo ali, vendo os dois se afastarem, abraçados.



É preciso lutar - livro paradidático - Márcia Kupstas




É preciso lutar!, de Mareia Kupstas,

aborda dois temas muito próximos: o amor e a ecologia.

Para que ambos sejam preservados é preciso carinho,

atenção, descobertas e conquistas diárias.

Tanto uma árvore como um amor podem contar

histórias seculares de encontros e desencontros.

Uma velha tipuana conseguirá sensibilizar

pessoas muito ocupadas com o seu dia-a-dia?

Criança tem capacidade para mobilizar a opinião

Pública? Zizi, com sua timidez, conquistará César,

o loiro de cabelos cacheados?

A união das pessoas será mais forte que

o mesquinho interesse dos políticos?



 Link(livro): http://www.ziddu.com/download/12684232/PrecisoLutar-MarciaKupstas.doc.html




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2 comentários:

Tomás Polo disse...

foi bom

Familia Pantoja Vitoriano disse...

Parabens pela postagem do Livro "É preciso Lutar". Procurei muito e não achava, meu sobrinho estava precisando e nem comprar conseguimos. Que voce possa ser sempre abençoado pelo bem que faz as pessoas. Muita Luz e felicidade em tudo no seu caminhar.

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